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PLURILINGUISMO E MULTIMODALIDADE NO ENSINO DE POESIA VISUAL: ANÁLISE DE UMA VIDEOAULA EM LIBRAS

Multilingualism and Multimodality in Teaching Visual Poetry: Analyzing a Video Lesson in Brazilian Sign Language

Plurilingüismo y multimodalidad en la enseñanza de poesía visual: análisis de una videoclase en Libras

Resumo

Este artigo tem por objetivo estudar o plurilinguismo e a multimodalidade nas práticas de ensino destinadas a um público de alunos surdos. Do ponto de vista teórico, toma três eixos como centrais para atingir os objetivos, sendo: a) a perspectiva do Interacionismo Sociodiscursivo - ISD (BRONCKART, 1999/2009) em uma abordagem plurilíngue; b) os gêneros textuais e o processo de ensino e aprendizagem; c) a análise dos objetos ensinados e as práticas de ensino. O corpus é constituído pela transcrição-sinopse (SCHNEUWLY; DOLZ, 2009) de uma tarefa de ensino sobre o poema visual, destinado a um público de alunos surdos, por meio de uma videoaula disponível no YouTube. Os resultados permitem afirmar a potencialidade das interações sociodiscursivas combinando línguas (Libras e Português) para o ensino de um objeto como a poesia visual.

Palavras-chave:
Plurilinguismo; Multimodalidade; Poesia visual

Abstract

This article aims to study multilingualism and multimodality in teaching practices for a public of deaf students. From a theoretical point of view, we consider three points as central to achieve our goals, namely: a) the perspective of Socio-discursive Interactionism - SDI (BRONCKART, 1999/2009) in a multilingual approach; b) textual genres and the teaching and learning process; c) the analysis of taught objects and teaching practices. Our corpus is the synopsis-transcription (SCHNEUWLY and DOLZ, 2009) of a teaching task about visual poem for an audience of deaf students, through a video lesson - available on YouTube. The results allow us to affirm the potential of socio-discursive interactions when combining languages (Brazilian Sign Language and Brazilian Portuguese) to teach an object such as the visual poetry.

Keywords:
Multilingualism; Multimodality; Visual Poetry

Resumen

Ese artículo tiene el objetivo de estudiar plurilingüismo y multimodalidad en prácticas de enseñanza destinadas a un público de alumnos sordos. Del punto de vista teórico, utiliza tres ejes centrales para alcanzar los objetivos: a) la perspectiva del Interaccionismo Socio-discursivo - ISD (BRONCKART, 1999/2009) en un abordaje plurilingüe; b) géneros textuales y el proceso de enseñanza y aprendizaje; c) el análisis de objetos enseñados y prácticas de enseñanza. El corpus es constituido por la transcripción-sinopsis (SCHNEUWLY; DOLZ, 2009) de una tarea de enseñanza sobre poema visual, destinado a un público de alumnos sordos, por medio de una video clase disponible en YouTube. Los resultados permiten afirmar la potencialidad de las interacciones socio-discursivas combinando lenguas (Libras y portugués) para enseñanza de un objeto como la poesía visual.

Palabras clave:
Plurilingüismo; Multimodalidad; Poesía visual

1 INTRODUÇÃO

Centrado no ensino de gêneros textuais e na validação didática de dispositivos de ensino, este artigo tem por objetivo estudar o plurilinguismo e a multimodalidade nas práticas de ensino destinadas a um público de alunos surdos. Na perspectiva interacionista que orienta este estudo, três aspectos nos parecem relevantes: o estudo das interações entre a língua libras e a língua portuguesa orientadas para desenvolver a leitura e a interpretação de textos (DOLZ, 2018DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Pour un enseignement de l’oral. Paris: ESF. 1998/2018.); a perspectiva da teoria do ensino de gêneros orais e escritos na escola (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução Roxane Rojo e Glaís Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.); e o estudo das capacidades multimodais e multissemióticas desenvolvidas no curso da prática do ensino (SCHNEUWLY; DOLZ, 2008; DOLZ; PASQUIER; BRONCKART, 1993; CRISTOVAO, 2013CRISTOVÃO, V. L. L. Para uma expansão do conceito de capacidades de linguagem. In: BUENO, M. A.; LOPES, P. T.; CRISTOVÃO, V. L. L. (Org.). Gêneros textuais e formação inicial: uma homenagem à Malu Matencio. Campinas: Mercado de Letras, 2013. p. 357-383.).

Três questões orientam nosso trabalho: 1) Que dimensões e dispositivos são mobilizados para o ensino da leitura do gênero poema concreto? 2) Quais são os gestos didáticos e interações que caracterizam a reconstrução do sentido do poema? 3) Como a alternância de línguas contribui para desenvolver as capacidades de compreensão do poema?

