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VOZES DO MUNDO DO TRABALHO NAS OBRAS DE LUIZ RUFFATO E RONIWALTER JATOBÁ

Voices from the Labor Universe in the Works of Luiz Ruffato and Roniwalter Jatobá

Voces del mundo del trabajo en las obras de Luiz Ruffato y Roniwalter Jatobá

Resumo

Este estudo se baseia nas ideias de Mikhail Bakhtin e o Círculo russo, que percebem a linguagem e sua interação com o contexto. A partir dessa base teórica, analisa as obras No chão da fábrica, de Roniwalter Jatobá, e De mim já não se lembra, de Luiz Ruffato, escritores brasileiros do século XX, focalizando a vida laboral de personagens de estratos sociais economicamente desfavorecidos, advindos de regiões pobres do país em sua trajetória até São Paulo em busca de melhoria de vida. Detém-se em suas falas, em que avultam as contradições de classe social, visto que as condições degradantes de trabalho em que estão inseridos nas atividades fabris entram em conflito com certo ideário enobrecedor do universo laboral. O discurso enaltecedor do trabalho de estrato burguês é assimilado pela classe trabalhadora, mas entra em conflito com a realidade inóspita do cenário laboral, ocasionando um deslocamento do discurso em relação à práxis cotidiana.

Palavras-chave:
Literatura brasileira; Conflito social; Análise discursiva

Abstract

This research finds support on Mikhail Bakhtin and the Russian Circle’s ideas, concerning the language and its interaction within a social context. With this theoretical basis, the paper analyzes the Brazilian works No chão da fábrica, by Roniwalter Jatobá, and De mim já não se lembra, by Luiz Ruffato, both written in the 20th century. We focused on the socioeconomically deprived characters from poor regions of Brazil that migrated to São Paulo in search of a better (material) life. They restrain in their own speech, where stand out the social class contradictions, since there is a conflict between the degrading work conditions in the factory activities with which they are involved and a certain ennobling ideology within the labor universe. The working class assimilates what discursively elevates the bourgeois’ labor, but the last clashes with the inhospitable reality of the labor setting; consequently, that conflict dislocates the discourse in relation to the quotidian praxis.

Keywords:
Brazilian literature; Social conflict; Discursive analysis

Resumen

Esta investigación se basa en las ideas de Mijaíl Bajtín y el Círculo ruso, que entienden el lenguaje literario y su interacción con el contexto. Desde esta base teórica, analiza las obras No chão da fábrica, de Roniwalter Jatobá, y De mim já nem se lembra, de Luiz Ruffato, escritores brasileños del siglo XX, centrándose en la vida laboral de personajes de estratos sociales económicamente desfavorecidos, procedentes de regiones pobres del país en camino a ciudad de São Paulo en busca de la mejora de la vida. Se detiene en sus discursos, en los que las contradicciones de la clase social cobran gran importancia, ya que las condiciones de trabajo degradantes en las que están inmersos en las actividades fabriles entran en conflicto con cierto ideal ennoblecedor del universo laboral. El discurso exaltador del estrato burgués del trabajo es asimilado por la clase trabajadora, pero entra en conflicto con la realidad inhóspita de la escena laboral, provocando un desplazamiento del discurso en relación con la praxis cotidiana.

Palabras clave:
Literatura brasileña; Conflicto social; Análisis discursivo

1 INTRODUÇÃO: LITERATURA E UNIVERSO DO TRABALHO

As relações entre universo literário e universo material das relações humanas e sociais serão pesquisadas a partir da representação discursivo-literária das vozes das personagens nas obras No chão da fábrica e De mim já nem se lembra pertencentes à Literatura Brasileira do século XX e XXI, respectivamente dos escritores Roniwalter Jatobá e Luiz Ruffato. O discurso literário é importante fonte de conhecimento acerca de como os intelectuais percebem as formações sociais, políticas, econômicas e culturais. Desse modo, a partir do âmbito literário, é possível verificar como esses escritores brasileiros veem o universo extraliterário e como o fazem migrar para o interior do mundo ficcional, representando-o sob diversas maneiras que se constituem simultaneamente em uma visão peculiar de cada escritor e também em uma certa episteme referente a determinados contextos sociais e temporais. Essa representação se dá a partir de diversos ângulos em que afloram variadas ideologias a que os escritores estão vinculados. Deter-nos-emos em falas das personagens protagonistas em que a temática do trabalho é problematizada. Sabemos que essa temática é cara às pesquisas de perspectiva marxista uma vez que, dentro desse mirante, a luta entre capital e trabalho é, deveras, importante, devendo ser estudada para se formar uma consciência crítica por parte dos trabalhadores com o fito de sua libertação das malhas do capital. A ontologia do trabalho na perspectiva marxista é predominante. A abordagem se vale das reflexões de Marx (1986MARX, K. A maquinaria e a indústria moderna. In: MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Trad. Reginaldo Santanna.12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 1986.), Engels (1990ENGELS, F. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. 4. ed. Rio de Janeiro: Global, 1990.) e Lukács (1980LUKÁCS, G. The ontology of social being: Labour. Londres: Merlin Press, 1980.), para quem tanto o trabalho como constituinte do ser social quanto em confronto com o capital é tema relevante. Todavia, a temática laboral é pouco explorada no que tange aos estudos do universo literário. No entanto, as personagens de muitos romances trabalham e discursam sobre essa atividade, demonstrando como o trabalho confere significado às suas vidas. Dentro da tradição marxista, a linguagem tem sido pouco explorada, pois o universo econômico tem preponderância. Entretanto, como veremos, os teóricos do Círculo de Bakhtin trataram dessa dimensão, focalizando a linguagem contextualizada, inclusive no cenário econômico.

