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CINEMA, IDEOLOGIA E INCONSCIENTE: COLIN MACCABE, STEPHEN HEATH E A SCREEN THEORY* * Este texto foi desenvolvido graças à bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM), durante estágio doutoral na University of California, Los Angeles (UCLA), sob orientação do Prof. Dr. Randal Johnson.

Cinema, Ideology and the Unconscious: Colin MacCabe, Stephen Heath and the Screen Theory

Cinema, ideología e inconsciente: Colin MacCabe, Stephen Heath y la Screen Theory

Resumo

Abordagens do funcionamento da ideologia, da discursividade e da subjetividade foram desenvolvidas e convergiram nos estudos cinematográficos nos anos 1970, na França e na Grã-Bretanha. Tais desenvolvimentos e convergência sucederam com o engajamento político de intelectuais, a partir da influência de Louis Althusser e Jacques Lacan. Esta retrospectiva resgata uma das principais perspectivas na história dos Estudos Cinematográficos, a Screen Theory, através das ideias dos editores da Screen Magazine nos anos 1970, Colin MacCabe e Stephen Heath. Explicita-se nela a influência do filósofo francês Michel Pêcheux, até então ignorada no Brasil e na França, e as consequências de sua “posição-sujeito” nos debates sobre a Screen Theory. A crítica da relação entre o Outro em Lacan e o Sujeito Universal em Althusser, e seu desdobramento no conceito de “posição-sujeito” em Pêcheux, são contribuições fundamentais dessa experiência para a perspectiva brasileira dos estudos materialistas da discursividade.

Palavras-chave:
Análise do discurso fílmico; Michel Pêcheux; Colin MacCabe; Stephen Heath; Screen Theory

Abstract

The development of approaches around ideology functioning, discourse, and subjectivity converged into the cinematographic studies in the 1970s, in France and Great Britain. Such development and convergence happened with the political engagement of intellectuals, starting from the influence of Louis Althusser and Jacques Lacan. This retrospective brings back one of the most important perspectives in the Cinematographic Studies, the Screen Theory, which emerges from the aforementioned decade through the ideas of two Screen Magazine editors, Colin MacCabe and Stephen Heath. In this theory it is made explicit the influence of the French philosopher Michel Pêcheux and the consequences of his "subject position" in Screen Theory’s theoretical debates. The re-evaluation of Lacan's Other and Althusser's Universal Subject, and its development into Pêcheux's "subject position" concept, are paramount contributions to the Brazilian materialistic perspective of discursivities.

Keywords:
Film discourse analysis; Michel Pêcheux; Colin MacCabe; Stephen Heath; Screen Theory

Resumen

Abordajes del funcionamiento de la ideología, de la discursividad y de la subjetividad fueron desarrolladas y convergieron en estudios cinematográficos en los años 1970, en Francia y Gran Bretaña. Tales desarrollos y convergencia sucedieron con el encajamiento político de intelectuales, desde la influencia de Louis Althusser y Jacques Lacan. Esa retrospectiva rescata una de las principales perspectivas en la historia de los Estudios Cinematográficos, la Screen Theory, a través de las ideas de los editores de la Screen Magazine en los años 1970, Colin MacCabe y Stephen Heath. Se hace explicita em ella la influencia del filósofo francés Michel Pêcheux, hasta entonces ignorada en Brasil y Francia, y las consecuencias de su “posición-sujeto” en debates sobre la Screen Theory. La crítica de la relación entre el Otro en Lacan y el Sujeto Universal en Althusser, y su desdoblamiento en el concepto de “posición-sujeto” en Pêcheux son contribuciones fundamentales de esa experiencia para la perspectiva brasileña de los estudios materialistas de la discursividad.

Palabras clave:
Análisis del discurso cinematográfico; Michel Pêcheux; Colin MacCabe; Stephen Heath; Screen Theory

1 INTRODUÇÃO

Teorias e métodos linguísticos influenciaram, no decorrer do século XX, várias teorias cinematográficas. O desenvolvimento do conhecimento sobre a linguagem verbal afetou muito a compreensão do modo como o audiovisual funciona, como comprovam as obras de Metz (1980METZ, C. Linguagem e cinema. São Paulo: Perspectiva, 1980. 347 p.), Bellour (1979BELLOUR, R. L’analyse du film. Paris: Ed. Albatros, 1979. 310 p.), Casetti (1993aCASETTI, F. Teorías del cine: 1945-1990. Madrid, España: Cátedra, 1993a. 363p., 1993b), dentre outros. Isso também aconteceu com as ideias das teorias discursivas. A partir da influência de Althusser e Lacan, e, não assumidamente, também da influência de Pêcheux, as revistas francesas Tel Quel, Cinéthique, Cahiers du Cinéma, Communications discutiram o funcionamento do cinema como aparelho ideológico e como máquina de constituição de sujeitos. Textos de Jean-Louis Baudry, Jean-Louis Comolli, Jean Narboni, Raymond Bellour (1979), Christian Metz (1972, 1980), Jean Pierre Oudart (1977OUDART, J. P. Notes on suture. Screen Magazine, v. 18, n. 4, p. 48-76, inverno 1977.), Jean Patrick Lebel (1989LEBEL, J.-P. Cinema e ideologia. Lisboa, Portugal; São Paulo: Estampa Ed. & Mandacaru, 1989. 349 p.), dentre outros, debateram, polarizaram e inscreveram-se nas questões levantadas sobre o primado do significante, a materialidade fílmica, o funcionamento da ideologia, os problemas da textualidade e da constituição dos sujeitos. Como toda abordagem teórica se inscreve em campos de disputas de poder, de influência, de intervenção em problemas sociais, de imposição cultural, política, ideológica e geográfica, os traços de certas influências e transposições costumam ser apagados.

Como a prática social da linguagem verbal é indissociável dos meios de comunicação e das novas tecnologias, estes funcionam e contribuem para o processamento, para a decodificação e para a reprodução de textos orais e escritos, afetando amplamente os procedimentos de textualização, as condições de enunciação e de discursividade. Propostas teóricas de outros campos de estudos, numa direção inversa, podem também movimentar as disciplinas que se dedicam à compreensão do funcionamento do sentido. O confronto e o contraste de outros processos de significação, como o audiovisual, com o estudo dos processos da significação linguística, podem ajudar a entender melhor a natureza e a constituição desses processos.

Na Grã-Bretanha dos anos 1970 houve uma preciosa convergência entre a Análise de Discurso materialista e os estudos fílmicos: a partir dos ganhos teóricos discursivos, um grupo de pesquisadores e professores da área dos estudos da linguagem verbal se reuniu na Society for Education in Film and Television (SEFT). O grupo se propôs a pensar, através da Screen Magazine, a discursividade no cinema e na televisão em suas implicações na prática do ensino de língua inglesa em sala de aula.