Nosso corpus é constituído pela transcrição-sinopse (SCHNEUWLY; DOLZ, 2009SCHNEUWLY, B; DOLZ, J. Des objets enseignés en classe de français. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009.) de uma tarefa de ensino sobre o poema visual, destinado a um público de alunos surdos, por meio de uma videoaula, disponível no youtube. A filmagem das atividades de ensino, a descrição do modo de difusão, a transcrição multimodal e a análise dessas atividades permitiram um estudo do fenômeno de superposição das duas línguas com funções precisas e complementares. O gênero poema visual será tratado didaticamente e os recursos multimodais e multissemióticos serão analisados para estudar como facilitam a compreensão e a interpretação do poema e, indiretamente, o desenvolvimento de capacidades de construção da significação.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Do ponto de vista teórico, para este artigo tomamos três eixos como centrais para atingir os objetivos, sendo: a) a perspectiva do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) em uma abordagem plurilíngue; b) os gêneros textuais e o processo de ensino e aprendizagem; c) a análise dos objetos ensinados e as práticas de ensino.

Agimos e interagimos por meio da linguagem, e essas ações se concretizam por meio de textos diversos, nas diferentes práticas de linguagem envolvendo a oralidade e/ou a escrita. Nessa perspectiva, para o ISD, as atividades de linguagem desempenham um papel fundamental para o desenvolvimento humano (BRONCKART, 1999/2009). A base teórica do interacionismo permite entender os usos da linguagem (e das diferentes línguas) como atividade de linguagem, conservando a totalidade na análise de corpus empíricos, combinando as diferentes línguas utilizadas, situadas num entorno cultural e social determinado.

Produto da interação social, a linguagem, organizada em textos, se diversifica em gêneros de textos (BRONCKART, 1999/2009), os quais “implicam tanto em dimensões socais como cognitivas e linguísticas numa dada situação particular de comunicação” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução Roxane Rojo e Glaís Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004., p. 62). No presente estudo, buscamos analisar concretamente o bilinguismo Libras-Português e a formação bilíngue, em uma perspectiva plurilíngue (DOLZ; IDIAZABAL, 2013). Dessa forma, nosso aporte teórico busca focalizar não apenas as interações sociais que são produzidas na ação de linguagem, mas também destacar as interações entre as línguas (Língua de Sinais e Língua Portuguesa) e suas significações, na justaposição dos usos orais e escritos no ensino particular do gênero poema visual em uma videoaula de Língua Portuguesa em Língua Libras.

No ensino de línguas, frente a um objeto de ensino particular, é necessário criar situações que propiciem aos alunos desenvolverem as capacidades de linguagem, ou seja, a capacidade de agir com a linguagem. Para isso, ao levar um gênero de texto como objeto de ensino, é necessário levantar suas principais características, o que chamamos de dimensões ensináveis do gênero, tais como a situação de produção, os planos textuais e as unidades linguísticas e de sentidos (DOLZ; GAGNON, 2015DOLZ, J. Multilinguismo e diversidade cultural: as identidades em diálogo. Instituto Humanitas Unisinos, 2015. Disponível em : http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/543503-multilinguismo-e-diversidade-cultural-as-identidades-em-dialogo-entrevista-especial-com-joaquim-dolz . Acesso em: 14 abr. 2021.
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/5...
, p. 39). Nesse sentido, a elaboração de um modelo didático de um gênero, tal como proposto por Dolz e Schneuwly (2004SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução Roxane Rojo e Glaís Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.), pressupõe a identificação das dimensões ensináveis de um gênero, possibilitando, assim, desenvolver determinadas atividades e sequências de ensino.

Compreender o modelo didático do gênero poema visual, ainda pouco estudado, se faz necessário para uma análise, a priori, que opera como instrumento para posterior elaboração de uma sequência de ensino. Além disso, discutir o caráter multimodal do gênero envolve, em alguns casos, uma análise das dimensões visuais ligadas à escrita; e, no oral, dos aspectos não-linguísticos durante a leitura expressiva do poema (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução Roxane Rojo e Glaís Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.), o que é essencial para apreender o fenômeno complexo da aprendizagem do gênero. O poema visual é um gênero escrito, mas, neste trabalho, envolve a leitura como uma prática nas aulas de literatura.

A leitura para o outro compreende mobilizar dimensões cognitivas. Na atividade de leitura em voz alta, “encontra-se no cruzamento entre o oral e a escrita, visto que supõe uma interpretação oral, para uma audiência, de um texto escrito” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução Roxane Rojo e Glaís Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004., p. 140). O leitor deve ter compreensão do texto que está lendo, mas a oralização do texto também representa um jogo interpretativo, que mobiliza a articulação da entonação de voz, o ritmo, as pausas e, no caso a leitura na Língua de Sinais, temos a gesticulação e as expressões corporais, permitindo aos alunos assimilarem o que eles ouvem. Dessa forma, cinco dimensões estão em destaque: a) paralinguística; b) cinésica; c) postura, d) aspecto exterior e; e) utilização do suporte visual, já que é uma prática de ensino que, ao mesmo tempo que mostra o poema visual escrito, o interpreta.

Acerca das estratégias didáticas no processo de apropriação do português no contexto do aluno surdo, Quadros e Schmiedt (2006QUADROS, R. M.; SCHMIEDT, M. L. P. Idéias para ensinar português para alunos surdos. Brasília: MEC/SEESP, 2006. 120 p. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/port_surdos.pdf Acesso em: 27 maio 2021.
http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/...
) sinalizam para a necessidade de realização de uma leitura prévia do texto em sinais:

a leitura precisa estar contextualizada. Os alunos que estão se alfabetizando em uma segunda língua precisam ter condições de “compreender” o texto. Isso significa que o professor vai precisar dar instrumentos para o seu aluno chegar à compreensão. Provocar nos alunos o interesse pelo tema da leitura por meio de uma discussão prévia do assunto, ou de um estímulo visual sobre o mesmo, ou por meio de uma brincadeira ou atividade que os conduza ao tema pode facilitar a compreensão do texto (QUADROS; SCHMIEDT, 2006QUADROS, R. M.; SCHMIEDT, M. L. P. Idéias para ensinar português para alunos surdos. Brasília: MEC/SEESP, 2006. 120 p. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/port_surdos.pdf Acesso em: 27 maio 2021.
http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/...
, p. 40-41).

