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O IMAGINÁRIO SOBRE O OUTRO NOS ATOS INSTITUCIONAIS DO ESTADO MILITAR BRASILEIRO* * Estudo orientado pela profa. Dra. Alejandra Vitale, do Instituto de Linguística da Universidade de Buenos Aires (UBA), com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), junto ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Literatura da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

The Imaginary about the Other in the Institutional Acts of the Brazilian Military State

El imaginario sobre el otro en los actos institucionales del estado militar brasileño

Resumo

Neste texto, busca-se compreender o funcionamento da representação discursiva do outro como comunista às vésperas do golpe de 1964 e sua reprodução nos cinco primeiros anos do período militar. Ancorado na Análise de Discurso pecheutiana, o gesto de interpretação se deu a partir de categorias como formação imaginária, memória discursiva e formação discursiva. O corpus de análise consistiu de dez sequências discursivas retiradas dos dezessete Atos Institucionais (AIs) publicados nesses anos. Observou-se nessas sequências que a imagem do outro como comunista constitui-se de uma rede de sentidos que, alimentada desde o começo do século XX, é ressignificada segundo interesses da classe hegemônica e atualizada em cada Ato Institucional à medida que aumentava a repressão estatal.

Palavras-chave:
Formação imaginária; Outrem; Regime militar

Abstract

In this text, we aim to comprehend the functioning of the discursive representation of the other as a communist on the eve of the Brazilian 1964 coup and its reproduction throughout n the first five years of the military period. Anchored in Pêcheutian Discourse Analysis, we conduct the interpretive process using categories such as imaginary formation, discursive memory, and discursive formation. The corpus of analysis consisted of ten discursive sequences extracted from the seventeen Institutional Acts (AIs) published in these years. We observed in these sequences that the image of the other as a communist constitutes a network of meanings that, nurtured since the beginning of the 20th century, is reinterpreted according to the interests of the hegemonic class and updated in each Institutional Act as state repression intensified.

Keywords:
Imaginary training; The other; Military regime

Resumen

En este texto, el objetivo es comprender el funcionamiento de la representación discursiva del otro como comunista en vísperas del golpe de 1964 en Brasil y su reproducción a lo largo de los primeros cinco años del período militar. Fundamentado en el Análisis del Discurso de Pêcheux, el proceso interpretativo se llevó a cabo utilizando categorías como formación imaginaria, memoria discursiva y formación discursiva. El corpus de análisis consistió en diez secuencias discursivas extraídas de los diecisiete Actos Institucionales (AIs) publicados en estos años. Se observó en estas secuencias que la imagen del otro como comunista constituye una red de significados que, alimentada desde principios del siglo XX, se reinterpretó según los intereses de la clase hegemónica y se actualizó en cada Acto Institucional a medida que se intensificaba la represión estatal.

Palabras clave:
Formación imaginaria; El otro; Régimen militar

1 INTRODUÇÃO

A busca por legitimidade pelo Estado militar brasileiro (1964-1985) envolveu uma série de estratégias discursivas de negação do outro como inimigo do Brasil e, não ao acaso, comunista. Foi assim que os militares atribuíram ao presidente da república João Goulart, de quem tomaram o poder em 1º abril de 19641 1 Florestan Fernandes e Caio Prado Júnior (2012), entre outros estudiosos, vinculam o golpe de 1964 a 1º de abril, indo de encontro, assim, às narrativas que indicam 31 de março. , a responsabilidade pela crise política instalada no país durante seu governo. Nos anos seguintes, a mesma representação foi direcionada a adversários do regime, independentemente de suas posições ideológicas. Assim, justificava-se a ruptura da ordem institucional e, concomitante a isso, a implantação da ditadura militar no país.

Posto isso, o objetivo deste artigo é compreender o funcionamento dessa discursividade nos cinco primeiros anos do período militar (1964-1965), analisando dez Sequências Discursivas (SDs) de 17 Atos Institucionais (AIs) do regime publicados no período. Com foco na representação negativa do outro no discurso político, partimos da Análise de Discurso pecheutiana para destacar que o dizer está vinculado a uma rede de memórias que é atualizada sem que o sujeito alcance o seu funcionamento, em termos históricos e ideológicos, dado que o processo discursivo é da ordem do inconsciente.

Importa observar que a associação de um adversário político ao comunismo sofre a determinação de interesses da classe dominante, que busca interpelar as massas, sobretudo através de Aparelhos Ideológicos do Estado (Althusser, 1985ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). 2. ed. Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1985.), a endossar e a reproduzir o discurso de que o sistema capitalista é o único capaz de assegurar bem-estar a todos, silenciando, assim, as contradições que o atravessa, materializadas na exploração de uma elite privilegiada sobre a classe trabalhadora. Nesse ponto, Florencio et al. (2009FLORENCIO, A. M. G.; MAGALHÃES, B.; SILVA SOBRINHO, H. F.; CAVALCANTE, M. do S. A. de O. Análise do discurso: fundamentos e práticas. Maceió: Edufal, 2009., p. 63) destacam que toda sociedade de classe se constitui pelas “relações conflituosas de exploração/dominação, como relações de forças que se manifestam, de forma especial no discurso, em seus efeitos de sentido sobre a realidade”.

