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Uma análise crítica do discurso sobre a atuação social do Porto Digital no Bairro do Recife, PE: poder, tecnologia e política inclusiva

A critical discourse analysis on the social performance of Digital Port in Bairro do Recife, PE: power, technology and inclusive politics

Un análisis crítico del discurso sobre la acción social de Porto Digital en el Barrio do Recife, PE: poder, tecnología y política inclusiva

Resumo

Este trabalho apresenta como temática geral o funcionamento do parque urbano tecnológico Porto Digital, localizado no Bairro do Recife, PE. Trata-se de um empreendimento voltado para o setor de Tecnologia da Informação e da Comunicação (TIC), cujo faturamento econômico anual é de aproximadamente R$ 2,86 bilhões. A pesquisa teve como objetivo investigar o discurso do Porto Digital sobre sua atuação no Bairro do Recife a partir da análise do seu Manual de Responsabilidade Social Empresarial. Para a construção do aporte teórico, recorreu-se aos estudos de Fairclough (2001)FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução de Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. sobre a Análise Crítica do Discurso; Thompson (1995)THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995., com os meios de manifestação da ideologia; e Gramsci (1971GRAMSCI, A. et al. Selections from the prison notebooks. London: Lawrence and ishart, 1971.), para debater sobre as relações hegemônicas. Na metodologia, adotou-se um modelo qualitativo analítico, fundamentando-se no modelo tridimensional proposto por Fairclough (2001)FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução de Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001., mediante a aplicação das seguintes etapas estratégicas: 1ª - percepção de um problema social com aspectos semióticos; 2ª - identificação de obstáculos para que o problema seja superado; 3ª - investigação da função do problema na prática; 4ª - investigação de possíveis modos de ultrapassar os obstáculos; 5ª - reflexão sobre a análise. Como resultado, pôde-se identificar a presença de uma ideologia neoliberal, cuja ordem discursiva tem como finalidade garantir a manutenção e permanência do domínio do empresariado, que, por sua vez, está se institucionalizando como agente de transformação na cidade do Recife.

Palavras-chave:
Análise Crítica do Discurso; tecnologia; poder; neoliberalismo

Abstract

This work presents as a general theme the functioning of the urban technological park Porto Digital, located in the Bairro do Recife, PE. It is an enterprise aimed at the Information and Communication Technology (ICT) sector, whose annual economic revenue is approximately R$ 2.86 billion. The research aimed to investigate the discourse of Porto Digital about its performance in the Bairro do Recife from the analysis of its Manual of Corporate Social Responsibility. For the construction of its theoretical contribution, we resorted to studies by Fairclough (2001)FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução de Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. on Critical Discourse Analysis; Thompson (1995)THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. with the means of manifestation of ideology; and Gramsci (1971GRAMSCI, A. et al. Selections from the prison notebooks. London: Lawrence and ishart, 1971.) to discuss hegemonic relations. In terms of methodology, we adopted an analytical qualitative model, based on the three-dimensional model proposed by Fairclough (2001)FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução de Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001., through the application of the following strategic steps: 1st - perception of a social problem with semiotic aspects; 2nd - identification of obstacles to overcome the problem; 3rd - investigation of the role of the problem in practice; 4th - investigation of possible ways to overcome obstacles; 5th - reflection on the analysis. As a result, it is possible to identify the presence of a neoliberal ideology, whose discursive order aims to guarantee the maintenance and permanence of the domain of the business community, which, in turn, is institutionalizing itself as an agent of transformation in the city of Recife.

Keywords:
Critical Discourse Analysis; technology; power; neoliberalism

Resumen

El presente trabajo presenta como tema general el funcionamiento del parque tecnológico urbano Porto Digital, ubicado en el Bairro do Recife, PE. Es un emprendimiento dirigido al sector de Tecnologías de la Información y la Comunicación (TIC), cuya facturación económica anual es de aproximadamente R$ 2,86 mil millones. La investigación tuvo como objetivo investigar el discurso de Porto Digital sobre su actuación en el Bairro do Recife a partir del análisis de su Manual de Responsabilidad Social Empresarial. Para la construcción de su aporte teórico, se recurrió a los estudios de Fairclough (2001)FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução de Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. sobre Análisis Crítico del Discurso; Thompson (1995)THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995., con los medios de manifestación de la ideología; y Gramsci (1971GRAMSCI, A. et al. Selections from the prison notebooks. London: Lawrence and ishart, 1971.), para discutir las relaciones hegemónicas. En cuanto a la metodología, se adoptó un modelo cualitativo analítico, basado en el modelo tridimensional propuesto por Fairclough (2001)FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução de Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001., mediante la aplicación de los siguientes pasos estratégicos: 1° - percepción de un problema social con aspectos semióticos; 2º - identificación de obstáculos para superar el problema; 3º - investigación del papel del problema en la práctica; 4º - investigación de posibles vías para superar los obstáculos; 5º - Reflexión sobre el análisis. Como resultado, es posible identificar la presencia de una ideología neoliberal, cuyo orden discursivo apunta a garantizar el mantenimiento y permanencia del dominio del empresariado, el cual, a su vez, se está institucionalizando como agente de transformación en la ciudad de Recife.

