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PRÁTICA CIENTÍFICA NA ESCRITA DE PROFESSORA

SCIENTIFIC PRACTICE IN THE FEMALE TEACHER’S WRITING

PRÁCTICA CIENTÍFICA EN LA ESCRITURA DE LA PROFESORA

Resumo

Este artigo investiga autorrepresentações produzidas por uma professora de escola básica em uma dissertação de mestrado profissional para professoras de português como língua materna no território brasileiro. A partir das representações identificadas, a construção do letramento científico da educadora na pós-graduação profissional é problematizada. O trabalho se configura como um estudo de caso sob a perspectiva indisciplinar da Linguística Aplicada, delineado pela problematização da cultura científica legitimada e pela análise linguística do documento selecionado. Os resultados mostraram a predominância da autorrepresentação de pesquisadora alinhada a teorias linguísticas apropriadas na pesquisa e desdobrando-se, portanto, na reprodução de um modelo de letramento científico dominante característico da pós-graduação acadêmica.

Palavras-chave:
Letramento científico; Linguística Sistêmico-Funcional; Mestrado profissional

Abstract

This paper investigates self-representations produced by a basic school female teacher in a professional master's dissertation for Portuguese teachers as their mother tongue in Brazilian territory. From the identified representations, the construction of the scientific literacy of the female educator in the professional graduate is problematized. The research is configured as a case study under the undisciplined perspective of Applied Linguistics, outlined by the questioning of the legitimized scientific culture and the linguistic analysis of the selected document. The results have showed the predominance of the researcher's self-representation aligned with the appropriate linguistic theories in the research, unfolding in the reproduction of a dominant scientific literacy model characteristic of academic postgraduate studies.

Keywords:
Scientific literacy; Sistemic-Functional Linguistics; Professional master’s program

Resumen

Este artículo investiga auto-representaciones producidas por una maestra de escuela básica en una disertación de maestría profesional para profesoras de portugués como lengua materna en el territorio brasileño. Desde las representaciones identificadas, la construcción del alfabetismo científico de la educadora en el posgrado profesional es problematizada. El trabajo se configura como un estudio de caso bajo la perspectiva indisciplinar de la Lingüística Aplicada, delineado por la problematización de la cultura científica legitimada y por el análisis lingüístico del documento seleccionado. Los resultados muestrearon la predominancia de la auto-representación de investigadora, alineada con teorías lingüísticas apropiadas en la investigación, por lo tanto se desplegando en la reproducción de un modelo de alfabetismo científico dominante, característico del posgrado académico.

Palabras clave:
Alfabetismo científico; Lingüística Sistémico-Funcional; Maestría profesional

“formar, em nível de pós-graduação,

50% (cinquenta por cento) dos professores da educação básica,

até o último ano de vigência deste PNE” (BRASIL, 2014, p. 51).

1 INTRODUÇÃO

A epígrafe deste artigo enuncia um grandioso e polêmico desafio a ser enfrentado pelo governo brasileiro no âmbito da formação continuada de professoras2 2 Ao longo deste artigo, flexibilizei a prescrição gramatical referente à flexão de gênero na língua portuguesa para me referir aos profissionais da educação. Optei pelo uso do feminino para visibilizar o trabalho do magistério realizado predominantemente por mulheres. . O excerto reproduz parte da Meta 16 descrita no Plano Nacional da Educação (PNE), ainda composto por outras dezenove e caractarizado como “exigência constitucional com periodicidade decenal” (BRASIL, 2014, p. 5). Em outras palavras, o documento apresenta vinte metas para elevar a qualidade da educação no Brasil, nos diferentes níveis de instrução formal. Todas as metas devem ser cumpridas entre os anos de 2014 e 2024.

Mais recentemente, a meta focalizada foi enfrentada pelo governo federal a partir da criação de mestrados profissionais para educadoras, a exemplo do Mestrado Profissional em Letras (ProfLetras), implementado em 2013 e ofertado para professoras efetivas de Língua Portuguesa vinculadas a escolas públicas brasileiras do Ensino Fundamental (1º ao 9º ano)3 3 Foram criados os Programas de Mestrado Profissional para Qualificação de Professoras da Rede Pública de Educação Básica (ProEB), compreendendo as seguintes disciplinas escolares: Artes (ProfArtes); Biologia (ProfBio); Educação Física (ProfEdFísica); Filosofia (ProfFilo); Física (ProFis); História (ProfHistória); Química (ProfQui); Matemática (ProfMat); Sociologia (ProfSocio). Disponível em: http://www.capes.gov.br/educacao-a-distancia/proeb. Acesso em: 24/06/2018 . Essa modalidade de mestrado se configura como um desafio para as universidades brasileiras, que, por estarem inseridas numa cultura acadêmica distante das instituições de ensino básico, vêm empregando esforços para responder às demandas da renovação do ensino de língua materna, motivadas especialmente por práticas interativas fluidas a serem democratizadas e por encaminhamentos para o ensino originários de avanços científicos nos estudos da linguagem.

Assumindo a linguagem como uma atividade social desencadeadora de sentidos, investigo algumas autorrepresentações construídas por uma professora da escola básica em uma dissertação apresentada como trabalho de conclusão final (TCF) do ProfLetras. Nesse sentido, problematizo alguns desdobramentos das representações descritas para o letramento científico das professoras em formação continuada no mestrado profissional. Trata-se de um estudo de caso a partir da análise linguística das orações gramaticais em que a professora, autora da dissertação selecionada, é representada na posição gramatical de sujeito. Assim este artigo traz um estudo de algumas tensões em torno da construção do ProfLetras como mestrado na modalidade profissional, considerando interferências de práticas estabilizadas de pesquisas na pós-graduação acadêmica brasileira4 4 Este artigo apresenta resultados parciais do projeto de pesquisa “Letramento Científico do Professor no Mestrado Profissional em Letras” (CNPq 305094/2016-5). Contribui para as investigações científicas no grupo de pesquisa Práticas de Linguagens - PLES (UFT/CNPq). Foi apresentado nos seguintes eventos científicos: XIV Congresso da Associação de Linguística Sistêmico-Funcional da América Latina (ALSFAL), Puebla, México; VII Congresso Latino-Americano de Formação de Professores de Línguas (CLAFPL), Belém, Brasil. .

Este estudo se alinha à abordagem indisciplinar da Linguística Aplicada (cf. PENNYCOOK, 2001PENNYCOOK, A. Critical Applied Linguistics: a Critical Introduction. London: Routledge, 2001.; SILVA, 2014SILVA, W. R. Reflexão pela escrita no estágio supervisionado da licenciatura: pesquisa em Linguística Aplicada. Campinas: Pontes, 2014.), justificada pelo diálogo explícito ou não entre referenciais teóricos de diferentes disciplinas ou campos do conhecimento, e pelo compromisso político com o fortalecimento da formação de professoras na pós-graduação profissional. Alguns estudos do letramento científico (cf. SOUSA, 2016SOUSA, B. S. Letramento científico a partir de relatórios de pesquisa no Ensino Fundamental II: uma intervenção pedagógica. 2016. 97f. Dissertação (Mestrado Profissional em Letras) - Universidade Federal do Tocantins, Araguaína, 2016.; SILVA, 2017) e da sociologia da ciência (cf. DEMO, 2012DEMO, P. Ciência rebelde: para continuar aprendendo, cumpre desestruturar-se. São Paulo: Atlas, 2012.; SANTOS, 2010SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 31-83.) são utilizados para caracterizar o contexto acadêmico em que está inserido o ProfLetras e identificar o desafio da construção para educadoras de uma pós-graduação profissional sustentável. Estudos de origens distintas sobre práticas reflexivas na formação da professora também contribuem para fundamentar esta pesquisa (cf. PERRENOUD, 2002PERRENOUD, P. A prática reflexiva no ofício de professor: profissionalização e razão pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2002.; SIGNORINI, 2000SIGNORINI, I. O papel do relato no contexto de formação da alfabetizadora: percurso feito, percurso por fazer. In: KLEIMAN, A.; SIGNORINI, I. (Org.). O ensino e a formação do professor: alfabetização de jovens e adultos. Porto Alegre: Artmed, 2000. p. 210-222.; SILVA, 2014). Para a análise linguística da dissertação selecionada, são utilizados alguns pressupostos teórico-metodológicos da Linguística Sistêmico-Funcional - LSF (cf. EGGINS, 2004EGGINS, S. An Introduction to Systemic Functional Linguistics. 2ª ed. London: Continuum, 2004. ; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. Halliday’s Introduction to Functional Grammar. 4. ed. London: Routledge, 2014.; THOMPSON, 2014THOMPSON, G. Introducing Functional Grammar. 3. ed. London: Routledge, 2014.). Aleatoriamente escolhi uma dissertação dentre dez TCF analisados preliminarmente. Esses trabalhos são originárioss de unidades do ProfLetras localizadas na Região Norte, conforme estudo mais extenso apresentado por Silva (2019SILVA, W. R. Construção de práticas de pesquisa no Mestrado Profissional em Letras. In: SILVA, W. R.; BEDRAN, P. F.; BARBOSA, S. A. (Org.). Formação de professores de língua na pós-graduação. Campinas: Pontes, 2019. p. 25-57.).