A tematização da importância do trabalho na vida humana é milenar desde os escritos gregos (Hesíodo em O Trabalho e os dias), passando pelos livros que constituem a Bíblia (aí encontramos inúmeras vozes, inclusive dissonantes entre si, que nomeiam o trabalho de diferentes perspectivas) até nossos dias. O homem tem se debruçado sobre o universo laboral e o questiona, conceitua, problematiza, nomeando-o sob diversos prismas, ora dignificando-o, ora o depreciando. No século XIX, Marx (1986MARX, K. A maquinaria e a indústria moderna. In: MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Trad. Reginaldo Santanna.12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 1986.) e Engels (1990ENGELS, F. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. 4. ed. Rio de Janeiro: Global, 1990.)1 1 Tanto na área de Sociologia do trabalho quanto no âmbito da História social do trabalho, as obras desses autores são leitura obrigatória para se encetar a problematização do universo laboral. Pode-se refutá-las ou não, mas não as citar, é desconhecer o Estado da arte sobre a discussão do conflito entre trabalho e capital. Desse modo não é possível referenciar apenas uma obra ou trechos de obras haja vista que o pensamento marxista enfatiza o proletariado urbano fabril enquanto classe social a emancipar-se do capital, sendo sujeito da história. Para fins mais didáticos, citamos algumas obras, referenciando-as, em que essa discussão ocorre, porém a temática é uma diretriz do pensamento dos filósofos alemães. As obras de Gorz (1982, 2003) referenciadas continuam o debate marxista sobre a condição laboral, tratando do trabalhador do século XX e XXI. Não estão também citadas por fragmentos, mas fornecem as diretrizes para entender a degradação do trabalho também apontada por Ruffato e Jatobá. O autor francês também figura como clássico para a questão laboral. No Brasil, Antunes (1995, 2002) é referência para esta questão e muito de sua perspectiva adentra esta pesquisa, mormente, na questão da degradação do trabalho no regime capitalista. emitiram importantes enunciações sobre o trabalho. Essas fontes discursivas ainda são fundamentais em nossa época visto que o trabalho, no século XXI, ainda é atividade a ser legalizada, questionada, alterada, uma vez que, para boa parte da humanidade, constitui-se em fonte de sofrimento físico e psicológico. Na Literatura Brasileira, inúmeras personagens trabalham e, decorrente disso, adquirem certa identidade laboral, dependendo da classe social e econômica em que se inserem. Essa pesquisa faz parte de um projeto maior que visa rastrear na Literatura Brasileira do século XIX, XX e XXI, como os escritores formalizam as articulações entre trabalho e discurso literário. Em nossas pesquisas, verificamos como os personagens, oriundos de classes sociais de baixo poder aquisitivo, discursam sobre sua atividade laboral e de que modo entendem essa atividade. O discurso dessas personagens é perpassado por sua posição econômica e cultural simultaneamente. A infraestrutura, ou seja, a sua condição econômica, interage com a superestrutura, ou seja, o universo cultural. Dessa interação, constitui-se um discurso bastante complexo em que as condições materiais de existência, sobremodo a atividade laboral, é nomeada tanto pelo prisma dos horizontes econômicos quanto pelas dimensões culturais que transcendem a classe a que pertencem. A perspectiva laboral de ordem cultural reinante na sociedade em que o trabalho aparece como um bem que dignifica o homem, não raras vezes, choca-se com a realidade material e econômica em que surge um trabalho estranhado, alienante e degradante. Há um claro contraponto entre o discurso sobre o trabalho advindo de uma superestrutura cultural que o qualifica e a sua real atividade cotidiana em que o trabalhador pobre é subjugado, humilhado e mal remunerado. Esse contraponto decorre claramente da condição de classe social, pois o trabalho é um bem diferenciado dentro do universo econômico, oferecendo melhores condições para os trabalhadores de classes sociais mais privilegiadas. Percebemos que essas contradições perpassam e instituem as falas das personagens, mormente, sobre a atividade laboral.

Desse modo, dentro dessa pesquisa maior, neste artigo, em virtude do espaço destinado, destacamos algumas falas de personagens que exemplificam essas contradições entre a infraestrutura e a superestrutura nas obras já referidas.

2 O DISCURSO LITERÁRIO: VIÉS BAKHTINIANO E O CÍRCULO RUSSO

A perspectiva adotada advoga uma teoria materialista da linguagem, embasando-se em Bakhtin e Volochinov (1986BAKHTIN, M; VOLOCHINOV, V. Marxismo e Filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1986.), em Marxismo e filosofia da linguagem, ou seja, o “signo lingüístico reflete e refrata o real”. Essa reflexão é dada, no entanto, por inúmeras mediações entre o sujeito e o objeto, a saber, de classe social, etnia, ideologia, faixa etária, nível cultural, estilo e cronotopo. A linguagem diz as coisas e de certo modo. Esse modo advém dessas inúmeras mediações que podem deformar, alterar, parodiar, desacreditar a coisa (no caso, o trabalho), ou seja, refratá-la.

Busca-se também refletir sobre linguagem e dialogismo, destacando-se que o sujeito, ao falar e narrar sobre o objeto (o trabalho), já o encontra discursado, analisado, desacreditado ou valorizado pelos vários discursos sociais. É no meio desse plurilinguismo que se terá que construir o discurso “próprio”. “Na base do eu está o nós”, como advogam os teóricos russos. Daqui decorre a crítica à ideia de sistema linguístico ou literário que se impõe ao sujeito, ou seja, o “objetivismo abstrato”, em que o sujeito ou escritor é passivo frente ao sistema, apenas decodificando-o. Também se afasta de “um subjetivismo individualista” que enfatiza que tudo parte do eu, criando-se “idioletos”. Há sempre um eu embasado em um nós. Tudo o que falamos pode ser aspeado, mas a nós também pertence. Eis a contradição positiva do discurso. Leva-se em consideração os dois centros: o eu e os outros diferentes de mim. O discurso literário entra em diálogo com os outros discursos sobre o trabalho tanto da esfera literária quanto de outras áreas e posiciona-se frente a eles. O discurso literário se orienta tanto para o contexto imediato quanto para o de longa duração, recuperando aí, na curta e longa temporalidade, os múltiplos discursos sobre o trabalho. O discurso literário não é determinado ipsis litteris por uma determinada geração nem parte de um autor isolado. É sempre irrepetível, dependendo do ponto de vista do autor específico, mas é socialmente vinculado, ou seja, apresenta sempre um cronotopo, ou seja, determinado por coordenadas de espaço e tempo. O discurso operacionaliza-se voltado para o passado e para o futuro, pois recupera o já dito e se formaliza em virtude do que será dito. É duplamente orientado. Vincula- se ao contexto imediato, mas também recupera o passado milenar. O discurso literário também se constituiu duplamente orientado. Tanto Ruffato quanto Jatobá recriam a vida e as falas de trabalhadores brasileiros, ancorando suas obras em certo cronotopo.