Palabras clave:
Análisis Crítico del Discurso; tecnología; poder; neoliberalismo

1 INTRODUÇÃO

Atualmente, os cenários urbanos estão passando por constantes transformações. Debates em torno de cidades inteligentes e o seu papel na economia global vêm se intensificando (Sassen, 1998SASSEN, Sáskia. As cidades na economia mundial. São Paulo: Studio Nobel, 1998.). Kanter e Litow (2009)KANTER, R. M.; LITOW, S. S. Informed and interconnected: a manifest for smarter cities. Harvard Business School General Management Unit Working - SSRN, Boston, Paper n. 09-141, [s.p.], jun. 2009. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1420236. Acesso em: 14 out. 2021.
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conceituam smart cities como lugares capazes de conexão inovadora de cada subsistema da urbe com a Tecnologia da Informação e da Comunicação (TIC). Cruz (2003CRUZ, Tadeu. Sistemas de informações gerenciais: tecnologia da informação e a empresa do século XXI. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003., p. 26), por sua vez, conceitua essa tecnologia como “todo e qualquer dispositivo que tenha capacidade para tratar e ou processar dados e ou informações, tanto de forma sistêmica como esporádica, quer esteja aplicada no produto, quer esteja aplicada no processo”.

Em uma visão de cidade gerenciada pela inteligência humana e pelo desenvolvimento das TIC, podem gravitar modelos de negócios por meio da criação dos bairros criativos. O principal alicerce de funcionamento é a Economia Criativa, evidenciada por toda e qualquer atividade embasada no conhecimento e desenvolvimento intelectual (Bendassolli, 2009BENDASSOLLI, Pedro F. Indústrias criativas: definição, limites e possibilidades. Revista de Economia e Administração - ERA, São Paulo, jan./mar., n. 1, v. 49, São Paulo, 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rae/v49n1/v49n1a03.pdf. Acesso em: 26 set. 2021.
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).

Nos últimos anos, a Economia Criativa é responsável por uma parcela significativa da movimentação econômica mundial. Em uma pesquisa da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan, 2019FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO [FIRJAN]. Indústrias criativas - mapeamento da indústria criativa no Brasil. Rio de Janeiro: Firjan, 2019. Disponível em: http://www.firjan.com.br/EconomiaCriativa/pages/default.aspx. Acesso em: 10 set. 2020.
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), há indicadores brasileiros de 2017, nos quais o Produto Interno Bruto (PIB) Criativo representou 2,61% da riqueza gerada no País, em torno de R$ 171,5 bilhões. Em Pernambuco, o setor representa 1,9% do PIB, o maior do Nordeste (Firjan, 2019FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO [FIRJAN]. Indústrias criativas - mapeamento da indústria criativa no Brasil. Rio de Janeiro: Firjan, 2019. Disponível em: http://www.firjan.com.br/EconomiaCriativa/pages/default.aspx. Acesso em: 10 set. 2020.
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). Supõe-se uma associação de sentidos com o Parque Tecnológico Urbano Porto Digital.

O Parque, inaugurado no Recife, no ano de 2000, como fomento para políticas públicas estaduais para as áreas de TIC, ergue-se no tripé Academia, Mercado e Governo, para o qual são investidos, aproximadamente, R$ 44 milhões (Marques; Leite, 2008MARQUES, Juliana; LEITE, Carlos. Clusters como novas possibilidades de regeneração urbana e reestruturação produtiva: o caso do Porto Digital, Recife. Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Recife, v. 5, n. 1, p. 1-17, 2008.). Entretanto, a ideia vinha sendo fomentada desde 1990, a partir de ações públicas visando ao desenvolvimento econômico do Estado, com a aludida tecnologia transformando o entorno em um bairro criativo.

Em dezembro de 2000, criou-se uma organização social (OS) no estado de Pernambuco, sem fins lucrativos e de gerenciamento privado, de acordo com política federal. Trata-se do Núcleo de Gestão do Porto Digital (NGPD), composto por representantes do poder público e privado, a impelir a respectiva gestão social. O NGPD coloca o porto como um ambiente de inovação e empreendedorismo das áreas de TIC e Economia Criativa, convertendo-o em provedor de competitividade para criação, atração e fortalecimento de empreendimentos inovadores, caracterizando-se como um dos primordiais pilares da economia do futuro de Pernambuco e uma das âncoras do desenvolvimento sustentável do estado (Porto Digital, 2021PORTO DIGITAL. O que é o Porto Digital? Recife, 2021. Disponível em: https://www.portodigital.org/parque/o-que-e-o-porto-digital. Acesso em: 3 nov. 2021.
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).