Este artigo está organizado em três partes principais, além desta Introdução, das Considerações Finais e das Referências. Na primeira, caracterizo o ProfLetras no contexto universitário brasileiro em que o modelo de pós-graduação acadêmica, informado pelo paradigma dominante de pesquisa, prevalece. Na segunda, sintetizo alguns pressupostos teóricos atrelados à metafunção experiencial da linguagem proposta na LSF, utilizados na análise linguística da dissertação. Por fim, na terceira parte, apresento uma análise quantitativa e qualitativa do objeto investigado, quando são exemplificados os tipos de escolhas linguísticas responsáveis por práticas de letramento científico perceptíveis na escrita da professora.

2 DESAFIOS DO MESTRADO PROFISSIONAL PARA PROFESSORAS

O desafio da oferta de mestrados profissionais alinhados a demandas da escola básica, em resposta à Meta 16, parcialmente reproduzida como epígrafe deste artigo, articula-se a outras metas igualmente descritas no PNE (BRASIL, 2014), a exemplo da de número 14, proposta para elevar o número de matriculados na pós-graduação stricto sensu, compreendendo mestrado e doutorado. No contexto brasileiro, esses cursos são ofertados nas modaliades profissional ou acadêmica, sendo essa última bastante consolidada.

Caracterizo a Meta 16 como grandiosa pelo complexo desafio a ser enfrentado a fim de assegurar as condições necessárias para que professoras da educação básica frequentem e concluam dignamente a pós-graduação. No contexto do ProfLetras, as professoras da escola básica retornam à universidade após passar alguns anos distantes da referida instituição, cumprem um elevado número de disciplinas no mestrado, inclusive no semestre em que desenvolvem a pesquisa compulsória na escola básica5 5 Conforme Artigo 17 do Regimento do ProfLetras, o curso “prevê o cumprimento de um mínimo de 360 (trezentos e sessenta) horas em disciplinas, correspondendo a 5 (cinco) disciplinas obrigatórias e 3 (três) optativas, cada uma delas com 45 horas”. Disponível em: http://www.profletras.ufrn.br/documentos/108963191/regimento#.W0QONtJKjIU. Acesso em: 9 jul. 2018. , acumulam as atividades do curso e a rotina das aulas no ensino básico (quase sempre sem redução da carga horária trabalhada)6 6 Inicialmente o edital da seleção nacional do ProfLetras informava que o curso era semipresencial, o que, dependendo da leitura realizada pela rede pública de ensino de lotação das professoras, impossibilitava o afastamento ou, até mesmo, a redução da carga horário da profissional em sala de aula. Em 24 de abril de 2017, o conselho gestor do ProfLetras criou a Resolução 001/2017 para regulamentar a obrigatoriedade da permanência das alunas do ProfLetras em sala de aula, o que deve ser comprovado, semestralmente, durante a renovação da matrícula, mediante entrega de documento emitido pela unidade escolar de lotação. Disponível em: http://www.profletras.ufrn.br/documentos/193488707/resolucoes#.W0QTR9JKjIU. Acesso em: 9 jul. 2018. , além de lidarem com esforços em outros espaços, sobretudo as mulheres ao exercerem jornadas domésticas.

Conforme relatório de monitoramento do PNE (BRASIL, 2018, p. 271), entre os anos de 2008 e 2017, apenas 2,4 % e 0,4 % das professoras possuíam o título correspondente a mestrado e doutorado, respectivamente. Considerando o tempo restante para implementação do PNE, tem-se como certo que, mantendo-se a política atual, a meta focalizada será descumprida.

Diante da realidade descrita, uma leitura flexível do documento é realizada: considere-se a pós-graduação lato sensu, totalizando 34,4 % de professoras da escola básica que frequentaram alguma especialização, curso configurador dessa última modalidade de pós-graduação7 7 Em documento oficial (BRASIL, 2014, p. 52), especifica-se a pós-graduação stricto sensu, conforme observável no seguinte excerto: “É fundamental, para atingir essa meta, implementar ações articuladas entre os sistemas de ensino e os programas de pós-graduação das universidades públicas, bem como assegurar a implantação de planos de carreira e remuneração para os professores da educação básica, de modo a garantir condições para a realização satisfatória dessa formação, objetivando alcançar a cobertura de 50% dos professores da educação básica com mestrado ou doutorado”. . Os denominados cursos de especialização não são submetidos aos critérios de qualidade assegurados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), agência do governo federal brasileiro responsável pela abertura, implementação e avaliação de mestrados e doutorados, seja em instituições de ensino superior públicas ou privadas8 8 Em 11 de julho de 2017, o então presidente da República do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou a Lei 11.502/2007 ampliando a missão da CAPES para qualificação de professoras da educação básica. A ampliação do campo de atuação foi justificada pelo aproveitamento da experiência e tradição dos 56 anos da CAPES, na formação de pesquisadores e docentes para o ensino superior. A título de ilustração, reproduzo o Art. 2oda lei sancionada: “A Capes subsidiará o Ministério da Educação na formulação de políticas e no desenvolvimento de atividades de suporte à formação de profissionais de magistério para a educação básica e superior e para o desenvolvimento científico e tecnológico do País”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11502.htm. Acesso em: 25 jun. 2018. .

Esses números marcam a pós-graduação stricto sensu como um espaço distante das professoras da educação básica, pois há uma tendência de desarticulação entre o preparo técnico em função da prática profissional e a formação de pesquisadoras. A esse respeito destaco uma das fórmulas responsáveis pela manutenção da dicotomia mencionada, conforme elenca Perrenoud (2002PERRENOUD, P. A prática reflexiva no ofício de professor: profissionalização e razão pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2002., p. 93): “a formação de professores pode se reduzir à graduação, enquanto os setores mais fundamentais oferecem a possibilidade de um curso de pós-graduação mais aprofundado e teórico aos melhores alunos”9 9 Ainda conforme o autor, “este foi o procedimento utilizado no Canadá até recente extensão da formação ao ensino em nível de mestrado” (PERRENOUD, 2002, p. 93). Talvez o Brasil esteja iniciando um percurso semelhante ao dos canadenses. .

Também caracterizo a Meta 16 como polêmica pela ausência de estudos mostrando impactos da atuação de professoras com mestrado ou doutorado na educação básica, principalmente quando se conhece o cientificismo comum a esses cursos. Pode-se considerar ainda o investimento para instrução e permanência da profissional altamente qualificada na escola básica, sem ignorar a diversidade e complexidade de outros investimentos, igualmente necessários para o aumento da qualidade da educação e a produção de bons resultados, a exemplo da garantia de infraestrutura e materiais pedagógicos adequados e, até mesmo, de transporte escolar para crianças residentes em comunidades rurais e de alimentação para vulneráveis matriculadas em escolas públicas.