Neste texto, veremos que o processo que dá origem às representações dos sujeitos remete às formações imaginárias, isto é, às regras de projeção que resultam em imagens que significam em relação ao contexto sócio-histórico e à memória do dizer. Em nossa análise, além da formação imaginária, mobilizamos outras categorias da AD, como condições de produção, formação discursiva e memória discursiva, por meio de autores como Pêcheux (1988PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. Unicamp, 1988.; 2014; 2019), Courtine (2009COURTINE, J.-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos Reuillard. São Carlos: EduFSCar, 2009.) e Orlandi (2012aORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 10. ed. Campinas: Pontes Editores, 2012a., p. 39-40), para quem, quando uma sociedade é constituída por relações hierarquizadas, são as relações de força, “sustentadas no poder desses diferentes lugares, que se fazem valer na ‘comunicação’”. Para analisar o jogo político que caracteriza a discursividade em estudo, recorremos a Piovezani (2009PIOVEZANI, C. Verbo, corpo e voz: dispositivos de fala pública e produção da verdade no discurso político. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.) e a Verón (1987VERÓN, E. La palabra adversativa. Observaciones sobre la enunciación política. In: VERÓN, E. et al. El discurso político. Lenguajes y acontecimientos. Buenos Aires: Hachette, 1987. p. 11-26.), fundamentais para a identificação e a análise de entidades e componentes discursivos evidenciados nas dez SDs. Antes, delimitamos nosso aporte teórico-metodológico.

2 A REPRESENTAÇÃO DO OUTRO NO DISCURSO POLÍTICO

Um dos princípios básicos da AD é que o lugar de que fala o sujeito é constitutivo de seu dizer (Orlandi, 2012bORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 6. ed. Campinas: Pontes Editores, 2012b.). Nessa perspectiva, entende-se que o sentido não é produzido pela língua, isto é, não se origina de sua estrutura, mas de relações que os sujeitos estabelecem no interior de uma formação social, considerando suas condições de produção.

Em outras palavras, a AD define a língua como um processo sócio-histórico, em que sujeito e sentido estão imbricados, o que leva Orlandi (2012bORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 6. ed. Campinas: Pontes Editores, 2012b., p. 37) a afirmar que “o sujeito é um lugar de significação historicamente constituído”. Logo, o processo discursivo não tem um começo determinável, vinculando-se a uma rede de memória que é ressignificada. Na mesma direção, Pêcheux (2014PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). Parte 1. Análise de conteúdo e teoria do discurso. In: GADET, F.; HAK, T. (org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução de Bethania S. Mariani et al. 5. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014., p. 76) diz que o discurso funciona a partir de um discurso prévio e que o “orador sabe que quando evoca tal acontecimento ressuscita no espírito dos ouvintes o discurso no qual este acontecimento era alegado, com as ‘deformações’ que a situação presente introduz e da qual pode tirar partido”.

Assim, ao delimitarmos o corpus da presente investigação, afastamo-nos da concepção da língua como um todo homogêneo, um sistema cujas forças independem do indivíduo e da realidade exterior, bem como do sujeito como um interlocutor cuja ação se circunscreve ao contexto do ato comunicacional. Posto isso, direcionamos nosso gesto de interpretação para os efeitos de sentido entre os sujeitos, isto é, para suas posições (ideológicas) num contexto mais amplo - afetado pela historicidade.

Indo de encontro às vertentes do idealismo, que se voltam, em síntese, para a defesa do psiquismo individual como fundamento da língua, Pêcheux (2019PÊCHEUX, M. Formações ideológicas, aparelhos ideológicos de Estado, formações discursivas. In: OLIVEIRA, G. A.; NOGUEIRA, L. (org.). Encontros na Análise de Discurso: efeitos de sentidos entre continentes. Campinas: Ed. da Unicamp, 2019., p. 321-322) observa que o pensamento “é uma forma particular do real”, existindo na realidade “sob a forma de regiões do pensamento separadas e submetidas entre elas a uma lei de exterioridade”, diretamente vinculada às esferas econômicas, políticas e ideológicas. Daí o entendimento de que todo discurso é de caráter material, refletindo as contradições sócio-históricas da sociedade de classes. Assim, nas palavras de Silva Sobrinho (2019, p. 141), o discurso “está sempre imbricado com os interesses materiais e ideológicos das classes sociais em lutas”, produzindo seus efeitos nas práticas linguísticas, a exemplo do discurso político, jurídico, científico, midiático.

Na mesma perspectiva, Magalhães (2000MAGALHÃES, B. O sujeito do discurso: um diálogo possível e necessário. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 3, p. 73-90, 2000.) explica que o discurso traz a marca da subjetividade que o produziu, não como expressão de uma individualidade, mas como expressão da relação entre a individualidade - num espaço e tempo historicamente definidos - e a realidade representada por esta individualidade. A partir dessa discussão, acercamo-nos da noção de formação imaginária que mobilizamos neste estudo.

