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Literal/metafórico: um percurso discursivo

Literal/metaphorical: a discursive route

Resumos

Neste ensaio discute-se a questão da "primazia" de um dos termos da dicotomia sentido literal/sentido metafórico. Partindo-se de um breve percurso histórico, são considerados alguns pontos relevantes para articular o tema, e examina-se uma tese sobre o funcionamento da metáfora utilizando a abordagem da Análise do Discurso, através da qual se admite que uma variedade de fenômenos converge como produção de metáfora, o que leva à possibilidade de diluição da dicotomia. Nessa direção, a metáfora surge da circulação de bagagem linguístico-discursiva entre as formações discursivas, entendidas como instâncias de formação/repetição/transformação de elementos do saber - componentes de uma memória de discursos -, saber que sofre constante reconfiguração e é levado a incorporar elementos produzidos no exterior de uma formação dada, produzindo efeitos de sentido variados.

discurso; metáfora; formação discursiva; efeito de sentido


In this article the issue of the "primacy" of one of the terms of the literal sense/metaphorical sense dichotomy is discussed. Beginning with a brief historical account, a few relevant points are considered to articulate the theme, and a thesis about the functioning of the metaphor is examined, from the viewpoint of French discourse analysis. From this perspective, we believe that a variety of phenomena converge to produce metaphors, which leads to the possibility of the dilution of the dichotomy. Thus, metaphors originate from the circulation of linguistic-discursive contents among the discursive formations, here understood as instances of formation/repetition/transformation of knowledge elements -components of a memory of discourses -, a knowledge that is constantly reconfigured and that is lead to incorporate elements produced outside of a given formation, thus producin g varied meaning effects.

discourse; metaphor; discursive formation; meaning effect


ENSAIO

Literal/metafórico - um percurso discursivo

Literal/metaphorical - a discursive route

Maria Marta Furlanetto

Professora da Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL). Doutora em Linguistica Aplicada. Email: mmarta@intercorp.com.br

RESUMO

Neste ensaio discute-se a questão da "primazia" de um dos termos da dicotomia sentido literal/sentido metafórico. Partindo-se de um breve percurso histórico, são considerados alguns pontos relevantes para articular o tema, e examina-se uma tese sobre o funcionamento da metáfora utilizando a abordagem da Análise do Discurso, através da qual se admite que uma variedade de fenômenos converge como produção de metáfora, o que leva à possibilidade de diluição da dicotomia. Nessa direção, a metáfora surge da circulação de bagagem linguístico-discursiva entre as formações discursivas, entendidas como instâncias de formação/repetição/transformação de elementos do saber - componentes de uma memória de discursos -, saber que sofre constante reconfiguração e é levado a incorporar elementos produzidos no exterior de uma formação dada, produzindo efeitos de sentido variados.

Palavras-chave: discurso; metáfora; formação discursiva; efeito de sentido.

ABSTRACT

In this article the issue of the "primacy" of one of the terms of the literal sense/metaphorical sense dichotomy is discussed. Beginning with a brief historical account, a few relevant points are considered to articulate the theme, and a thesis about the functioning of the metaphor is examined, from the viewpoint of French discourse analysis. From this perspective, we believe that a variety of phenomena converge to produce metaphors, which leads to the possibility of the dilution of the dichotomy. Thus, metaphors originate from the circulation of linguistic-discursive contents among the discursive formations, here understood as instances of formation/repetition/transformation of knowledge elements -components of a memory of discourses -, a knowledge that is constantly reconfigured and that is lead to incorporate elements produced outside of a given formation, thus producin g varied meaning effects.

Keywords: discourse; metaphor; discursive formation; meaning effect.

1 INTRODUÇÃO

Ao retomar a questão da "primazia" relativamente à dicotomia metafórico/literal, Zir (2003) conclui que, sejamos iconoclastas ou defensores de uma tradição, o que está em jogo são dois movimentos "ao longo de um mesmo eixo", na medida em que há uma produção incessante de sentidos. Discutir a "primazia" implica admitir (penso no imaginário dos discursos) que um dos elementos da dicotomia é base, é um primeiro.

A discussão que proponho neste ensaio dá continuidade ao debate; observe-se, de início, que os chamados iconoclastas (Zir cita principalmente Vico, Nietzsche e Richards) argumentam pela primazia do metafórico como fundamento da linguagem. Mas o que seria metafórico nessa concepção, se o metafórico chama inevitavelmente o literal? Ou, se seria preciso fazer diluir-se a dicotomia, qual o sentido da metáfora? Por que se mantém a tensão desse par se, ao longo dos séculos, tanto se tem questionado a utilidade dele?

A rota que traço aqui, aparentemente tortuosa, apresenta alguns pontos relevantes para articular o tema, e, num segundo movimento, apresenta uma tese sobre o funcionamento da metáfora utilizando a abordagem da Análise do Discurso, através da qual admitirei que uma variedade de fenômenos converge como produção de metáfora.

A tese é a seguinte: a metáfora surge da circulação de bagagem linguístico-discursiva entre as formações discursivas, fixando-se numa delas ou mais, sofrendo um processo de apropriação dentro da formação discursiva considerada, o que produz efeitos variados por deslocamento.

Fica estabelecido, como preliminar conceitual, que se compreende uma formação discursiva (FD) como uma instância de formação/repetição/transformação de elementos do saber - um saber que, constituído por uma memória de discursos, sofre constante reconfiguração e é levado, em função de posições ideológicas, a incorporar elementos que foram produzidos no exterior dela.

2 METÁFORA: BREVE PERCURSO HISTÓRICO

Muitos estudos sobre metáfora se ligam à tradição grega a partir de Aristóteles, que define metáfora na sua Arte Poética - aliás, parcamente (a obra sofreu mutilação) -, e "aplica-a" aqui e ali em passagens várias da Arte Retórica. Zir (2003) observa, em seu ensaio, que Aristóteles teria dado início à tradição de conceber a metáfora como "uso desviante" da linguagem, em contraste com seu "uso normal". Entretanto, fique enfatizado que "desviante" não precisa ser o contrário de "normal" ou "próprio".

Quando focaliza questões relativas ao "estilo oratório" (diferente do "estilo poético", discutido na Arte Poética)1 1 Cf. Arte Retórica e Arte Poética, Livro Terceiro, cap. I. , Aristóteles vê a metáfora como qualidade de estilo (cap. II), e deve pressupor clareza para que o discurso cumpra sua missão; ora, vê-la utilizada por todos coaduna com o critério de clareza, apesar da qualidade de "enigma" que resulta de uma transposição bem-sucedida.

O capítulo IV é um pouco mais específico, apresentando a imagem (comparação) em relação à metáfora, da qual aquela pouco se afasta. Insiste, porém, em que a imagem é própria da poesia (p. 182).2 2 A fórmula da imagem assim aparece: X é como Y, X se assemelha com Y, X parece Y, X é comparável a Y. Contudo, as metáforas servirão como imagens, e as imagens aparecem como metáforas com perda de uma palavra.

No capítulo VI, a metáfora aparece como um dos processos para dar ampliação ao estilo; no capítulo X, como forma de expressar com "graça e urbanidade". Aristóteles lembra que há quatro espécies de metáforas, priorizando aquelas que se baseiam na analogia. Elas permitem um efeito visual, por assim dizer, pondo os fatos "diante dos olhos" (cf. ARISTÓTELES, s.d., p. 195 e 196). Com relação a remeter a um efeito visual, pode-se lembrar a profusão de metáforas que orientam a montagem da charge. Uma metáfora, por vezes, "faz as vezes de uma tela" (p. 196): ela anima, vivifica, mostra.