A polêmica também se justifica por representações a respeito das práticas da pós-graduação acadêmica, marcadas pela produção de avanços teóricos disciplinares ainda restritos à própria comunidade científica, formada por grupos de seletos especialistas responsáveis pela produção de teorias. Não restrita ao contexto brasileiro, essa toada identifica o paradigma dominante de procedimentos científicos (cf. DEMO, 2012DEMO, P. Ciência rebelde: para continuar aprendendo, cumpre desestruturar-se. São Paulo: Atlas, 2012.; PERRENOUD, 2002PERRENOUD, P. A prática reflexiva no ofício de professor: profissionalização e razão pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2002.). Garante a legitimação de algumas disciplinas ou campos do conhecimento, a exemplo das ciências naturais (ex. biologia, física e quimícia) em contraposição às humanidades (ex. linguística, linguística aplicada e sociologia); sustenta a universidade distante do cidadão comum, consequentemente, longe das escolas, desdobrando-se na figura dos pesquisadores como produtores de conhecimentos a serem reproduzidos na escola básica, resultando no silenciamento de professoras e alunos. Assim, para esses últimos pode-se reservar os papéis de sujeitos pesquisados e, por vezes, colaboradores ou participantes10 10 Criticando essa prática científica silenciadora e dominante, contraposta ao que propõe e denomina “ciência rebelde”, Demo (2012) compara a autoridade exercida pela ciência à das religiões, que compartilham verdades inquestionáveis. Nos termos do autor, “o novo templo se chama universidade. Enquanto as religiões comandam as almas, a ciência comanda as mentes. São ambas também esquemas de poder, tendo o ser humano como arquiteto insubstituível” (p. 34). .

A influência dessa prática acadêmica legitimada desafia o ProfLetras, conforme mostra Santos (2018SANTOS, M. B. Epistemologia da prática e desenvolvimento profissional no Mestrado Profissional em Letras. Soletras, Rio de Janeiro, n. 35, p. 245-273, 2018.), do qual, em função de alguns resultados produzidos nesta pesquisa, destaco dois aspectos inerentes ao projeto do mestrado: a natureza disciplinar e a simplificação do contexto escolar na construção do objeto de investigação. O primeiro é perceptível na matriz de disciplinas informada predominantemente por teorias linguísticas para aplicação em sala de aula. De alguma forma, sustenta-se o equívoco de que a apropriação teórica garantiria o sucesso profissional. Influenciada por essa lógica, a própria escolha do objeto de investigação ou da intervenção pode sofrer motivação exclusivamente teórica, diferentemente das demandas internas ao complexo local de trabalho das professoras11 11 Conforme as diretrizes para a pesquisa do trabalho de conclusão final (TCF) do ProfLetras (20014), a investigação “deverá ser de natureza interpretativa e interventiva e ter como tema/foco/objeto de investigação um problema da realidade escolar e/ou da sala de aula do mestrando no que concerne ao ensino e aprendizagem na disciplina de língua portuguesa no ensino fundamental”. Disponível em: http://www.profletras.ufrn.br/documentos/187325203#.WzE5uqdKjIU. Acesso em 25 jun. 2018. . O segundo aspecto é caracterizado pela alteração das reais condições de trabalho das professoras em função de adequações necessárias a procedimentos investigativos informados pela aplicação de teorias linguísticas.

A distância entre os representantes dos domínios universitário e escolar foi objeto de investigação por Silva (2017SILVA, W. R. Formação sustentável do professor no mestrado profissional. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 22, n. 70, p. 708-731, 2017.), ao analisar interações instauradas durante os encaminhamentos para reescrita de dissertações produzidas no ProfLetras. Os encaminhamentos foram motivados pelo distanciamento da escola básica e, consequentemente, entre os próprios pares, assumido por professoras nas primeiras versões da escrita acadêmica.

Essas práticas acadêmicas legitimadas são produzidas em interações mantenedoras do domínio científico, as quais são mediadas pela tecnologia da escrita, daí a pertinência do tratamento do assunto na perspectiva dos estudos críticos do letramento (cf. KALMAN; STREET, 2013KALMAN J.; STREET, B. (Eds.). Literacy and Numeracy in Latin America: Local Perspectives and Beyond. London: Routledge, 2013.; MARINHO; CARVALHO, 2010MARINHO, M.; CARVALHO, G. T. (Org.). Cultura escrita e letramento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.). As práticas de escrita instauradas em torno da produção, circulação e divulgação de saberes especializados, envolvendo diversos interesses em disputa, são identificadas como letramento científico, que, originalmente, é objeto de pesquisa no âmbito do Ensino de Ciências, em função da demanda de uma educação científica já na infância (cf. HOLDBROOK; RANNIKMAE, 2007HOLDBROOK, J.; RANNIKMAE, M.; Holbrook, J. Nature of science education for enhancing scientific literacy. International Journal of Science Education, v. 29, n. 11, p. 1347-1362, 2007.; KNAIN, 2015KNAIN, E. Scientific Literacy for Participation: a Systemic Functional Approach to Analysis of School Science Discourses. Rotterdam: Sense Publischers, 2015.; SANTOS, 2007SANTOS, W. L. P. Educação científica na perspectiva de letramento como prática social: funções, princípios e desafios. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 12, n. 36, p. 474-550, 2007.).

Ao situar minha pesquisa nos estudos do letramento científico, no campo indisciplinar da Linguística Aplicada (cf. SILVA, 2016SILVA, W. R. Letramento científico na formação inicial do professor. Revista práticas de linguagem, Juiz de Fora, v.6, n. especial, p. 8-23, 2016.; 2017; SILVA; GUIMARÃES; MEDEIROS, 2018), interessa-me investigar como o exercício da escrita acadêmica dos TCF, realizado no gênero dissertação de mestrado profissional, pode auxiliar na formação de professoras, motivando ou não a reprodução inconsciente de práticas acadêmicas legitimadas, alinhadas a procedimentos investigativos identificadores do paradigma dominante de pesquisa (cf. SANTOS, 2010SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 31-83.). Assim a influência da pós-graduação acadêmica no ProfLetras pode ser caracterizada como interferência de um modelo dominante de letramento científico, compreendido por usos da escrita acadêmica alinhados a práticas do referido paradigma contraposto.

A esse modelo pode-se atribuir a responsabilidade pelo silenciamento ou alinhamento das professoras diante das teorias acadêmicas, restando ao profissional do magistério copiar, reproduzir ou, simplesmente, parafrasear os conhecimentos produzidos na/pela universidade. Essa passividade diante de saberes teóricos é denominada espelhamento por Signorini (2000SIGNORINI, I. O papel do relato no contexto de formação da alfabetizadora: percurso feito, percurso por fazer. In: KLEIMAN, A.; SIGNORINI, I. (Org.). O ensino e a formação do professor: alfabetização de jovens e adultos. Porto Alegre: Artmed, 2000. p. 210-222.), ao investigar distintas formas de reprodução do discurso do formador ou do especialista por professoras da escola básica em situação de formação. No contexto do ProfLetras, esse modelo ameaça a autonomia das professoras que retornam à universidade numa posição privilegiada do ponto de vista da experiência profissional acumulada. Nesse retorno, as professoras podem renovar a própria prática profissional, podendo influenciar, inclusive, a própria comunidade universitária.

O posicionamento crítico em função de uma prática científica mais democrática, diante do modelo dominante de pesquisa, não implica na inobservância de critérios garantidores da qualidade do trabalho. Nesse sentido, elenco alguns princípios interconectados e garantidores do letramento científico, os quais podem ser observados no processo formativo de professoras no ProfLetras: “curiosidade”; “investigação”; “relevância social”; “relevância pedagógica”; “criatividade”; “rigor”; e “aplicabilidade”. Em síntese, esclareço que esses princípios são merecedores de uma discussão consistente em outro momento. Foram propostos por Sousa (2016SOUSA, B. S. Letramento científico a partir de relatórios de pesquisa no Ensino Fundamental II: uma intervenção pedagógica. 2016. 97f. Dissertação (Mestrado Profissional em Letras) - Universidade Federal do Tocantins, Araguaína, 2016., p. 40), num trabalho dissertativo no próprio ProfLetras, como encaminhamentos para o trabalho produtivo de educação científica na escola básica; foram elaborados à luz dos princípios da sustentabilidade propostos por Hargreaves e Fink (2007HARGREAVES, A.; FINK, D. Liderança sustentável: desenvolvendo gestores da aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2007.).