Os teóricos russos na obra referida se apresentam enquanto filósofos vinculados à tradição epistemológica marxista e tratam de importante tema para essa tradição, ou seja, investigam as articulações entre a infraestrutura, ou seja, as reais condições de existência material, e a superestrutura, ou seja, o terreno das ideias. Nesse debate, destacam a não determinabilidade do econômico sobre as ideias. No bojo dessa discussão, enfatizam a ontologia da linguagem, algo pouco explorado no terreno marxista. Todavia não distanciam a linguagem das reais condições materiais de vida uma vez que para eles a linguagem é práxis social, é comunicação, é subjetivação intersubjetiva, dada no contexto. Esse mirante embasa nossa pesquisa visto que percebemos as falas das personagens em constante interação com o contexto material de existência. Essa interação possibilita o questionamento dos discursos em torno do objeto trabalho advindos das classes mais abastadas em que o universo laboral figura como positivo e fonte de satisfação social.

3 O CRONOTOPO EM BAKHTIN E NO CÍRCULO

É necessário esclarecer a perspectiva cronotópica a partir de Bakhtin e Voloshinov. As coordenadas históricas e espaciais do discurso e do emissor são de suma importância na obra dos pensadores russos, pois nesse cenário epistemológico a linguagem é sempre contextualizada. Tentemos explanar de modo sintético em decorrência do espaço aqui permitido.

O signo verbal adquire sentido nas condições concretas de existência, ou seja, é no contexto que as palavras, as frases, os parágrafos e as obras se inserem e são entendidas. O signo verbal responde a questões contextuais e existenciais concretas, podendo ser eminentemente práticas e imediatas quanto vinculadas a questões de longa duração. Pode-se se utilizar da linguagem tanto para saber as horas do dia quanto para dissertar sobre a condição laboral do homem no ocidente, como fez Karl Marx. O signo verbal visa, em várias situações, a agir sobre o contexto, pois se manifesta na condição de convites, ordens, leis, proibições etc. O signo verbal se insere também em contexto cultural, ou seja, expressa ideias e valores de certa época. A vertente ideológica o situa em certa epistemologia, seja científica, religiosa, empírica, racional etc. A exemplo disso, há o discurso cartesiano, o discurso de Santo Agostinho, o discurso baconiano. Não há discurso neutro e que se enderece urbi et orbi, pois qualquer enunciação, desde uma palavra isolada a um conjunto de obra de determinado escritor, se dirige a certa audiência, respondendo a determinadas questões e objetivando certa intervenção social. O discurso se ancora em certas coordenadas. Por exemplo, as narrativas autobiográficas de escritoras afro-americanas realçam a condição étnico-racial; os romances de ciclos econômicos destacam o ambiente da cana-de-açúcar ou da mineração ou do cacau; a poesia de viés ambientalista enfatiza a Amazônia, a flora, a fauna e assim por diante. As obras de Ruffato e Jatobá se centram no ambiente laboral em contraposição ao familiar e, nessa tensão cronotópica polarizada, se instituem como discurso crítico ao labor degradante.

Nesse sentido, a condição cronotópica é vasta e complexa. Bakhtin (1988BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornnoni Bernardini et al. São Paulo: Editora Hucitec, 1988.) trata dessa questão investigando o espaço da rua, da feira, da praça, do campo, da cidade, do limiar, da fronteira etc, analisando como esses cenários moldam as falas e as enunciações das personagens e seus destinos e se manifestam em temporalidades específicas. O tempo cíclico e o tempo do progresso linear são também fontes importantes para os estudiosos. Por exemplo, a fala das classes populares em tempo de carnaval se molda por uma sintaxe, um léxico e valores pertinentes a esse cenário. Bakhtin (1987) destaca a obra de François Rabelais como uma enunciação advinda do concreto das festas carnavalescas e da vida das classes populares. O escritor francês formalizou a fala e a visão de mundo de um universo ainda não tomado pela perspectiva burguesa do trabalho racional que foi responsável pelo enfraquecimento das festas populares. Já a fala das personagens burguesas, do indivíduo só, na alcova, se instituem de modo diverso, manifestando-se em solilóquios, por exemplo. Jatobá e Ruffato alternam os espaços, entre o domiciliar e o da fábrica e o da vida no campo e na cidade. As falas das personagens são fruto desse confronto cronotópico. Nesse embate, surge um discurso desabonador do trabalho fabril que despersonaliza os sujeitos, em oposição ao espaço e ao tempo anteriores à vinda para a metrópole.

Outra questão tratada por Bakhtin (1977BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria E. G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1977.) que se vincula ao cronotopo é a exotopia discursiva, pois o local do emissor difere do local do destinatário. Perceber o outro em seu espaço e tempo é, antes de tudo, entender o outro como diverso. Essa percepção faz com que o autor possa criar e recriar personagens críveis cujos discursos são orgânicos à criatura. Não entender essa exotopia, ou seja, este outro cronotopo, leva muitas vezes o escritor a criar personagens fantoches e artificiais cujas falas e enunciações são inverossímeis. A biografia de Ruffato e Jatobá se asesemelha, em parte, à de seus personagens, mas estes não coincidem com o autor, pois são dotados de vidas e falas próprias. Há aí aproximação e distanciamento. São cronotopos semelhantes e diversos simultaneamente.

Seguindo essa linha de pensamento, discutiremos certos cronotopos a que as obras de Roniwalter e Ruffato se vinculam. De onde partem? Os escritores vêm de onde? Sua história laboral e existencial direciona em parte a enunciação? O escritor tem classe social? Essa condição é significativa para a constituição do universo literário? As falas das personagens se ancoram em que cenário cultural? Histórico? Essas falas apresentam contradição quando contextualizadas no mundo do trabalho degradante? Como o espaço e o tempo se imbricam nas falas e enunciações?