Colin MacCabe, Stephen Heath, Laura Mulvey1 1 Os principais textos de Laura Mulvey, publicados na Screen, que deram base para as teorias e análises fílmicas feministas, estão publicados em português nas obras de Xavier (2008) e Ramos (2005). , Jacqueline Rose, Peter Wollen, entre outros, estão entre os autores que se consagraram na revista Screen, e que entraram para a história dos estudos fílmicos. Estes pesquisadores, apesar de serem pouco conhecidos e pouco estudados no Brasil, são os mais importantes nomes, segundo apontam os principais críticos desta corrente teórica (CASETTI, 1993; BORDWELL, 1989BORDWELL, D. Making Meaning: Inference and Rhetoric in the Interpretation of Cinema. Cambridge, USA: Harvard University Press, 1989. 334p.; BORDWELL; CARROL, 1996). Os trabalhos de Griselda Pollock em Historia da Arte e a teoria feminista do cinema (Teresa de Lauretis, Kaja Silverman) surgiram dessa revista. Screen também foi uma grande influência nas teorias que desenvolveram as implicações do pensamento lacaniano na Política e na Filosofia nos últimos 30 anos, o que resultou nos trabalhos de grandes nomes atuais, como Ernesto Laclau e Slavoj Žižek. A revista também colaborou para impactar práticas artísticas, levadas a cabo nos filmes de Laura Mulvey e Peter Wollen, e no trabalho de crítica da representação, cujo nome mais expoente é o da artista inglesa Mary Kelly (STAM, 2003STAM, R. Introdução à teoria do cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003. 398 p.). Os britânicos assumidamente trabalharam com os textos de Pêcheux e o conheceram pessoalmente. A partir desse grupo britânico consolidaram-se as discussões e a congregação das tendências dominantes em Estudos do Cinema que instituíram academicamente as disciplinas sobre teorias e análises fílmicas, como os estudos culturais e a teoria cognitivista aplicados aos estudos fílmicos, entre outras tantas abordagens e desdobramentos (MASCARELLO, 2001MASCARELLO, F. A Screen-Theory e o espectador cinematográfico: Um panorama crítico. Revista Novos Olhares, n. 8, v. 2, p. 13-28, 2001.).

Por conta do nome da revista, hoje a história das ideias fílmicas nomeia como Screen Theory esse importante legado. Embora ignorada no Brasil, é enorme sua contribuição para a história das ideias linguísticas e cinematográficas, na convergência entre os estudos do sentido no audiovisual, afetados pela Linguística, pela Semiologia, pela Análise de Discurso, pela Psicanálise e pelo Materialismo Histórico.

A revista ainda hoje é editada em quatro números anuais, mas apresenta um escopo diferente daquele entre 1973 e 1980, período voltado para a tríplice aliança teórica, envolvendo em seus pressupostos as ideias de Marx, Freud e Saussure (PÊCHEUX, 2009PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio, 4. ed. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2009. 288 p.). Apesar de várias análises fílmicas feitas e instigantes contribuições conceituais, que pretendo tratar noutro texto, meu objetivo aqui é resgatar a conexão dos autores e editores da Screen com a obra de Michel Pêcheux, me restringindo a alguns dos conceitos e críticas relacionados ao trabalho dele, publicados na revista pelos autores e editores Colin MacCabe e Stephen Heath, já que não existe nenhum trabalho consistente no Brasil e na França em que se avalie especificamente essa experiência e se resgate sua importância histórica - sobretudo para a história da Linguística Aplicada e para a história da Análise de Discurso e sua recente tentativa de análise de filmes, de produtos e de processos audiovisuais.

2 O INÍCIO DA REVISTA: SAUSSURE, BARTHES, LACAN E ALTHUSSER, A EBULIÇÃO FRANCESA NOS ANOS 1960 E A QUESTÃO DA AUTORIA

Screen começou nos anos 50 no British Film Institute (BFI), que fundou, para isso, a SEFT, a Society for Education in Film and Television. Professores interessados em usar os filmes como ferramentas pedagógicas se debruçaram sobre questões práticas relacionadas ao uso de filmes e da televisão no ensino. O foco da revista durante esse período é categorizado superficialmente, em alguns autores e historiadores, como “pós-estruturalista” ou “semioticista”, mas a abordagem da Screen Theory se instituiu a partir dos acontecimentos políticos, sociais e teóricos dos anos 1960 na Europa, especificamente na França, em torno das questões da Guerra Fria, dos imperialismos, das lutas de classe, das ideologias, das discursividades, da educação formal, do nacionalismo, entre outras questões.

Com a expansão do acesso e da fruição do cinema e da televisão, aumentou a demanda dos professores de entenderem as novas mídias artísticas da cultura contemporânea. Elas deveriam ser dominadas, tanto quanto o legado do cânone artístico literário. Entretanto, em vez de reproduzirem a visão romântica da inspiração e o elitismo da fruição estética, esses professores buscaram considerar as formas e os valores da cultura popular. MacCabe (1999, p. 155) lembra um trecho do British Film Institute Policy Document de 1971, em que se projetava o crescimento dos estudos cinematográficos e sua incorporação no ensino formal, do nível secundário moderno até a pós-graduação. O BFI assumiu, no supracitado documento, a tarefa de servir os professores com orientações e ferramentas necessárias para a formação em audiovisual e, a partir de então, fomentou o estudo e o desenvolvimento de teorias críticas estéticas, sociais e políticas, através de subsídios e de bolsas para pesquisas.

O documento surgiu após a separação entre a SEFT e o BFI. Segundo MacCabe (1999, p. 154), longe das disputas por poder e por influência que alimentavam a arrogância parisiense nas diferentes revistas francesas que também tratavam de análise fílmica, Screen, apesar de suas falhas, conseguiu desenvolver as implicações teóricas e analíticas da relação entre cultura, discursividade e significação com maior propriedade e consistência. O autor é categórico em defender que os projetos políticos e teóricos de 1968 foram mais bem explorados nas páginas da Screen (1999, p. 155).

A experiência de Godard como crítico nos Cahiers du Cinéma, e sua migração para a realização cinematográfica, foi o que, sobretudo, permitiu entender as mudanças sociais e a convergência entre o cinema e os estudos semiológicos, discursivos, psicanalíticos e marxistas. Em 1968, decepcionados com o público e as estruturas disponíveis, Godard e Cahiers tentaram criar o público perfeito, num momento de entusiasmo revolucionário. Para isso, Godard e a revista se utilizaram de duas estratégias aparentemente complementares: por um lado, propuseram-se a provocar um curto-circuito em todas as estruturas existentes para produzir filmes, buscando um público nas redes políticas; por outro lado, valeram-se da Semiologia, da Psicanálise e do Marxismo para transformar os filmes clássicos da antiga Hollywood, em textos que testemunharam as contradições do cinema e da sociedade. Assim surgiu Vent d' Est (O Vento do Leste, filme de Godard de 1970) e a leitura do Young Mr. Lincoln de John Ford (crítica publicada coletivamente nos Cahiers du Cinéma, no. 223, em agosto de 1970, p. 29-47). Para MacCabe, “são duas faces da mesma moeda, uma moeda que pretende retirar-se de circulação”2 2 No original: “two sides of the same coin, a coin which wishes to withdraw itself from circulation”. (1999, p. 153), referindo-se ao momento em que se quer apagar a influência desse período de profundos debates e posicionamentos ideológicos na história estética cinematográfica.

Godard e outros críticos dos Cahiers deslocaram a influência católica e romântica de André Bazin3 3 André Bazin (1918-1958), renomado e influente crítico e teórico do cinema, foi editor-chefe dos Cahiers du Cinéma durante quase uma década, além de mentor da Nouvelle Vague francesa. para o debate político e linguístico em ebulição na França e para a valorização de alguns diretores do cinema popular hollywoodiano que traziam uma verve artística para o cinema. Os temas fundamentais sobre a grande arte, como inspiração, ideia, intuição poética e autoria, encontraram a especificidade do código cinematográfico. As questões levantadas pela obra de Barthes e sua concepção da sociabilidade da escrita e da transindividualidade de seus códigos, como também as levantadas por Foucault, Althusser e Lacan, sacudiram as certezas românticas. O periódico Cahiers du Cinéma tentou comunicar os temas da grande arte com um público, independentemente de sua qualificação educacional, de sua classe e de sua nacionalidade. Para MacCabe (1999, p. 37), Cahiers assumiu uma posição que articulou uma teoria do autor em relação à materialidade da forma e, crucialmente, com um ponto de vista da espectação.