3 CAMINHO DA ANÁLISE LINGUÍSTICA DOS DADOS

O interesse em estudar o letramento científico de professoras levou-me às dissertações do ProfLetras. Assim foram encontrados escritos de professoras da escola básica com livre acesso, em repositórios de dissertações e teses de instituições associadas à rede nacional do ProfLetras, as quais, no ato da redação deste artigo, totalizavam quarenta e nove unidades12 12 Em alguns momentos, foi difícil encontrar as dissertações, pois havia unidades sem repositório institucional e outras com as coleções desatualizadas. Aproveito para agradecer aos secretários e coordenadores que, gentilmente, enviaram algumas dissertações por e-mail, devido à não disponibilização dos trabalhos nos repositórios. Para ilustrar parte da complexidade do ProfLetras, saliento que, no último processo seletivo, foram ofertadas 843 vagas distribuídas nas cinco regiões geográficas brasileiras. Disponível em: http://comperve.ufrn.br/conteudo/posgraduacao/profletras/201701/edital. php. Acesso em: 26 jun. 2018. . Questiono se esses repositórios são os locais mais adequados para compartilhar os produtos do ProfLetras com a comunidade externa à universidade, a exemplo das demais educadoras da escola básica.

A tensão entre os tipos de pós-graduação acadêmica e profissional foi evidenciada de imediato com os dois modelos do TCF apresentados na diretriz específica do ProfLetras13 13 Disponível em: http://www.profletras.ufrn.br/documentos/187325203#.WzKLLadKjIU. Acesso em: 26 jun. 2018. . Na Figura 1, sistematizo os referidos modelos com os elementos responsáveis pelos estágios funcionais da estrutura esquemática do gênero.

Figura 1
Modelos do TCF do ProfLetras

Ao mesmo tempo que se mostram pouco precisos para os propósitos particulares do mestrado profissional para educadores, os modelos são bastante semelhantes e reproduzem a sequência de estágios funcionais característica de gêneros acadêmicos, a exemplo das dissertações e teses da pós-graduação acadêmica: fundamentação teórica > metodologia > análise dos dados. Nesse sentido compartilho das mesmas inquietações de Santos (2018SANTOS, M. B. Epistemologia da prática e desenvolvimento profissional no Mestrado Profissional em Letras. Soletras, Rio de Janeiro, n. 35, p. 245-273, 2018., p. 258-259):

as pesquisas interpretativas e interventivas também são praticadas em mestrados e doutorados acadêmicos. Nesse caso, como distinguir o mestrado profissional do acadêmico? O fato de o tema/objeto ser um problema da realidade escolar, embora desejável num MP, também não é suficiente para caracterizá-lo. Em que medida a resolução de um problema pontual por meio da aplicação de uma proposta de intervenção permite avaliar a capacitação profissional, processo complexo que se desenvolve ao longo da carreira do professor? Não seria esse tipo de pesquisa mais coerente com o tipo de investigação que busca verificar a validade de teorias no campo do ensino?

Conforme revela a sistematização da Figura 1, o que diferenciaria a *Dissertação seria a presença do resumo em língua portuguesa e estrangeira, sumário, considerações finais e proposta para enfrentar o problema. Dado o exposto, restam algumas perguntas: essa proposta para enfrentar o problema, no segundo modelo, poderia coincidir com o material didático do primeiro? Por que seria desnecessário o uso de um sumário no relatório de apresentação do +Material didático? Por que as considerações finais são desnecessárias no relatório do +Material didático? O material didático e a proposta para enfrentar o problema seriam obrigatoriamente implementadas, uma vez que se exige uma “pesquisa de natureza interpretativa e interventiva”?

Para análise dos dados, selecionei uma dissertação que me fez recordar dos trabalhos finais da pós-graduação acadêmica, haja vista, por exemplo, o extenso espaço da fundamentação teórica: três capítulos. No projeto de pesquisa focalizado, inicialmente, são analisados TCF produzidos em instituições associadas da Região Norte do Brasil. A dissertação selecionada corresponde ao segundo modelo do TCF da Figura 1, assim como os demais trabalhos acessados no projeto. O referido trabalho não foi identificado para evitar constrangimentos das profissionais ou instituição responsáveis pela dissertação. Neste estudo, o objeto de investigação é a construção do letramento científico no ProfLetras e não a competência individual dos envolvidos na produção do trabalho final15 15 A omissão da referência bibliográfica da dissertação também foi um pedido das responsáveis pelo trabalho, professora e orientadora, que, gentilmente, realizaram leituras preliminares deste artigo. Agradeço a disponibilidade e contribuições. Possíveis inconsistências neste artigo são de minha responsabilidade. .

A análise qualitativa previamente realizada a partir de uma ficha analítica, criada para um estudo comparativo de dissertações do ProfLetras, parecia-me pouco convincente para contribuir com a compreensão do letramento científico das professoras, em construção no referido curso em rede. Em resposta a essa inquietação, lancei mão da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) a fim de proceder a uma análise linguística detalhada da materialidade textual, uma vez que a referida teoria disponibiliza “um enquadramento descritivo e interpretativo bastante útil para ver a língua como fonte estratégica de produção de sentido” (EGGINS, 2004EGGINS, S. An Introduction to Systemic Functional Linguistics. 2ª ed. London: Continuum, 2004. , p. 2)16 16 Os excertos citados cujos originais estão escritos em inglês foram por mim traduzidos livremente. .

Na perspectiva sistêmico-funcional, os sentidos são construídos a partir de escolhas linguísticas responsáveis pela materialidade textual, realizadas pelos produtores de textos em diferentes modalidades de manifestação da linguagem. Essas escolhas são motivadas por fatores contextuais e selecionadas a partir de opções linguísticas disponíveis em sistemas da língua. Nos termos de Berry (2017BERRY, M. Stratum, delicacy, realisation and rank. In: Tom Bartlett; Gerard O’Grady (Eds.). The Routledge Handbook of Systemic Functional Linguistics. London: Routledge, 2017. p. 42-55., p. 43):

LSF é uma teoria da língua como escolha; a questão é que é impossível produzir sentido das escolhas linguísticas sem referência ao contexto e também é impossível produzir sentido do contexto sem referência a escolhas linguísticas. Escolhas linguísticas são fortemente influenciadas pelos contextos de situação em que elas ocorrem, mas, em certas circunstâncias, escolhas linguísticas podem provocar mudança no contexto, por exemplo conduzindo-o a tornar-se mais formal ou mais informal. Mais geralmente, o contexto é considerado como esclarecedor da forma do sistema da língua como um todo. Os agrupamentos de escolhas no sistema da língua são hipotetizados para originar-se de agrupamentos de recursos contextuais. Assume-se que a língua é da forma que é em razão dos usos para os quais é mobilizada no mundo real.

Assim, algumas escolhas léxico-gramaticais realizadas na disssertação passaram a ser investigadas para compreender o processo formativo de professoras no ProfLetras. Considerando o interesse no letramento científico dessas profissionais, foram analisadas todas as orações gramaticais da dissertação selecionada, nas quais a própria autora foi representada na posição sintática de sujeito, ou seja, na função de participante principal da oração. Para tanto, focalizei mais diretamente a metafunção experiencial da linguagem, proposta na LSF junto a outras três - metafunção interpessoal; metafunção textual; metafunção lógica -, a fim de explorar as escolhas léxico-gramaticais realizadas pela autora da dissertação para representar o percurso da própria pesquisa na materialidade textual do TCF17 17 Considerando a impossibilidade de detalhamento das metafunções neste artigo, remeto o leitor a Eggins (2014), Halliday e Matthiessen (2014) e Thompson (2014), só para citar alguns. Por ora, saliento que as metafunções são responsáveis pela produção simultânea de três tipos de significados na oração: “um significado sobre a interação (um significado interpessoal), um significado sobre a realidade (um significado experiencial e lógico) e um significado sobre a mensagem (um significado textual)” (EGGINS, 2004, p. 213). Com a metafunção experiencial, a lógica é um dos componentes do que se denomina metafunção ideacional, responsável pela produção de significado ou representações das coisas no mundo interior ou exterior. .