Em função desses propósitos (Porto Digital, 2021PORTO DIGITAL. O que é o Porto Digital? Recife, 2021. Disponível em: https://www.portodigital.org/parque/o-que-e-o-porto-digital. Acesso em: 3 nov. 2021.
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), ao se intitular como uma política pública, atuante em parceria com os setores civis, é relevante, em termos acadêmicos e mercadológicos, pesquisar a articulação e os reflexos de seu discurso na sociedade local.

Em consonância, o presente estudo tem como objetivo investigar o discurso do Manual de Responsabilidade Social Empresarial do Porto Digital sobre sua atuação no Bairro do Recife. É destacado, como conflito social, o processo de ocupação do território do Bairro do Recife, fundamentado no pressuposto de uma hegemonia de práticas discursivas neoliberais, pautadas por uma ideia de Economia do Conhecimento, conceito clássico criado por Drucker (2001)DRUCKER, P. F. O melhor de Peter Drucker: a sociedade. Tradução de Edite Sciulli. São Paulo: Nobel, 2001. para se referir à aplicação de qualquer campo de saber ou fonte, como estímulo ao desenvolvimento econômico.

Com base na problemática apresentada, foram elaboradas as seguintes perguntas-chave. A primeira, sobre o público-alvo do Porto Digital: para quem o parque fala e qual a finalidade de seu discurso? Além disso, quais são os interesses do NGPD ao abraçar a responsabilidade social empresarial?

Tais respostas serão obtidas por meio do diálogo entre a Análise Crítica do Discurso (ACD) e a teoria do Realismo Crítico, tendo em vista que ambas têm como base os fluxos entre as práticas teóricas e as práticas daqueles que as executam. A ACD preocupa-se particularmente com as relações dialéticas entre as transformações discursivas e mudanças na vida social contemporânea.

Trata-se de uma abordagem que analisa o discurso por meio de suas relações de causalidade e determinação entre: (a) as práticas discursivas, as quais dizem respeito aos eventos e à produção; e (b) as estruturas sociais e culturais. Por intermédio da investigação entre ambas, a ACD objetiva identificar como se manifestam discursivamente as lutas de poder e resistência, formadas pelo consumo, pela produção e pela distribuição de textos, por sua vez desenvolvidos ideologicamente, por meio de associações hegemônicas (Fairclough, 2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução de Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001., p. 35).

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Em primeiro lugar, a ACD está respaldada na crítica e no desvelamento de problemas oriundos das práticas sociais, buscando soluções, inclusive semióticas, para a superação (Fairclough; Chouliaraki, 1999FAIRCLOUGH, Norman; CHOULIARAKI, Lilie. Discurso na modernidade tardia. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.). É preciso transcender a divisão positivista entre estrutura e ação, desenvolvendo uma epistemologia denominada “estruturalismo construtivista”. Por um lado, é orientada por sistemas de correlação que constituem permanências relativas no interior das respectivas práticas. E igualmente se torna construtivista ao examinar como esses sistemas são produzidos e modificados através da ação social.

Com o Realismo Crítico, busca-se compreender as conexões e os significados entre os processos estudados, na perspectiva de que este não é o único caminho para as explicações causais, até mesmo porque os efeitos também podem atuar como causas (De Barros; Vieira; de Melo Resende, 2016BARROS, S. M.; VIEIRA, V.; RESENDE, V. de M. Realismo crítico e análise de discurso crítica: hibridismos de fronteiras epistemológicas. Polifonia, Cuiabá, v. 23, n. 33, p. 11-28, 2016. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/polifonia/article/view/3874. Acesso em: 29 set. 2023.
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). Em outras palavras, os referidos eventos e as aludidas estruturas fazem parte da realidade social, na qual a sociedade deixa de ser percebida como uma criação dos seres humanos, passando a ser vislumbrada com uma preexistência a partir deles (Ramalho, 2007RAMALHO, V. C. V. S. Diálogos teórico-metodológicos: análise de discurso crítica e realismo crítico. Cadernos de Linguagem e Sociedade, Brasília, v. 8, p. 78-104, 2007.).