É nessa ebulição entre as questões relacionadas ao primado do significante, ao funcionamento ideológico, à discursividade e à materialidade da forma em relação à teoria do autor e à grandeza de alguns diretores de cinema, considerados como autores, que se desenvolve a tríplice aliança teórica estruturalista. MacCabe avalia que essa preocupação com a materialidade da forma e com a análise mais acurada dos códigos cinematográficos, perspectiva discursiva inaugurada pela revista Cahiers du Cinéma, sofreu inevitáveis impasses epistemológicos e políticos, porque os editores da revista tentaram realizar esse desenvolvimento sem qualquer recurso à categoria de autor. As dificuldades transparecem nas páginas da Screen, que, como ressaltei acima, “tentou realizar esse projeto teórico de maneira mais consistente” (1999, grifo meu)4 4 No original: “The difficulties are clear in the pages of Screen, which most consistently attempted to carry out this theoretical project”. , na avaliação do ex-editor.

A análise fílmica nos Cahiers revelava a lógica dos códigos, não localizada em qualquer inteligibilidade original, mas imanente ao próprio texto. Nessa perspectiva, intimamente aliada ao projeto de Barthes do final dos anos 1960, a textualidade dos sentidos era enfatizada independente das condições de produção ou de recepção. Apesar dos avanços, essa perspectiva restringira-se a um nível epistemológico precário, já que se debatia entre, de um lado, congelar o texto fora de qualquer constrição, a não ser as constrições pragmáticas mais gerais (fornecidas pela Psicanálise); e de outro, desintegrá-lo em um relativismo e subjetivismo total, em que a leitura subjazia ao leitor.

No ensaio Class of ’68, MacCabe (1985) descreve o impacto que sofreu ao ler a introdução dos Ensaios Críticos5 5 Publicado em português pelas Edições 70, Lisboa, Portugal, em 1977. de Barthes (1977BARTHES, R. Ensaios críticos. Lisboa: Edições 70, 1977.), em que aparece a desconfiança com o sentido canônico das palavras, com a questão da autoria, com o atravessamento do social naquilo que hegemonicamente era visto como singularidade individualista: ênfase na descontinuidade, na heterogeneidade, na falsidade das identidades, tanto semântica quanto social. Isto se tornou intelectualmente uma “verdade premente” oferecida nos anos 1960, num momento de revolução e contracultura, e é nela que se ancora a perspectiva discursiva.

MacCabe faz uma crítica na articulação padrão dessas experiências pelo Existencialismo e pelo Marxismo, por seus tons pesados e normativos, ao tentarem produzir uma unidade de consciência, quando “o que se estava comemorando era a possibilidade de uma diversidade de experiências, que só poderia ser eclipsada ao custo da loucura ou do moralismo”6 6 No original: “it is ever more clear in retrospect, what was being celebrated was the possibility of a diversity of experience which could only be collapsed together at the cost of madness or morality.” (MacCABE, 1985MacCABE, C. Tracking the Signifier: Theoretical essays: Film, Linguistics, Literature. Minneapolis, USA: University of Minnesota Press, 1985. 152 p., p. 2). A importância dos anos 1960 estaria na investigação de métodos de articular as diferenças de sociedades de capitalismo tardio, por poderem ajudar a perceber a possibilidade de uma verdadeira pluralidade, além da previsível ideologia do pluralismo de interesses específicos, que as sociedades ocidentais oferecem como modelo, tanto para o desenvolvimento pessoal quanto político.

Segundo ele, a releitura de Barthes ainda hoje o impressiona pela forma como a linguagem traz à tona questões relacionadas à singularidade e à sociabilidade: se mesmo os nossos sentimentos mais íntimos só podem ser nomeados socialmente, isso indica que, fora de uma forma coletiva de linguagem, não teríamos nenhum critério pelo qual pudéssemos reconhecer uma mesma emoção como sendo a mesma. Portanto, não existem linguagens privadas. Isso se fortalece com as concepções lacanianas do Outro, com as concepções althusserianas do assujeitamento e da teoria das ideologias e com o desdobramento que Pêcheux faz disso pensando a discursividade, o interdiscurso e o assujeitamento nos processos de produção do sentido e na determinação das posições de sujeito.

A partir desse contexto, os que estavam interessados numa transposição das fronteiras entre o erudito e o popular através da análise de textos literários, cinematográficos e televisivos, renovaram a análise formal da linguagem com novas possibilidades abertas pelo Marxismo e pela Psicanálise. Stam simplifica e resume a perspectiva que eles adotaram:

Stephen Heath, Colin MacCabe e Jean-Louis Comolli enfatizaram o modo como o cinema posiciona os sujeitos de maneira ajustada ao sistema capitalista. Encerrados em uma estrutura de reconhecimento equivocado, os espectadores aceitam a identidade que lhes é destinada e são, assim, fixados em uma posição na qual um modo particular de percepção e consciência aparece como natural. Tanto o dispositivo cinematográfico quanto os procedimentos fílmicos específicos (a imagem em perspectiva, a montagem em ponto de vista) servem para ‘subjetivar’ o espectador. (STAM, 2003STAM, R. Introdução à teoria do cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003. 398 p., p. 158)

Obviamente Stam não faz a conexão entre a posição de sujeito desenvolvida nos trabalhos de Pêcheux e seu desdobramento na análise fílmica pelos representantes da Screen Theory, e dá a entender que isso é uma questão de aceitação do sujeito espectador. Para MacCabe, a articulação entre estudos da linguagem, Análise de Discurso, Marxismo e Psicanálise poderia produzir uma compreensão dos textos em relação a seu contexto e relacioná-los aos embates culturais e políticos mais amplos. Como chamei atenção na introdução deste trabalho, MacCabe, em uma crítica e autocrítica publicada em 1985, expressa que essa articulação teórica transdisciplinar foi um movimento de complexidade internacional, cujos efeitos, como se sentira no contexto do feminismo e do movimento ecológico, forneceria as forças políticas mais importantes do mundo desenvolvido, e cujo potencial ainda seria a única esperança para a revitalização e redefinição de um projeto socialista para a sociedade. Desse modo se espalhara a compreensão dos processos culturais como sistemas de significação e, por essa via, articula-se o Marxismo althusseriano nesse projeto, que ele chama de semiológico, mas que evidentemente o relacionamos à discursividade:

A utilização da Linguística como um modelo para o estudo destes sistemas levou a enormes ganhos nos termos da especificidade das análises, mas o mais importante foi a tentativa de vincular questões de significação às questões da subjetividade. Foi em torno da significação e da subjetividade que este novo trabalho se conectou ao Marxismo. Um problema constitutivo no Marxismo sempre foi o de explicar a maneira pela qual as relações capitalistas se reproduzem de forma não-coercitiva. Ao longo dos anos setenta, havia muitos que achavam que a chave para essa compreensão estava em uma análise da cultura. Para estes, não era suficiente lê-la a priori como um efeito da base econômica, mas compreendê-la em sua capacidade de reproduzir subjetividades, uma reprodução definitivamente determinada pelas relações econômicas, mas cujos mecanismos deveriam ser compreendidos em sua própria especificidade.7 7 No original: “The use of linguistics as a model to study these systems led to enormous gains at the level of the specificity of the analyses, but more important was the attempt to link questions of signification to questions of subjectivity. It was around signification and subjectivity that this new work connected to Marxism. Marxism's abiding problem has always been to explain the way in which capitalist relations reproduce themselves in non-coercive ways. Throughout the seventies there were many who felt that the key to such an understanding lay in an analysis of culture which would not simply read it off as an effect of the economic base but would understand its ability to reproduce subjectivities, a reproduction finally determined by the economic relations but the mechanisms of which had to be comprehended in their own right.” (MacCABE, 1985MacCABE, C. Tracking the Signifier: Theoretical essays: Film, Linguistics, Literature. Minneapolis, USA: University of Minnesota Press, 1985. 152 p., p. 6-7, tradução minha)