A metafunção experiencial se realiza no sistema de TRANSITIVIDADE da língua, formado pelas seguintes categorias gramaticais com denominações funcionais devido aos papéis exercidos por cada elemento da representação: processos (verbos: atividades); participantes (nomes: coisas, setimentos e seres em geral, podem ser acompanhados por atributos - adjetivos); e circunstâncias (advérbios: detalhamento do lugar, tempo, maneira, dentre outras atribuídas à atividade) (THOMPSON, 2014THOMPSON, G. Introducing Functional Grammar. 3. ed. London: Routledge, 2014., p. 92). Conforme Halliday e Matthiessen (2014HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. Halliday’s Introduction to Functional Grammar. 4. ed. London: Routledge, 2014., p. 213), “o sistema de TRANSITIVIDADE fornece recursos léxico-gramaticais para construir um quantum de mudança no fluxo de eventos como uma figura - como uma configuração de elementos centrados em um processo”.

Produzida a partir de textos em língua inglesa, a Figura 2 traz os tipos de processo disponiveis na língua e, dada a disposição desses tipos ao longo do círculo, representa uma continuidade dos sentidos produzidos pelos processos, o que justifica o uso de traços pontilhados para evitar a ideia de fronteiras rígidas. No centro do círculo, estão representadas as figuras do fazer, ser e perceber, que remetem respectivamente aos processos material, relacional e mental, considerados como tipos principais por serem mais frequentes no sistema de TRANSITIVIDADE da língua inglesa. Entre tais processos, emergem outros - existencial, verbal, comportamental -, “compartilhando alguns traços de cada e, assim, adquirindo características próprias” (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. Halliday’s Introduction to Functional Grammar. 4. ed. London: Routledge, 2014., p. 215).

Figura 2
Tipos de processo na gramática da experiência

Na dissertação analisada, os processos material, mental e verbal, atrelados à autora da dissertação na função de participante principal da oração, são os mais recorrentes. A análise realizada recaiu sobre as orações produzidas em torno dos referidos processos, daí o uso do negrito na Figura 2. Os demais processos, relacional, existencial e comportamental, totalizaram apenas 3,6% das ocorrêncais identificadas. Sobre os sentidos produzidos pelos processos focalizados diretamente neste artigo, reproduzo os seguintes termos de Halliday e Matthiessen (2014HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. Halliday’s Introduction to Functional Grammar. 4. ed. London: Routledge, 2014., p. 214):

Há uma diferença básica da qual nos tornamos conscientes na idade mais tenra (três ou quatro meses), entre a experiência interior e exterior: entre o que nós experienciamos como acontecendo ‘lá fora’, no mundo em nosso redor, e o que nós experinciamos como acontecendo dentro de nós mesmos, no mundo da consciência (incluindo percepção, emoção e imaginação). A forma prototípica da experiência ‘exterior’ é aquela das ações e eventos: coisas acontecem, e pessoas ou outros atores fazem coisas ou fazem-na acontecer. A experiência interior é mais dífícil de destrinçar, mas ela é parcialmente um tipo de reprise da exterior, recordando, reagindo, refletindo e, parcialmente, uma consciência separada de nosso estado de ser. A gramática organiza uma discontinuidade entre esses dois mundos: é distinguido mais claramente entre experiência exterior, os processos do mundo externo, e experiência interior, os processos da consciência. As categorias gramaticais são essas das orações de processo material e orações de processo mental. [...] Na fronteira do mental e relacional está a categoria do processo verbal: relações simbólicas construídas na consciência humana e proclamada em forma de língua, como dizendo e significando (grifos do original).

A depender do tipo de processo realizado na oração, as funções exercidas pelos participantes assumem algumas especificidades, garantindo a cada participante, seja na posição de sujeito, identificado como participante principal, ou de complemento da forma verbal, identificado como participante secundário, uma nomenclatura diferenciada, conforme sistematizado na Figura 3.

Figura 3
Processos e participantes

Conforme revelam os excertos analisados na seção seguinte, a autora da dissertação foi representada como Ator, Experiencidor ou Dizente, a depender do tipo de oração: material, mental ou verbal, respectivamente. Na posição de participante secundário, pessoas e coisas são representadas, sobressaindo alguma relação desses últimos com as teorias linguísticas tomadas como referência na pesquisa.

4 SENTIDOS CONSTRUÍDOS PELAS ESCOLHAS LINGUÍSTICAS

A dissertação selecionada foi separada em cinco partes para uma análise comparativa entre as ocorrências dos processos em cada estágio funcional da estrutura esquemática do gênero: introdução, fundamentação teórica, metodologia, análise dos dados e conclusão. O capítulo composto pela proposta interventiva implementada numa turma de 9º ano foi ignorado, pois, de alguma forma, configura-se como um material didático. Essa estratégia justifica a forma de apresentação dos excertos exemplificados adiante: oração de cada tipo de processo agrupada por cada estágio da estrutura genérica. As orações em que a autora se autorrepresenta como participante principal foram separadas manualmente e agrupadas por estágio da dissertação. Posteriormente, os processos foram classificados e quantificados.

Na Tabela 1, apresento o resultado da análise quantitativa dos processos identificados por orações gramaticais separadas da dissertação selecionada e, posteriormente, agrupadas numa planilha conforme os estágios da estrutura esquemática do gênero. Para corroborar a leitura da tabela, também apresento adiante a análise numérica no Gráfico 1.

Tabela 1
Análise Quantitativa de Processos na Dissertação

Gráfico 1
Processos por Estágios da Estrutura Esquemática

Por um lado, os números indicam uso dos processos característicos dos estágios da estrutura esquemática do gênero, a exemplo da distribuição equilibrada entre os diferentes processos na introdução e conclusão. Na introdução, os processos materiais constroem uma síntese dos principais procedimentos investigativos realizados pela pesquisadora (realizar, desenvolver), além do percurso da professora na escola básica até chegar ao ProfLetras (lecionar, atuar). Os processos mentais mostram algumas percepções da professora sobre o próprio local de trabalho e o ProfLetras (verificar, conhecer), e algumas escolhas da pesquisadora para o desenvolvimento da pesquisa (conceber, notar). A pesquisadora anuncia a organização dos capítulos com uso de processos verbais (explanar, descrever). Na conclusão, os processos materiais são utilizados pela pesquisadora para reconstruir alguns momentos da pesquisa (analisar, diagnosticar), os mentais para explicitar algumas decisões e conclusões (adotar, julgar) e os verbais para enfatizar as figuras reconstruídas e apresentar encaminhamentos (destacar, sugerir). As ocorrências expressivas de processos materiais (48), na metodologia, e processos mentais (68), na análise dos dados, também são exemplos de escolhas léxico-gramatiais justificadas pela própria natureza dos respectivos estágios da estrutura esquemática da dissertação de mestrado.

Por outro lado, os números trazem algumas especificidades que escapam ao estilo do gênero, mas indicam aspectos do trabalho científico que ganharam mais relevância na pesquisa do mestrado profissional. A maior ocorrência dos processos mentais mostra que a autora da dissertação se autorrepresenta mais como Experienciador (212) do que como Dizente (175) ou Ator (130). Ou seja, o texto parece trazer um quantitativo maior de marcas do exercício da reflexão sobre as atividades inerentes ao processo da elaboração de pesquisa no ProfLetras, porém, conforme mostro na análise qualitativa adiante, o esforço reflexivo assim como as ações verbais e materiais, desdobram-se na valorização da teoria linguística assumida na pesquisa. Esse fato leva o leitor a questionar se realmente não foi a teoria mobilizada que motivou a realização da pesquisa, mesmo considerando o esclarecimento da professora de que a escolha do objeto de investigação foi motivada pelas próprias inquietações diante do desempenho em leitura por parte dos alunos.