Em seus primeiros estudos, Pêcheux (2014PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). Parte 1. Análise de conteúdo e teoria do discurso. In: GADET, F.; HAK, T. (org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução de Bethania S. Mariani et al. 5. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014.) indica que, em toda formação social, regras de projeção estabelecem relações entre as situações e as representações dessas situações - que recaem na posição sujeito. Nesse movimento de sentido, afirma o teórico (2014, p. 78), é necessário referir o discurso “ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção”. Assim, situado nos cinco primeiros anos da ditadura militar brasileira (1964-1969), nosso objeto de estudo terá como fio condutor o funcionamento de uma rede de memórias que, atualizada naquele período, sustentava os sentidos das SDs em análise.

Na análise, partimos das estratégias usadas pelas forças do Estado para convencer as massas a aceitarem determinadas decisões e mudanças em seu funcionamento. Especificamente, analisamos o discurso militar brasileiro, a fim de apreender os efeitos de sentido que produz quanto à ruptura da ordem institucional e sua substituição por um Estado de exceção no contexto posterior ao golpe de 1964 - acontecimento reproduzido em outros países do continente na mesma época.

Em primeiro lugar, é importante destacar que todo discurso político exige legitimidade para obter adesão, independentemente de seu viés ideológico. Com isso, busca-se impor uma interpretação e, por conseguinte, produzir o inequívoco, dado que, conforme Piovezani (2009PIOVEZANI, C. Verbo, corpo e voz: dispositivos de fala pública e produção da verdade no discurso político. São Paulo: Ed. Unesp, 2009., p. 131), o saber e o poder são simulados para fazer-crer e fazer-fazer no discurso político, ou seja, “uma vez que, ultrapassando o nível da convicção, deseja-se atingir o nível da ação”. Aqui, retomamos Pêcheux (2014PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). Parte 1. Análise de conteúdo e teoria do discurso. In: GADET, F.; HAK, T. (org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução de Bethania S. Mariani et al. 5. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014.), segundo o qual a estratégia discursiva se funda numa antecipação das representações do receptor, a fim de observar que o discurso político tem como uma de suas bases a percepção dicotômica da realidade. Nesse sentido, Piovezani (2009, p. 133) indica que, a partir dos conhecimentos de quem profere o discurso político, sujeitos, instituições e movimentos sociais “tendem a ser distribuídos e organizados em taxionomias binárias e disjuntivas (legítimo/ilegítimo, verdadeiro/falso, moderno/arcaico, progressista/conservador...) que, em última instância, recobrem a cisão bem/mal”.

Diante do exposto, o discurso político implica relação com um adversário, que é apresentado como o alvo a ser combatido para o bem da sociedade. Nesse contexto, mobiliza-se como arma discursiva uma negativação, um irracionalismo2 2 “[...] Forma com que a burguesia cria e expõe suas ideias necessárias à manutenção da ordem do sistema que lhe determinou a sua classe como dominante” (Magalhães, 2019), o irracionalismo tem como principais características a falta de coerência, o apelo à emoção, o culto à violência e o ódio à esquerda, que é tachada de comunista em sua totalidade, tendo como base de sustentação o não pensar criticamente. que, “intrínseco ao sistema do capital” (Magalhães, 2019MAGALHÃES, B. A crise estrutural do capitalismo e o irracionalismo. Conexão Letras, Porto Alegre, v. 14, n. 22, p. 81-91, jul-dez. 2019., p. 87), é reforçado ao tempo em que o sistema democrático apresenta fortes sinais de instabilidade, não por acaso, como costuma ocorrer às vésperas da implantação de uma ditadura.

Numa visão mais superficial do fazer político, seu imaginário supõe ao menos dois destinatários, um positivo e outro negativo, estabelecendo diferentes relações de sentido com ambos. Se, com o primeiro, compartilha-se uma mesma posição, com o segundo se dá o contrário: ele é excluído do coletivo de identificação do imaginário político. Sujeitos que, de certo modo, mantêm-se à margem do jogo político constituem um terceiro tipo de destinatário; eles são identificados nos processos eleitorais como indecisos e são próprios do regime democrático (Verón, 1987VERÓN, E. La palabra adversativa. Observaciones sobre la enunciación política. In: VERÓN, E. et al. El discurso político. Lenguajes y acontecimientos. Buenos Aires: Hachette, 1987. p. 11-26.).

Considerando que o jogo político sofre mudanças de acordo com o sistema em vigor, Piovezani (2009PIOVEZANI, C. Verbo, corpo e voz: dispositivos de fala pública e produção da verdade no discurso político. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.) indica que o peso e o alcance da atividade discursiva tomam diferentes direções em democracias ou regimes autoritários.

Se, na primeira, o discurso goza de condições formais de um debate entre as posições ideológicas, entre os partidos, entre os atores políticos/candidatos, entre os cidadãos/eleitores, no segundo sua função parece limitar-se a uma modalidade unilateral de legitimação (Piovezani, 2009PIOVEZANI, C. Verbo, corpo e voz: dispositivos de fala pública e produção da verdade no discurso político. São Paulo: Ed. Unesp, 2009., p. 144).