Nessa convergência entre Psicanálise lacaniana, Marxismo althusseriano, Análise de Discurso e Semiologia, ele, Stephen Heath e Kari Hanet, no verão de 1973, começaram a fazer parte do conselho editorial da revista Screen. Heath e MacCabe já dominavam questões entre Semiótica, Psicanálise e Desconstrução, ao traduzirem para o inglês os trabalhos de Julia Kristeva, Derrida, Barthes e outros do grupo Tel Quel8 8 Grupo de comunistas maoístas que organizava a revista literária Tel Quel, em torno de questões linguísticas e psicanalíticas, identificados como deconstrutivistas, e pós-estruturalistas, cujas figuras literárias mais influentes são Maurice Blanchot e Roland Barthes. Teriam influenciado e propagado o trabalho de Jacques Derrida, Michel Foucault, Julia Kristeva, Jean-François Lyotard, Gilles Deleuze, Luce Irigaray, Philipe Sollers e Jean Baudrillard, dentre outros. . E é nessa época que se estabelece a relação deles com o fundador da Análise de Discurso materialista, Michel Pêcheux, e cujos traços estavam obnubilados na França e nos outros lugares onde a vertente materialista da Análise de Discurso se expandiu.

MacCabe conheceu Pêcheux através de Althusser, quando foi aluno deste e de Derrida na École Normale Supérieure em Paris, entre 1972 e 1973. Interessado em desenvolver e aplicar as noções althusserianas no ensino de Inglês, nos Estudos Literários e na Linguística, MacCabe foi orientado pelo mestre a conhecer o trabalho que Pêcheux estava desenvolvendo. Tempos depois, em 1979, num ano sabático, MacCabe vai para a França trabalhar suas questões, relacionadas a literatura, linguagem e sociedade, com Pêcheux. É dessa forma que a revista Screen congrega os importantes debates e desenvolvimento de abordagens analíticas e conceituais que fundamentam a Análise de Discurso, mas, diferentemente do desenvolvimento de análises e conceituações em textos verbais que chegaram ao Brasil, seu foco estava nos textos audiovisuais e fílmicos, um rico legado que precisa ser mais bem conhecido, se quisermos aprofundar a qualidade de nossas análises com esse tipo de corpus9 9 Um grupo de pesquisadores ligados ao Laboratório de Análise e Criação Multimídia (FLET/UFAM) está traduzindo alguns dos mais importantes artigos publicados nos anos 70 na revista Screen. .

3 A POSIÇÃO DE SUJEITO EM FILMES

MacCabe cita o artigo Narrative Space10 10 Publicado na Screen, vol.17, no. 3, p. 73-74, 1976. , de Stephen Heath (1976HEATH, S. Narrative Space. Screen Magazine, v.17, n. 3, p. 73-74, 1976. Disponível em: http://screen.oxfordjournals.org (University of California, Los Angeles). Acesso em: 1 jun. 2010.
http://screen.oxfordjournals.org...
), para delimitar o uso da noção de discurso como organização de imagens, de personificações, de definição e de construção de pontos de vista. Tais operações discursivas fazem o filme funcionar, tanto quanto as condições ideológicas, políticas e econômicas do sistema representacional, que também é uma questão discursiva. Para ele,

‘discurso’ tenta enfatizar as regularidades sistemáticas em funcionamento dentro de corpora específicos, regularidades que encontram sua realidade independentemente de um real imaginário de um sujeito imaginário. [...] Os discursos tanto produzem quanto são produzidos por posições de sujeito (MacCABE, 1978MacCABE, C. The discursive and the ideological in film: Notes on the conditions of political intervention. Screen Magazine, v. 19, n. 4, p. 29-43, 1978. Disponível em: http://screen.oxfordjournals.org. University of California, Los Angeles. Acesso em: 13 maio 2010.
http://screen.oxfordjournals.org...
, p. 31)11 11 Minha tradução de: “'discourse' tries to emphasize the systematic regularities at work within specific corpuses, regularities which find their reality independently of an imaginary real of an imaginary subject. [...] discourses both produce, and are produced from, subject positions.” .

Defende, como Pêcheux, que uma teoria não-subjetiva da enunciação pode dar conta do espaço institucional de um discurso, de sua coerência imaginária e de sua abrangência real, como um feixe particular de articulações que produzem posições de sujeito específicas.

Em On Discourse (1979), MacCabe primeiro descreve minuciosamente o status do sujeito na obra de Benveniste, em seguida analisa a constituição do corpus na obra de Zellig Harris, comentando como este, por falta de uma teoria das ideologias, deixa implícitas as questões políticas e ignora a realidade das instituições sociais ao propor uma análise discursiva segundo o método distribucionalista. A partir disso, dominando uma leitura minuciosa de Semântica e Discurso, mostra como Pêcheux (2009PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio, 4. ed. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2009. 288 p.) traz à tona o funcionamento crucial dos efeitos subjetivos produzidos pelas orações relativas e consegue então analisar processos discursivos específicos, de forma que as distinções entre as relativas precisam ser dimensionadas não em termos de função gramatical, mas sim de práticas discursivas.

Pêcheux e seu grupo de trabalho defenderam que tais práticas discursivas são uma das materialidades das formações ideológicas, e que estas

comportam necessariamente, como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas interligadas que determinam o que pode e deve ser dito [...] a partir de uma posição dada numa conjuntura, isto é, numa certa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico, e inscrita numa relação de classes (PÊCHEUX; FUCHS, 1997PÊCHEUX, M.; FUCHS, C. A propósito da Análise Automática do Discurso: atualização e perspectivas (1975). In: GADET, F.; HAK, T. Por uma Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução de Bethania S. Mariani et al. 3. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997., p. 166).

O que os pesquisadores definiram como posição de sujeito é essa posição dada, ou seja, essa “certa relação de lugares” que as práticas sociais preveem, determinando a captura, a localização, a organização e o funcionamento dos indivíduos numa formação social, a partir da qual todos significamos. Essa conceituação sofre embates e se reformula entre os anos 1960 e 1980, mas é um dos avanços da Análise de Discurso, ao buscar se instituir como essa cultivada teoria não-subjetiva do sujeito e da linguagem, evitando pensar o sujeito como um dado, origem, dono e produtor de sentidos, como o fazem várias concepções e abordagens. Para chegar a essa formulação, Pêcheux e os demais (1997PÊCHEUX, M.; FUCHS, C. A propósito da Análise Automática do Discurso: atualização e perspectivas (1975). In: GADET, F.; HAK, T. Por uma Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução de Bethania S. Mariani et al. 3. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997.) recorrem ao conceito de ideologia em Althusser (1999ALTHUSSER, L. Sobre a reprodução. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.), caracterizada não só como aquilo que produz o assujeitamento nos indivíduos, mas também cuja existência é material, representando a relação imaginária entre tais indivíduos com suas condições reais de existência.