A fundamentação teórica (167) apresentou a maior ocorrência de processos dos tipos invetigados nesta pesquisa. Esse número expressivo se justifica pelo quantitativo de páginas (72) reservadas à revisão da literatura científica. A análise atenta mostra ainda que o referido estágio não se configurou no espaço de maior autorrepresentação da pesquisadora/professora, pois, no estágio análise (132), há muito mais ocorrência da autorrepresentação na proporção do número de páginas utilizadas (34). Assim, posso afirmar que a pesquisadora/professora se esconde por entre as vozes dos autores citados, movimento constitutivo do processo de educação científica pelo qual atravessam as professoras no ProfLetras.

Ao analisar os processos escolhidos, observei quem eram os participantes representados na primeira pessoal do plural (nós) utilizada ao longo da dissertação. Foram identificados na ordem crescente de ocorrência: professora-aluno-pesquisadora, pesquisadora-leitor, professora-pesquisadora e pesquisadora. Destaco as representações de pesquisadora e professora-pesquisadora, pois apontam para os tipos de interação entre representantes dos domínios universitário e escolar, marcados historicamente por diálogos pouco amistosos. A representação de pesquisadora ocorre majoritariamente em todos os estágios funcionais da dissertação, sendo ocorrência exclusiva no capítulo de análise dos dados. A de professora-pesquisadora corresponde a ocorrências pontuais nos capítulos de introdução, metodologia e conclusão, não ocorre na fundamentação e na análise. Ao longo dos excertos exemplificados adiante, retomo essas representações.

No primeiro excerto do Exemplo 1, o processo material sinaliza a professora-pesquisadora inquieta com o desempenho em leitura dos próprios alunos. Apesar de a falta de competência leitora dos alunos da educação pública ser apresentada como “um problema da realidade escolar” motivador da pesquisa desenvolvida, conforme prescrito no regimento do TCF do ProfLetras, a escolha da abordagem teórica selecionada ganha volume no trabalho, o que é mostrado em outros exemplos.

Exemplo 1: INTRODUÇÃO Material De modo geral, o que nos despertou interesse em pesquisar o assunto foi o fato de que a falta de competência leitora dos alunos da educação pública é uma realidade nas instituições de ensino do país e, de forma mais particular, por ser este um problema que também atinge o desempenho dos alunos da escola em que trabalhamos. (p. 13) Mental Dentre as diversas possibilidades para a elaboração da proposta de intervenção, conforme a necessidade e o contexto de nossa pesquisa, optamos pela proposta de projetos pedagógicos de leitura e de escrita de Lopes-Rossi (2008), pois acreditamos, assim como a autora, que, para haver um maior desenvolvimento no processo da leitura e produção de texto, é preciso que os discentes compreendam o funcionamento da língua e, para isso, o estudo dos gêneros discursivos é uma grande possibilidade de ensino de LP. (p. 15) Verbal Discutimos, também, sobre a origem e características das fábulas e sua função social, histórica e cultural. (p. 19)

O segundo excerto ilustra um uso dos processos mentais recorrentes na dissertação: a pesquisadora representada compartilha a função de Experienciador com autores das teorias de referência. A escolha do projeto pedagógico como ferramenta mediadora é motivada por atributos da teoria selecionada (optamos). Assim como em outros usos do processo acreditamos, a ação interior experienciada pela pesquisadora é compartilhada pela autora da teoria de referência citada (assim como a autora).

O terceiro excerto ilustra um uso recorrente do processo verbal no parágrafo final das seções e capítulos da dissertação: o processo verbal anuncia o que o leitor encontrará na parte seguinte da dissertação, explicita a distribuição/organização das informações no texto. No excerto focalizado, a pesquisadora anuncia (discutimos) parte do conteúdo de um dos capítulos teóricos (sobre a origem e características das fábulas e sua função social, histórica e cultural). Na introdução, os processos verbais predominam na parte final, quando a pesquisadora anuncia o conteúdo tematizado ao longo dos capítulos do TCF.

No primeiro excerto do Exemplo 2, destaco o uso do processo material (investigarmos) contribuindo para valorizar uma citação direta da teoria de referência. Inserido num complexo oracional, a ação manifesta pelo processo material na forma nominal do infinitivo pessoal é valorizada pela construção é importante.

Exemplo 2: FUNDAMENTAÇÃO Material Nela, é importante investigarmos se o leitor é capaz de [citação direta com recuo] (p. 47) Mental Verbal Acreditamos que a leitura, na escola, precisa ser pautada nas duas últimas concepções, na interação leitor-texto e na perspectiva discursiva, pois é pressuposto que elas são necessárias à abordagem adequada da leitura na sala de aula, uma vez que, nessas concepções, adotam-se os aspectos essenciais do texto, do leitor e do contexto discursivo em que o autor e o leitor estão inseridos a partir da análise integrada desses aspectos. [...] Por isso, também não descartamos as demais teorias, mas aproveitamos os seus benefícios condensados nessas duas teorias que aqui defendemos. (p. 57-58)

No segundo excerto do Exemplo 2, a pesquisadora é representada como Experienciador do processo mental acreditamos. Ignora a autonomia a ser exercida e reproduz duas concepções de leitura discutidas no estágio da fundamentação. A suposta explicação para a adesão às referidas concepções são ensaiadas pelo conectivo pois, que introduz argumentos circulares (é pressuposto que elas são necessárias à abordagem adequada da leitura na sala de aula...). Essa apropriação de saberes teóricos resulta no que Signorini (2000SIGNORINI, I. O papel do relato no contexto de formação da alfabetizadora: percurso feito, percurso por fazer. In: KLEIMAN, A.; SIGNORINI, I. (Org.). O ensino e a formação do professor: alfabetização de jovens e adultos. Porto Alegre: Artmed, 2000. p. 210-222.) denomina eco, uma forma de produção do espelhamento mencionado previamente. Ou seja, demonstra dependência teórica por parte da autora da dissertação, ao passo que ela poderia experimentar maior autonomia se posicionando diante do contexto escolar focalizado.

Ainda no mesmo excerto, os outros dois processos mentais (descartamos; aproveitamos) também possuem como Fenômenos as teorias discutidas (as demais teorias; os seus benefícios condensados nessas duas teorias...), portanto, valorizam o referencial teórico utilizado na pesquisa. Outra valorização acontece com o uso do processo verbal (defendemos), pois as teorias tematizadas são representadas como Verbiagem (essas duas teorias). Em outras palavras, esse uso do processo verbal, assim como em outras ocorrências, expressa “propósito mental”, ou seja, uma apreciação mistura-se à ação do dizer (cf. THOMPSON, 2014THOMPSON, G. Introducing Functional Grammar. 3. ed. London: Routledge, 2014., p. 106).

O primeiro excerto do Exemplo 3 traz um uso do processo material semelhante ao do verbal do Exemplo 1. Os processos materiais mostram o procedimento concluído (realizamos) pela pesquisadora na seção que se encerra e o procedimento a ser executado (passamos) na seção seguinte do capítulo metodológico. Ou seja, os processos materiais estão no último parágrafo de uma seção e também foram utilizados para organizar a distribuição dos conteúdos na materialidade textual.

Exemplo 3: METODOLOGIA Material Partindo desse esclarecimento sobre o tipo de pesquisa que realizamos, passamos à descrição do contexto no qual a pesquisa foi desenvolvida. (p. 98) Mental Quanto à pesquisa qualitativa e às suas contribuições na formação docente, acreditamos, assim como Vasconcelos (2002), que a adoção desse tipo de pesquisa proporciona, ao professor, um saber mais reflexivo e analítico dos dados. (p. 94) Verbal Outro problema que podemos destacar foi a falta de estrutura física do local para a realização das atividades.

O processo mental do Exemplo 3 corresponde ao uso do mesmo tipo no segundo excerto do Exemplo 1. A pesquisadora não desenvolve um argumento informado pela experiência como professora, por exemplo, mas aceita uma asserção ancorada numa referência teórica a fim de sustentar as escolhas dos procedimentos metodológicos. Assim, novamente, o processo acreditamos é atrelado a uma circunstância composta pela menção a uma autora (assim como Vasconcelos (2002)), lembrando o exercício da fé no domínio religioso. No terceiro excerto do Exemplo 3, a pesquisadora representada menciona com alguma ênfase (podemos destacar) a estrutura física da escola como um problema para a intervenção, porém não se desenvolve uma discussão em torno do assunto, nem a professora se posiciona diante do contexto institucional que, certamente, lhe é familiar e interfere nas aulas de língua portuguesa, que não estão condicionadas apenas às teorias linguísticas de referência.