Por outro lado, é importante destacar que, ainda que busquem impor ideias hegemônicas na prática social, inclusive com o reforço da violência estatal, os atores políticos não têm total controle do processo discursivo, em razão da heterogeneidade da língua. Isso possibilita a identificação do sujeito com outros sentidos, vindos de outros lugares, mesmo em condições de produção extremamente conflituosas e violentas.

Lugar de constituição dos sentidos, é a partir da formação discursiva (FD) que o sujeito pode manifestar as posições que ocupa no meio social. Cabe ressaltar que esse processo é da ordem do ilusório, do inconsciente, visto que leva o sujeito a se pensar no centro e na origem do sentido, a acreditar que tem o controle do seu dizer, apagando, com isso, a imbricação entre história e discurso (Pêcheux, 1988PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. Unicamp, 1988.).

Essa crença decorre de dois tipos de esquecimento (Pêcheux, 1988PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. Unicamp, 1988.). O esquecimento nº 2 (da ordem da enunciação), refere-se às escolhas que o sujeito pensa fazer em seu discurso, o que diz e deixa de dizer. O esquecimento nº 1 (da ordem da ideologia) “dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina” (Pêcheux, 1988, p. 173). Logo, o sujeito não tem consciência de que é interpelado, nem das determinações do seu dizer.

Essa ilusão, necessária à existência da discursividade, segundo Pêcheux (1988PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. Unicamp, 1988., p. 160), é estabelecida a partir da formação imaginária, que envolve uma ou várias formações discursivas (FDs) interligadas, que determinam “o que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada numa conjuntura”, apagando o que não pode e não deve ser dito. No entanto, retomando o que indicamos acima a respeito da língua, uma FD, dado seu caráter heterogêneo, é constituída por diferentes vozes que, vindas de outras FDs, apontam sempre para a incompletude da linguagem. De outra forma, a FD indica a existência de outros dizeres, que, vindos à tona, podem levar o sujeito a assumir outra posição.

Retomando nosso objeto de estudo, o outro no discurso militar, entendemos que a questão do adversário implica que todo ato de enunciação política necessariamente supõe a existência de outros atos de enunciação opostos, reais ou possíveis, conforme Verón (1987VERÓN, E. La palabra adversativa. Observaciones sobre la enunciación política. In: VERÓN, E. et al. El discurso político. Lenguajes y acontecimientos. Buenos Aires: Hachette, 1987. p. 11-26.). Para o autor, esse outro discurso que habita todo discurso político é a presença sempre latente da leitura destrutiva que define a posição de adversário. Na mesma direção, podemos acrescentar, sob o fundamento da AD, que o outro representado como elemento ameaçador pode ser compreendido, por outro lado, como símbolo de resistência, ainda mais quando sua posição é colocada em relevo.

Em geral, o imaginário social (re)produzido sobre os ideais contra-hegemônicos numa sociedade de classes é fundamental para a manutenção do modo de produção vigente. Para isso, os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) (religião, família, escola, mídia) regulam os valores e as crenças dos sujeitos em suas práticas, revelando que a ideologia tem uma existência material (Althusser, 1985ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). 2. ed. Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1985.).

Assim, o objetivo é alimentar um imaginário coletivo que promova a defesa do sistema capitalista. Dado seu foco na exploração da classe trabalhadora, o que resulta em disparidades sociais, especialmente em nações em desenvolvimento, a classe dominante demanda uma justificação ideológica para preservar seu status quo. Isso se dá através de estratégias discursivas que falseiam a realidade, por exemplo, na forma de ideias relacionadas à defesa da liberdade e da igualdade de todos perante a lei, da responsabilidade de todos, do “juntos podemos tudo”. Trata-se de uma posição que se sustenta, afirma Orlandi (2016ORLANDI, E. P. Discurso em análise: sujeito, sentido e ideologia. 3. ed. Campinas: Pontes Editores, 2016., p. 213), “na pretendida consciência coletiva”.

Lagazzi (1988LAGAZZI, S. O desafio de dizer não. Campinas: Pontes, 1988.) destaca que a partir do modelo ideológico capitalista, expressões de caráter subjetivo relacionadas à liberdade e à responsabilidade foram sendo paulatinamente internalizadas pelo sujeito, desconsiderando-se os fatores históricos de sua determinação, até o ponto de serem naturalizadas, atribuindo-se ao próprio sujeito a origem de seus sentidos.

A reprodução do discurso hegemônico sobre o comunismo segue a mesma lógica. Nos primeiros AIs, devido à urgência das forças militares por obter apoio imediato após o golpe, a representação do governo Goulart como uma ameaça, supostamente conduzindo o Brasil ao comunismo, não era algo inédito. Essa narrativa, na verdade, foi uma ressignificação de uma discursividade que teve início cinco décadas antes, especialmente após a Revolução Russa de 1917, e que foi continuamente alimentada pela mídia corporativa, pela Igreja Católica e por outros setores da sociedade.