Desse modo, vemos que o cronotopo não é meramente o aspecto geográfico e temporal físicos que podem ser metrificados. As coordenadas discursivas enformam o discurso ideologicamente (quais valores culturais são acionados em cada época, comunidade, classe social); eticamente (que resposta ao contexto promana do discurso? De reprodução? De contestação?) e existencialmente (como os interlocutores se posicionam entre si, estando em posições, às vezes, opostas. Respeito? Reprovação? Adesão? Refutação?). Nessa linha, como a prosa de Roniwalter e Ruffato se comporta frente ao trabalhador recriado? Qual o espaço laboral? Que falas daí emergem? Que discursos sobre o trabalho são mobilizados? A que classes sociais se vinculam? A que tempo respondem? O cronotopo da fábrica entra em dissonância com o espaço e o tempo do domicílio?

4 A TEORIA DO ROMANCE SEGUNDO BAKHTIN

Nesta pesquisa, lemos nosso corpus a partir da perspectiva da teoria do romance de Bakhtin em que se destaca que o romance é um discurso indireto, ou seja, representa literariamente o plurilinguismo social haja vista que os discursos sociais são a sua matéria prima. Bakhtin (1977, 1981,1988) vê na longa gestação do gênero romanesco a história da formalização da “consciência ideológico-linguística do homem”. Esta vai se formando dentro da heteroglossia social e tomando consciência dessa pluralidade de vozes. O gênero romanesco privilegia essa heteroglossia ao abrigar essas vozes para se formalizar. O romance para Bakhtin é uma forma de epistemologia, pois o escritor, para falar de seu objeto (no caso, o trabalho), considera os vários discursos sobre esse objeto. O romancista se vale das vozes alheias para narrar a sua história em atitude essencialmente dialógica. O conhecimento de algo passa necessariamente pelas vozes dos outros sobre o objeto. A alteridade é constitutiva no processo de conhecimento, por isso é uma epistemologia. O romancista se vale do plurilinguismo social a que tem acesso quer pela leitura, quer pela oitiva, e dota seus personagens com essas vozes, plasmando-as em situações narrativas próprias e adequadas a elas. No caso de Roniwalter e de Ruffato, as vozes dos trabalhadores que eles mesmos foram em suas experiências laborais e que ouviram, no chão da fábrica, nos refeitórios, nos dormitórios, são mobilizadas e recriadas nas respectivas narrativas que escolhemos como corpus da pesquisa.

Bakhtin se preocupa sobremaneira com os aspectos composicionais do romance, investigando como ocorre o enquadramento dos discursos sociais dentro do enunciado dos narradores, das personagens, dos gêneros abrigados pelo romance, pesquisando as várias formas de assimilação dessas vozes, a saber, discurso direto, indireto, indireto livre, skaz, estilizações, híbridos e outros. O enquadramento das vozes, no entanto, não pode ser reduzido a uma questão formal-sintática, mas a uma construção axiológica, ética e cronotópica em que a voz do outro, ainda que dentro de contexto alheio, não perca a sua autonomia e especificidade. Não é uma perspectiva sintático-formal, mas sintático-axiológica. Obviamente que somente em boas narrativas isso se formaliza. O romance se constitui na representação dessa interação discursiva. As vozes podem se harmonizar, mas também entrar em conflito. O contexto narrativo pode torná-las objetais, servindo a um propósito monológico, mas também podem se manifestar de modo autoral, sem serem objetificadas por esse contexto. Quanto menos objetal a voz do outro, mais polifônico o romance.

Há inúmeros procedimentos formais de que se vale o romancista para criar vozes concretas, com posição axiológica própria que resistem à objetificação. Cada situação narrativa vai exigir uma análise dialógica específica do discurso. Para o filósofo da linguagem, o romance é gênero histórico e em mutação, abrigando de forma paródica, carnavalizada e estilizada, além das várias vozes sociais, os outros gêneros discursivos. Por isso, o romance é sempre um discurso indireto, pois se institui ao englobar e formalizar vozes sociais concretas. Em nosso, caso, as vozes sobre o trabalho são concretas, históricas e se manifestam pela recriação literária nas falas das personagens das obras em tela. Procuraremos investigar a contradição entre os discursos sobre o trabalho e suas reais condições materiais e como essas enunciações apresentam essas condições dissonantes entre o falar e a concretude laboral.

5 INTRODUÇÃO À OBRA DE LUIZ RUFFATO E RONIWALTER JATOBÁ

Esses escritores são contemporâneos e ambos vêm de classes sociais menos privilegiadas quanto à cultura letrada e à condição econômica. Trabalharam, em sua juventude, em atividades materiais não qualificadas do ponto de vista das academias universitárias. A vida material de intensa labuta que tiveram os instiga a escrever sobre trabalhadores braçais. A vida migratória que tiveram também os estimula a narrar sobre personagens itinerantes. No entanto, migram de cronotopo e adentram o universo universitário e se tornam jornalistas e escritores. Desse modo, em sua existência, passaram de trabalhos materiais a atividades imateriais e representam, em suas obras, inúmeros personagens que labutam cotidianamente para sobreviverem em condições materiais adversas. São intelectuais orgânicos, na acepção gramsciana (1995)2 2 Gramsci, filósofo italiano de tradição marxista, assim como os teóricos russos aqui estudados, também trata das articulações entre infraestrutura e superestrutura, enfatizando o terreno das ideias, destacando a hegemonia do ideário liberal-burguês haja vista que o mesmo é reforçado por inúmeras instituições sociais como as igrejas, as escolas, os meios de comunicação etc. Apregoa a necessidade de haver intelectuais orgânicos advindos das classes populares a fim de possibilitar a emancipação social e econômica dessa classe. Nessa perspectiva é que os autores aqui estudados se inserem nesse âmbito, podendo ser chamados de orgânicos. Em suas obras encontramos falas e situações das quais eles próprios participaram enquanto cidadãos e trabalhadores. Como afirma Bosi (1980), em prefácio a esta obra: “Os discursos de quem não viu, são discursos; os discursos de quem viu, são profecias”. , visto advirem de classes sociais desprestigiadas e que adentram o universo literário com essa carga existencial formativa e plasmam em suas obras as trajetórias de vida da classe pobre que conhecem muito bem, pois as vivenciaram em sua infância e juventude. Vida e obra literária caminham de modo conjugado à medida que esses escritores discursam sobre o que viveram organicamente, possibilitando articular organicamente, na acepção gramsciana, literatura e sociedade a partir de suas vozes romanescas.