No primeiro excerto do Exemplo 4, os processos materiais (fizemos; desenvolvemos) são responsáveis pela reconstituição da intervenção realizada pela pesquisadora. Ao refletir sobre e relatar o reduzido trabalho com a prática de análise linguística na intervenção, a pesquisadora procura justificar a dificuldade dos alunos em questões de leitura que demandavam a observação mais atenta dos usos ou escolhas linguísticas. A partir dos movimentos de reflexão retrospectiva e prospectiva (cf. PERRENOUD, 2002PERRENOUD, P. A prática reflexiva no ofício de professor: profissionalização e razão pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2002., p. 36), o trabalho mais sistematizado com a prática de análise linguística é apresentado como encaminhamento da pesquisa interventiva no capítulo de conclusão18 18 Após a leitura deste artigo, a professora esclareceu que, além de o foco da pesquisa ter recaído sobre a prática de leitura, o reduzido tempo para realização da intervenção em sala de aula não permitiu o trabalho mais aprofundado com a prática de análise linguística. .

Exemplo 4: ANÁLISE Material Fizemos apenas dois encontros com o objetivo de estudar os efeitos de sentido dos elementos linguísticos dos textos, mas essas atividades foram feitas em grupo e não desenvolvemos um momento em que o aluno pudesse refletir sobre essas questões individualmente e depois socializar suas impressões. (p. 165) Mental Segundo Ohuschi (2013, p. 162), percebemos responsividade ativa expansiva de explicação, quando há “resposta imediata do parceiro da situação de interação, com marcas de reflexão, explicitando compreensão ativa”. (p. 145) Verbal Ambos não fazem uma reflexão crítica das questões sociais dispostas no texto, mas demonstram uma compreensão parcial dos sentidos do texto, por isso classificamos como responsividade silenciosa de compreensão, na qual, segundo Ohuschi (2013, p. 162), “o parceiro revela tentativas de compreensão, encontrando-se em processo de internalização (VYGOTSKY, 1988)”. (p. 149)

No segundo excerto, há outra ocorrência do processo mental em função da mobilização de aspectos teóricos. Após classificar como responsividade ativa expansiva de explicação algumas respostas dos alunos para uma questão de leitura da intervenção, a pesquisadora se utiliza do processo mental (percebemos) para compartilhar a definição do tipo de resposta dos alunos, conforme autora citada (Segundo Ohuschi (2013, p. 162)). Assim é possível afirmar que a própria autora citada pode estar incluída, junto à pesquisadora, na representação de Experienciador do processo mental.

Ainda no estágio da análise dos dados, o terceiro excerto do Exemplo 4 mostra o uso do processo verbal (classificamos) para nomear ou classificar os tipos de respostas apresentadas pelos alunos para as questões de leitura da intervenção. O nome atribuído pode ser mobilizado da teoria trabalhada, conforme as duas ocorrências no exemplo focalizado (responsividade ativa expansiva de explicação; responsividade silenciosa de compreensão), ou, ainda, criado em função da inexistência de nomenclatura adequada a alguma resposta apresentada, conforme mostrado em outro momento da dissertação investigada.

Exemplo 5: CONCLUSÃO Material A pesquisa também colaborou, significativamente, para nossa formação como professora, uma vez que identificamos os aspectos positivos do trabalho com os gêneros discursivos em uma perspectiva sócio-histórica da linguagem e a possibilidade de desenvolver a responsividade discente e aspectos negativos, quando não elaboramos questões que estimulavam a responsividade ativa dos discentes. (p. 178) Verbal Mental Verbal Quanto às limitações da pesquisa, ressaltamos que a elaboração de algumas questões da atividade de leitura final da proposta de intervenção, tais como, quarta, sétima e oitava questões, não oportunizaram a compreensão do texto como objetivávamos e, por esse motivo, é possível que talvez tenham dificultado a responsividade ativa dos todos os alunos, uma vez que a maioria evidenciou responsividade passiva de compreensão. Diante disso, sugerimos a reformulação das questões. (p. 178)

O primeiro excerto do Exemplo 5 ilustra outra ocorrência do uso do processo material em função da reflexão sobre a intervenção realizada. Ele corresponde à única ocorrência da professora-pesquisadora como participante no estágio de conclusão, as demais são representações da participante pesquisadora. Os processos materiais (identificamos; elaboramos) reconstituem, respectivamente, um aspecto positivo da intervenção (trabalho com os gêneros discursivos em uma perspectiva sócio-histórica da linguagem e a possibilidade de desenvolver a responsividade discente) e um aspecto negativo (não elaboramos questões que estimulavam a responsividade ativa dos discentes), ambos responsáveis por ganhos na profissionalização da professora, conforme conclusões apresentadas pela professora-pesquisadora. O segundo excerto ilustra a participante pesquisadora refletindo sobre a pesquisa e apontando algumas limitações observadas. Na função de Dizente, a pesquisadora atribui (ressaltamos) à elaboração de algumas perguntas o não alcance de resultados idealizados (objetivávamos). Por essa razão, o processo verbal (sugerimos) mostra a reformulação das questões como solução para o resultado indesejado.

Talvez o reconhecimento da inadequação na elaboração de algumas questões de leitura revele uma simplificação do olhar sobre os dados, apesar da importante atividade de autoavaliação realizada pela pesquisadora. Para ela, o problema, certamente, não deve estar na teoria, mas estaria em quem manuseou a teoria, ou seja, nela própria... A justificativa para a dificuldade discente não poderia estar em outro lugar da proposta elaborada: na sequência de atividades ou, ainda, na necessidade de se realizar uma tarefa preliminar em função da garantia de alguma habilidade. Por que não estaria a dificuldade atrelada a aspectos da cultura ou da história de vida, incluindo as experiências escolares, dos discentes? Essas são algumas das perguntas levantadas a partir de uma postura indisciplinar, quando a pesquisadora não se alinha/ajusta a disciplinas/teorias precisas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise linguística mostrou a predominância da autorrepresentação de pesquisadora na dissertação investigada. Enquanto pesquisadora, os processos identificados revelaram uma participante que planeja e desenvolve a intervenção científica, compartilha experiências comuns aos autores das teorias apropriadas, realça as asserções realizadas pelos referidos autores, e orienta o leitor sobre a distribuição das informações no TCF. Enquanto professora, os processos identificados revelaram uma participante que enfrenta desafios diários na escola básica, encontra/reconhece contribuições nas teorias científicas ou necessidade de reelaboração de elementos do percurso interventivo, e, até mesmo, ignora a própria voz. Mesmo consciente de que tais representações sejam constitutivas do processo de educação científica das professoras, destaco a necessidade se insistir no deslocamento dos representantes dos domínios universitário e escolar, pois eles tendem a permanecer nos lugares convencionalmente ocupados ao longo da história.

O que esse mundo representado na escrita da dissertação revelou sobre o letramento científico construído? As práticas sociais em torno da pesquisa apresentada parecem se justificar em função da formação de profissionais capazes de mobilizar uma série de conhecimentos especializados (know-how), para replicar pesquisas semelhantes, envolvendo a mobilização de teorias científicas. Neste estudo, predominou a valorização de práticas acadêmicas, mesmo diante de uma demanda identificada no contexto escolar. Ainda é preciso aprender a legitimar os saberes originários dos espaços escolares nas atividades instauradas no mestrado profissional. A universidade precisa se reeducar cientificamente para responder mais adequadamente aos desafios trazidos pelos mestrados profissionais para educadoras.

A continuidade desta investigação é necessária a partir da análise linguística comparativa entre diferentes dissertações com pressupostos teórico-metodológicos diferenciados. Os possíveis desdobramentos da experiência focalizada na sala de aula das professoras continuam desconhecidos e só serão acessados com futuras pesquisas, junto às egressas do ProfLetras na sala de aula da escola básica. Os desdobramentos junto a outras professoras do ensino básico, que não usufruíram do mestrado profissional, desaguam num universo igualmente desconhecido e, também, passível de pesquisas futuras na própria escola.