Por sermos seres de linguagem, trocamos imagens e símbolos. Isso nos aliena de uma interpretação direta e factual dos fenômenos, fatos e situações materiais de dependência, de exploração, de subserviência e de opressão na vida social (ALTHUSSER, 1999ALTHUSSER, L. Sobre a reprodução. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.). Ao dependermos da linguagem para viver nossa realidade, somos capturados em diferentes ideologias. Em cada modo de produção da vida material de uma formação social, as relações de classe se estabelecem no confronto de uma força com outras forças. Assim, para existirmos, trabalharmos, consumirmos, e participarmos da vida social, o fazemos pela linguagem, no contexto de aparelhos de Estado, que, através de modos de pensar, de dizer e de fazer, estabelecem, organizam, administram e controlam as possibilidades de classificações, de categorizações, de funções e de atividades nas relações sociais. Alienados de uma representação do Real em si, vivemos diferentes representações imaginárias da nossa realidade social. Essas formações ideológicas se forjam, portanto, como posições políticas e ideológicas que são organizadas e hierarquizadas, ou seja, que se relacionam em antagonismos, alianças ou dominações a partir das condições concretas de existência numa formação social. Desse modo, os autores explicam como um complexo sistema de representações e de troca se expande, imaginarizando e simbolizando linguageiramente, posições específicas de classe. Uma formação ideológica é o que se aglutina como um conjunto complexo de tais atitudes e representações, “que não são nem ‘individuais’ e nem ‘universais’, mas que se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em relação às outras” (HAROCHE; PÊCHEUX; HENRY, 2008HAROCHE, C.; PÊCHEUX, M.; HENRY, P. A semântica e o corte saussuriano: Língua, Linguagem, Discurso. Tradução de Roberto L. Baronas e Fábio C. Montanheiro. Linguasagem, São Carlos, n. 3, out./nov. 2008 [1971]. Disponível em: http://www.ufscar.br/linguasagem/edicao03/traducao_hph.php. Acesso em 21 fev. 2021.
http://www.ufscar.br/linguasagem/edicao0...
). É assim que o social depende do Imaginário e do Simbólico para produzir-se e reproduzir-se no Real, e é assim que o simbólico existe apenas no e pelo social.

Em síntese, formações ideológicas se materializam em diversas formações discursivas, que possibilitam o sentido, a coerência, e a razão de ser dessas formações imaginárias, que são as ideologias. Por conseguinte, o sujeito que fala é convocado para tomar posição em relação às representações das quais ele é o suporte. As posições de sujeito são esses lugares que ocupamos relativamente às formações discursivas. Assim, manifestando as formações ideológicas, as formações discursivas determinam o que pode e deve ser dito, escrito, visto ou mostrado num produto cultural ou num texto. Analisar uma discursividade é explicitar “o elo que liga esses processos às condições nas quais o discurso é produzido (às posições às quais deve ser referido)” (2008).

Na perspectiva do autor britânico, a distância analítica entre o Imaginário e o Real se processa tanto pela identificação das imbricações dos discursos com outras práticas ideológicas, quanto pela eficácia específica do discurso em si mesmo. Por isso é preciso romper a divisão idealista entre forma e conteúdo e imbricá-las analiticamente, de modo que a análise desloque a divisão entre forma e conteúdo para compreender a forma no conteúdo e o conteúdo na forma, por isso privilegiam produtos estéticos. A proposta dos então editores de Screen era fazer uma leitura materialista que especificasse as articulações do filme em determinado contexto, sem exaurir sua significância, evitando o que faz a leitura totalizante que formalistas tentam empreender e a leitura relativista e individual do “pesadelo voluntarista”, expressão que MacCabe emprega (1978, p. 36). O funcionamento do discurso envolve ao mesmo tempo articulação e posição, e a articulação de uma posição. Para MacCabe, a articulação e a interpelação ideológica no cinema é magistralmente pensada por Heath no artigo acima referido, e num outro, o texto Notes on Suture12 12 Texto que apareceu no volume 18 de Screen, no. 4, inverno de 1977, p. 48-76. (HEATH, 1977HEATH, S. Sobre la sutura. In: Youkali, revista crítica de las artes y el pensamiento, Santiago (Chile), n. 6., p. 207-225, 1977. Disponível em: www.youkali.net. Acesso em: mar. 2011.
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), em que seu colega faz a readequação para análise fílmica do conceito de “sutura” dos franceses Jacques-Alain Miller e Jean Pierre Oudart. Há regras composicionais no cinema clássico, que, articulando narrativa e plano, produzem um coerente campo de visão para o espectador, o que faz do filme uma série de relações que, em seu movimento, pressupõem, jogam com e capturam o espectador como sujeito. Para Heath (1977), a realização do cinema como discurso está na produção a cada momento, através do filme, de uma interpelação do sujeito, da especificação do jogo da incompletude-completude.

Tendo em vista esses avanços, podemos entender, sem exaurir sua materialização, como a posição de sujeito em filmes está articulada na narrativa, na formulação de personagens, no arco dramático que vivenciam, na escolha de conflitos, de obstáculos e de sua resolução ou não resolução; nos enquadramentos, angulações, movimentos, planos e posições de câmera, na predominância de e na ênfase em determinadas cores, texturas, composições e relações entre luz e sombra na fotografia, na insistência de determinados temas musicais e de ruídos, na convocação de certas justaposições e ordenações da montagem que articulam e condensam o narrativo.

MacCabe argumenta que a Psicanálise lacaniana é enquadrada na Análise de Discurso pela compreensão que ela dá sobre como o sujeito se constitui, para além da divisão benvenistiana do sujeito da enunciação e do sujeito do enunciado, através do engate na substitutibilidade dos pronomes. Enfim, o autor britânico pontua que é a partir dos trabalhos de Lacan que Pêcheux deslocaria a discussão metafísica da essência do homem, para fazer do sujeito uma posição entre significantes, sintetizando a conhecida formulação lacaniana de que um significante representaria o sujeito para outro significante:

Uma característica do humano (a saber, o inconsciente) é produto do princípio determinante da língua. A resposta a isso é que este reconhecimento inquestionável não é o reconhecimento de uma essência, mas sim o reconhecimento da possibilidade de um outro significante. Como tal, não é uma questão de definir o humano com um inconsciente e, em seguida, discutir a linguagem, mas sim uma questão de definir a língua de tal modo que há inconsciência para aquele ou aquela que deseja falar. (MacCABE, 1978MacCABE, C. The discursive and the ideological in film: Notes on the conditions of political intervention. Screen Magazine, v. 19, n. 4, p. 29-43, 1978. Disponível em: http://screen.oxfordjournals.org. University of California, Los Angeles. Acesso em: 13 maio 2010.
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, p. 101)13 13 Minha tradução de: “A feature of man (viz. the unconscious) is made the determining principle of language. The reply to this is that the recognition in question is not the recognition of an essence but rather the recognition of the possibility of another signifier. As such it is not a question of defining man with an unconscious and then discussing language but rather a question of defining language in such a way that there is unconsciousness for he or she who wishes to speak.”

Para ser mais consequente com a perspectiva discursiva, reformularíamos dizendo que há inconsciência para quem surge como sujeito entre significantes e significados, já que o sujeito é produto e não produtor ou prévio desejante. O trabalho de MacCabe (1985, 1979), teve uma importante e não reconhecida colaboração para uma retificação de Pêcheux. Este irá retomar sua interpretação lacaniana de sujeito, e passará a defender que a identificação do sujeito numa formação discursiva é inevitavelmente equívoca, sujeita a erros, nunca é bem-sucedida, é sempre performativamente infeliz, pois um ritual sempre falha, já que, por ser produto e não produtor, o ego-sujeito-pleno nunca está pleno e inteiro, fora do inconsciente. Há pulsões, há desejo, há resistências inconscientes, há recalques. Ideologia e inconsciente se agarram.