Há ainda as formas de tornar o estilo pitoresco (cap. XI). Aristóteles explica que uma expressão "serve de tela" na medida em que "põe o objeto debaixo dos olhos", mostrando as coisas "em ato" (p. 198). Essa virtude da figura está associada ao critério de buscar as metáforas nas coisas próximas, "sem serem demasiado evidentes" (p. 199). É então que Aristóteles enfatiza o discernimento de semelhanças, "mesmo entre coisas muito afastadas" (p. 199). Aliás, observo que esta marca é o que permite o enquadramento do próprio humorismo da charge, e Aristóteles define o "engraçado" de uma expressão exatamente quando o objeto é muito diferente do que o interlocutor previa. Ou seja, ele passa a admitir uma semelhança não suspeitada, e vê uma imagem que lhe aparece como engraçada.

Os provérbios também comparecem aqui como metáforas: expressões circulando de uma espécie a outra espécie (p. 201). As hipérboles igualmente: a um homem com o rosto inchado por golpes poder-se-ia caracterizar com "Parece um cesto de amoras".

Finalmente, é no capítulo XXI da Arte Poética que Aristóteles define as figuras, a partir da caracterização do nome. Nome é uma parte da elocução (lexis), junto com a letra, a sílaba, a conjunção, o verbo, o artigo, a flexão (caso), a expressão (locução, logos). É apresentado como "som composto, significativo, sem indicação de tempo" (p. 272); a metáfora, então, se liga ao nome, à palavra (onoma), e não ao nível do discurso, o que parecia acontecer na Retórica.3 3 A metáfora, então, participa de dois campos: "há [...] uma única estrutura da metáfora, mas duas funções da metáfora: uma função retórica [campo político] e uma função poética" (RICOEUR, 1983, p. 19). Em Aristóteles, a metáfora aparece como fato estético e como fato linguístico-social, vinculado à práxis. "Todo nome é ou o termo próprio ou um termo dialetal4 4 "Próprio" e "dialetal" aparecem aqui como denominações relativas às regiões, correspondendo a uma normalidade (comunidade) de uso. "Próprio" é o nosso, "dialetal" o de outrem. , ou uma metáfora, ou um vocábulo ornamental, ou a palavra forjada, ou alongada, ou abreviada, ou modificada" (p. 274). A metáfora surge, então, como "[...] a transposição do nome de uma coisa para outra, transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para outra, por via de analogia" (p. 274).

O que caracteriza a dinâmica da metáfora, em todos os casos, é a percepção de semelhanças. Esse traço é mais evidente na aproximação que Aristóteles faz da metáfora e da imagem (comparação): uma coisa a nomear é remetida a uma coisa outra cujo nome vai ser tomado de empréstimo. Com respeito às duas "figuras", Ricoeur (cf. 1983, p. 43) observa: a metáfora não aparece como uma comparação abreviada, ao contrário, a comparação é que é uma metáfora desenvolvida. Isto parece claro na Arte Retórica (capítulo IV, Livro Terceiro): "as imagens [...] serão metáforas a que não falta senão uma palavra" (ARISTÓTELES, s.d., p. 182). E também no capítulo X do mesmo livro: "A imagem é [...] uma metáfora, diferindo dela apenas por ser precedida de uma palavra" (p. 195).

A metáfora aparece, pois, como o princípio dinâmico da comparação, constituindo duas dimensões de um mesmo fenômeno, que aparece com efeitos diferenciados. Tais efeitos parecem dizer respeito a um caráter sutil que só a metáfora possui: o icônico, num sentido muito especial, e que me interessa aqui.

A defesa do aspecto icônico da linguagem metafórica é feita por Ricoeur com base no princípio de que a imaginação (produtora, não reprodutora) é uma das fontes da criação metafórica (cf. RICOEUR, 1983, p. 282).5 5 Nesta parte, Ricoeur faz referência a Paul Henle, que trata do caráter icônico da metáfora, tendo como fonte Charles Sanders Peirce (semiótica). Observe-se, por curioso, que era exatamente à comparação que Aristóteles chamava eikon (ícone). Para Ricoeur, a imaginação aparece como "o lugar da emergência do sentido figurativo no jogo da identidade e da diferença" (1983, p. 299). A grande diferença é que o ícone é descrito, e não apresentado. Nesse caso, se quisermos falar de uma expressão literal (diferente de "próprio") - com a premissa de que tudo é literal, qualquer valor lexical, qualquer enunciado já produzido -, esse "literal" será uma regra para encontrar objeto ou situação; funcionará depois iconicamente: "a coisa visada é pensada como aquilo que o ícone descreve" (1983, p. 283).

Isto remete à ideia de "servir de tela" em Aristóteles, o que articula visão e pitoresco, e simultaneamente nos traz um jogo de mesmo e diferente, o que cria uma tensão fundamental na produção/interpretação, com efeitos que circulam entre o sublime e o ridículo (humor, pilhéria). Essa operação é uma reelaboração, um reinvestimento - o que é, discursivamente, traço de interdiscursividade. Isso distingue a metáfora das outras figuras (tropos). Tal funcionamento, por outro lado, amplia o vocabulário (é o que se observa frequentemente consultando um dicionário etimológico ou pesquisando o fenômeno da polissemia). Ricoeur cita o exemplo de cosmos:

cosmos 1 - disposição dos cabelos/ disposição dos arreios de um cavalo

cosmos 2 - ordem de um exército

cosmos 3 - ordem do universo

Acrescento um outro exemplo, do dicionário Houaiss (2001), que mostra a diversificação:

desviar (lat. deviare)

1. mudar a direção ou a orientação de

2. tirar da linha reta; entortar

3. mudar o lugar ou a posição de; deslocar

4. alterar o destino de; desencaminhar

5. subtrair fraudulentamente

6. demover(-se), dissuadir(-se)

7. fugir de; evitar

8. ser diferente; destoar

Todas estas possibilidades percorrem os espaços da linguagem científica, política, familiar, moral, religiosa, etc.. Assim é que, explicando os efeitos de multiplicação que correspondem à polissemia, Bréal (1992, p. 103) pode dizer:

Clef [chave, clave], que é emprestado às artes mecânicas, pertence também à música. Racine [raiz], que nos vem da agricultura, vem igualmente das matemáticas e da linguística. Base, que pertence à arquitetura, tem seu lugar na química e na arte militar. Acte [ato] pertence simultaneamente ao teatro e à vida judiciária. Effet [efeito] se encontra nas acepções as mais diversas. E assim por diante...

Dessa forma, parece inevitável que a metáfora acrescente modos de conhecimento do mundo; e ainda: modos de sentir, perspectivas: "[...] ao simbolizar uma situação por meio de outra, a metáfora 'infunde' no coração da situação simbolizada os sentimentos ligados à situação que a simboliza" (RICOEUR, 1983, p. 283). Talvez fosse preferível dizer que valores e ressonâncias se apresentam, na medida em que as esferas de atividades sociais são aproximadas.

Em sua teoria semiótica, Eco (1995) reconhece que a metáfora deve lidar "com algo que concerne à nossa experiência interior do mundo, e aos nossos processos emotivos" (p. 121). Mas isto não implica que a metáfora deva produzir "uma resposta emotiva e passional". A questão, para Eco, é saber como a metáfora, uma vez interpretada, pode mostrar o mundo de um novo modo - admitindo-se que o autor produz uma disposição diferente para ver o mundo. Isso também não significa, para ele, que a metáfora se produza pela intenção explícita de seu autor - que é secundária, uma vez que ele está inserido num mundo de cultura (comunidades de discurso) com padrões que se sobrepõem aos indivíduos e que, em princípio, são respeitados (o "ar do tempo").