Nesse processo, as autoras ainda destacam dois tipos de leitura quando se discute esse processo na aquisição de segunda língua: a) a leitura que apreende as informações gerais do texto; b) a leitura que apreende informações mais específicas.

Do ponto de vista do Interacionismo Sociodiscursivo, as trocas discursivas são fundamentais no desenvolvimento da pessoa; essas trocas não se produzem exclusivamente em uma língua natural, existindo a possibilidade de um diálogo fértil entre as línguas. Dessa forma, aprender a língua portuguesa como segunda língua, por exemplo, não é unicamente estudar a passagem de uma língua a outra. O interesse é também estudar como se desenvolvem as trocas em várias línguas e como nós as utilizamos em diferentes contextos comunicativos.

A perspectiva do plurilinguismo supõe, então, uma cooperação entre os professores para a coordenação entre os diferentes ensinos e as diferentes línguas ensinadas. O ensino integrado de línguas consiste em planificar conjuntamente as diferentes línguas ensinadas (DOLZ, 2015DOLZ, J. Multilinguismo e diversidade cultural: as identidades em diálogo. Instituto Humanitas Unisinos, 2015. Disponível em : http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/543503-multilinguismo-e-diversidade-cultural-as-identidades-em-dialogo-entrevista-especial-com-joaquim-dolz . Acesso em: 14 abr. 2021.
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/5...
). Logo, o papel do professor é central e muito complexo, pois ele deve certamente dominar a língua que ensina.

Mas, ele deve, sobretudo, ser capaz de ensiná-la. Isso supõe saber escolher e adaptar os saberes linguageiros às necessidades dos aprendizes, saber avaliar as capacidades dos alunos, saber planificar as atividades de aprendizagem, saber elaborar dispositivos e sequências de ensino, saber dialogar e regular as aprendizagens dos alunos (DOLZ, 2015DOLZ, J. Multilinguismo e diversidade cultural: as identidades em diálogo. Instituto Humanitas Unisinos, 2015. Disponível em : http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/543503-multilinguismo-e-diversidade-cultural-as-identidades-em-dialogo-entrevista-especial-com-joaquim-dolz . Acesso em: 14 abr. 2021.
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/5...
).

Nesse contexto, desponta um outro desafio: o de analisar a prática concreta de ensino, em vários níveis para compreender a complexidade do sistema de interações que se produzem em uma situação de ensino, e no caso deste trabalho, em uma modalidade a distância e virtual (videoaula no youtube). Logo, buscamos identificar os gestos didáticos e interações que uma professora mobiliza para a reconstrução do sentido do poema e como a alternância de línguas contribui para o desenvolvimento das capacidades de compreensão, considerando que toda a interação se deu em uma situação particular, a distância e virtualmente.

Interessam-nos, portanto, as formas de planificação utilizadas pela docente, que incluem a utilização de gestos didáticos, os quais implicam

a criação de dispositivos para ensinar e incluem as simulações e a ficcionalização das práticas de gêneros textuais assim como os múltiplos modos de ajustamento às necessidades dos alunos. Eles materializam a atividade profissional em atos, associando-se de maneira inseparável aos saberes e habilidades mobilizados e ao modo de comunicação. (DOLZ, 2017DOLZ, J. Prefácio. In: BARROS, E. M. D.; CORDEIRO, G. S.; GONÇALVES, A. V. (Org.) Gestos didáticos para ensinar a língua: Agir docente e gêneros textuais. Campinas, SP: Pontes Editores, 2017., p. 10)

Schneuwly (2009SCHNEUWLY, B; DOLZ, J. Des objets enseignés en classe de français. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009.), tomando como base os estudos de Aeby-Daghé e Dolz (2008), elenca quatro gestos didáticos fundadores do trabalho do professor. São eles: o de implementação do dispositivo didático, o de regulação, o de institucionalização e o de criação da memória didática. Tais gestos “se integram dentro de um sistema social complexo da atividade educativa, que é regida por regras e códigos convencionais, estabilizados por práticas seculares constitutivas da cultura escolar1 1 Tradução nossa. No original: “[...] s’intègre dans le système social complexe de l’activité enseignante qui est régie par des règles et des codes conventionnels, stabilisés par des pratiques séculaires constitutives de la culture scolaire”. ” (SCHNEUWLY, 2009SCHNEUWLY, B; DOLZ, J. Des objets enseignés en classe de français. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009., p. 36).