A partir do entendimento de que a ACD considera questões sociais, em parte, questões discursivas (Fairclough; Chouliaraki, 1999FAIRCLOUGH, Norman; CHOULIARAKI, Lilie. Discurso na modernidade tardia. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.), justifica-se uma abordagem crítico-realista de causa e efeito no mundo. Fairclough (1999, p. 14) comenta o seguinte:

A perspectiva social em que me baseio é realista, fundamentada em uma ontologia realista: tanto eventos sociais concretos como estruturas abstratas, assim como menos abstratas ‘práticas sociais’, são parte da realidade. Podemos fazer uma distinção entre o Real e o Realizado - o que é possível devido à natureza (constrangimentos e possibilidades) de estruturas sociais e práticas, e o que acontece de fato. Ambos precisam ser distinguidos do ‘empírico’, o que sabemos sobre a realidade.

Quanto ao discurso, Fairclough (2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução de Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001., p. 38) usa a expressão para se referir aos elementos semióticos de uma prática social, incluindo, assim, a linguagem (escrita e falada e em combinação com outra semiótica), comunicação não verbal (expressões faciais, movimentos corporais, gestos, entre outros) e imagens visuais (fotografias, filme etc). Quanto à definição de prática social, Fairclough e De Melo (2012FAIRCLOUGH, Norman; DE MELO, Iran Ferreira. Análise crítica do discurso como método em pesquisa social científica. Linha d'agua, São Paulo, v. 25, n. 2, p. 307-29, 2012., p. 308) a apresentam como:

[...] uma maneira relativamente permanente de agir na sociedade, determinada por sua posição dentro da rede de práticas estruturadas; e, por outro, um domínio de ação social e interação que reproduz estruturas, podendo transformá-las.

É válido ressaltar que a consolidação de uma economia baseada no conhecimento é fruto de uma economia baseada no discurso. Segundo Fairclough e De Melo (2012)FAIRCLOUGH, Norman; DE MELO, Iran Ferreira. Análise crítica do discurso como método em pesquisa social científica. Linha d'agua, São Paulo, v. 25, n. 2, p. 307-29, 2012., o compartilhamento constante de informações faz com que os indivíduos passem a introduzi-las, resultando em uma reconfiguração das formas de agir e de interagir, gerando novas formas de ser, novas identidades.

3 MÉTODOS E ESTRATÉGIA DE AÇÃO

3.1 TIPO DE PESQUISA

Trata-se de um estudo qualitativo, transversal e interpretativo-analítico.

3.2 ESTRATÉGIA DE PESQUISA

Fundamentando-se no modelo tridimensional proposto por Fairclough (1999) e reformulado por Chouliaraki e Fairclough (1999 apudRamalho, 2007RAMALHO, V. C. V. S. Diálogos teórico-metodológicos: análise de discurso crítica e realismo crítico. Cadernos de Linguagem e Sociedade, Brasília, v. 8, p. 78-104, 2007.) e Fairclough (2003)FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: textual analysis for social research. Londres: Psychology Press, 2003., houve as seguintes etapas estratégicas: 1ª - Percepção de um problema social com aspectos semióticos; 2ª - Identificação de obstáculos para que o problema seja superado (Análise da Conjuntura, Análise da Prática Particular e Análise do Discurso); 3ª - Investigação da função do problema na prática; 4ª - Investigação de possíveis modos de ultrapassar os obstáculos; 5ª - Reflexão sobre a análise.

3.3 CORPUS

O Manual de Responsabilidade Social Empresarial do Porto Digital, elaborado pelo Núcleo de Gestão do Porto Digital (NGPD), em janeiro de 2011, escrito pelo então presidente Francisco Saboya, encontra-se disponível em seu site oficial2 2 Site do Porto Digital: https://www.portodigital.org/paginas-institucionais/o-porto-digital/o-que-e-o-porto-digital?item=Documenta%C3%A7%C3%A3o#Documentao. , no qual são apresentadas as respectivas políticas sociais e empresariais.

3.4 ANÁLISE DOS DADOS

A análise de dados fundamenta-se em uma integração do texto ao contexto, permitindo desenvolver processo organizado por Fairclough (2001)FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução de Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001., a partir das seguintes categorias analíticas: análise textual, prática discursiva e prática social.

A análise textual é iniciada pela avaliação dos tópicos localizados na identificação do discurso, os temas, sendo esses o significado global do texto, representando sua macroestrutura semântica (Van Dijk, 1980VAN DIJK, Teun A. An interdisciplinary study of global structures in discourse, interaction, and cognition. Hillsdale, NJ: MacrostructuresErlbaum, 1980.). Adiante, existe a análise do léxico, composto por um sistema de categorização dos atores sociais, ações, processos, objetivos e situações (Van Dijk, 2007VAN DIJK, Teun A. Discurso e comunicação: um novo periódico para unir dois campos. Discurso & Comunicação, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 5-7, 2007.). A última etapa são as pressuposições, que dizem respeito ao outro significado presente atrás de uma frase, oração ou texto (Van Dijk, 2007VAN DIJK, Teun A. Discurso e comunicação: um novo periódico para unir dois campos. Discurso & Comunicação, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 5-7, 2007.).