Ricoeur discute também a "teoria predicativa" (interacional): desloca-se a questão da metáfora do plano da denominação, como queria Aristóteles, para o quadro da predicação (enunciado, discurso). Só um enunciado pode fazer referência a uma coisa ou a uma situação "simbolizando o seu ícone". O pivô de tudo é um conflito no plano do "literal" (a especificar); a metáfora será a resolução do conflito. Em Aristóteles, o processo tem dois momentos: a epífora, que é a assimilação de coisas "estranhas", que emerge de um insight da ordem do ver (lance de gênio); e a diáfora, que é a construção da semelhança só que, aqui, ela será encarada do ponto de vista discursivo -; o predicado escolhe e organiza aspectos do objeto, numa operação psicológica. A metáfora é criação do discurso6 6 É por isso que não se pode falar, na produção e interpretação da metáfora, em propriedades empíricas dos "referentes" aproximados, mas em pertinência de algumas propriedades; daí a "construção da similaridade", e não sua "descoberta" (cf. ECO, 1991, seção 3.3). ; ela não é localizada lexicalmente, mesmo que se possa dizer que há um foco metafórico. Pode-se falar, então, em enunciação metafórica (o acontecimento) e enunciado metafórico (unidade discursiva produzida). Eis um exemplo:

As condições vigentes fazem do professor um mero operário de produção, cujas tarefas e funções são previamente estabelecidas por instâncias superiores. Trabalhador, tem de cumprir metas traçadas e ser capaz de absorver, sem grandes questionamentos, alterações de sua linha de montagem.

Como mero operário, sua liberdade sobre o processo limita-se à ponta da produção. Ele não pensa o todo e seu trabalho, na sua estrita visão, seu trabalho parece divorciado do de seus colegas. Não fixa os objetivos, pois eles são pacotes, logo, para que, então, aferir a realidade de seus educandos? Círculo vicioso, formam-se pacotinhos sem controle de qualidade.7 7 Excerto de um relatório/projeto de grupo de alunos de pós-graduação (1992).

Na tradição retórica insistiu-se em que a significação "substituída" não representa inovação semântica (ou seja, deve ser possível repor o sentido "literal" da palavra substituta); como decorrência, a metáfora não forneceria qualquer informação nova sobre a realidade.8 8 Bréal (1992) diz: "[...] a maior parte [das metáforas] apenas ensina o que já sabemos" (p. 91). A par de um sentido implícito que se poderia ligar ao que se tem chamado "conotação", um sentido explícito remeteria ao cognitivo, na visão de Ricoeur: da tensão de interpretações nos enunciados emerge uma nova significação que se busca num trabalho que corresponde à resolução de um enigma - daí que se possa dizer que o trabalho do intérprete é produtivo, não uma simples decodificação. Para Ricoeur, uma metáfora "genuína" não é passível de tradução, uma vez que cria seu sentido; e não é, a fortiori, um banal ornamento de discurso, já que diz algo de novo acerca da realidade.

No excerto acima do professor "visto como" operário de produção, o novo seria resultado da operação de aproximação de alguma coisa que estava "distante", que era um "estranho", pela ocorrência de um insight que montou uma tela, oferecendo elementos em contraste - o que provoca a reflexão. Trata-se de uma recriação da realidade - pode-se comparar isso ao recurso cinematográfico de montagem dupla de cenas. No caso, a montagem reuniu saberes de formações discursivas diferentes (mas não estanques). Para fazer uma analogia: Aristóteles caracterizou à sua maneira o que quero mostrar com a noção de formação discursiva, definindo o que ele chamava de sentido corrente (ta kurion), ou próprio (diferente de dialetal)9 9 Cf. nota 4. Sentido "literal" como sentido primeiro ou original nada tem a ver com sentido "próprio" como aparece aqui. Dumarsais identificava sentido literal com sentido etimológico, o que leva a julgar que todos os sentidos correntes são figurados, e mais, as figuras se identificam à polissemia (cf. RICOEUR, 1983, p. 211). das palavras: "o que é comum a uma certa população e fixado pelas normas operantes nessa comunidade falante". Embora não se possam estabelecer limites para esse "comum", há um reconhecimento de áreas de funcionamento discursivo (que não são impermeáveis). Assim, sentidos já constituídos (manifestando-se em enunciados que fazem parte da memória discursiva de uma comunidade) podem ser extraídos de uma área típica e transferidos para um novo campo referencial. É o próprio trabalho subjetivo que, nessa interação "desestruturante", se caracteriza. Não se pode ignorar que a metáfora viva resulta de movimento, e assim pode-se falar de "deslizamento" (deriva) em certo grau (porque se desloca para outro campo), sempre por referência a um uso comum na comunidade, pela qual se estabelece uma relativa dominância.

Pode-se, então, neste ponto, encarar a metáfora como "um acontecimento semântico que se produz no ponto de intersecção entre vários campos semânticos" (RICOEUR, 1983, p. 151). Como acontecimento, ela é discurso, efeito de discurso, que mais tarde, eventualmente, ainda será reconhecido. Maingueneau (1991) salienta que o objeto do discurso está sempre "nos limites" - há um constante embate de formações discursivas. O movimento, a deriva serve bem à caracterização da metáfora: metaforizar é "ir" para outro lugar, e retornar criando ilusão, uma espécie de ilusão que favorece a retratação diferenciada do mundo.

É esta reconfiguração que se vê no recorte textual (acima) que serve de exemplo, onde se cruzam, basicamente, duas formações discursivas (dois campos de atividade), uma (a "estranha", que diz respeito à linha de montagem de uma indústria) contando a história da outra (a "própria", o contexto pedagógico). A partir da interpretação possível que o recorte favorece, pode-se dizer que no uso metafórico, mais que buscar a intuição (do autor) de uma sensibilidade às relações, o intérprete pode pressentir, associada à expressão metafórica, uma gama de alusões, subentendidos, que são apreendidos pela relação da própria expressão com tudo o que vagueia em torno dela na formação discursiva que é "visitada".10 10 Penso que o efeito metafórico pode ter uma relação estreita com o discurso relatado - ou melhor, aparece como um efeito de discurso relatado, um tipo especial, dado o processo de migração que se verifica (com características a estudar).

Com a expressão, viaja para outro espaço a "aura" de seu contexto. Daí a infinidade de leituras que possibilita - e a infinidade de paráfrases possíveis. Ela é marca (pista, instrução), por assim dizer, dos encontros e desencontros do seu autor (posição subjetiva). Tentar desmetaforizar pode ser uma operação impossível, inútil. A própria configuração de metáfora, produzida na interpretação, está associada a esta "aura" ou ressonância que as expressões podem adquirir, pelo fato de conviverem frequentemente num contexto em certas formações discursivas. Seja, por exemplo, cavar terra ou algo semelhante com uma pá ou objeto semelhante, ao lado de cavar ideias, sonhos, ilusões. Se a expressão reconhecida como metáfora não acrescenta, do ponto de vista referencial, uma verdade nova (a "realidade" é a mesma), cria-se, ainda assim, uma "verdade nova", que é capaz de levar a agir.

Do ponto de vista da produção, figura-se um mundo de experiência passada (direta ou não), vivida ou não, intertextual - evoca-se, liga-se, alude-se a -, é sempre uma relação significativa, e se faz com que o interlocutor se envolva pelo reconhecimento daquilo que é lembrado. Por isso, a metáfora pode funcionar significativamente na argumentação - e cria um mundo de imagens, um mundo icônico. O termo "fusão" parece-me adequado para interpretar esse envolvimento, que implica o plano linguístico-contextual (a operação metafórica) e o situacional (o processo interacional). Do ponto de vista da interação, a metáfora é intraduzível sem perdas. Essa operação "informa e esclarece como nenhuma paráfrase o poderia fazer" (RICOEUR, 1983, p. 135).

Aristóteles (s.d.) já reconhecera isso (cf. Cap. X, Livro Terceiro). No movimento expressivo de ir e vir com material de expressão, as relações de novidade vão se estabelecendo e institucionalizando: tornam-se regulares, naturalizam-se. Quando Aristóteles fala do que é comum a certa população, o uso corrente (ta kurion) deve englobar os usos em momentos históricos determináveis - muitas coisas são normais porque passaram a ser (consideradas) normais, e o mesmo material serve a vários domínios.