MacCabe foi o responsável pela publicação em inglês, em 1980, da principal obra da Análise de Discurso materialista, Les Vérités de la Palice (Semântica e Discurso). É justamente nessa edição inglesa que é publicada, pela primeira vez, a referida impactante retificação de Pêcheux, o Anexo III, Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. Mas, quatro anos antes disso, MacCabe havia feito a crítica ao livro de Pêcheux registrada em On Discourse (1979), num seminário sobre relações sociais e discurso no Birkbeck College, em Londres, em 1976. MacCabe, ao fazer essa resenha crítica ao Les Vérités de la Palice, agradece a Pêcheux pela conversa que tiveram quando aquele estava escrevendo uma versão final do artigo. Apesar de não ter sido reconhecida ou sequer creditada (ver Semântica e Discurso, 2009, p. 270, nota de rodapé 2), como foi o texto de Houdebine, e de outras críticas recebidas, tal conversa também contribuiu para Pêcheux formular sua retificação com o Anexo III para a tradução que MacCabe editaria. A que se deveria esse apagamento da crítica de MacCabe nessa retificação de Pêcheux? Se os comentários de MacCabe não eram infundados, por que esse silenciamento ocorreu? Isso se deveria à rixa de franceses parisienses em relação às questões mal resolvidas com os vizinhos e sempre rivais ingleses, reforçadas pelas disputas comuns e infantis entre acadêmicos na maioria das universidades e institutos de pesquisa? MacCabe não explicita o que ocorreu, mas, a seguir, esclareço melhor como se processou esse debate teórico.

4 O SUJEITO UNIVERSAL EM QUESTÃO: A NECESSIDADE DE ARTICULAR TEORICAMENTE LÍNGUA, DESEJO E CORPO NAS IDEIAS DE ALTHUSSER E DE PÊCHEUX

Pêcheux formulou o conceito de interdiscurso identificando-o com o Sujeito Universal (com "S" maiúsculo), que, por sua vez, Althusser (1999ALTHUSSER, L. Sobre a reprodução. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.) readaptara a partir do Outro de Lacan (cf. 1998LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 807-842., 2016). O interdiscurso (PÊCHEUX, 2009PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio, 4. ed. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2009. 288 p.) é o lugar já-dado de posições sempre disponíveis, os pré-construídos, dentro de qualquer formação discursiva específica, que fornece a base material para a interpelação. Para MacCabe (1979, 2020), ao assumir essa equivalência entre Sujeito Universal e o Outro, identificando-o materialmente com o interdiscurso, a abordagem de Pêcheux apresenta uma incongruência. Este é um ponto importante que marca a crítica que MacCabe faz ao Sujeito em Althusser e Pêcheux. A descrição de Pêcheux dá conta da divisão do sujeito na linguagem, relacionando-a com os problemas da análise ideológica e da luta de classes, mas teria pouco a ver com o conceito de Lacan sobre o sujeito, porque envolve a construção de um ego completamente dominado por um superego. Althusser e Pêcheux resvalaram no equívoco de relacionar o Outro ao Sujeito Universal, sem a dimensão do desejo.

Foi pelo conceito lacaniano de Outro que se passou a reconhecer os pais não mais apenas no nível de demanda, mas como região de língua e de desejo, que ultrapassa qualquer estabilização particular de demanda. O reconhecimento dessa região de língua e de desejo se estabeleceria na conversa dos pais um com o outro sobre a criança. Esta experiência de articulação produziria o sujeito dividido da Psicanálise: por um lado, o falante é enredado no jogo de significantes, nas oposições diferenciais que produzem significado e nas alternâncias pronominais, independentemente da atividade do indivíduo; e, por outro lado, a criança assumiria seu lugar como o “eu” da experiência e da linguagem, o conhecido sujeito unificado da Filosofia Clássica e da Linguística moderna. MacCabe destaca que há congruência entre o campo e as modalidades desta divisão com a divisão que situa a criança não só no movimento ao longo do jogo do desejo dos pais, numa multiplicidade de posições, mas também em seu lugar apropriado, em sua sexualidade significada. Essa seria mais uma forma de se fundamentar as diferentes posições de sujeito. Para MacCabe, o problema é que Pêcheux não compreendeu a força do inconsciente freudiano, e isso afeta a descrição das funções discursivas do interdiscurso e do intradiscurso:

Se considerarmos o efeito de sustentação, em que as relações parafrásticas produzem tanto o sujeito quanto o sentido, podemos notar que, mesmo que o sujeito seja produzido como efeito e não mais invocado como causa, é um sujeito em pleno controle da linguagem. Mas a situação de paráfrase em que Pêcheux localiza ambos, sujeito e sentido, atesta em si mesma o funcionamento de um desejo que está ausente das formulações de Pêcheux. (MacCABE, 1979MacCABE, C. On Discourse. In: Economy and Society, n. 3, v. 8, p. 279-307, Aug. 1979., p. 212) 14 14 Minha tradução de: “If we consider the support effect, where paraphrastic relations produce both subject and sense, we can note that even if the subject is produced as effect rather than invoked as cause, it is a subject in full control of language. But the situation of paraphrase in which Pêcheux locates both subject and sense bears witness in itself to the functioning of a desire which is absent from Pêcheux’s formulations.”

Entendemos, assim, a importância de recuperar no dispositivo teórico e analítico da Análise de Discurso a dimensão do desejo e de suas implicações políticas. Para MacCabe, o pedido de que uma observação seja parafraseada é sempre mais do que apenas um pedido de esclarecimento que permite a produção de sentido intersubjetivo: esse pedido implicaria o desejo de conhecimento do outro, o que rompe com o sentido, chamando a atenção para o excesso de significantes. O ato falho testemunharia a natureza dividida do sujeito, até mesmo na esfera do efeito de sustentação. A constituição do sujeito de Pêcheux em relação ao sentido inviabiliza que a verdade da língua possa explodir na cena da subjetividade. Consequentemente, ele desemboca numa descrição da constituição do inconsciente, que, afetado por Althusser, concebe-o com um poder imaginário total de um superego onipotente. Apesar desse equívoco, as concepções de Althusser e Pêcheux permitem-lhes avançar nas consequências políticas do conceito de Lacan sobre o significante e sobre o sujeito dividido que assim se constitui.

Reforço que essa crítica de MacCabe foi escrita quatro anos antes de Pêcheux retificar sua abordagem a respeito do ego-sujeito-pleno em que nada falharia. Tal observação e análise de MacCabe nos ajuda a melhor entender o hermético Anexo III (PÊCHEUX, 2009PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio, 4. ed. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2009. 288 p.) e a melhor questionar as implicações políticas de nos abrirmos em nossas análises para o regramento e o desregramento do desejo. Simplificadamente, acredito que explorar a política do desejo e em como se estabelecem tais regras e quebra de regras, que se instituem em cada formação social e em cada momento histórico, do que devemos desejar e não desejar, envolve pensarmos que a constituição das posições de sujeito podem ser referidas não apenas diretamente a posições de classe, mas a essa incorporação difusa que o inconsciente produz de fragmentos de cadeias significantes, para inscrever o sujeito em determinadas demandas e posições desejantes, de forma que se processem como interpelação acachapante no desejo do Outro, nas pulsões de vida e de morte, e na libido, cujas forças parecem ser mais determinantes que as filiações, identificações e inscrições ideológicas em representações de classe15 15 Comprovo isso com a análise de posicionamentos de LGBTs evangélicos no documentário “Gays, graças a Deus” (MARTINS DE SOUZA, 2009), a ser publicada em um próximo artigo (MARTINS DE SOUZA, 2021). . Suspeito que são essas fragmentações pulsionais de representações e cadeias significantes que, por fim, produzem a base do Imaginário do sujeito e de sua interpelação a determinadas forças ideológicas e não outras. Sobre essa base, viriam em sua história, novas interpelações e identificações, multiplicando tais fragmentos e se produzindo como coerência e razão de ser em uma formação ideológica. De todo jeito, inconsciente e ideologia seguem atados e se estruturando sobre determinações recíprocas, já que também o desejo é afetado pela historicidade, pois o desejo não pode ser qualquer um em determinadas condições de produção de uma formação social.

Enfim, MacCabe (1985, 1979) avalia as contribuições de Pêcheux em seus aspectos positivos e, consequentemente, negativos, e cita o ataque virulento de Houdebine na revista Tel Quel tanto ao instigante livro de Pêcheux, quanto ao problema da leitura e rearticulação política que Althusser faz de Lacan. Nessa bem elaborada perspectiva de MacCabe, Houdebine teria atropelado o ponto que merece crítica e reavaliação, que é, especificamente, a identificação do Sujeito Universal com o Outro. Essa identificação reprime a noção de Outro lacaniano como lugar heterogêneo de linguagem e de desejo.