A segunda categoria analítica representa as práticas discursivas, nas quais se identifica a ordem do discurso. Trata-se da intertextualidade constitutiva e manifesta, presente nas respectivas práticas por meio da assimilação de palavras capazes de criar um novo discurso entre atores específicos (Fairclough, 2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução de Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.).

Por fim, a última categoria analítica fundamenta-se nas práticas sociais, investigando-se os processos de poder, hegemonia e ideologia (Fairclough, 2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução de Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.). Igualmente, observaram-se os modos de manifestação do referido fenômeno ideológico, recorrendo-se a Thompson (1995)THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. para explicar as seguintes estratégias discursivas: legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação.

4 ANÁLISE DO MANUAL DE RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL DO PORTO DIGITAL

O Manual de Responsabilidade Social Empresarial do Porto Digital apresenta as diretrizes de políticas sociais e empresariais adotadas pelo Parque Tecnológico, tendo como tema central o interesse em atuar como um fomentador de práticas sociais éticas e transparentes, que visem ao bem-estar coletivo.

É válido ressaltar que o léxico composto “responsabilidade social” apresenta uma série de significados em diferentes contextos. Sua gênese está relacionada ao desenvolvimento tecnológico e mercadológico, mediante os processos de globalização, em que o setor privado passa a atuar como um agente ativo na sociedade (Borger, 2001BORGER, Fernanda Gabriela. Responsabilidade social: efeitos da atuação social na dinâmica empresarial. 2001. Tese (Doutorado em Economia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.). No primeiro parágrafo da carta, está escrito o seguinte:

O Porto Digital sente-se orgulhoso de apresentar mais este produto para o ecossistema local de Tecnologia da Informação e Comunicação. O Porto Digital tem um forte compromisso com a responsabilidade social. Ao se instalar no Bairro do Recife, já havia um passivo social representado pela favela do Pilar, em relação ao qual o Porto Digital nunca foi indiferente. Desde então, são dez anos ininterruptos de projetos voltados para a formação de jovens visando à sua empregabilidade (Porto Digital, 2011PORTO DIGITAL. Manual de Responsabilidade Social Empresarial. Porto Digital, Recife, 2011. Disponível em: https://arquivo.portodigital.org/arqSite/Manual_de_Responsabilidade_Social_Empresarial.pdf. Acesso em: 3 nov. 2021.
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).

A primeira observação a ser feita é a identificação do público-alvo desse texto, a partir do seguinte questionamento: a quem o Porto Digital fala? A resposta é obtida ainda na primeira frase, havendo uma menção direta ao “ecossistema local de Tecnologia da Informação e Comunicação”; ou seja, trata-se de um material de objetivo específico, para atender aos interesses do parque tecnológico de expandir sua área de atuação, consolidando-se cada vez mais como uma entidade responsável por modificar as práticas sociais do Bairro do Recife, a partir do apoio das empresas situadas nessa região.

Adiante, há uma personificação do Porto Digital, por meio da qual é expresso um sentimento de “orgulho” com o documento em questão. Desse modo, é possível identificar uma estratégia de aproximação afetiva com o empresariado, utilizando uma linguagem que lhes tragam a percepção de haver uma conversa direta, passível de escuta e compreensão. Fairclough (2001)FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução de Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. intitula essa estratégia de democratização do discurso, na qual implica a retirada de desigualdades e assimetrias dos direitos, das obrigações e do prestígio por meio do uso linguístico.

Posteriormente, no que diz respeito ao seu compromisso social, apresenta o “passivo social” da “favela” do Pilar como público-alvo para a realização de políticas públicas. De início, como léxico, o substantivo “favela” traz uma intertextualidade constitutiva relacionada aos discursos de marginalização e precarização de espaços onde residem pessoas de baixa renda. Isto posto, é válido ressaltar que atualmente o Pilar é intitulado como uma comunidade. Todavia, conforme esclarece Birman (2008)BIRMAN, Patricia. Favela é comunidade? - Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008., o desuso do termo “favela” em substituição por “comunidade” tem como finalidade criar um forte apelo por meio do ideal da harmonia e da tradição.

Nesse sentido, é pertinente o apontamento dos contextos dos atores sociais presentes no texto. Como agente ativo, o Porto Digital (empresa privada, com articulação com o poder público) afirma realizar projetos voltados para os moradores do Pilar (pessoas de baixa renda, residentes de uma região periférica). No âmbito das práticas sociais, é possível pontuar que o documento em análise busca atender a uma ordem do discurso neoliberal, voltada aos interesses mercadológicos que se apropriam da noção de bem-estar social para garantir a expansão de suas atividades e, consequentemente, a proliferação de seus lucros.