O emprego reiterado de material linguístico em lugares diferentes acaba levando à criação de valores comuns. Dada essa qualidade, podese imaginar que, quanto mais as expressões são usadas em campos diferentes (lugares, instituições, formações discursivas), mais elas perdem em especificações semânticas e retêm da significação apenas traços muito gerais, vagos, que as fazem historicamente cada vez mais disponíveis para muitos campos, onde se redefinirão. A isto se poderia chamar o sentido literal (um núcleo de traços semânticos, algo como um protótipo). No caso, tais expressões perdem paulatinamente o efeito sentido pelo fato da transposição (deslocamento, migração) - tornam-se cosmopolitas. Por exemplo: moldura, diagnóstico, queda, corpo, manto, tentáculo, desvio podem ser considerados "significantes" com ampla circulação, adaptados a várias esferas da vida.

Isso não quer dizer que traços semânticos e discursivos sejam esquecidos, abstraídos; a "aura" é indispensável ao reconhecimento de um processo metafórico. Como aparato expressivo da linguagem, contudo, na memória discursiva, as expressões se tornam um material sempre mais maleável. Essa posição contraria aquela segundo a qual a língua, a gramática, o léxico conteria significações determinadas e o discurso - promovendo-as a elementos de contexto - provocaria a difusão e a indeterminação semântica. Nem imprecisão total, ou vagueza, nem definição absoluta. No discurso, seriam efeitos de sentido resultantes de operações parcialmente conscientes, parcialmente inconscientes.

Na seção a seguir exploro o duplo literal/metafórico a partir da dialética entre tema e significação na interação verbal, segundo a concepção de Bakhtin.

3 METÁFORA - A DIALÉTICA SIGNIFICAÇÃO/SENTIDO

Bakhtin estabeleceu o duplo tema/significação na análise do "corpo vivo" da enunciação, vista como fenômeno de interação verbal objetivada no social. Trata-se de um processo dialético (cf. 1979, cap. III): o signo abstrato (assim concebido, a partir de Saussure), na suposição de que ele seja alguma coisa, não é uma "denotação" oposta a uma "conotação": semanticamente, nada que se pudesse chamar objetivo, na linguagem, o seria sem a necessária apreciação que emerge no ato de enunciar (o dito inclui o dizer). A "estabilidade" da significância é algo sempre provisório, sempre inacabado. Mas, reconheçamos, há pressão social no sentido de que assim seja, e continue sendo. A significação, como aspecto essencial da linguagem, corresponde ao que se fixa e é repetível, ocorrendo como uma parte do tema, ou seja, de qualquer elocução; então, significação é um elemento abstrato da língua; no uso, sempre há tema. Dialeticamente, não se pode afirmar que uma significação "pertence" à palavra. Com a significação disponível (potencial) e o acontecimento do tema, valores surgem e são mantidos, e outros possíveis são afastados ou esquecidos. Essa dialética está presumida no duplo tema/significação. Cada uso é uma re-criação, uma re-significação, um re-investimento.

Para uma primeira aproximação, coloquemos lado a lado o duplo tema/significação e o duplo metafórico/literal.

Orlandi (1983, 1984) propõe uma distinção teórico-metodológica relevante para sintetizar a tensão entre o que está instituído em língua e o que se produz como deriva: paráfrase e polissemia, respectivamente (ângulos do processo de significação). O primeiro processo corresponde à manutenção do sentido sob diferentes formas (o que é dado, já produzido); o segundo, à instauração da multiplicidade (o que é novo, explorado, formulado). É pela articulação desses processos que a autora define o contraste criatividade/produtividade. Pela paráfrase há uma reiteração de processos "cristalizados pelas instituições" (produtividade). A polissemia, por outro lado, manifesta tensamente a relação homem/mundo (criatividade). Mantendo-se a ideia de conflito, que é fundamental, observa-se o confronto entre o já legitimado e o que se deseja legitimar - produzir sentidos novos, novos efeitos.11 11 Por isso, entendo que seria relevante que a AD incorporasse em seu domínio a distinção significação/sentido, correspondendo (não "equivalendo") ao contraste paráfrase/polissemia.

A multiplicidade de sentidos é condição para o estabelecimento da significação (na acepção de Bakhtin): a enunciação é dotada de uma significação, que corresponde a elementos "reiteráveis e idênticos", um fundo de memória - o que foi registrado, guardado. Ao lado da significação, o tema se determina pelas formas linguísticas e pelos elementos não verbais da situação - é concreto, determinado num instante histórico e, além disso, "irredutível a análise". E o mais importante é que "é impossível traçar uma fronteira mecânica entre a significação e o tema" (cf. BAKHTIN, 1979, cap. 7). Na Estética da criação verbal, Bakhtin (2003, p. 381) ratifica essa posição: "Sentido e significado [significação]. O significado12 12 Bakhtin está contrastando significado e sentido. O significado é apenas potencial, por isso "está excluído do diálogo". está excluído do diálogo, mas abstraído dele de modo deliberado e convencional. Nele existe uma potência de sentido."

Seria possível propor relação semelhante para metafórico/literal, ou seja, esmaecendo a fronteira entre literal e metafórico e retendo apenas a relação dinâmica entre elementos em constante mutação? A posição de Orlandi (1984) é incisiva: "a literalidade não é um dado que preside ao uso, mas, isso sim, é produzida pelo uso"; "A literalidade é [...] efeito de discurso". "A literalidade não pré-existe, ao contrário, é um efeito do discurso" (p. 22). Em seus Apontamentos, Bakhtin (2003, p. 382) também enfatiza:

Um sentido atual não pertence a um (só) sentido mas tão-somente a dois sentidos que se encontraram e se contactaram. Não pode haver 'sentido em si' - ele só existe para outro sentido, isto é, só existe com ele. Não pode haver um sentido único (um). Por isso não pode haver o primeiro nem o último sentido [...]

Isso se coaduna, por distanciadas que sejam as abordagens teóricas, com o que se encontra nos Écrits de linguistique générale de Saussure. Lembro Saussure devido ao princípio da diferença e da negatividade que ele defende ao estudar a(s) língua(s): "Não há diferença entre o sentido próprio e o sentido figurado das palavras (ou: as palavras não têm nem sentido figurado nem sentido próprio), porque seu sentido é eminentemente negativo" (2002, p. 72).13 13 É minha a tradução de todas as passagens citadas dos Écrits. Ele diz que o que faz a imagem não é a ideia "positiva", exterior à língua, de sol, por exemplo, como quando se diz que uma pessoa foi o sol da existência de uma outra, mas a oposição com outros termos que seriam mais ou menos apropriados, como estrela, claridade, alegria... De modo mais contundente, afirma que, se partirmos da suposta "ideia positiva" de suplício, seria impossível falar "do suplício de usar luvas muito apertadas" - o que, lembra ele, não tem a menor relação com os horrores do suplício da grelha e da roda14 14 Referência feita por Saussure a duas formas de condenação: no suplício da grelha a pessoa queimava sobre um braseiro, por cima de uma grelha (como São Lourenço, sacrificado em Roma no século III); no suplício da roda o condenado, amarrado, sofria golpes que quebravam ossos e articulações, e depois era suspenso numa roda e ficava exposto até a morte. .