A partir de Courtine (2009COURTINE, J.-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos Reuillard. São Carlos: EduFSCar, 2009., p. 104), para quem “toda produção discursiva que se efetua nas condições determinadas de uma conjuntura movimenta - faz circular - formulações anteriores, já enunciadas”, buscamos compreender a rede de formulações sobre o outro nos AIs. Para desvelar os sentidos dessa discursividade, mobilizamos ainda a memória discursiva, vinculada “à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas regradas por aparelhos ideológicos” (Courtine, 2009, p. 105-106).

Interessa-nos aqui o processo de reprodução da imagem do outro pelas forças militares nos dezessete AIs da ditadura militar brasileira, a partir dos quais retiramos as dez SDs que fazem parte do nosso corpus discursivo. Através da identificação da rede de memórias que alimenta essa discursividade, da compreensão de seu funcionamento, destacamos as principais estratégias mobilizadas nessas SDs na seção a seguir.

3 O OUTRO NOS ATOS INSTITUCIONAIS DO ESTADO MILITAR

As SDs relacionadas para este estudo foram retiradas dos preâmbulos de cinco AIs publicados pelas forças armadas entre 1964 e 1969. A escolha se deu em razão de apresentarem maior quantidade de marcas e pistas referentes às estratégias utilizadas pelos militares para convencer os brasileiros a apoiarem a nova situação política.

Assim, oito dias após a destituição de João Goulart, a junta militar formada após o golpe assinou o primeiro AI, no qual se assegurava a continuação do sistema democrático no país. Na prática, as primeiras medidas foram em sentido contrário, com destaque para a hierarquização entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, a interrupção das garantias constitucionais de estabilidade e a suspensão e cassação de direitos políticos pelo Estado militar, excluindo-se a apreciação judicial.

As medidas foram apresentadas como necessárias para salvar o Brasil da ameaça comunista, reproduzindo-se o discurso de que a suspensão das garantias constitucionais seria temporária, pois a situação iria se normalizar em 31 de janeiro de 1966, cerca de dois anos depois, quando terminaria o mandato do presidente eleito pelo Congresso Nacional por eleição indireta, assumindo, em seu lugar, o presidente eleito via eleição direta em 3 de outubro de 1965. Todavia, a ditadura militar terminaria somente em 1985.

Nos primeiros dias, enquanto os apoiadores do regime (mídia corporativa, igreja católica, empresariado, políticos conservadores e nem tão conservadores, classe média) reproduziam o discurso de que a democracia havia vencido, através de dizeres como “a democracia está sendo restabelecida” e “ressurge a democracia”, como destacava a capa do Jornal O Globo do dia 2 de abril de 1964, a realidade era bem diferente.

Silenciando os interesses que levaram ao golpe, os militares justificaram a tomada do poder no primeiro AI como necessária para o país, como indicam as seguintes SDs:

SD1 - Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do País. (AI-1, 9 de abril de 1964, grifo da autora).

SD2 - Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. (AI-1, 9 de abril de 1964, grifo da autora).

Nas SDs acima, observa-se que o discurso militar é enfático ao atribuir ao governo de João Goulart a responsabilidade pela crise que provocou sua deposição, justificando, assim, a participação dos militares no evento de 1º de abril. Dessa forma, a busca de legitimidade nesse primeiro momento está vinculada a uma representação negativa da situação anterior, definida ora como governo que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País (SD1), ora como bolsão comunista (SD2).

As palavras sublinhadas são algumas dentre outras associadas pelo discurso militar à esquerda, formando uma rede de sentidos que remete, sobretudo, à revolução russa (1917). O verbo bolchevizar acentua essa memória; sua origem remete ao termo bolchevismo, tendência política adotada pelo governo da URSS. Já a segunda expressão, bolsão comunista, é vinculada a uma metáfora biológica-médica, à purulência, indício de doença infecciosa, que, segundo os militares, já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Daí a necessidade de drenar o bolsão comunista, ou seja, de extrair o mal (o governo Goulart) e tratar a infecção (o comunismo) antes que esta se instalasse de vez.

Como vimos, todo discurso político supõe a existência de outros discursos, outros sentidos, em determinadas condições de produção, relacionadas tanto ao contexto imediato da enunciação como ao contexto sócio-histórico.

Nesse sentido, Orlandi (2012aORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 10. ed. Campinas: Pontes Editores, 2012a., p. 39) explica que as condições de produção funcionam segundo certos fatores, como as relações de sentidos. “[...] um discurso aponta para outros que o sustentam, assim como para dizeres futuros”, indica a autora, antes de reforçar que “um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis”. Em síntese, todo discurso é um estado de um processo mais amplo, que não tem um começo definido, ressignificando-se em diferentes contextos.

Ainda segundo Orlandi (2012aORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 10. ed. Campinas: Pontes Editores, 2012a., p. 30-31), “A maneira como a memória ‘aciona’, faz valer as condições de produção, é fundamental”. Em seguida, a autora define a memória discursiva como interdiscurso, ou “aquilo que fala antes, em outro lugar”, referindo-se a essa categoria como “o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra”. Orlandi (2012a, p. 31) afirma ainda que os dizeres disponibilizados pelo interdiscurso “afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada”.