Roniwalter Jatobá (Campanário, Minas Gerais, 1949), aos 15 anos, começa a trabalhar com o pai, transportando mercadorias em caminhão. Muda-se para São Paulo, em 1970, empregando-se como operário na indústria química, e depois, em São Bernardo do Campo, na indústria metalúrgica. Em 1973, transfere-se para São Paulo, para trabalhar como gráfico na Editora Abril. Gradua-se em Jornalismo, em 1975.

A obra, No chão da fábrica, 2016, trata sobremodo das classes trabalhadoras. O intelectual recria a vida de homens e mulheres dentro das fábricas brasileiras, principalmente, na década de setenta, nas grandes cidades. Ao contar a história dos outros, reconta também parte de sua condição cronotópica. A maioria das personagens são oriundas de cidades pequenas, gente humilde, sem qualificação profissional para as grandes indústrias, que vêm de contextos de trabalho artesanal e que buscam encontrar uma nova vida, iludidos com o trabalho fabril que poderá lhes melhoria material. Migram de suas cidades, pois ali o contexto laboral é bastante precário. Essa vinda, no entanto, na visão de Jatobá, não é frutífera, visto que o destino das personagens em novo locus, dá-se de modo conturbado, trágico e degradante.

Luiz Ruffato (Cataguases, Minas Gerais, 1961) é filho de pipoqueiro e de lavadeira de roupas. Formou-se em tornearia-mecânica e trabalhou como operário da indústria têxtil. Sua experiência concreta também lastreia o discurso literário ao recriar personagens cujas trajetórias cronotópicas se assemelham às de sua própria vida. Graduou-se também em Jornalismo e trabalhou em diversos periódicos até se mudar para São Paulo em 1990. Em 2003, afasta-se da carreira de jornalista para se tornar escritor em tempo integral.

A obra de Luiz Ruffato, De mim já não se lembra, apresenta dezenas de personagens que trabalham. A obra se passa na cidade de São Paulo, dos anos 70, narrando a vida de trabalhadores de fábrica de automóvel, sob o ponto de vista de um jovem mineiro de Cataguases que migra para a metrópole com o sonho de viver melhor. O protagonista, Célio, mostra-nos como conseguiu sobreviver, empregando-se em uma fábrica - destino semelhante a muitos brasileiros pobres naquele período, visto que a indústria automobilística surgia como potencialidade de trabalho e de melhoria das condições de vida material do operário. Trabalha arduamente e adquire bens materiais que, em sua cidade natal de economia incipiente, jamais teria a oportunidade de obtê-los. Porém, nessa trajetória, aliena-se e sente saudades de sua vida pregressa em que se sentia protegido e amado por seus familiares. A narrativa majoritariamente, compõe-se de 50 (cinquenta) cartas do protagonista a seus pais, relatando sua nova vida. Essas cartas vêm a lúmen após a sua morte.

A obra De mim já nem se lembra se institui dialogicamente entre o real e o ficcional uma vez que o próprio autor, Luiz Ruffato, edita essas cartas, escritas por seu irmão Célio, achadas na casa de sua mãe, após o falecimento desta. Apesar da ascensão material e de certa estabilidade conquistada, a narrativa demonstra a desilusão da personagem por se sentir alijado de sua família. Ao final da narrativa, o personagem morre, sendo atropelado por um veículo que recém adquirira. O final é bastante simbólico, pois o protagonista morre em acidente automobilístico (colisão entre seu veículo e um caminhão), sendo atropelado por um bem tecnológico que ajudara a produzir durante sua labuta cotidiana nas fábricas. A sua morte, nessas condições, pode ser vista como metáfora para sua falência pessoal e existencial. Ascede materialmente, mas sua existência é solitária, alienada, impessoal como a de muitos outros no cenário de uma metrópole. Claramente, vemos o valor simbólico do desfecho. O personagem morre exatamente quando adquire emprego e bens materiais, mas simultaneamente, derspersonaliza-se na fábrica. Ocorre um apagamento de si à medida que, ao migrar de sua cidade e se estabelecer na metrópole, sua identidade vai se apagando socialmente visto que seus conterrâneos vão falecendo e também migrando para outras paragens. Daí o título do livro se aclara, ou seja, a personagem é apagada da memória dos outros, seus conterrâneos, e dele “já ninguém se lembra”. A cidade o redefine, “De mim já nem se lembra”, ou seja, já não é ninguém. Todavia, a edição das cartas por seu irmão (o autor, Luiz Ruffato), constitui a escritura da narrativa, contribuindo para que a personagem Célio se imortalize via discurso literário. A trajetória da personagem adquire significado em cronotopos diversos.

6 CONTRADIÇÕES DISCURSIVAS

Nesta seção, analisamos alguns excertos das vozes de dois personagens, procurando demonstrar como o discurso sobre o trabalho, visto como empreendimento digno e honesto, que confere ascensão social e material, é reproduzido nas falas das referidas personagens e de como esse discurso é contrariado pelas condições reais de existência material. O cronotopo concreto de vida das personagens desabona o discurso dignificante sobre o trabalho. As personagens trabalham, mas labutam em profissões não qualificadas (trabalham em fábricas e seu labor é mecanizado) do ponto de vista de uma consciência e ideário burguês. Desse modo, o trabalho não lhes traz felicidade, dignidade, reconhecimento social como prometido e desejado. Esse choque entre a realidade laboral e certo discurso sobre o trabalho nos mostra claramente o corte de classe social que constitui as falas das personagens que aderem a discursos estranhos e alheios à sua realidade.