Identifica-se, também, por meio dos modos de manifestação da ideologia (Thompson, 1995THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.), a presença de uma estratégia de dissimulação, na qual as relações de dominação são estabelecidas e sustentadas através de uma apresentação que desvie nossa atenção ou passe por cima de relações e processos já existentes. No caso do Porto Digital, ele se põe no papel de provedor de políticas públicas sociais, como se o poder público local não tivesse a obrigação ou não estivesse garantindo direitos básicos, como moradia, alimentação, saúde e educação, para a referida Comunidade do Pilar.

Há, ainda, uma relação hegemônica entre o parque tecnológico e os moradores locais, tendo em vista que o Porto Digital atua como uma espécie de política pública voltada ao desenvolvimento urbano. Isso implica na identificação de uma intertextualidade constitutiva, na qual se reforça a permissão e liberdade de as empresas modificarem a sociedade sob a prerrogativa de valorização dos interesses sociais.

No texto, é possível, ainda, apontar alguns pressupostos, como a afirmação de uma ação contínua para a melhoria do Pilar, presente nas expressões “nunca foi indiferente” e “dez anos ininterruptos de projetos voltados para a formação de jovens visando a sua empregabilidade”. Assim, pode-se interpretar que o parque tecnológico considera vir dialogando diretamente com essa população, de modo que, em se tratando de uma comunidade com aproximadamente 577 famílias, já tenha conseguido trazer um retorno legítimo quanto à empregabilidade e capacitação desses sujeitos. Esses questionamentos são confirmados no trecho a seguir:

Centenas de jovens do Pilar e outras áreas socialmente desassistidas da cidade já foram beneficiados por cursos, palestras, programas de estágio, formação empreendedora, mentoring, biblioteca virtual e outras ações que configuram um vigoroso programa de inclusão digital. O ápice deste esforço deu-se em 2009, com a inauguração do Centro Vocacional Tecnológico Pilar, projeto em parceria com o Ministério da Ciência e Tecnologia e o Softex Recife, que disponibiliza para as comunidades carentes um espaço de capacitação com os mais elevados padrões de infraestrutura e tecnologia (Porto Digital, 2011PORTO DIGITAL. Manual de Responsabilidade Social Empresarial. Porto Digital, Recife, 2011. Disponível em: https://arquivo.portodigital.org/arqSite/Manual_de_Responsabilidade_Social_Empresarial.pdf. Acesso em: 3 nov. 2021.
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).

No que diz respeito ao léxico, “vigoroso” e “elevados padrões de infraestrutura e tecnologia” configuram uma exaltação da padronização e efetivação de atividades com cunho capitalista, cujo objetivo central é o acúmulo e a concentração de renda a partir de um viés tecnocêntrico, fruto da internacionalização dos setores econômicos por meio dos processos de globalização.

É válido apontar algumas pressuposições, com base nas afirmações de execução de projetos educacionais. Subentende-se que, a partir da criação do Centro Vocacional Tecnológico Pilar, realização de cursos, palestras e concessão de estágios, os moradores dessa região passariam por um processo de capacitação e, consequentemente, como é apresentado como um objetivo implícito do texto, haveriam de conquistar oportunidades no mercado de trabalho tecnológico. Levando-se em consideração o contexto do Bairro do Recife, que atualmente conta com mais de 350 empresas incubadas ao Porto Digital, espera-se que haja uma quantidade mínima de vagas empregatícias destinadas a este grupo.

Quanto às práticas discursivas, o trecho deixa claro que a política social voltada para as mencionadas “áreas socialmente desassistidas” e “comunidades carentes” se manifesta por meio da realização de ações de capacitação, sendo mencionados os projetos que consolidam o fomento ao desenvolvimento educacional dos mais pobres. Desse modo, pode-se identificar uma intertextualidade constitutiva com base na noção de capital humano, em que os sujeitos precisam ser dotados de conhecimento para garantir sua evolução no mercado de trabalho e, assim, progredirem socialmente.

De acordo com essa ordem discursiva, característica da ideologia neoliberal, a ascensão social se dá por meio da absorção de conhecimento, este cada vez mais atrelado ao uso de tecnologias. Ainda citando Drucker (2001)DRUCKER, P. F. O melhor de Peter Drucker: a sociedade. Tradução de Edite Sciulli. São Paulo: Nobel, 2001., é primordial compreender que o uso da economia do conhecimento é utilizado como aplicação do intelectual como uma espécie de estímulo ao desenvolvimento financeiro.

Para ocupar esse espaço institucional, o Parque Tecnológico recorre à tecnologização do discurso, conceito elaborado por Fairclough (2001)FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução de Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. para explicar as estratégias discursivas das sociedades modernas que estão em constante busca pelo controle. Por meio dela, o Porto Digital, como um agente social, passa a ocupar um papel de tecnólogo do discurso, tendo em vista que a sua economia do conhecimento é elaborada a partir da especialização que seus atores obtêm sobre determinado assunto.