De modo generalizado, "a língua não consiste em um conjunto de valores positivos e absolutos mas em um conjunto de valores relativos não tendo existência senão pelo fato de sua oposição." (2002, p. 77, grifos do autor). Para Saussure, nenhuma denominação se aplica a um objeto definido em si (seja material ou não), e não aborda na realidade esse objeto senão obliquamente, em nome de uma ou outra ideia particular de onde ele resultará. Argumenta que, para o mesmo objeto, se mudará continuamente de termo: para luz, por exemplo, chamar-se-á claridade, clarão, iluminação; ademais, o nome do mesmo objeto servirá para muitos outros: a luz da história, as luzes de uma assembléia de eruditos. É nesse caso que se argumentaria comumente que um "novo sentido" (figurado) surgiu. Mas Saussure rebate dizendo que por trás disso está a "suposição tradicional de que a palavra possui uma significação absoluta aplicando-se a um objeto determinado; é essa presunção que nós combatemos" (p. 75). A ideia de negatividade faz com que "o sentido 'próprio' não seja senão uma das muitas manifestações do sentido geral; por sua vez, esse sentido geral não é outra coisa senão uma delimitação qualquer que resulta da presença de outros termos no mesmo momento" (p. 76, grifo meu). Também se poderia argumentar, em contrapartida, que os termos "próprios" corresponderiam àquelas impressões que primeiramente a mente recebe. A isso Saussure responde que as tais "primeiras impressões" estabelecem relações as mais inesperadas entre coisas totalmente separadas, da mesma forma que dividem coisas aparentemente unas. Nesse sentido, ele enfatiza que

[...] a impressão mesma que um objeto material produz não tem o poder de criar uma única categoria linguística; - não há, pois, jamais senão termos negativos em cada um dos quais o objeto novo é incompletamente envolvido, ao mesmo tempo que é deslocado sobre diversos termos. (2002, p. 76)

Por isso, pode-se compreender que uma mesma coisa seja chamada, segundo as circunstâncias: casa, construção, edifício, imóvel, habitação, moradia, residência. Ou seja: "a existência dos fatos materiais é, tanto quanto a existência dos fatos de outra ordem, indiferente à língua" (p. 76). Finalmente, é o fato negativo da oposição com as palavras comparáveis que faz "a justeza dos empregos 'figurados'; nós negamos, na realidade, que eles sejam figurados, porque negamos que uma palavra tenha uma significação positiva." (p. 80-81). Quer dizer: embora ele tenha aparentemente aplainado a tradicional antinomia, não deixa de reconhecer que há "efeitos" no uso.

A negação de uma "significação positiva", princípio da concepção de língua estabelecida por Saussure - embora no âmbito de um estudo imanente - parece reverberar em abordagens que dele descendem, ainda que por confronto, remetendo ao jogo em que o instituído está sempre sujeito às vicissitudes do tempo e do uso, produzindo deriva que, com maior ou menor rapidez, pode (re)integrar o instituído. Aqui se pode inserir a "estratégia" da metáfora: mecanismo de deslocamento e resultado, vinculado às chamadas "forças centrífugas" da organização da linguagem (opondo-se às forças centrípetas, de homogeneização).

Este tema remete ao conceito complexo de bipolaridade em Bakhtin (2003), que reflete sobre como conciliar a exigência de estabilidade das sociedades com a necessidade de adaptar-se a novas condições históricas. Com efeito: a bipolaridade do texto implica o uso da língua como sistema convencional - com unidades relacionais portadoras de significação - e como enunciado, ou seja, irreproduzível e individual, construindo sentido (tema, em Bakhtin (1979)) - "sua intenção em prol da qual ele foi criado" (2003, p. 310). Para Bakhtin, além de levar a compreender melhor noções acerca do fluxo verbal e da comunicação, "o estudo do enunciado como unidade real da comunicação discursiva permitirá compreender de modo mais correto também a natureza das unidades da língua (enquanto sistema) - as palavras e orações." (2003, p. 269). Só com relação ao enunciado é que se pode falar em verdadeiro, bom, belo, assustador, incrível... Este segundo polo é inseparável do autor.

Clark e Holquist (1998) destacam a ideia de complementaridade entre sistema e fala (discurso) em Bakhtin e o conflito incessante entre "canonização e heteroglossia". Como o território da linguagem é compartilhado entre locutor e interlocutor, Bakhtin procura mostrar como se dá essa repartição (o jogo entre o um e o múltiplo). Ele reconhece a existência como uma enorme energia se produzindo no processo de forças por ela impulsionadas.

Tal energia pode ser concebida como um campo de força criado pelo embate ininterrupto entre forças centrífugas, que se empenham em manter as coisas variadas, separadas, apartadas, diferenciadas umas das outras, e centrípetas, que se empenham em manter as coisas juntas, unificadas, iguais. (CLARK; HOLQUIST, 1998, p. 35)

Assim, as forças centrífugas levam ao movimento, à deriva; as centrípetas resistem ao devir; levam à repetição, à ideia de ordem. Tratase de uma constante dinâmica entre a língua, que se constrói a partir do discurso, e do discurso, que se constrói a partir da língua.

4 A RECUSA DA MUDANÇA DE SENTIDO

Evoco agora o tratamento da metáfora por Bréal (1992).

Tal imagem [a metáfora,] produzida em alguma cabeça privilegiada, torna-se, ao expandir, propriedade comum. Ela deixa, então, de ser uma imagem e torna-se qualificação corrente. Entre os tropos da linguagem e as metáforas dos poetas, há a mesma diferença que entre um produto de uso comum e uma conquista recente da ciência. (BRÉAL, 1992, p. 94).

A "cabeça privilegiada" seria aquela que tem o "dom do gênio" de que falava Aristóteles. Uma "qualificação corrente" é algo que foi adotado e tornado banal. O esquecimento desse movimento leva a supor a transparência de sentido, o que é uma ilusão. No caso da metáfora, há uma operação violenta, sem meio-termo: "[...] a metáfora muda instantaneamente o sentido das palavras, cria expressões novas de um modo súbito" (BRÉAL, 1992, p. 91).

Entretanto, há autores que não aceitam que numa metáfora haja fundamentalmente mudança de sentido da palavra. Seus argumentos são relevantes, considerando as perspectivas; dizendo de modo trivial, a mudança não é local, na palavra: a mudança é no efeito de sentido do enunciado15 15 Observe-se aqui mais um argumento para defender a relação significação/sentido, sem diluí-la teoricamente. . Davidson (1992), por exemplo, admitindo que "compreender uma metáfora é um esforço tão criativo e tão pouco dirigido por regras quanto fazer uma metáfora", não aceita distinguir uma metáfora de transações linguísticas rotineiras, salvo por uma questão de grau. Afirma que o que uma metáfora acrescenta ao comum das expressões é uma realização que não usa recursos semânticos para além daqueles postos em ação no cotidiano das expressões. A partir daí, Davidson assume a tese de que "as metáforas significam aquilo que as palavras, em sua interpretação mais literal, significam, e nada mais do que isso" (1992, p. 35). Isso, entretanto, destaca ele, não faz da metáfora um fenômeno menos interessante. O que ele recusa é que a metáfora tenha "outro sentido ou significado", ou conteúdo cognitivo definido. Para defender essa perspectiva, ele distingue teoricamente o que as palavras significam daquilo para o que são usadas. Metáforas, para ele, pertencem à esfera do uso16 16 Essa última afirmação é formalmente semelhante a esta, de Ricoeur (s.d., p. 75) "[...] uma metáfora é, no sentido forte da palavra, um evento de discurso" - mas, para Ricoeur, como observado antes, há mudança de sentido, além de a metáfora fornecer conteúdo cognitivo próprio. : através delas se pode assertar, sugerir, mentir, prometer, criticar... Para sintetizar: "A metáfora nos faz ver uma coisa como outra, fazendo algum tipo de afirmação literal que inspira o insight ou leva a ele" (1992, p. 51).

Eco (1995) também defende o princípio do sentido literal - ainda que se prefira dizer, discursivamente, que o literal é um efeito de sentido, assim como o efeito metafórico (metafórico, nesse caso, remetendo a qualquer deslocamento que produza efeito de sentido). Um exemplo para explicar essa posição se encontra na revista Istoé n. 1890, de 11/1/2006 (p. 29), na reportagem sobre as eleições presidenciais de 2006:

A disparada de Orestes Quércia nas pesquisas oxigenou o PMDB e cimentou a ideia de candidato próprio a presidente.

Antes de entender por que houve o deslocamento semântico de oxigenou e o efeito de sentido daí proveniente, precisamos saber o que significa, "literalmente" (tal como discutido antes), o que se entende por oxigenar, bem como cimentar, nos domínios de uso convencionais. O dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (edição 2001) explica que o sentido de "estimular, vivificar, fortalecer com uma lufada de ar puro; trazer hausto novo a" para oxigenar é uma derivação por metáfora (deslocamento). De modo semelhante, "firmar(-se), consolidar(-se), alicerçar(-se)" é uma derivação por metáfora para cimentar.