Os gestos de implementação do dispositivo didático compreendem a utilização, por parte do professor, de formas de explorar o objeto de ensino em suas múltiplas dimensões ensináveis. Os gestos de regulação fazem parte de um processo de monitoramento ou acompanhamento da aprendizagem dos alunos e estão diretamente relacionados às intervenções pedagógicas, avaliações diagnósticas ou atividades realizadas pelos professores em sala de aula para garantir a apropriação, por parte dos alunos, do objeto de ensino. Essa regulação pode ser interna ou local.

A regulação interna ocorre por meio de intervenções didáticas do professor para verificar o estado de conhecimento dos alunos quanto ao objeto a ser ensinado, antes, durante ou depois de uma sequência de ensino (SE). Já a regulação local ocorre mediante um conflito no quadro das interações verbais entre professor e aluno ou entre os alunos, durante o processo de intervenção pedagógica. Esse gesto se manifesta, geralmente, por meio de questionamentos, dúvidas, comparações, elucidações acerca do objeto de ensino.

Já os gestos de institucionalização são da origem dos pré-construídos, ou seja, dos saberes legitimados, por exemplo, por instituições oficiais ou pela produção científica. Os gestos de institucionalização envolvem, portanto, um processo metacognitivo por meio do qual os professores organizam, sistematizam e explicitam os saberes adquiridos ao longo da sua formação acadêmica para os alunos. Por fim, os gestos de criação da memória didática implicam um procedimento por meio do qual o professor busca recompor o objeto de ensino, estabelecendo uma relação de coerência e continuidade ao longo de uma sequência de ensino (SCHNEUWLY, 2009SCHNEUWLY, B; DOLZ, J. Des objets enseignés en classe de français. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009.). Esse gesto pode se materializar, por exemplo, por meio de expressões como: “na próxima aula, vamos estudar...”, “como vimos na aula passada” etc.

Os gestos didáticos foram importantes neste estudo, pois através deles pudemos tanto delinear as formas de planificação do agir didático da professora como compreendermos os processos internos de regulação implicados na abordagem do poema visual na videoaula.

3 METODOLOGIA

Nosso estudo se desenvolveu em quatro etapas: a) análise, a priori, do poema concreto “Xícara” e caracterização das dimensões do gênero de texto; b) entrevista com o autor do poema para reconstruir o processo criativo e compreender a difusão didática; c) análise da prática de ensino e do dispositivo didático elaborado por uma professora de Libras em literatura de Língua Portuguesa; d) entrevista, a posteriori, com a professora responsável do dispositivo, com vistas a compreender os gestos didáticos e propor um retorno reflexivo sobre as atividades propostas. Neste artigo, analisaremos unicamente as três primeiras etapas, de modo que a análise da entrevista com a professora será apresentada em um trabalho posterior.

O tratamento dos dados buscou inicialmente caracterizar o gênero de texto e as características particulares do poema “Xícara”, selecionado pela professora para trabalhar com os alunos. A entrevista com o poeta, autor do poema mencionado, possibilitou-nos reconstruir tanto o processo criativo do autor como o processo de seleção e difusão do poema pelos livros didáticos no Brasil. Já a sinopse da videoaula da professora (SCHNEUWLY; DOLZ, 2009SCHNEUWLY, B; DOLZ, J. Des objets enseignés en classe de français. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009.), permitiu-nos identificar as atividades de ensino propostas e a lógica que as caracterizam. A focal metodológica nas interações didáticas e as funções das duas línguas utilizadas (Português e Libras) em superposição e com funções paralelas e distintas buscaram compreender como se reconstrói o significado do poema numa lição de literatura.

4 DESVELANDO O POEMA “XÍCARA”

O poema Xícara, de autoria de Fábio Sexugi, é facilmente encontrado em várias coleções de livros didáticos com o objetivo de introduzir a discussão sobre o movimento literário da poesia concreta nas escolas brasileiras. Assim, a presença marcante desse poema, nas salas de aula da educação básica em território nacional, nos impulsionou a desvelar algumas de suas nuances, tais como os bastidores do processo criativo, a exploração de seus aspectos multimodais e sua potencialidade para o ensino da literatura em língua portuguesa em uma perspectiva bilíngue (Português, Libras).

Neste primeiro momento, apresentamos um exemplar do poema Xícara (Figura 1), tal como é difundido na internet, no blog do autor e nos livros didáticos.

Considerando apenas o conteúdo verbal desse poema, numa análise a priori, poderíamos, do ponto de vista da tradição literária clássica, afirmar que ele se configura como uma sextilha composta de rimas emparelhadas (AA BB CC). Todavia, a especificidade da sua planificação, percebida na disposição dos versos, reforça o caráter multimodal do texto, provocando um efeito visual e sinestésico no leitor. As formas e contornos recriam a imagem material, e sugerem, indiretamente, a textura, o aroma e o sabor de um café bem quentinho.

Em sua poesia concreta, Sexugi combina uma aproximação clássica e pós-moderna, de modo que aspectos como a obediência à métrica, o emprego de uma linguagem mais simples e de fácil entendimento, combinado com a criatividade poética, nos possibilitam situar o poeta em uma tradição clássica brasileira, seguindo paralelamente o conceito de poesia concreta2 2 Esse tipo de poesia caracteriza-se pela valorização dos aspectos visuais do poema com o emprego de caracteres tipográficos, desenhos, formas, caligramas etc. nascida nos anos 1950.