Nos estudos que desenvolve sobre o discurso político, Verón (1987VERÓN, E. La palabra adversativa. Observaciones sobre la enunciación política. In: VERÓN, E. et al. El discurso político. Lenguajes y acontecimientos. Buenos Aires: Hachette, 1987. p. 11-26.) indica dois níveis de funcionamento: as entidades do imaginário político e os componentes que demarcam seu enunciado. Das entidades, as metadiscursivas singulares se fazem presentes nas duas SDs em análise através dos itens lexicais País (SD1) e Brasil (SD2). Trata-se de entidades mais amplas se comparadas aos coletivos políticos ligados às identidades dos enunciadores e destinatários (trabalhadores, cidadãos, brasileiros). Ao mobilizar as entidades metadiscursivas singulares, os militares buscam criar uma unidade com os brasileiros, em contraste com a imagem do outro, vinculada ao governo Goulart, de modo a anular sua representatividade junto aos brasileiros, reforçada pela afirmação de que sua destituição se deu por exclusivo interesse do País (SD1).

Mecanismo através do qual o enunciador político faz a constatação de uma situação (Verón, 1987VERÓN, E. La palabra adversativa. Observaciones sobre la enunciación política. In: VERÓN, E. et al. El discurso político. Lenguajes y acontecimientos. Buenos Aires: Hachette, 1987. p. 11-26.), o componente descritivo é recorrente no discurso militar. Nas duas SDs, seu emprego funciona no sentido de relacionar a situação passada e o momento subsequente a 1º de abril. Assim, constata-se um fato - o governo Goulart se dispunha a bolchevizar o País (SD1) - para justificar a ruptura constitucional.

Trata-se, pois, de uma relação conduzida no sentido de se atribuir a Goulart a culpa pela crise institucional pela qual passava o país e, concomitantemente, de representar os militares como “salvadores da pátria”. Própria dos processos discursivos, a construção da imagem do outro é acompanhada quase sempre da imagem que o sujeito do discurso elabora de si mesmo, diz Pêcheux (2014PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). Parte 1. Análise de conteúdo e teoria do discurso. In: GADET, F.; HAK, T. (org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução de Bethania S. Mariani et al. 5. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014.). Era importante alcançar o apoio que Goulart havia conquistado em virtude das reformas de base, a principal bandeira de seu governo, e que reunia um conjunto de iniciativas em torno das reformas bancária, fiscal, urbana, administrativa, agrária e universitária (FGV, 2023).

No entanto, vale lembrar que, naquela conjuntura, a classe menos favorecida, ainda que simpatizasse com as reformas de base, não apoiava Goulart em sua totalidade. Do lado urbano, a classe trabalhadora se organizava contra a carestia e em defesa de melhores condições de trabalho. Do lado rural, os camponeses, “uma classe sempre calada, esmagada, sempre muito mais reprimida que os trabalhadores urbanos” (Oliveira, 2014OLIVEIRA, F de. Dilemas e perspectivas da economia brasileira no pré-1964. In: TOLEDO, C. N. de (org.). 1964. Visões críticas do golpe: democracia e reformas no populismo. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. p. 29-36., p. 34), começavam a se levantar como movimento agrário. Nesse cenário, crescia o temor da elite de perder o controle sobre as decisões políticas no país.

Na mesma época, para realçar a imagem de vilão de João Goulart, os apoiadores dos militares apelavam para o discurso religioso, assim recorrendo a uma das bases do imaginário sobre o comunismo no Brasil. Isso se reflete na SD2, quando o documento se refere ao militar que seria eleito presidente pelo congresso dali a poucos dias como aquele que iria cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista. Assim, retomava-se um pré-construído que circulava às vésperas do golpe em forma de propaganda anticomunista, alimentada pelos opositores do governo Goulart3 3 Organizadas pelo clero da igreja católica, com o apoio da classe empresarial, de partidos políticos e da classe média, as Marchas da família com Deus pela liberdade, realizadas entre 19 de março e 8 de junho de 1964 em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, alertavam para a comunização do governo Goulart. .

Marcado por promessas, o discurso militar buscava convencer os brasileiros de que a nova situação possibilitaria a superação da crise política e econômica no país. Para isso, utilizava como estratégia o componente pragmático, vinculado a promessas e comprometimentos (Verón, 1987VERÓN, E. La palabra adversativa. Observaciones sobre la enunciación política. In: VERÓN, E. et al. El discurso político. Lenguajes y acontecimientos. Buenos Aires: Hachette, 1987. p. 11-26.). Assim, justificava-se a modificação da constituição federal, de modo a garantir mais poderes ao presidente militar.

Um ano e meio após a publicação do AI-1, a ditadura militar, então sob a presidência do marechal Castello Branco, anuncia o AI-2. No período que compreendeu os dois decretos, as forças militares deram mostras de que a ditadura permaneceria por tempo indeterminado no Brasil, ao contrário do que garantia o primeiro AI, que previa a realização de eleição direta para presidente em 3 de outubro de 1965, com o eleito vindo a assumir o mandato em 31 de janeiro de 1966. Ao invés disso, o marechal Castello Branco permaneceu na presidência até março de 1967, vindo a sucedê-lo outro militar4 4 Ao todo, cinco militares se revezaram na presidência da república entre 1964 e 1985. .