Em sua análise, MacCabe acredita que Lacan insiste sobre a impossibilidade de uma consciência transparente para si própria num sujeito, mas Althusser produziu um sujeito onipotente, que é mestre da língua e do desejo. E sendo assim, a luta ideológica fica sem perspectiva teórica face às ideologias dominantes, pois não há nada que escape ou que sobre da constituição original do sujeito pelo Sujeito. Para MacCabe, tal pessimismo político coincidiria com o conceito funcionalista de Aparelho Ideológico de Estado. Como Althusser não foi coerente com o conceito lacaniano de Outro na análise das formações sociais, não conseguiu compreender as ideologias subversivas.

Uma leitura marxista da divisão do sujeito no espaço do Outro teorizaria a constituição do indivíduo no lugar produzido para ele ou para ela pelo complexo de formações discursivas e insistiria que esses lugares seriam constantemente ameaçados e indeterminados pela instabilidade constitutiva no domínio da linguagem e do desejo. Tal leitura do Outro lacaniano ofereceria imediatamente, em suas análises detalhadas das ideologias dominantes, uma base material para a construção de ideologias subversivas (McCABE, 1979, p.107-108)16 16 No original: “A Marxist reading of the division of the subject in the place of the Other would theorize the individual's assumption of the place produced for him or her by the complex of discursive formations and would insist that these places would be constantly threatened and undetermined by their constitutive instability in the field of language and desire. Such a reading of Lacan's Other would immediately, and in its very account of dominant ideologies, offer a material basis for the construction of subversive ideologies.” .

O aspecto positivo da transposição de Althusser é que, por sua reformulação marxista de Lacan, a formação das ideologias e discursos subversivos não fica à mercê do jogo casual do significante. Em contrapartida, a perspectiva althusseriana do drama do sujeito na interpelação policial da identidade pode ser compreendida como um esforço para pôr em causa a noção lacaniana do significante, já que Lacan deduz o sujeito dividido a partir do simples fato de linguagem em si mesmo. Os locais atuais de uso da língua (família, escola, local de trabalho) se tornam apenas variações pouco importantes sem efetividade inscrita na teoria. Os termos Pai e Mãe, em relação às identidades biológicas e sociais, provam isso. O autor britânico defende que, desviando a atenção para o lugar da enunciação, Althusser evidencia que não é simplesmente a formação do inconsciente que deve ser teorizada, mas a formação de uma inconscienciosidade específica, que não pode ser dividida em componentes individuais e sociais, mas que dramatiza, em cada caso individual aquilo que é generalizadamente inconsciente.

No citado Anexo III de Semântica e Discurso, como frisei acima, Pêcheux reconhece seu equívoco em deixar passar a presença não-reconhecida do adversário no interior da cidadela teórica construída sobre as bases da referida tríplice aliança estruturalista, advinda da congregação de Marx, Freud e Saussure. A presença dessa adversidade no pensamento precisa de retificações coordenadas sem fim. Como Althusser o fez no decorrer do desenvolvimento de seu legado teórico, Pêcheux também produz sua retificação, restringindo-se nesse anexo à disjunção entre sujeito e ego na problemática da interpelação ideológica (PÊCHEUX, 2009PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio, 4. ed. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2009. 288 p., p. 270). As evidências e as injunções dominantes cegam e ensurdecem.

MacCabe defendia que é possível sair do pessimismo político que o jogo casual do significante cava, pela via de uma adequada abordagem do Outro da Psicanálise lacaniana, e de como a língua/linguagem e o desejo são instabilidades que ameaçam o rompimento dos lugares predeterminados para o indivíduo ser constituído como sujeito. Por isso, precisamos fazer com consistência esse investimento teórico na compreensão dessa relação do Outro, e do Sujeito em Lacan, Althusser e Pêcheux, e do desejo, de modo a aprofundar seus desdobramentos nas análises, pensando em como funcionam, nos textos e nas posições de sujeito, tais regras e quebra de regras do funcionamento do desejo, de forma que o político seja aí dimensionado e explicitado.

Em relação à noção de interdiscurso, através do posicionamento e das representações do corpo, nas práticas sociais, como objeto de desejo, lemos outro aspecto das sugestões de MacCabe ao trabalho de Pêcheux:

O problema com o interdiscurso em Pêcheux é que, como a interpelação policial de Althusser, ele reintroduz o sujeito filosófico, coerente e homogêneo, em um esquema lacaniano, que tem como objetivo explícito a subversão desse mesmo sujeito. O custo da reintrodução é clara: o desaparecimento do corpo e do desejo desse esquema. A incapacidade de compreender a heterogeneidade radical do Outro lacaniano significa que não há nada mais nesse espaço para funcionar como objeto de desejo. Para um primeiro passo de uma retificação da posição de Pêcheux, seria necessário uma ênfase maior em outras práticas imbricadas no interdiscurso e, em particular, no posicionamento e na representação do corpo. É através de uma ênfase no corpo e na impossibilidade de seu esgotamento em suas representações que se pode compreender a base material com que o inconsciente de uma formação discursiva perturba o funcionamento discreto das ideologias dominantes, e que esta perturbação não é simplesmente o movimento casual do significante, mas o posicionamento específico do corpo nas práticas econômicas, políticas e ideológicas (1979, p.108-109)17 17 No original: “The problem with Pecheux’s interdiscourse is that, like Althusser’s policeman, it re-introduces the philosophical subject, coherent and homogenous, into a Lacanian schema which has as its explicit aim the subversion of that subject. The cost of the re-introduction is clear: the disappearance of the body and desire from the schema. The failure to grasp the radical heterogeneity of the Lacanian Other means that there is nothing left over in that place to function as the object of desire. A first step in the rectification of Pecheux’s position would necessitate a greater emphasis on the other practices imbricated with the interdiscourse and, in particular, the positioning and representation of the body. It is through an emphasis on the body and the impossibility of its exhaustion in its representations that one can understand the material basis with which the unconscious of a discursive formation disrupts the smooth functioning of the dominant ideologies and that this disruption is not simply the chance movement of the signifier, but the specific positioning the body in the economic, political and ideological practices.” .

Essa tese de MacCabe nos instiga a enumerar algumas questões para nossa análise: o que subverte a coerência e a homogeneidade do sujeito? Como funcionam, na materialidade em análise, o corpo, o desejo, a demanda, a formulação imaginária do desejo em objetos? Que outras práticas estariam imbricadas no interdiscurso? E no posicionamento e na representação do corpo? Como enfatizar mais o corpo nas práticas de análise? Como enfatizar a impossibilidade de se esgotar as representações não só do corpo, mas das práticas de vida, de existência, de textos e de discursos? Como funciona a inconsciência de uma formação discursiva? Como se perturba o funcionamento discreto ou explícito das ideologias dominantes? O que produz essa perturbação desse funcionamento? Como os significantes se movimentam? Como o corpo está posicionado na especificidade dessa prática em análise? É uma prática econômica, política ou ideológica (se pudermos desvincular didaticamente as práticas)?