Figura 1
Poema Xícara

Nosso interesse em compreender melhor o processo criativo de Fábio Sexugi, bem como sua percepção acerca da utilização didática do poema, nos levou à realização de uma entrevista3 3 Entrevista realizada via plataforma Zoom, no dia 27/11/2020. com o poeta. Os pontos centrais dessa conversa estão aqui sistematizados em três eixos temáticos, conforme apresentado no quadro 1:

Quadro 1
Eixos temáticos da entrevista com o poeta

Na entrevista, o poeta discorreu, sobretudo, sobre o processo criativo do poema “Xícara”. Para Sexugi (2020SEXUGI, F. Entrevista concedida, via Meet, aos pesquisadores. Arquivo pessoal. 2020.), três elementos são importantes nesse processo:

  1. a experiência sensitiva e as lembranças familiares que inspiram o poema e que permitem sua transformação como objeto sensível;

  2. a escolha da forma de Caligrama para conseguir um ato visual, reproduzindo a imagem espacial da xícara;

  3. a busca de um público amplo através da criação de um blog e da participação em concursos literários.

Igualmente, o poeta revela que o poema Xícara evoca a memória de uma experiência vivida e recobrada por ele nos mínimos detalhes: o prazer de tomar um café quente em um dia frio, lembrança associada a sua tradição familiar.

É verdade, eu tive a inspiração de fazer essa poesia porque aqui em casa eu fiz essa poesia no horário do almoço. Naquela época, minha mãe ainda era viva e fazia. Aqui em casa, ainda hoje se faz assim café. A gente compra o café cru e depois a minha tia torra o café, mói o café, tem um moedor de café aqui e o cheiro, o aroma desse café nesse processo é muito mais intenso do que aquele que você compra no mercado. E aí, vendo a minha mãe fazendo café, achei aquilo muito poético e depois que eu percebi que dava para intensificar essa poesia, transformar ela (SEXUGI, 2020SEXUGI, F. Entrevista concedida, via Meet, aos pesquisadores. Arquivo pessoal. 2020.).

Indícios dessa experiência também podem ser encontrados no próprio poema Xícara, quando, por exemplo, o poeta indica, por meio de uma expressão adverbial, uma localização temporal precisa (“Na tarde fria de julho”); ou, ainda, recria imagens sensoriais por meio de descrições (“voa o cheiro, o barulho” / “do café descendo quente” / “pelo bule reluzente...”). Na parte final, uma pergunta retórica interrompe o fluxo dos sentidos do poema, convidando o leitor a opinar sobre esse momento sublime (“Existe coisa mais gostosa?”).

Quanto à estrutura do poema, Sexugi (2020SEXUGI, F. Entrevista concedida, via Meet, aos pesquisadores. Arquivo pessoal. 2020.) destaca que o texto foi originalmente escrito em uma estrutura linear, próxima aos moldes da poesia clássica brasileira. Contudo, em razão de um concurso literário, realizado no ano de 2008 na cidade de Belo Horizonte- MG, o poeta remodelou o poema, dando “vida” aos versos por meio de um Caligrama. Assim, os quatro primeiros versos do poema foram traçados em linhas sinuosas, na posição vertical, o que se assemelha à imagem da fumaça saindo de um café quente. Já os dois últimos, foram dispostos na posição horizontal e compuseram o desenho de uma xícara, cujo toque de acabamento pode ser percebido com o emprego do sinal de interrogação. Trata-se, sem dúvida, de um poema representativo da poesia concreta visual contemporânea.

O resultado foi o prêmio de primeiro lugar no Concurso. Daí em diante, outras premiações de destaque se seguiram Brasil afora e na Europa, levando ao reconhecimento do poeta pela crítica literária.

É importante dizer que eu compus essa poesia de uma maneira tradicional, linha abaixo de linha e depois pela ((incompreensível)). Retomando a poesia, eu verifiquei que podia, que a interrogação de alguma maneira remetia à asa da xícara. Então, eu consegui reverter e transformá-lo em uma poesia concreta visual. Então, me inscrevi nesse concurso literário, isso foi em 2008, foi o primeiro concurso que participei e, pra minha surpresa, recebi o primeiro lugar. Fiquei muito contente e isso serviu, de alguma maneira, para que eu me dedicasse à produção literária e que continuasse a escrever e publicasse nesse blog na internet (SEXUGI, 2020SEXUGI, F. Entrevista concedida, via Meet, aos pesquisadores. Arquivo pessoal. 2020.).

Sexugi se mostra surpreendido pelo sucesso do poema (prêmios, difusão e utilização didática). Ele discorre sobre os vários prêmios nacionais e internacionais e também acerca da explosão e difusão do poema pela internet. O feito de buscar ser lido por um público popular é alcançado pelo poema após publicação no blog4 4 http://peabiruta.blogspot.com/ pessoal do poeta. Ademais, Sexugi destaca a importância da difusão do poema Xícara nos livros didáticos.

Essa poesia foi muito conhecida aqui no Brasil, hoje, sem brincadeira, quase toda semana tem uma gráfica me mandando mensagens se pode publicar no seu livro didático. Acho que foi publicado em mais de cem livros específicos por aqui (SEXUGI, 2020SEXUGI, F. Entrevista concedida, via Meet, aos pesquisadores. Arquivo pessoal. 2020.).