5 METÁFORA E "VERDADE"

Entendo, a partir de minhas reflexões, que se fala de ordens fundamentalmente diferentes quando se diz que "o literal não existe" ou que "tudo é metáfora", embora as duas coisas nos remetam a um mesmo movimento, e auxiliem na compreensão de uma parte da questão do "sentido metafórico".

Em O signo desconstruído (cf. ARROJO, 1992), pesquisadores discutem a questão do literal e do metafórico numa perspectiva que recusa certa noção de "verdade". Os trabalhos se desenvolvem na linha do perspectivismo nietzschiano: o signo saussuriano é retomado e rompido, mostrando-se o que nele representa a concepção ocidental de racionalidade, a teia do logos com "a" verdade aí embutida. A recusa do literal que se evidencia aí remete a uma concepção do próprio conhecimento, de sua história. Desse ângulo de visão, Nietzsche é um mentor: ele considera que nosso entendimento é subjetivo, realizando-se através de um "nomear"; assim, "decorre de um arbítrio do homem e não atinge a própria coisa" (cf. MARQUES, 1989, p. 66): "Todo o conhecimento é um reflectir-se em formas bem determinadas, que a priori não existem. A natureza não conhece qualquer forma, nenhuma grandeza, pois só em face de um ser que conhece surgem as coisas maiores ou mais pequenas" (p. 67).17 17 Lembremos Bréal (1992, p. 204): "Ela [a linguagem] não é - está longe disso - um espelho em que se reflete a realidade: é uma transposição da realidade através de signos particulares dos quais a maior parte não corresponde a nada de real". Essa direção lembra a posição filosófica de Rosenstock-Huessy (2002, p. 222): "A linguagem humana é metafórica por definição. Nada nela é o que é. Tudo significa algo que, em si mesmo, não é." A original concepção desse autor sobre a linguagem não poderá, contudo, ser explorada aqui.

É assim que a "verdade" vai aparecer como um conjunto de metáforas (a linguagem já nasce "metafórica"), portanto criações humanas que, num dado momento, por efeito de "esquecimento", aparecem como obrigatórias, normalizantes.

O "metafórico" desse conceito é que conduz à noção de literalidade como "metáfora primordial", no estudo de Arrojo e Rajagopalan (cf. ARROJO, 1992). Os autores tentam vincular as teorias estabelecidas com base nessa oposição à crença num "significado transcendental". 'Literal' pode aparecer, então, como primordial, direto; como "condições de verdade" (sentido independente de contextos especiais de uso); como coincidência entre o significado do emissor e o significado da palavra ou do enunciado (proposta de John Searle). A abordagem não logocêntrica que os autores propõem é inspirada em Nietzsche e em Freud. Daqui a ideia de uma "metáfora primordial": qualquer sentido que receba o nome de 'literal' foi metáfora. Em suma, seria impossível ao sujeito buscar fora de si o que ele deseja que seja objetivo, neutro. Daí que os autores retenham a "literalidade" como a grande metáfora humana.

Compreende-se a condição epistemológica desta concepção. Em outra ordem de ideias, contudo, sem abandonar este quadro histórico, o que nos impede que chamemos "literal" à "ilusão do literal"? Senão, nesta ordem, deveríamos chamar a metáfora de metáfora da metáfora, com o comprometimento de tudo o que há aí de criativo, de novidade, de discursivo - porque na expressão 'metáfora da metáfora' o segundo termo representa algo que não é mais metáfora, mas um elemento de ascendência. Por que não literal, então (preso à letra)?

Passo, agora, à discussão da tese aqui apresentada sobre o funcionamento da metáfora, orientando a discussão para o contexto da Análise do Discurso.

6 FORMAÇÕES DISCURSIVAS E METÁFORA

Trata-se, agora, de explicitar as noções de formação discursiva, interdiscurso e intradiscurso. Para contextualizar, apresento a posição de Pêcheux (1988) sobre o "sentido literal/próprio".

Recusando a concepção mais tradicional de literalidade, presa a um pretenso sentido primordial, Pêcheux afirma que palavras, expressões, proposições "recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas" (1988, p. 161). Focalizando a relação base linguística/processo discursivo (ideológico), enfatiza que, se a uma "mesma" palavra podem ser associados sentidos distintos (todos "evidentes"), é porque "[...] uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que lhe seria "próprio", vinculado a sua literalidade (p. 161). Para Pêcheux, assumir a literalidade como associada a um sentido primordial seria presumir a relação necessária entre a letra (o significante) e aquilo a que se faz referência - o que, para ele, é inaceitável. "Literal é o significante" (1988, p. 160).

Tem-se desenvolvido a ideia, associada à noção de formação discursiva, de que o "sentido literal" é um efeito de sentido entre outros, visto que o sentido (dos enunciados) só aparece e se determina nas próprias formações discursivas. Presume-se, então, que a ilusão da transparência dos sentidos (a existência de uma significação primeira, ou simplesmente óbvia) ocorre pela possibilidade de repetição de enunciados no interior da formação discursiva (como instância de formação/repetição/transformação de elementos do saber), na formulação discursiva - sempre um reinvestimento (neologismos, estruturas oracionais, metáforas). Isso é que criaria a ilusão do literal como algo que aparece dado, estabilizado. Nada impede, portanto, que essa ilusão receba o nome de "literal".

Uma formação discursiva tem uma memória constituída de "enunciados divididos", daí ser marcada por seu "outro"; isto caracteriza uma contradição interna que, segundo Pêcheux (1981), corresponde a um "efeito de sobredeterminação pelo qual a alteridade vem afetar o mesmo" (p. 6-7). O sujeito do discurso, na construção dessa textura, pode rejeitar tal heterogeneidade, e acreditar que seu discurso é "límpido" (parcial inconsciência da heterogeneidade). Isto é uma consequência do funcionamento do interdiscurso (uma memória social).

Segundo Courtine (1981, p. 49), o interdiscurso de uma formação discursiva, como "instância de formação/repetição/transformação dos elementos do saber desta FD, pode ser apreendido como aquilo que regula o deslocamento de suas fronteiras" (tradução minha). Ocorre, pois, um processo de reconfiguração incessante.

Assim visto o interdiscurso, pode-se formular uma matriz para a "figura". É nesses contornos reconhecidamente fluidos da formação discursiva que encontramos o lugar do surgimento da figura, no caso a metáfora, como elemento incorporado que sofre um processo, a partir de empréstimo que é, como parte, naquela instância, de uma forma de representação - uma interpretação, seja verbal, seja pictórica.

No intradiscurso, por outro lado - o fio do discurso, a formulação -, é que se desdobra o imaginário, ou seja, é "onde o sujeito enunciador é produzido, na enunciação, como interiorização da exterioridade do enunciável" (COURTINE, 1981, p. 50). Em outras palavras: o sujeito, construindo-se no fio do discurso, promove efeitos discursivos que surgem de uma relação tensa dos enunciados (elementos do saber próprio de uma formação discursiva - o repetível) à formulação (de enunciados).

O arquivo de enunciados (uma memória) do saber de uma formação tem uma existência histórica - como tal, os atos novos de discurso (a instanciação, a enunciação) os retomam, falam deles, os transformam; eles são ditos, permanecem ditos, e são disponíveis ainda para serem ditos (COURTINE, 1981, p. 53). Há, pois, no discurso, um jogo em que se trabalha o de dentro (memória da formação discursiva) e o de fora (de outras formações). Constitui-se o texto, que é enunciado como um: um artigo, uma reportagem, um editorial. O pré-construído (arquivo, memória discursiva) é articulado para produzir o intradiscurso. O "mundo" é referenciado através de saberes já constituídos, com enunciados que já representam - mas devem ser ressignificados. A referência, então, é referência de referência (transferência) - a metáfora da metáfora.

Quanto ao papel do sujeito: do ponto de vista da Análise de Discurso, um sujeito, como posição social, é sempre condicionado, e sua "pessoalidade", bem como o que ele projeta enunciativamente, inscrevese no imaginário - um espaço "normalizado".