Os enunciados se constituem bivocais3 3 As obras de Bakhtin (1981) e Bakhtin/ Voloshinov (1986) tratam de modo detalhado da bivocalidade do discurso uma vez que no cerne do pensamento dos teóricos russos está presente como elemento fundante a dialogia em que cada enunciado é bivocal, ou seja, pertence ao nós, é produto social, responsivo e exibe claramente sua dupla face. Nessa bivocalidade percebemos os embates sociais e axiológicos. No caso dessa pesquisa, o discurso enobrecedor do trabalho entra em dialogia com as condições reais de existência e é questionado, gerando outro enunciado em que as condições degradantes do labor são explicitadas nas vozes bivocais. , visto que essa tensão entre a realidade laboral, despersonalizada e alienada e as palavras enobrecedoras sobre o objeto trabalho, desequilibra o enunciado, pois a palavras não dizem “a coisa” (o trabalho) como ela é. Duas orientações axiológicas passam a habitar o enunciado, ou seja, uma que enaltece o trabalho, e outra, que o vê em sua condição degradante e alienante. A tensão dialógica entre essas duas vozes possibilita a crítica ao universo do trabalho, demonstrando claramente que alguns trabalhos são melhores que outros e conferem identidades diversas a quem os exerce. O corte de classe social e econômica se faz presente, qualificando ou desqualificando certas profissões e pessoas. As personagens incorporam discursos que enaltecem o trabalho, mas ao empreender a atividade laboral em condições precárias, se dão conta do discurso em descompasso com a realidade. Parece haver um deslocamento claro entre a enunciação que advém de certo mirante de classe e a vida concreta a que esse discurso não nomeia. Discurso e realidade se descolam. Vida e enunciado se afastam. O indivíduo emite um discurso sem referente.

Na obra De mim já nem se lembra, selecionamos apenas excertos exemplares em que o protagonista demonstra que o trabalho é fonte, sobremaneira, de estafa, de separação da família e de degradação. Obviamente que esses fragmentos são apenas ilustrativos. A leitura da obra, em sua totalidade enunciativa, é que permite perceber com clareza como o discurso enobrecedor do trabalho entra em dissonância com a realidade precária do trabalho a partir do corte de classe. Vamos aos excertos, a título de exemplificação.

Na sequência, observamos a presença de trabalho extenuante; desqualificação do trabalho material em detrimento do trabalho imaterial; visão patriarcal sobre o trabalho feminino e trabalho intensificado. Como referido, a vinda da personagem Célio (protagonista de Ruffato) é motivada pelo anseio de trabalhar em uma grande fábrica e dali retirar o sustento material para si e para os seus que deixou em sua cidade natal. A fim de subsistir e promover uma vida material menos sofrida para seus familiares, Célio trabalha de modo estafante. A venda das férias é narrada em várias das cartas, indicando a situação de labuta incessante do trabalhador pobre. Citemos apenas uma fala ilustrativa: “Mãe, conversei com o seu Wolfe e a firma vai me comprar as férias.” (Ruffato,2016, p. 46). Ao iniciar sua vida laboral, passa anos sem poder retornar à cidade natal, pois se compromete no período de férias com o trabalho no intuito de sobreviver e fazer uma pequena poupança. Não é raro, na vida dessas personagens, retornarem quando seus progenitores já faleceram e muitos de sua família já não mais habitarem o local natal de onde vieram. A necessidade os impede de concretizar esse retorno tão esperado.

No fragmento a seguir, Célio, incorporando uma perspectiva patriarcal de mundo e também de classe mais abastada, deseja que sua companheira não trabalhe. Isso, porém, é impossível visto que somente com seu provento não pode subsidiar a vida material da família. No entanto, sua fala manifesta esse desejo em dissonância com suas condições reais de existência: “Eu não tenho nada contra não, mas sinceramente não queria que ela trabalhasse fora”. (RUFFATO, 2016RUFFATO, L. De mim já nem se lembra. São Paulo: Editora Moderna, 2016., p. 71) [...] Ela falou que quer ser professora, agora imagina, mãe, se uma professora vai querer casar com um peão que nem eu”. (RUFFATO, 2016, p.71). Nessas passagens, a personagem narra à sua mãe como se apaixonou pela companheira e de como gostaria de se casar com ela. Notamos aí que o narrador está imbuído de uma visão de classe que não lhe pertence. A partir de uma perspectiva cultural patriarcal, deseja ser o provedor econômico, sustentando a esposa, mas é muito pobre para fazê-lo. Percebemos o choque cultural entre o discurso e a prática. O local concreto de fala não coincide com o discurso, emprestado da classe dominante. Entretanto, embora almeje uma posição que não pode garantir, ou seja, exercer a liderança econômica, apresenta consciência clara sobre as divergências entre o trabalho fabril nas máquinas em que o fazer é mecanizado e o labor intelectual da amada, bem mais prestigiado na sociedade. Novamente, estamos diante de contradição social entre trabalho qualificado e desqualificado. O trabalho da indústria, no chão da fábrica, está muito distante do labor da docência e isso o apequena diante da companheira. Essas contradições dissipam as possibilidades de Célio se casar com a companheira. Na sequência, temos nova contradição na fala da personagem:

É nessas horas que eu entendo a revolta do Fabinho, que sempre fala que não entende porque para ganhar a vida a gente tem que mudar para longe das pessoas que ama. Aí, em Cataguases, quando os filhos desse pessoal rico vão estudar fora, eles sabem que mais dia menos dia voltam e vão ser médico, engenheiro, dono de fábrica, advogado. Mas a gente, que é pobre, sai para nunca mais. Por isso que dizem que rico ri à toa. É por isso, porque estão sempre perto da família. (RUFFATO, 2016RUFFATO, L. De mim já nem se lembra. São Paulo: Editora Moderna, 2016., p. 98).

Esse trecho enfoca um dos temas fundamentais que perpassam a narrativa, ou seja, o quanto o trabalho para os desafortunados é elemento de desagregação da pessoa, de sua identidade e de sua família. O movimento migratório de regiões mais pobres para regiões em que há emprego é uma situação bastante recorrente na sociedade brasileira e é narrada por inúmeros romances brasileiros. Na obra analisada, essa situação é reiterada. No fragmento, em tela, o narrador traz à luz essa problemática. As personagens desabonadas economicamente tomam consciência da fragmentação que os laços familiares sofrem ao serem interrompidos pelo movimento migratório citado. Novamente, a condição de classe se faz presente, isolando-os dos entes queridos, levando-os a se despersonalizarem em ambientes degradantes e com os quais não se identificam. O cronotopo do trabalho faz emergir uma consciência discursiva crítica porque afasta a personagem dos seus familiares. O romance de Ruffato destaca essa questão como vimos, inclusive pelo título, “De mim já nem se lembra”, pois a desagregação da rede familiar e social se impôs a partir de um trabalho que não permite o retorno, nem em época de férias.