Por fim, no âmbito das práticas sociais, o discurso permanece recorrendo a uma estratégia de legitimação para a valorização das propostas a serem implementadas. Ainda por meio da eufemização, gera uma hipervalorização dos projetos citados, colocando-os como uma espécie de alternativa imediata para sanar problemas voltados ao desemprego e à falta de educação de qualidade para o Pilar.

No terceiro parágrafo, existe uma “preocupação” com a sustentabilidade ambiental. Novamente, recorre-se ao apelo emocional como uma estratégia de aproximação dos problemas sociais e a validação de seus interesses mercadológicos para a ampliação de sua atuação, o que significa dizer ter um maior controle sobre as tomadas de decisões no Bairro do Recife. No documento, também está escrito o seguinte:

Mais recentemente, o Porto Digital incorporou a preocupação com a sustentabilidade ambiental e estruturou o ItGreen - Centro de Gestão de Resíduos Eletroeletrônicos. Trata-se de um núcleo de estudos sobre boas práticas de compras, uso e descarte de equipamentos cujo propósito é disseminar, junto às empresas do Porto Digital e demais setores produtivos da sociedade, uma nova consciência de sustentabilidade ambiental. Com o ItGreen já foram realizadas pesquisas, seminários, exposições e, atualmente - em fase de conclusão - uma cartilha de procedimentos sobre como melhor lidar com os equipamentos eletrônicos, em uso ou inservíveis, em prol de uma gestão ambientalmente mais comprometida (Porto Digital, 2011PORTO DIGITAL. Manual de Responsabilidade Social Empresarial. Porto Digital, Recife, 2011. Disponível em: https://arquivo.portodigital.org/arqSite/Manual_de_Responsabilidade_Social_Empresarial.pdf. Acesso em: 3 nov. 2021.
https://arquivo.portodigital.org/arqSite...
).

Em relação à análise textual, o Porto Digital permanece reforçando o seu papel de construtor de uma nova vivência em comunidade, sugerindo, assim, uma cartilha de boas práticas a ser seguida pelo empresariado. Em uma observação lexical, “sustentabilidade” se refere à qualidade de sustentável, isto é, de preservar algo mais ou menos constante, ou estável, por longo período (Ferreira, 2012FERREIRA, A. B. H. Sustentável. Dicionário Eletrônico Aurélio. Curitiba: Editora Positivo, 2012.). Em outras palavras, o sentido vai de encontro ao discurso tecnocêntrico, propagado pelo Parque Tecnológico, com o objetivo de fomentar constantes transformações na forma como vivemos socialmente.

No texto, é possível, ainda, pontuar a presença de substantivos, adjetivos e frases nominativas, como “preocupação”, “boas práticas”, “disseminar” e “gestão ambientalmente mais comprometida”, que reforçam seu interesse em preencher um papel para além das atividades financeiras. Todas as palavras citadas têm em comum a presença de uma conotação de renovação positiva no que diz respeito ao desenvolvimento ambiental.

Em se tratando da prática discursiva, o uso do reportado substantivo “preocupação”, novamente, recorre-se à democratização do discurso, como uma estratégia de aproximação com o leitor para que este também se sinta um agente de transformação social. Nesse contexto, no documento do Porto Digital, há a afirmação de um certo “desassossego”, como se fosse uma pessoa se comunicando com outra por meio de uma linguagem direta que estimule a empatia. Todavia, não se pode ignorar o fato de que, apesar de a carta ser assinada pelo presidente Francisco Saboya, ela representa e tem como finalidade se comunicar com um conglomerado de empresas.

Continuando em torno das práticas sociais, faz-se necessária uma observação dos contextos relacionados à atuação do capitalismo em ações e políticas de sustentabilidade ambiental. Vale enfatizar que o ideal desenvolvimentista do modo de produção capitalista presume o aumento da riqueza e prosperidade social, sem que isso resulte em um aumento de degradação ambiental e injustiças sociais (Vizeu, 2012VIZEU, Fabio; MENEGHETTI, Francis Kanashiro; SEIFERT, Rene Eugenio. Por uma crítica ao conceito de desenvolvimento sustentável. Cadernos Ebape.br, Rio de Janeiro, v. 10, p. 569-83, 2012.).

Desse modo, o suposto foco em políticas ambientais, apresentado pelo Porto Digital, faz parte de uma intertextualidade constitutiva que tem como finalidade camuflar os presumíveis impactos do capitalismo no meio ambiente, seja natural, seja social. Trata-se de uma estratégia de minimização dos danos, que se manifesta pela dissimulação, com o intuito de ocultar ou negar desastres naturais, entre outros, fomentados em raiz pelo próprio mercado financeiro. Nesse caso, o emprego da proposta de sustentabilidade objetiva a ampliação de lucros a partir da legitimação de uma gestão ambientalmente mais comprometida, sendo essa estabelecida pelo próprio setor privado, ao propor políticas justas e dignas de apoio que visem ao bem-estar coletivo.