Dessa forma, é inicialmente através dos questionamentos de MacCabe que esse importante avanço sobre corpo e resistência em que estamos trabalhando no Brasil pode ser referido à obra de Pêcheux. Além dessa contribuição, foi nos trabalhos dele e de Heath que a teoria do discurso passou a ser considerada em análises fílmicas. Quase dois anos depois da publicação de On Discourse, já em 1978, no volume 4 do número 19 da revista MacCabe publica seu artigo The discursive and the ideological in film: Notes on the conditions of political intervention18 18 “O Discursivo e o Ideológico nos Filmes: notas sobre as condições de uma intervenção política”, ainda não traduzido para o português. . Neste artigo, ele explicita que foi a obra de Michel Pêcheux que proporcionou a tentativa mais profunda para produzir tanto uma teoria quanto uma análise de discursividade; e sintetiza o progresso da abordagem de Pêcheux, que, após falhar em fazer uma distinção adequada entre a unidade imaginária do espaço institucional do discurso e a unidade real, produzida por formações discursivas, substitui a noção de “discurso” por “formação discursiva”. Passa, então, a enfatizar que não pode haver homologia direta e simples entre instituição e discurso, de forma que não pode haver nenhum método de contagem do número de discursos ou ideologias dentro de uma dada formação social (1978, p.12-13). Por isso, a análise sempre dependerá da luta política e ideológica imbricada com as diferentes formações discursivas em cada condição de produção. MacCabe destaca que "discurso" foi o termo escolhido para tentar compreender a linguagem em relação à produção de determinadas posições de sujeito. Tal perspectiva não se restringe ao Marxismo, mas se abre para uma ampla variedade de posições sobre a relação entre formação social e linguagem (MaCABE, 1978, p. 30-31, nota 1).

Enfim, espero ter resgatado com esse texto, para o Brasil, e para a história das ideias discursivas, a importante relação teórica entre o grupo de Pêcheux e o grupo de MacCabe. Em outros textos a serem publicados, quero explorar mais atentamente o grande impacto das ideias discursivas nas análises fílmicas desenvolvidas na Screen e em como os conceitos e métodos desenvolvidos pelo grupo francês ganhou profundidade analítica em corpora audiovisual e cinematográfico nos anos 1970 em países de língua inglesa, especialmente nos textos de Stephen Heath. Entre todos os articulistas, segundo MacCabe, foi Heath quem melhor desenvolveu esta perspectiva de análise na revista nos anos 1970. Portanto, este é um resgate necessário para analistas de discurso que pretendam trabalhar com esses corpora na América Latina.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Colin MacCabe algumas informações, sugestões, orientações e esclarecimentos fornecidos para a escrita deste trabalho.

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  • SCREEN MAGAZINE. Londres, Grã-Bretanha: Oxford Academic, 1958- . ISSN 0036-9543. Trimestral. Disponível em: https://academic.oup.com/screen/pages/About
    » https://academic.oup.com/screen/pages/About
  • XAVIER, I (Org.). A experiência do cinema. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008. 483 p.
  • *
    Este texto foi desenvolvido graças à bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM), durante estágio doutoral na University of California, Los Angeles (UCLA), sob orientação do Prof. Dr. Randal Johnson.
  • 1
    Os principais textos de Laura Mulvey, publicados na Screen, que deram base para as teorias e análises fílmicas feministas, estão publicados em português nas obras de Xavier (2008) e Ramos (2005).
  • 2
    No original: “two sides of the same coin, a coin which wishes to withdraw itself from circulation”.
  • 3
    André Bazin (1918-1958), renomado e influente crítico e teórico do cinema, foi editor-chefe dos Cahiers du Cinéma durante quase uma década, além de mentor da Nouvelle Vague francesa.
  • 4
    No original: “The difficulties are clear in the pages of Screen, which most consistently attempted to carry out this theoretical project”.
  • 5
    Publicado em português pelas Edições 70, Lisboa, Portugal, em 1977.
  • 6
    No original: “it is ever more clear in retrospect, what was being celebrated was the possibility of a diversity of experience which could only be collapsed together at the cost of madness or morality.”
  • 7
    No original: “The use of linguistics as a model to study these systems led to enormous gains at the level of the specificity of the analyses, but more important was the attempt to link questions of signification to questions of subjectivity. It was around signification and subjectivity that this new work connected to Marxism. Marxism's abiding problem has always been to explain the way in which capitalist relations reproduce themselves in non-coercive ways. Throughout the seventies there were many who felt that the key to such an understanding lay in an analysis of culture which would not simply read it off as an effect of the economic base but would understand its ability to reproduce subjectivities, a reproduction finally determined by the economic relations but the mechanisms of which had to be comprehended in their own right.”
  • 8
    Grupo de comunistas maoístas que organizava a revista literária Tel Quel, em torno de questões linguísticas e psicanalíticas, identificados como deconstrutivistas, e pós-estruturalistas, cujas figuras literárias mais influentes são Maurice Blanchot e Roland Barthes. Teriam influenciado e propagado o trabalho de Jacques Derrida, Michel Foucault, Julia Kristeva, Jean-François Lyotard, Gilles Deleuze, Luce Irigaray, Philipe Sollers e Jean Baudrillard, dentre outros.
  • 9
    Um grupo de pesquisadores ligados ao Laboratório de Análise e Criação Multimídia (FLET/UFAM) está traduzindo alguns dos mais importantes artigos publicados nos anos 70 na revista Screen.
  • 10
    Publicado na Screen, vol.17, no. 3, p. 73-74, 1976.
  • 11
    Minha tradução de: “'discourse' tries to emphasize the systematic regularities at work within specific corpuses, regularities which find their reality independently of an imaginary real of an imaginary subject. [...] discourses both produce, and are produced from, subject positions.”
  • 12
    Texto que apareceu no volume 18 de Screen, no. 4, inverno de 1977, p. 48-76.
  • 13
    Minha tradução de: “A feature of man (viz. the unconscious) is made the determining principle of language. The reply to this is that the recognition in question is not the recognition of an essence but rather the recognition of the possibility of another signifier. As such it is not a question of defining man with an unconscious and then discussing language but rather a question of defining language in such a way that there is unconsciousness for he or she who wishes to speak.”
  • 14
    Minha tradução de: “If we consider the support effect, where paraphrastic relations produce both subject and sense, we can note that even if the subject is produced as effect rather than invoked as cause, it is a subject in full control of language. But the situation of paraphrase in which Pêcheux locates both subject and sense bears witness in itself to the functioning of a desire which is absent from Pêcheux’s formulations.”
  • 15
    Comprovo isso com a análise de posicionamentos de LGBTs evangélicos no documentário “Gays, graças a Deus” (MARTINS DE SOUZA, 2009), a ser publicada em um próximo artigo (MARTINS DE SOUZA, 2021).
  • 16
    No original: “A Marxist reading of the division of the subject in the place of the Other would theorize the individual's assumption of the place produced for him or her by the complex of discursive formations and would insist that these places would be constantly threatened and undetermined by their constitutive instability in the field of language and desire. Such a reading of Lacan's Other would immediately, and in its very account of dominant ideologies, offer a material basis for the construction of subversive ideologies.”
  • 17
    No original: “The problem with Pecheux’s interdiscourse is that, like Althusser’s policeman, it re-introduces the philosophical subject, coherent and homogenous, into a Lacanian schema which has as its explicit aim the subversion of that subject. The cost of the re-introduction is clear: the disappearance of the body and desire from the schema. The failure to grasp the radical heterogeneity of the Lacanian Other means that there is nothing left over in that place to function as the object of desire. A first step in the rectification of Pecheux’s position would necessitate a greater emphasis on the other practices imbricated with the interdiscourse and, in particular, the positioning and representation of the body. It is through an emphasis on the body and the impossibility of its exhaustion in its representations that one can understand the material basis with which the unconscious of a discursive formation disrupts the smooth functioning of the dominant ideologies and that this disruption is not simply the chance movement of the signifier, but the specific positioning the body in the economic, political and ideological practices.”
  • 18
    “O Discursivo e o Ideológico nos Filmes: notas sobre as condições de uma intervenção política”, ainda não traduzido para o português.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2020
  • Aceito
    20 Abr 2021
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