Da obra No chão da fábrica, focalizaremos o capítulo intitulado “A fábrica”. Nessa narrativa, em primeira pessoa, o narrador apresenta a sua família já instalada em São Paulo, vivendo em uma casa muito simples e modesta, e focaliza sobretudo as personagens mãe, pai e o narrador. A mãe, dona de casa, vive uma existência muito sofrida, convivendo com a necessidade de economias diárias e muita tarefa estafante. O pai, feitor em uma fábrica, trabalha muito e sustenta a todos com seu parco salário. O pai, no entanto, já exerce uma atividade melhor remunerada que os outros empregados na fábrica visto que é responsável por controlar e vigiar o trabalho dos operários. Mas, mesmo nessa posição hierárquica, é remunerado parcamente, exaurindo-se em horas extras seguidas à jornada normal de trabalho. O protagonista é ainda um jovem adolescente, mas o pai o leva a trabalhar para ajudar no sustento da família. O narrador-protagonista hesita em se empregar, mas obedece, pois ali todos devem labutar desde muito cedo. Passa a estudar à noite e se emprega, porém, desconfia que trabalhar é algo degradante e perigoso. Em uma das cenas descritas, podemos perceber o choque entre o discurso sobre o trabalho e a real situação do mesmo em que se destaca a situação precária do trabalho em que os operários arriscam a vida e um deles vem a falecer em decorrência da falta de segurança. Há certa comoção pela morte do trabalhador, mas logo a ocasião é racionalizada a fim de que não haja conscientização e união por parte dos trabalhadores. O pai, feitor, nessa situação, demonstra claramente que é tomado por um discurso da classe social a que não pertence, mas defende. A fim de dispersar os trabalhadores em torno do acontecido, evitando uma possível reivindicação por melhores condições laborais, reproduz o discurso da elite para os empregados sob a sua tutela, informando-os de que há muitos desempregados, ansiando por uma vaga e aqueles, que estejam descontentes, devem pedir a demissão, visto que há uma legião a poder substituí-los. O protagonista-narrador delimita essa situação para narrar e essa delimitação é já em si crítica, pois demonstra claramente que o trabalho para os pobres é precário e humilhante. Essa situação contribui para formação de uma consciência discursiva crítica por parte do protagonista. Todavia, percebe a degradação do trabalho, mas a ele se submete visto que não há saída. Vamos aos excertos:

A vila crescia, mudando de cara, o apito avisando, crescendo, inchando de gente. A fábrica cada dia mais se alargando como teia de aranha, pegando os viajantes chegados de carteira em branco, com precisão, dando serviço aos que sabiam ler alguma coisa, o apito chamando. Alguns, sem ciência de causa, achavam o trabalho até bom, pois, de onde eles chegavam, diziam, não temos nem onde cair morto. Pai, feitor, repetia a fala deles assim, sem dó. (JATOBÁ, 2016JATOBÁ, R. No chão da fábrica. São Paulo: Nova Alexandria, 2016., p. 67)

No trecho, encontramos a consciência exotópica do narrador que, embora tenha a mesma história e narrativa dos demais, deles se destaca pelo viés crítico. O narrador destaca o caráter de classe homogênea dos trabalhadores e de como são carentes, pobres, desqualificados e ingênuos e de como o próprio pai, em posição hierárquica (feitor) recupera a fala desses trabalhadores, mas utiliza essa fala com o objetivo de levá-los a aceitar o trabalho árduo e mal remunerado. O discurso do feitor se orienta duplamente, pois se utiliza da fala dos operários o que lhe possibilita se aproximar deles e angariar a sua confiança, e, simultaneamente, nessa recuperação discursiva, reforçar o seu compromisso com a elite proprietária que o emprega, usando essa fala para domesticar os trabalhadores e conformá-los ao trabalho. Há aí, claramente, uma dupla orientação de classe social em que o contexto narrativo citante se apropria da fala operária em benefício da elite. Novamente, percebemos o embate entre o discurso laudatório do trabalho e as condições cronotópicas que o enfraquecem.

Em outro trecho, vemos a verificação de que o universo laboral, após o acidente relatado (a morte de um trabalhador), surge como algo pouco louvável e benéfico para o trabalhador:

Não contei nada (sobre o acidente que presenciara com a morte de um operário). Nunca tinha visto ninguém morrer. De noite, na mesa, todo mundo jantando, toquei no assunto. Pai assuntou, acendendo um cigarro, mãe respondeu com as vistas, aí pai disse, vai dormir, deixa de histórias de trancoso. Depois, ele falou que dessa semana eu não passava, já tinha emprego garantido. Ia começar, passado do tempo, no mais tardar, segunda-feira que entra. Saí para o quarto, uma coisa me dizendo na cabeça, perguntando, se trabalhar é bom. (JATOBÁ, 2016JATOBÁ, R. No chão da fábrica. São Paulo: Nova Alexandria, 2016., p. 68)

O capítulo em tela narra as modificações da cidade com o advento da fábrica e de como os operários para ali acorrem. O narrador também relata como foi iniciado no mundo do trabalho. Essa iniciação denuncia o caráter degradante do mesmo. Inicia-se com a visão do óbito do trabalhador que pode representar o destino de qualquer um dos operários. As condições laborais são inseguras. Perceba-se que sobre o acontecido não há falas explícitas. O narrador apenas “toca no assunto”; a mãe responde somente com o olhar; o pai o desvia de continuar a falar e o insta a trabalhar. A ausência de falas, no entanto, não impede uma tomada de consciência sobre a degradação do trabalho e dos perigos que a ato de laborar traz. Sabe-se que trabalhar não é bom, mas é preciso continuar a labutar, mesmo que em empregos degradantes. A iniciação ao trabalho se dá pela visão da morte do trabalhador, reforçando uma crítica às condições subumanas de emprego a que se submetem os operários. Novamente, as condições cronotópicas reais do trabalho entram em choque com o discurso positivo do labor.