Na segunda parte da entrevista, Sexugi (2020SEXUGI, F. Entrevista concedida, via Meet, aos pesquisadores. Arquivo pessoal. 2020.) aponta para alguns aspectos multimodais (diferentes sistemas de signos) do poema Xícara. O poeta descreve seu processo criativo. Concretamente, o poema foi versificado inicialmente de forma clássica, transformando-o em uma imagem espacial inspirada nas artes plásticas. Como objeto sensível, dispõe as palavras e o ritmo de leitura linear habitual. Mas os signos, particularmente o sinal de interrogação representando a asa da xícara, ou a fumaça do café, interagem para expressar as sensações que conferem sentido ao poema. A particularidade de Fábio Sexugi está justamente no fato de que ele atende aos objetivos da poesia concreta, sem, contudo, abandonar a possibilidade de uma leitura linear, nos moldes da tradição clássica.

Por coincidência, vi que a interrogação poderia ser usada como uma asa de uma xícara. Então, a primeira parte de baixo da xícara, consegui fazer o desenho e parte de cima da xícara, que é onde fica o topo da xícara, que, por coincidência, era justamente aquela parte que falava da prosa: “me pergunto já em prosa, existe coisa mais gostosa”. Então, por coincidência, deu certo de que essa frase estivesse ali na linha, fosse a única parte reta na poesia, a única parte que mantém a estrutura de um texto que não fosse poético e, depois das quatro primeiras estrofes, quatro primeiras frases, vou colocar uma fumacinha que sai da xícara (SEXUGI, 2020SEXUGI, F. Entrevista concedida, via Meet, aos pesquisadores. Arquivo pessoal. 2020.).

O último aspecto comentado pelo poeta na entrevista foi em relação à percepção que ele teve de uma lição em Libras e Língua Portuguesa difundida em vídeo pela internet por uma professora de escola para alunos surdos. Nesse momento, o poeta demonstrou interesse na interpretação bilíngue realizada pela professora e nos aspectos particulares da interação entre os gestos, a mímica e a interpretação em Libras simultânea ao ato visual de apresentação da poesia concreta, a qual foi lida oralmente e legendada em língua portuguesa. O poeta expressou sua satisfação com os comentários didáticos da professora para apresentar a poesia visual, alternando a leitura dos quatro versos do poema.

[...] porque foi a primeira vez que vi a minha poesia sendo interpretada pela língua de sinais [...]. Que a minha poesia fala do aroma do café, fala da fervura do café, a gente vê a fumaça, mas o que eu gostei muito da poesia da interpretação dela é que foi um elemento extra que não está nem nos versos nem na forma, que é o fato de tomar o café. Eu fiz o café, mas ninguém tomou, ela foi a primeira a tomar o café ((risos)). Eu gostei muito porque ela faz os símbolos, faz o sinal da fumaça [...]. É exatamente isso: a incorporação do poema visual, porque ela não só interpreta, porque quando a gente vai fazer uma interpretação em Libras de um texto, só tem o seu corpo, mas, ao mesmo tempo que, no vídeo, aparece evidente o corpo dela, mas do lado também está a poesia, então ela faz e remete, mostra a poesia. [...] tem as legendas embaixo para que o aluno possa ler esses dois idiomas: o português e a Libras. De fato, é uma internalização da poesia que é expressa de uma maneira muito intensa e, ao mesmo tempo, pelo menos bilíngue (SEXUGI, 2020SEXUGI, F. Entrevista concedida, via Meet, aos pesquisadores. Arquivo pessoal. 2020.).

Na sequência, analisaremos a videoaula postada pela professora sobre o ensino do poema Xícara na perspectiva de um ensino bilíngue Português - Libras, atentando, dentre outros aspectos, para as formas de planificação da leitura do poema utilizadas pela professora.

5 A VIDEOAULA DE LÍNGUA PORTUGUESA EM LIBRAS SOBRE O ENSINO DO POEMA XÍCARA

Neste tópico, apresentamos a análise da videoaula considerando três momentos: a) o contexto de produção; b) a leitura da poesia visual Xícara simultaneamente em Língua Portuguesa e Libras pela professora; e c) os comentários e as explicações da professora, incluindo os gestos didáticos por ela mobilizados.

A) CONTEXTO DE PRODUÇÃO DA VIDEOAULA

A videoaula intitulada “AULA 19- POESIA E LIBRAS (PARTE 2): POESIA VISUAL” está disponível no canal do Youtube da Professora Adriana - Libras desde o dia 15 de julho de 2020. O canal foi criado em 18 de outubro de 2013, com a descrição de ensino bilíngue (Libras e português escrito). Atualmente5 5 Dados verificados em 09 de abril de 2021. , há 391 inscritos no canal e 14.352 visualizações. A videoaula que aqui será analisada aparece com 97 visualizações e apresenta a seguinte descrição:

Nesta aula sobre gênero textual a professora vai mostrar um outro tipo de poesia. A poesia visual, um tipo bem interessante, em que as palavras e letras formam desenhos e acabam revelando, antes mesmo de ler, o tema da poesia. A professora recita duas poesias visuais em Libras e desafia os alunos a tentarem criar também (AULA 19, 2020).