Além de estabelecer eleições indiretas para presidente, o AI-2 extinguiu todos os partidos políticos, passando o país a adotar o bipartidarismo. Com João Goulart exilado no Uruguai, a imagem do inimigo da nação é ressignificada, sendo-lhe agregados outros elementos, como é possível observar nas duas SDs abaixo:

SD3 - A Revolução é um movimento que veio da inspiração do povo brasileiro para atender às suas aspirações mais legítimas: erradicar uma situação e um Governo que afundavam o País na corrupção e na subversão. (AI-2, 27 de outubro de 1965, grifo da autora).

SD4 - Agitadores de vários matizes e elementos da situação eliminada teimam, entretanto, em se valer do fato de haver ela reduzido a curto tempo o seu período de indispensável restrição a certas garantias constitucionais, e já ameaçam e desafiam a própria ordem revolucionária, precisamente no momento em que esta, atenta aos problemas administrativos, procura colocar o povo na prática e na disciplina do exercício democrático. (AI-2, 27 de outubro de 1965, grifo da autora).

Em relação às duas primeiras sequências, as SD3 e SD4 ampliam a lista de acusações ao governo Goulart, numa demonstração de que as justificativas apresentadas anteriormente não foram suficientes. Isso se deu em razão do descontentamento de parcela da sociedade, mesmo de antigos aliados, com a continuidade do regime, com a demora dos militares em concretizar as promessas iniciais, em meio ao alto custo de vida. As críticas mais incômodas tiveram como resposta o aumento da repressão estatal.

Somando-se à imagem de comunista, o governo de João Goulart passa a ser caracterizado também de corrupto, como revela a SD3. Na sequência seguinte, temos o aparecimento de um outro indefinido, Agitadores de vários matizes, que divide espaço, via conjunção aditiva (e), com o personagem anterior, elementos da situação eliminada (SD4). Inseridos em um mesmo coletivo de identificação, a configuração de ambos, a partir dos adjetivos agitadores e elementos, busca intensificar a negação do outro pelo Estado militar, seja inserindo-o em um campo semântico vinculado à marginalidade, próprio dos sujeitos que buscam romper com as regras determinadas para o conjunto da sociedade, seja apagando suas especificidades.

Nas SD3 e SD4, os militares recorrem novamente à entidade metadiscursiva, dessa vez a partir do léxico povo, para forçar o apoio dos brasileiros ao regime e, por conseguinte, a oposição de ambos ao outro negativo. A esse respeito, Piovezani (2009PIOVEZANI, C. Verbo, corpo e voz: dispositivos de fala pública e produção da verdade no discurso político. São Paulo: Ed. Unesp, 2009., p. 138) ressalta que a consolidação da identidade coletiva no discurso político pode se apoiar “na identificação de um ‘outro’ e de um ‘alhures’ contrapondo ao ‘nós, que aqui convivemos...’, um ‘eles, que lá estão...’”. Essa busca por unidade nacional esbarrava, paradoxalmente, na ampliação de garantias para a exploração do grande capital no país, conquistada graças, sobretudo, à diminuição das condições legais para os trabalhadores resistirem a sua exploração (Netto, 2014NETTO, J. P. Pequena história da ditadura brasileira (1964-1985). São Paulo: Cortez, 2014.). Junto a isso, o Estado ditatorial avançava na criação e no aperfeiçoamento de mecanismos de investigação e perseguição de opositores.

Silenciando o avanço da repressão, a SD3 insiste no discurso em torno de uma possível união civil-militar contra a situação anterior. 1964 teria sido motivado pela aversão do povo brasileiro ao governo de Goulart, destacando que, para o regime, a vontade do povo era determinante para suas decisões. Desse modo, o Estado militar lança mão da figura do porta-voz, através da qual se coloca como legítimo representante do povo. Para Pêcheux (1990PÊCHEUX, M. Delimitações, inversões, deslocamentos. Tradução de José Horta Nunes. Cadernos de Estudos Linguísticos, n. 19, p. 7-24, jul./dez., 1990.), o efeito que o porta-voz exerce é, sobretudo, visual. Falando em nome dos que representa, ele abre uma interlocução com seus adversários, colocando-se em posição de negociador potencial, indo além ao assumir como seus os anseios e vontades daqueles, de acordo com o teórico.

Assim funciona o modelo de representação política, como se a vontade e a necessidade das pessoas pudessem ser unificadas. Voz do consenso, a figura do porta-voz, afirma Zoppi-Fontana (2014, p. 83), situa-se ao “longo de um processo de sedimentação histórica dos efeitos de sentido produzidos a partir de um modelo de enunciação política sustentado [...] por certo imaginário sobre a representação política e o poder do Estado”. Dessa maneira, anula-se a participação do povo no processo sócio-histórico, com este sendo tratado como uma massa uniforme limitada a eleger representantes políticos, dentro do que a lei estabelece, com vistas ao controle das práticas sociais.