Em termos da dimensão referencial da metáfora, no estudo que faz sobre o símbolo, Ricoeur a expõe através do conceito de modelo, mais especificamente de modelo teórico - construção de um objeto imaginário para descrever um domínio complexo da realidade, o que corresponde a ver as coisas diferentemente (conforme cada modelo), mudando nossa linguagem sobre o objeto da investigação. Através dessa discussão referencial (o modelo constitui a dimensão referencial da metáfora) chegamos a uma coincidência com a tese que apresento, do cruzamento de formações discursivas (e consequente reconfiguração - interdiscurso) para explicar o movimento que constrói uma metáfora, através de conexões impensadas: "uma metáfora memorável tem o poder de reunir dois domínios separados numa relação cognitiva e emocional, utilizando a linguagem diretamente apropriada para um como uma lente para ver o outro (Max Black, apud RICOEUR, s.d., p. 79).

Eco (1991, p. 191) argumenta que a qualidade de uma metáfora pode ser medida pelo critério da abertura, isto é, "o de quanto uma metáfora permite viajar pela semiose e conhecer os labirintos da enciclopédia". De fato, os sujeitos que interpretam terão tanto mais sucesso quanto mais rico for o tecido cultural em que se movimentem. Do ponto de vista pedagógico, a própria "arqueologia" da metáfora é veículo para a compreensão da linguagem e da enciclopédia (no sentido de Eco).

Resta fazer uma referência rápida, nesta seção, a um campo que tem influência no desenvolvimento da Análise do Discurso: a psicanálise.

No registro psicanalítico, o efeito metafórico pode ser observado relativamente à noção de alíngua (conforme Lacan). Em Milner (1987) fica marcada uma espécie de desafio à linguística do estruturalismo, que se propôs a concepção e descrição da língua como Todo, sistema, uma, criando a partir de sua materialidade uma consistência, uma identidade, uma forma, uma hierarquia: "Alíngua é, em toda língua, o registro que a consagra ao equívoco" (1987, p. 15).

Alíngua é aquilo que permite o equívoco - real. É aqui que se pode encaixar novamente o papel de um sujeito: o "fala-ser" (parlêtre). Nele "o ser e o falar não se desatam e se corrompem um ao outro. Mas, afinal, o que fala este ser falante? O que é preciso ser falado para que seu ser possa e deva aí inscrever-se em suspenso?" (MILNER, 1987, p. 61). A resposta é: não pode ser a língua dos linguistas, uma vez que uma representação formal não poderia afetar o ser que a suporta.

Essa relação intrigante do ser com a linguagem cria certa materialidade, não só do significante que aí aparece, mas do sujeito que se estabelece: é num corpo que o sujeito existe, e esse suporte é fundamental. E é fala-ser que desencadeia o processo de produção do sentido:

Tomemos uma sequência de língua: basta que um sujeito de desejo aí faça signo em um ponto, para que, ao mesmo tempo, tudo bascule: a possibilidade de cálculo sintático cessa, a representação gramatical cede e os elementos articulados viram significantes. (MILNER, 1987, p. 64)

É a isso que se chamará subjetivação. Em outras palavras, a língua submetida à função de excesso - alíngua. A tese é: a língua, pensada como estrutura, sofre sem cessar o trabalho da alíngua, que atua no sentido de desfazer o conjunto. É necessário, pois, ao especialista reconhecer os pontos em que aparece uma estranheza nas cadeias de regularidade. O que quer que perdure é um mesmo; o que o desconstrói, um outro.

A metáfora é uma pedra desse jogo. E não apenas na literatura, mas em toda formulação discursiva, onde quer que o "sujeito de desejo" apareça. E dessa forma incorporamos o Outro, chame-se ele o Diferente - como o faz Orlandi (1990, Cap. II) - ou mesmo Outro, refeito e ampliado por Maingueneau (1984); ou simplesmente o Excesso, como o faz Ricoeur (s.d., p. 57): "Não existe aí [na significação verbal] um excesso de sentido que vai além do signo linguístico?"

7 METÁFORA E ICONICIDADE

Apresentarei, agora, pelo ângulo do pictórico, o efeito de "tela" a que se referia Aristóteles (animação, figuração). Considerando-o como o próprio princípio dinâmico da comparação, chega-se àquilo que discuti anteriormente: o caráter icônico da metáfora, que, num jogo de mesmo e diferente, cria uma tensão na produção/interpretação capaz de efeitos surpreendentes - traços de interdiscursividade. A comparação insinuada na metáfora é mostrada quando o pictórico comparece. E aí o duplo caminho serve de modo especial aos efeitos de humor. Na charge, no cartum, o que se chama de "literal" é o icônico, imediatamente visualizado. Há uma teatralização ligada à natureza argumentativa da linguagem: nessa "brincadeira", é menos importante a verdade ou a falsidade que o que se percebe, e o tipo de ação sancionada pela metáfora - a representação metafórica é ideológica.

Exemplifico essa perspectiva com o trabalho de Kneipp (1990), que verifica a determinação metafórica de um comportamento nãoverbal. A autora escolheu metáforas sobre a inflação e o Plano de Estabilização Econômica do governo Sarney (1986-1987), incluindo aí charges sobre o tema. A personificação (animismo) é uma das estratégias mais comuns: a inflação é um inimigo que é preciso derrotar, ou é um monstro; ela aparece também como doença (remédios antiinflacionários), ou como algo que se expande e pode explodir (explosão inflacionária).

No funcionamento da charge, a autora observa que a característica básica da metáfora é "[...] a transmutação de uma coisa em outra sem que, entretanto, a primeira se dilua na outra. Os dois conceitos, distintos, se acham simultaneamente presentes e se apresentam de maneira imediata à percepção."

Especificando esse funcionamento, ela diz que a metáfora está na charge como um todo, nas relações entre seus diversos elementos. Na verdade, pelo menos em algumas das charges usadas como exemplo, os "dois conceitos" de que fala a autora não estão presentes - do pictórico é que se infere o verbal, devendo este surgir na mente do intérprete. Neste caso, o fator preponderante da interpretação é a inserção em ea consideração de um determinado momento histórico-cultural (conhecimento de mundo). O imediatismo da percepção encontra aí a sua condição. É assim que a hiperbolização pode funcionar como argumento para medidas "fortes". Com uma ressalva: o efeito dramático tende ao hilário antes que à tragédia, neutralizando provavelmente o "sério" que isso possa representar.

O Plano Cruzado, como passou a chamar-se o Plano de Estabilização do governo Sarney, revelou-se um prato cheio para os humoristas. Neste caso, o metafórico atingiu o limiar do polissêmico: o Cruzado passou a ser identificado, nas charges, ao cruzado-cavaleiro andante-defensor dos lugares santos, e ainda ao cruzado como golpe estratégico do boxe, mas desta vez já atuando contra o trabalhador. Depois o plano passou a ser visto como um "pacote", metáfora que persiste até nossos dias, representando invariavelmente um conjunto de medidas impostas à sociedade - com alguns detalhes burlescos como a indicação this side up, na vertical. Convém anotar que o pacote parece enraizado no famoso mito da bolsa de Pandora: o conteúdo é uma surpresa sempre desastrosa.

Eis um outro exemplo: O governo pode ser visto como uma máquina. Título: "Ajustando a máquina". O ministro Fernando Henrique Cardoso (ou FHC) vai "ensinando": "A mecânica é simples: basta enxugar a máquina fazendo logo um ajuste... criar novos mecanismos de câmbio... regular o fluxo após a rolagem..." No caso, o visual da máquina é um fusca cujo motor precisa ser remontado (Paulo Caruso, Avenida Brasil, Istoé n. 1237, 16/6/93).

Percebe-se no icônico, que de certa perspectiva é exatamente o que produz o distanciamento - não fosse ele o correlato do "literal" -, a representação frequente, não de uma palavra, mas de toda uma situação (histórico-cultural), como uma cena de filme ou de teatro. Isto lhe dá coerência.