A videoaula tem duração de 7 minutos e 27 segundos e pode ser planificada em dois momentos: 1) explicação sobre a poesia visual; 2) leitura das poesias, uma de Fábio Sexugi e outra de Carluce Pereira (O mundo roda - poesia concreta em forma geométrica)6 6 Considerando os objetivos propostos para este artigo, focaremos apenas na poesia visual de Fábio Sexugi, intitulada “Xícara”. ;

B) A LEITURA DA POESIA VISUAL - XÍCARA

A professora Adriana inicia a leitura do poema “Xícara” sinalizando para o “título” por meio da datilologia (letra por letra) da palavra X - Í - C - A - R - A, reformulada na língua de sinais brasileira. Concomitantemente, a professora oraliza o título, que aparece também numa legenda escrita em língua portuguesa, na parte inferior do vídeo: “XÍCARA”. A prática de linguagem multissemiótica e multimodal é adotada nessa videoaula, a qual pode ser observada pelo uso da linguagem de sinais, na versão letra por letra e na palavra completa, pela oralização verbal em português e pela textualização escrita com a indicação metalinguística de que se trata do título, além da imagem do poema “Xícara” de Fábio Sexugi, onde também aparece o título entre aspas e sublinhado. Sendo assim, cinco significantes são mobilizados para construir o significado do título: letra por letra (datilologia), reformulação da palavra completa sinalizada em Libras, a apresentação oral, a produção escrita (em duas legendas - maiúscula e minúscula) em português e o ícone como relação sensorial emotiva representando o objeto de maneira dinâmica. Os diferentes signos são reforçados pela postura, gestos e mímica facial da professora em um ritmo lento, que busca explicitamente facilitar a recepção do poema visual, jogando com as possibilidades de passagem de uma língua a outra.

Na figura 2, apresentamos a imagem que ilustra a leitura do título da poesia visual.

Figura 2
Leitura do título da poesia visual

Após a apresentação do título do poema, a professora continua com a leitura da poesia de forma harmoniosa. Na língua de sinais, o ritmo e a entonação são marcados pelos próprios movimentos dos sinais (gesticulação) associados a expressões faciais. O corpo e o olhar também contribuem para a construção poética. De acordo com Wentzel e Amaral (2019WENTZEL, K. L; AMARAL C. B. do. Poesia em Libras: expressão e compreensão a partir de vídeos na educação de surdos. Revista Novas Tecnologias na Educação - RENOTE, v. 17, n. 3, dez. 2019. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/renote/article/view/99556. Acesso em: 13 abr. 2021.
https://seer.ufrgs.br/renote/article/vie...
, p. 7), “a poesia, como gênero literário, permite associações harmoniosas de palavras e ritmos. [...] Quem produz a poesia tem o objetivo de despertar a emoção de quem a assiste, revelando a criatividade por meio das escolhas de movimentos e ritmos”. Na videoaula em tela, essa construção é complementada pela verbalização feita pela professora em língua portuguesa dos versos do poema, os quais também são legendados no vídeo.

Destarte, na leitura da poesia visual em Libras, há aspectos verbais e não verbais que dialogam com a língua sinalizada na poesia. A interpretação, os significados e as percepções relacionam-se conforme a modalidade da língua utilizada. Ou seja, na modalidade oral (leitura oralizada), as palavras despertam diferentes sensações de acordo com o uso da voz, com a prosódia. Já na modalidade sinalizada (língua de sinais), relaciona-se com a percepção visual, sendo que os gestos e a sinalização com maior ou menor intensidade também provocam sentimentos e diferentes emoções. Cada verso é interpretado com gestos e mímicas que teatralizam os conteúdos temáticos referentes à experiência de tomar café quente em um dia de frio.

C) OS GESTOS DIDÁTICOS

A introdução da lição/atividade apresentada na videoaula expõe o conceito de poesia visual concreta e uma vez iniciada a leitura do poema, os versos são retomados, um a um, pela professora, que tece comentários e explicações. Ao final, a professora institucionaliza as principais características do poema concreto e faz uma avaliação do processo criativo, motivando os alunos para a escrita de seu próprio poema.

Visando o desenvolvimento dos alunos no processo de ensino e aprendizagem, os professores mobilizam diferentes gestos didáticos que constituem seu agir na realização da tarefa central de seu métier sobre os objetos a serem ensinados.

Para Schneuwly e Dolz (2009SCHNEUWLY, B; DOLZ, J. Des objets enseignés en classe de français. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009.), os gestos didáticos estão ligados aos objetos de ensino e a sua construção, pois, em cada situação de aula, o professor mobiliza diferentes gestos imbricados no objeto ensinado. Sendo assim, na pesquisa realizada analisamos a poesia visual como objeto de ensino e os gestos didáticos mobilizados pela professora na videoaula.

Aqui, realizaremos uma análise da explicação da professora sobre a poesia visual e a proposta de atividade para a produção escrita.

EXPLICAÇÃO SOBRE A POESIA VISUAL

A professora inicia a videoaula se apresentando e deixando claro que é uma aula de Português, cujo tópico é o gênero textual poesia visual. Em seguida, faz a retomada de estudos anteriores sobre a poesia, relembrando sua estrutura. Logo nesta primeira parte da videoaula, observamos que a professora recorre a gestos de presentificação (apresenta o objeto de ensino), criação de memória didática (construção de um conhecimento a ser compartilhado) e de institucionalização (retomada do conhecimento construído a respeito de um objeto de ensino). Nas figuras 3 e 4, podemos identificar esses gestos didáticos.