Por fim, no quarto e último parágrafo da carta, o presidente do Porto Digital retoma ao tema central do texto, consolidando a implementação de uma política unificada de Responsabilidade Social Empresarial. É escrito o seguinte:

Com diversas ações em andamento, muitas delas em parceria com várias empresas do nosso ecossistema, era chegada a hora de abordar esse conjunto de ações de forma sistêmica, sob uma política unificada de Responsabilidade Social Empresarial do Porto Digital. Para tanto, foi constituído um Comitê de RSE, composto por representantes do NGPD, de empresas embarcadas e coordenado pelo Instituto Ação Empresarial pela Cidadania. O Comitê teve e terá doravante o objetivo de estimular padrões de gestão empresarial fundados em práticas éticas e transparentes na forma de se relacionar com os diversos públicos envolvidos no ambiente corporativo, sendo este Manual o seu guia de ação. Uma vez publicado, o Manual será a base de um programa de conscientização e preparação das nossas empresas para novas práticas de RSE. Com isto, ganham as empresas, o ecossistema e a sociedade como um todo (Porto Digital, 2011PORTO DIGITAL. Manual de Responsabilidade Social Empresarial. Porto Digital, Recife, 2011. Disponível em: https://arquivo.portodigital.org/arqSite/Manual_de_Responsabilidade_Social_Empresarial.pdf. Acesso em: 3 nov. 2021.
https://arquivo.portodigital.org/arqSite...
).

Em termos lexicais, o uso do substantivo “ecossistema” sinaliza a construção de uma nova realidade social dominada pelas empresas de tecnologia, que, por sua vez, são indiretamente coordenadas pelo Parque Tecnológico, por meio da persuasão discursiva.

Para legitimar a importância de suas propostas, o Porto Digital defende a aplicação de “práticas éticas” e “transparentes”. No entanto, é válido ressaltar que, no sentido figurado, o adjetivo “transparência” representa aquilo que não possui dupla interpretação, ou seja, apresenta-se com clareza. Já em um aspecto político, isso significa dizer uma prestação de contas de suas ações, por meio da utilização de meios de comunicação. Quanto à ética, é responsável por garantir o cumprimento de normas, valores, prescrições e exortações presentes em qualquer realidade social.

5 CONCLUSÕES

No texto do Manual de Responsabilidade Social Empresarial, há a pressuposição de que existirá um controle e acompanhamento de todos os projetos e decisões que interfiram no Bairro do Recife, como se a sociedade civil, que está de fora desse ecossistema tecnológico, pudesse monitorar e fiscalizar a sua atuação. Imediatamente, identifica-se a violação da própria transparência e ética, tendo em vista que os atores responsáveis pela gestão são empresários, cujos interesses capitalistas condizem com a concretização das práticas a serem adotadas. Em resumo, são medidas de autofavorecimento e expansão de capital.

Para persuadir os leitores, a carta se caracteriza por um texto direto e informal, recorrendo a estratégias de manifestação de ideologia, como a legitimação e dissimulação (Thompson, 1995THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.). No primeiro caso, por meio da racionalização, o Porto Digital almeja validar seu próprio poder a partir da construção de uma necessidade social e de justiça, sendo a política de responsabilidade social empresarial algo digno de apoio e capaz de promover o bem-estar coletivo. No segundo caso, a eufemização se manifesta por meio da descrição de uma valorização positiva do funcionamento do próprio Porto Digital, com uma extrema necessidade de se posicionar como um agente capaz de modificar a realidade social a partir da sua gestão empresarial.

Assim sendo, pode-se apontar o uso de estratégias, como a democratização e tecnologização do discurso (Fairclough, 2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução de Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.), que atuam em uma ordem do discurso neoliberal, para estimular a institucionalização do setor privado. Seguindo o modus operandi do mercado financeiro, o Porto Digital nada mais deseja do que utilizar sua denominação como política pública, ciente da sanção do governo estadual e municipal, para se apropriar de espaços urbanos e, assim, reconfigurar a vivência de quem reside e frequenta o Bairro do Recife.

Seu plano tem sido cada vez mais realizável, tendo em vista que o próprio poder público atua a favor da sua expansão. Não se pode descartar, como mencionado no referencial teórico, que o NGPD é composto por uma série de atores políticos, os quais representam uma ação partidária, cuja ideologia também está fincada nas raízes do neoliberalismo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2022
  • Aceito
    27 Abr 2023
  • Aceito
    26 Maio 2023
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