Como se pode efetivamente ver, a construção do humor passa pela intertextualidade mais radical, como que fazendo revolver na memória um conjunto de traços que, amalgamados, projetassem uma cena surrealista. A charge é o palco do jogo de sentidos, é onde o choro e o riso podem conviver em harmonia.

Percebe-se, então, que se desloca a referência no sentido de uma regularidade cultural (o efeito do já estabilizado): o mundo da linguagem cria as referências, e não diretamente o mundo objetal, o mundo da experiência objetiva/subjetiva. É assim que o fenômeno enunciativo se apresenta como um exercício de produção de realidade(s). Considero que a metáfora é a forma radical dessa criação (ou a matriz dela). Nessa ótica, assim como o sujeito é visto como suporte de linguagem, também o mundo é suporte das representações sócio-históricas. Nesse caso, uma identidade material reflete uma divisão. É, para Pêcheux (1999), "uma espécie de repetição vertical, em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase" (p. 53). Pêcheux (1999, 53) remete o fenômeno a um jogo de força na memória, sob o choque que um acontecimento discursivo representa: um jogo de força para manter o que se regularizou, com seus implícitos, e, de outro lado, para "desregular", e que convulsiona os implícitos da memória. Isso corresponde, na perspectiva de Bakhtin (V. seção 3), ao conflito entre forças centrípetas e forças centrífugas (canonização e heteroglossia), no território da linguagem.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Bréal (1992, p. 97) afirma que a gíria (ou slang) se compõe em grande parte de metáforas bem distantes de sua origem. Este é mais um campo de exploração da metáfora, que no entanto não é possível abordar aqui. Também me perguntei, no curso deste estudo, se um termo de língua estrangeira em dado contexto não seria uma metáfora. A primeira abordagem apontou aspectos interessantes do fenômeno. Por exemplo: comentou-se a respeito de Fernando Henrique Cardoso, quando ministro, que ele negava em on o que dizia em off (em certas circunstâncias).18 18 Lido na Revista ISTOÉ no final de 1993. A utilização de on/off causa um efeito de economia especial, sobretudo se associarmos a essas palavras a facilidade de mudar de uma condição para outra, com um simples toque de dedo: abrir/fechar; ligar/desligar.

Como consequência dessas perspectivas, o fenômeno de transposição que chamamos metáfora teria o seu campo relativamente ampliado - o que, se de um lado parece comprometer a definição mais tradicional, insere-se relevantemente numa regularidade mais ampla da linguagem: a incessante movimentação semântica no discurso. Por esse ângulo, há um encontro entre a análise discursiva e a perspectiva dos estudos de metáfora na Linguística Cognitiva, conforme explicita Gerhardt (2003, p. 23): "[...] o conceito revolucionário de metáfora emergiu naquela disciplina [referência à Teoria dos espaços mentais iniciada por Fauconnier] não mais como mero tropo, mas sim assumindo um estatuto mais amplo - o de projeção entre domínios de experiências", deixando de ser encarado como um processo reduzido a representações vinculadas a condições de verdade (modelos cognitivos idealizados).

Sociedade, comunidade discursiva, controle social, formações discursivas correspondem a conceitos desenvolvidos para explicar o funcionamento da linguagem como fluxo, onde se pode perceber uma gênese (acontecimento), uma circulação, e o eventual desaparecimento, bem como ressurgimento nesta ou naquela circunstância.

Ao retomar questões e fornecer algumas formas de pensar esse fantástico manancial de expressão (em sentido amplo) das línguas e defender uma perspectiva discursiva de compreensão do fenômeno da metáfora, percebi que o que de mais relevante se apresentou foi a abertura para novas questões e novos domínios de exploração. Fique enfatizado que, ao não mais se enxergar uma fronteira entre o literal e o metafórico, dado o entendimento de que se complementam, compreende-se também melhor como se dá o fluxo da linguagem, com uma gênese (acontecimento situado), uma circulação e o eventual desaparecimento e ressurgimento em circunstâncias várias.

Recebido em 07/11/08.

Aprovado em 03/04/10.

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  • 1
    Cf.
    Arte Retórica e Arte Poética, Livro Terceiro, cap. I.
  • 2
    A fórmula da imagem assim aparece: X é como Y, X se assemelha com Y, X parece Y, X é comparável a Y.
  • 3
    A metáfora, então, participa de dois campos: "há [...] uma única
    estrutura da metáfora, mas duas funções da metáfora: uma função retórica [campo político] e uma função poética" (RICOEUR, 1983, p. 19). Em Aristóteles, a metáfora aparece como fato estético e como fato linguístico-social, vinculado à práxis.
  • 4
    "Próprio" e "dialetal" aparecem aqui como denominações relativas às regiões, correspondendo a uma normalidade (comunidade) de uso. "Próprio" é o nosso, "dialetal" o de outrem.
  • 5
    Nesta parte, Ricoeur faz referência a Paul Henle, que trata do caráter icônico da metáfora, tendo como fonte Charles Sanders Peirce (semiótica). Observe-se, por curioso, que era exatamente à comparação que Aristóteles chamava
    eikon (ícone).
  • 6
    É por isso que não se pode falar, na produção e interpretação da metáfora, em propriedades empíricas dos "referentes" aproximados, mas em pertinência de algumas propriedades; daí a "construção da similaridade", e não sua "descoberta" (cf. ECO, 1991, seção 3.3).
  • 7
    Excerto de um relatório/projeto de grupo de alunos de pós-graduação (1992).
  • 8
    Bréal (1992) diz: "[...] a maior parte [das metáforas] apenas ensina o que já sabemos" (p. 91).
  • 9
    Cf. nota 4. Sentido "literal" como sentido primeiro ou original nada tem a ver com sentido "próprio" como aparece aqui. Dumarsais identificava sentido literal com sentido etimológico, o que leva a julgar que todos os sentidos correntes são figurados, e mais, as figuras se identificam à polissemia (cf. RICOEUR, 1983, p. 211).
  • 10
    Penso que o efeito metafórico pode ter uma relação estreita com o
    discurso relatado - ou melhor, aparece como um efeito de discurso relatado, um tipo especial, dado o processo de migração que se verifica (com características a estudar).
  • 11
    Por isso, entendo que seria relevante que a AD incorporasse em seu domínio a distinção significação/sentido, correspondendo (não "equivalendo") ao contraste paráfrase/polissemia.
  • 12
    Bakhtin está contrastando significado e sentido. O significado é apenas potencial, por isso "está excluído do diálogo".
  • 13
    É minha a tradução de todas as passagens citadas dos
    Écrits.
  • 14
    Referência feita por Saussure a duas formas de condenação: no suplício da grelha a pessoa queimava sobre um braseiro, por cima de uma grelha (como São Lourenço, sacrificado em Roma no século III); no suplício da roda o condenado, amarrado, sofria golpes que quebravam ossos e articulações, e depois era suspenso numa roda e ficava exposto até a morte.
  • 15
    Observe-se aqui mais um argumento para defender a relação
    significação/sentido, sem diluí-la teoricamente.
  • 16
    Essa última afirmação é formalmente semelhante a esta, de Ricoeur (s.d., p. 75) "[...] uma metáfora é, no sentido forte da palavra, um evento de discurso" - mas, para Ricoeur, como observado antes, há mudança de sentido, além de a metáfora fornecer conteúdo cognitivo próprio.
  • 17
    Lembremos Bréal (1992, p. 204): "Ela [a linguagem] não é - está longe disso - um espelho em que se reflete a realidade: é uma transposição da realidade através de signos particulares dos quais a maior parte não corresponde a nada de real". Essa direção lembra a posição filosófica de Rosenstock-Huessy (2002, p. 222): "A linguagem humana é metafórica por definição. Nada nela é o que é. Tudo significa algo que, em si mesmo, não é." A original concepção desse autor sobre a linguagem não poderá, contudo, ser explorada aqui.
  • 18
    Lido na Revista ISTOÉ no final de 1993.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010

    Histórico

    • Recebido
      07 Nov 2008
    • Aceito
      03 Abr 2010
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