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa, que financiou a investigação científica apresentada neste artigo (CNPq nº 305094/2016-5), e pelo auxílio financeiro para apresentação deste trabalho no XIV Congresso da Associação de Linguística Sistêmico-Funcional da América Latina (ALSFAL), em outubro de 2018, na Faculdade de Línguas da Benemérita Universidade Autônoma de Puebla (BUAP), México (CNPq nº 452878/2018-7).

Agradeço ainda aos pareceristas anônimos pela leitura crítica apresentada deste artigo, o qual é de minha inteira responsabilidade.

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  • 2
    Ao longo deste artigo, flexibilizei a prescrição gramatical referente à flexão de gênero na língua portuguesa para me referir aos profissionais da educação. Optei pelo uso do feminino para visibilizar o trabalho do magistério realizado predominantemente por mulheres.
  • 3
    Foram criados os Programas de Mestrado Profissional para Qualificação de Professoras da Rede Pública de Educação Básica (ProEB), compreendendo as seguintes disciplinas escolares: Artes (ProfArtes); Biologia (ProfBio); Educação Física (ProfEdFísica); Filosofia (ProfFilo); Física (ProFis); História (ProfHistória); Química (ProfQui); Matemática (ProfMat); Sociologia (ProfSocio). Disponível em: http://www.capes.gov.br/educacao-a-distancia/proeb. Acesso em: 24/06/2018
  • 4
    Este artigo apresenta resultados parciais do projeto de pesquisa “Letramento Científico do Professor no Mestrado Profissional em Letras” (CNPq 305094/2016-5). Contribui para as investigações científicas no grupo de pesquisa Práticas de Linguagens - PLES (UFT/CNPq). Foi apresentado nos seguintes eventos científicos: XIV Congresso da Associação de Linguística Sistêmico-Funcional da América Latina (ALSFAL), Puebla, México; VII Congresso Latino-Americano de Formação de Professores de Línguas (CLAFPL), Belém, Brasil.
  • 5
    Conforme Artigo 17 do Regimento do ProfLetras, o curso “prevê o cumprimento de um mínimo de 360 (trezentos e sessenta) horas em disciplinas, correspondendo a 5 (cinco) disciplinas obrigatórias e 3 (três) optativas, cada uma delas com 45 horas”. Disponível em: http://www.profletras.ufrn.br/documentos/108963191/regimento#.W0QONtJKjIU. Acesso em: 9 jul. 2018.
  • 6
    Inicialmente o edital da seleção nacional do ProfLetras informava que o curso era semipresencial, o que, dependendo da leitura realizada pela rede pública de ensino de lotação das professoras, impossibilitava o afastamento ou, até mesmo, a redução da carga horário da profissional em sala de aula. Em 24 de abril de 2017, o conselho gestor do ProfLetras criou a Resolução 001/2017 para regulamentar a obrigatoriedade da permanência das alunas do ProfLetras em sala de aula, o que deve ser comprovado, semestralmente, durante a renovação da matrícula, mediante entrega de documento emitido pela unidade escolar de lotação. Disponível em: http://www.profletras.ufrn.br/documentos/193488707/resolucoes#.W0QTR9JKjIU. Acesso em: 9 jul. 2018.
  • 7
    Em documento oficial (BRASIL, 2014, p. 52), especifica-se a pós-graduação stricto sensu, conforme observável no seguinte excerto: “É fundamental, para atingir essa meta, implementar ações articuladas entre os sistemas de ensino e os programas de pós-graduação das universidades públicas, bem como assegurar a implantação de planos de carreira e remuneração para os professores da educação básica, de modo a garantir condições para a realização satisfatória dessa formação, objetivando alcançar a cobertura de 50% dos professores da educação básica com mestrado ou doutorado”.
  • 8
    Em 11 de julho de 2017, o então presidente da República do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou a Lei 11.502/2007 ampliando a missão da CAPES para qualificação de professoras da educação básica. A ampliação do campo de atuação foi justificada pelo aproveitamento da experiência e tradição dos 56 anos da CAPES, na formação de pesquisadores e docentes para o ensino superior. A título de ilustração, reproduzo o Art. 2oda lei sancionada: “A Capes subsidiará o Ministério da Educação na formulação de políticas e no desenvolvimento de atividades de suporte à formação de profissionais de magistério para a educação básica e superior e para o desenvolvimento científico e tecnológico do País”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11502.htm. Acesso em: 25 jun. 2018.
  • 9
    Ainda conforme o autor, “este foi o procedimento utilizado no Canadá até recente extensão da formação ao ensino em nível de mestrado” (PERRENOUD, 2002, p. 93). Talvez o Brasil esteja iniciando um percurso semelhante ao dos canadenses.
  • 10
    Criticando essa prática científica silenciadora e dominante, contraposta ao que propõe e denomina “ciência rebelde”, Demo (2012) compara a autoridade exercida pela ciência à das religiões, que compartilham verdades inquestionáveis. Nos termos do autor, “o novo templo se chama universidade. Enquanto as religiões comandam as almas, a ciência comanda as mentes. São ambas também esquemas de poder, tendo o ser humano como arquiteto insubstituível” (p. 34).
  • 11
    Conforme as diretrizes para a pesquisa do trabalho de conclusão final (TCF) do ProfLetras (20014), a investigação “deverá ser de natureza interpretativa e interventiva e ter como tema/foco/objeto de investigação um problema da realidade escolar e/ou da sala de aula do mestrando no que concerne ao ensino e aprendizagem na disciplina de língua portuguesa no ensino fundamental”. Disponível em: http://www.profletras.ufrn.br/documentos/187325203#.WzE5uqdKjIU. Acesso em 25 jun. 2018.
  • 12
    Em alguns momentos, foi difícil encontrar as dissertações, pois havia unidades sem repositório institucional e outras com as coleções desatualizadas. Aproveito para agradecer aos secretários e coordenadores que, gentilmente, enviaram algumas dissertações por e-mail, devido à não disponibilização dos trabalhos nos repositórios. Para ilustrar parte da complexidade do ProfLetras, saliento que, no último processo seletivo, foram ofertadas 843 vagas distribuídas nas cinco regiões geográficas brasileiras. Disponível em: http://comperve.ufrn.br/conteudo/posgraduacao/profletras/201701/edital. php. Acesso em: 26 jun. 2018.
  • 13
    Disponível em: http://www.profletras.ufrn.br/documentos/187325203#.WzKLLadKjIU. Acesso em: 26 jun. 2018.
  • 14
    Foram utilizados o sinal de adição (+) e o asterisco (*) para identificar os elementos responsáveis pelos estágios funcionais do Material Didático e da Dissertação, respectivamente.
  • 15
    A omissão da referência bibliográfica da dissertação também foi um pedido das responsáveis pelo trabalho, professora e orientadora, que, gentilmente, realizaram leituras preliminares deste artigo. Agradeço a disponibilidade e contribuições. Possíveis inconsistências neste artigo são de minha responsabilidade.
  • 16
    Os excertos citados cujos originais estão escritos em inglês foram por mim traduzidos livremente.
  • 17
    Considerando a impossibilidade de detalhamento das metafunções neste artigo, remeto o leitor a Eggins (2014), Halliday e Matthiessen (2014) e Thompson (2014), só para citar alguns. Por ora, saliento que as metafunções são responsáveis pela produção simultânea de três tipos de significados na oração: “um significado sobre a interação (um significado interpessoal), um significado sobre a realidade (um significado experiencial e lógico) e um significado sobre a mensagem (um significado textual)” (EGGINS, 2004, p. 213). Com a metafunção experiencial, a lógica é um dos componentes do que se denomina metafunção ideacional, responsável pela produção de significado ou representações das coisas no mundo interior ou exterior.
  • 18
    Após a leitura deste artigo, a professora esclareceu que, além de o foco da pesquisa ter recaído sobre a prática de leitura, o reduzido tempo para realização da intervenção em sala de aula não permitiu o trabalho mais aprofundado com a prática de análise linguística.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2018
  • Aceito
    03 Abr 2019
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