7 PALAVRAS FINAIS

A leitura das obras de Ruffato e Jatobá nos propicia a discussão e a problematização da vida de milhares de trabalhadores brasileiros oriundos de classes sociais pouco privilegiadas, demonstrando que seus destinos são muito parecidos e que o trabalho realizado não traz melhorias substantivas na vida de nenhum deles. O discurso literário aí está vinculado à vida, formalizando a realidade cotidiana de décadas a fio na sociedade brasileira em que o trabalho material é pouco valorizado. O trabalho na fábrica é mecanicista, atende exclusivamente em termos de lucro ao capital, despersonaliza o trabalhador que pode ser substituído imediatamente, afasta-o de seus familiares tanto porque o consome em uma jornada estafante quanto porque o faz migrar de sua cidade natal para a qual já não poderá voltar. Entretanto, embora haja essa tipificação de uma dada classe social homogênea, os escritores conseguem, com maestria, particularizar cada personagem, cada situação, criando personagens com falas próprias, vidas e destinos singulares. Eis o sortilégio de uma boa obra literária, ou seja, faz surgir homens concretos a partir do contexto em que vivem e que compartilham entre si. Pudemos perceber também, nas falas das personagens, que o espaço e o tempo do trabalho fabril se manifestam ora vinculados a um desejo de progredir e alçar-se acima de sua condição de miserabilidade, reforçando um discurso positivo sobre o trabalho, ora como atividade a degradar ainda mais aquele que o exerce visto que fruto de condições materiais capitalistas em que o operário é apenas um número, um anônimo, alguém a serviço tão somente do outro no sentido de enriquecê-lo e empoderá-lo. Há claramente nas falas das personagens a contradição entre a dimensão infraestrutural, ou seja, as reais condições laborais de produção e reprodução da vida, e a dimensão supraestrutural em que o discurso, embora englobe uma perspectiva positiva do trabalho, não deixa de tomar consciência da degradação e alienação da atividade laboral, dada, sobremodo, pelo corte de classe social.

REFERÊNCIAS

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  • ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? São Paulo: Cortez, 1995.
  • BAKHTIN, M; VOLOCHINOV, V. Marxismo e Filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1986.
  • BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornnoni Bernardini et al. São Paulo: Editora Hucitec, 1988.
  • BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria E. G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1977.
  • BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiéski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense/ Universitária, 1981.
  • BAKHTIN, M. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec/Editora Universidade de Brasília, 1987.
  • ENGELS, F. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. 4. ed. Rio de Janeiro: Global, 1990.
  • GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. 10. ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho, São Paulo: Civilização Brasileira, 1995.
  • GORZ, A. Adeus ao proletariado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
  • GORZ, A. Metamorfoses no mundo do trabalho. São Paulo: Annablume, 2003.
  • JATOBÁ, R. No chão da fábrica. São Paulo: Nova Alexandria, 2016.
  • LUKÁCS, G. The ontology of social being: Labour. Londres: Merlin Press, 1980.
  • MARX, K. A maquinaria e a indústria moderna. In: MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Trad. Reginaldo Santanna.12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 1986.
  • MOTA, C. G. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). 4. ed. São Paulo: Editora Ática, 1980.
  • RUFFATO, L. De mim já nem se lembra. São Paulo: Editora Moderna, 2016.
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    Tanto na área de Sociologia do trabalho quanto no âmbito da História social do trabalho, as obras desses autores são leitura obrigatória para se encetar a problematização do universo laboral. Pode-se refutá-las ou não, mas não as citar, é desconhecer o Estado da arte sobre a discussão do conflito entre trabalho e capital. Desse modo não é possível referenciar apenas uma obra ou trechos de obras haja vista que o pensamento marxista enfatiza o proletariado urbano fabril enquanto classe social a emancipar-se do capital, sendo sujeito da história. Para fins mais didáticos, citamos algumas obras, referenciando-as, em que essa discussão ocorre, porém a temática é uma diretriz do pensamento dos filósofos alemães. As obras de Gorz (1982, 2003) referenciadas continuam o debate marxista sobre a condição laboral, tratando do trabalhador do século XX e XXI. Não estão também citadas por fragmentos, mas fornecem as diretrizes para entender a degradação do trabalho também apontada por Ruffato e Jatobá. O autor francês também figura como clássico para a questão laboral. No Brasil, Antunes (1995, 2002) é referência para esta questão e muito de sua perspectiva adentra esta pesquisa, mormente, na questão da degradação do trabalho no regime capitalista.
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    Gramsci, filósofo italiano de tradição marxista, assim como os teóricos russos aqui estudados, também trata das articulações entre infraestrutura e superestrutura, enfatizando o terreno das ideias, destacando a hegemonia do ideário liberal-burguês haja vista que o mesmo é reforçado por inúmeras instituições sociais como as igrejas, as escolas, os meios de comunicação etc. Apregoa a necessidade de haver intelectuais orgânicos advindos das classes populares a fim de possibilitar a emancipação social e econômica dessa classe. Nessa perspectiva é que os autores aqui estudados se inserem nesse âmbito, podendo ser chamados de orgânicos. Em suas obras encontramos falas e situações das quais eles próprios participaram enquanto cidadãos e trabalhadores. Como afirma Bosi (1980), em prefácio a esta obra: “Os discursos de quem não viu, são discursos; os discursos de quem viu, são profecias”.
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    As obras de Bakhtin (1981) e Bakhtin/ Voloshinov (1986) tratam de modo detalhado da bivocalidade do discurso uma vez que no cerne do pensamento dos teóricos russos está presente como elemento fundante a dialogia em que cada enunciado é bivocal, ou seja, pertence ao nós, é produto social, responsivo e exibe claramente sua dupla face. Nessa bivocalidade percebemos os embates sociais e axiológicos. No caso dessa pesquisa, o discurso enobrecedor do trabalho entra em dialogia com as condições reais de existência e é questionado, gerando outro enunciado em que as condições degradantes do labor são explicitadas nas vozes bivocais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2019
  • Aceito
    05 Jul 2020
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