Em seguida, observamos a mobilização do gesto didático de focalização (delimita as dimensões ensináveis), ou seja, a professora apresenta a estrutura da poesia visual, convidando o aluno a conhecer o gênero textual. Após destacar as principais características da poesia visual, a professora exibe a imagem do poema “Xícara” de Fábio Sexugi e faz uma antecipação da leitura, explicando o texto e a temática que será tratada.

Figura 3
Gesto didático de presentificação

Figura 4
Gesto de criação de memória didática e de institucionalização

Na figura 5, a professora Adriana aponta para o texto e, fazendo uma pergunta, leva o aluno a já refletir sobre o tema que será tratado. Sendo assim, a professora questiona sobre a percepção visual, o que é possível ver na imagem do poema, destacando o título, antecipando e fazendo previsões sobre o que será encontrado durante a leitura do texto.

Figura 5
Antecipação da leitura e explicação do texto

Em seguida, a professora faz o convite para a leitura (motivação), indicando por onde iniciará após apresentar o título, conforme vemos na figura 6.

Figura 6
Motivação para a leitura e direcionamento

Por fim, após a leitura do poema, a professora faz a retomada da temática, destacando a força da imagem na interpretação do poema.

Figura 7
Estratégia de leitura - depois da leitura

Outro gesto didático mobilizado durante a aula é o gesto de criação de memória didática (construção de um conhecimento comum), pois, após a leitura e discussão sobre o tema, a professora retoma o conteúdo (características da poesia visual) apresentado inicialmente na videoaula.

Figura 8
Criação de memória didática

A videoaula termina com o convite da professora para a escrita de um poema concreto, individualmente e a distância. O dispositivo está focalizado na descoberta do gênero poesia concreta, leitura e interpretação de dois poemas, em um conjunto de atividades, na escrita criativa pelos alunos, sem uma orientação particular para a escrita do poema.

6 CONSIDERAÇÕES

Os resultados da análise permitem afirmar a potencialidade das interações sociodiscursivas combinando línguas (Libras e Português) para o ensino de um objeto como a poesia visual. A análise mostra as múltiplas passagens de uma língua a outra para facilitar a construção das significações do poema visual, assim como o jogo da alternância e simultaneidade das modalidades escritas, orais e língua de sinais (libras) para permitir a apresentação, a interpretação e o comentário literário do poema visual apresentado.

A videoaula direcionada a uma população majoritariamente com problemas auditivos é seguida também por alunos ouvintes, com ou sem conhecimento em Libras, e o efeito é sistematicamente positivo para a compreensão do poema. A multimodalidade da apresentação supõe uma abertura de diferentes trilhas para a compreensão do poema, sendo também uma solução de engenharia didática criativa para um curso a distância em tempos de pandemia. Destacamos também as possibilidades expressivas corporais (atitudes corporais, movimentos, gestos, intercâmbios propostos pela mímica facial) que vão mais longe da língua em libras para permitir uma recepção animada do poema. Também a forma de articulação da voz, permitindo a visualização dos movimentos da boca, e o acompanhamento rítmico do corpo em harmonia com a oralização do poema se apresentam como uma estratégia para aproximar o público com deficiência auditiva das particularidades da oralidade em Língua Portuguesa.

A análise evidenciou também: 1) o interesse da modelização didática do gênero poesia visual para compreender as dimensões ensinadas; 2) a potencialidade da entrevista com o poeta para compreender o processo criativo deste gênero de texto em particular; 3) a importância de tomar em consideração o processo de planificação da lição de poesia em Língua Portuguesa, os gestos desenvolvidos na ação didática e o retorno reflexivo numa situação próxima da autoconfrontação com a prática de ensino.

REFERÊNCIAS

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  • AULA 19 - Poesia e Libras (parte 2): poesia visual. Professora Adriana. YouTube. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=D4OvfRVCRvw Acesso em: 10 nov. 2020.
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  • BRASIL. Decreto nş 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nş 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei nş 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm Acesso em: 27 maio 2021.
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  • SEXUGI, F. Poema Xícara. El Peabiruta, 2010. Disponível em: http://peabiruta.blogspot.com/. Acesso em: 10 nov. 2020.
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    » https://seer.ufrgs.br/renote/article/view/99556
  • 1
    Tradução nossa. No original: “[...] s’intègre dans le système social complexe de l’activité enseignante qui est régie par des règles et des codes conventionnels, stabilisés par des pratiques séculaires constitutives de la culture scolaire”.
  • 2
    Esse tipo de poesia caracteriza-se pela valorização dos aspectos visuais do poema com o emprego de caracteres tipográficos, desenhos, formas, caligramas etc.
  • 3
    Entrevista realizada via plataforma Zoom, no dia 27/11/2020.
  • 4
    http://peabiruta.blogspot.com/
  • 5
    Dados verificados em 09 de abril de 2021.
  • 6
    Considerando os objetivos propostos para este artigo, focaremos apenas na poesia visual de Fábio Sexugi, intitulada “Xícara”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Ago 2021
  • Aceito
    15 Fev 2022
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