Na SD4, a entidade metadiscursiva povo sofre um deslizamento de sentido em relação ao sintagma povo brasileiro em SD3, passando de inspiração para a tomada do poder pelas forças militares à massa de manobra, que se deixa manipular, conduzir. É o que inferimos quando a mesma sequência aponta que a ordem revolucionária [...] procura colocar o povo na prática e na disciplina do exercício democrático. Ao mesmo tempo, vemos a reprodução do discurso que tenta vincular o regime militar à democracia, reforçando os argumentos anteriores. Na mesma SD, o discurso militar minimiza a perda de direitos constitucionais através do uso do pronome indefinido - indispensável restrição a certas garantias constitucionais, antecedida da afirmação de que a perda seria por pouco tempo, ao contrário do que ocorreu.

Cerca de três anos após o AI-2, a ditadura militar aprovava o AI-5, o primeiro sob a presidência do Marechal Arthur da Costa e Silva. Em síntese, o documento dava mais poderes ao presidente militar, autorizando-o a decretar, sem apreciação judicial, o recesso no Congresso Nacional, a intervir em Estados e Municípios, a cassar e a suspender os direitos políticos de qualquer brasileiro por dez anos e a suspender a garantia do habeas-corpus, entre outras competências. Nas sequências selecionadas do preâmbulo AI-5, é possível notar o recrudescimento da ditadura militar:

SD5 - CONSIDERANDO que o Governo da República [...] não só não pode permitir que pessoas ou grupos anti-revolucionários contra ela trabalhem, tramem ou ajam, sob pena de estar faltando a compromissos que assumiu com o povo brasileiro [...]. (AI-5, 13 de dezembro de 1968, grifo da autora).

SD6 - CONSIDERANDO, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la; (AI-5, 13 de dezembro de 1968, grifo da autora).

SD7 - CONSIDERANDO que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária; (AI-5, 13 de dezembro de 1968, grifo da autora).

SD8 - CONSIDERANDO que todos esses fatos perturbadores da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição, (AI-5, 13 de dezembro de 1968, grifo da autora).

Abrindo em caixa alta cada um dos 6 parágrafos do preâmbulo do AI-5, o termo considerando atualiza uma rede de memórias, recorrendo, inclusive, a trechos de AIs anteriores, que, dentro das condições de produção impostas pelos militares, ganharam novos significados, deixando mais pistas sobre a verdadeira face do regime.

Em relação aos demais atos, o AI-5 traz uma representação mais violenta do outro - pessoas ou grupos anti-revolucionários (SD5); setores políticos e culturais (SD6). Isso nos parece sintomático do processo em curso, marcado pela imposição de uma linha mais dura no poder executivo. O que seria uma situação provisória tornou-se um caminho sem volta para as forças militares. Como consequência, crescia a rejeição e a resistência ao regime, que respondia com leis mais autoritárias e com mais violência, transgredindo as próprias leis. Em face da ineficácia de seu discurso, que caía por terra diante do que acontecia no país, o autoritarismo se impôs ainda mais forte.

Nas quatro SDs, observa-se o deslocamento da imagem de inimigo do Estado militar, antes vinculado ao governo Goulart, para a de um inimigo de múltiplas caras. Assim, o outro sofre uma deriva de sentido. Retomando Orlandi (2016ORLANDI, E. P. Discurso em análise: sujeito, sentido e ideologia. 3. ed. Campinas: Pontes Editores, 2016.), para quem nos processos discursivos há sempre furos, falhas, incompletude e apagamento, que possibilitam compreender os pontos de resistência, observamos nas quatro SDs uma crescente rejeição ao Estado militar, originada de distintos segmentos da sociedade.

Ao se referir à determinação histórica do sujeito e dos sentidos, Orlandi (1999ORLANDI, E. P. Do sujeito na história e no simbólico. Escritos n. 4. Campinas: Laboratório de Estudos Urbanos Nudecri/LABEURB, maio, 1999, p. 17-27., p. 21) observa que a “materialidade dos lugares dispõe a vida dos sujeitos e, ao mesmo tempo, a resistência desses sujeitos constitui outras posições que vão materializar novos (ou outros) lugares”. Aqui, retomamos a heterogeneidade da cadeia significativa para reforçar a possibilidade de o sujeito se posicionar de forma não esperada por uma FD. “[...] não há ritual sem falha, desmaio ou rachadura”, como diz Pêcheux (1990PÊCHEUX, M. Delimitações, inversões, deslocamentos. Tradução de José Horta Nunes. Cadernos de Estudos Linguísticos, n. 19, p. 7-24, jul./dez., 1990., p. 17).

Logo, se a classe hegemônica tem o poder de interpelar a classe trabalhadora quanto à aceitação de suas práticas excludentes, através dos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) de um lado; de outro há, na própria formação social capitalista, inclusive nos AIE, espaços de resistência. “[...] Os AIE constituem, simultânea e contraditoriamente, o lugar das condições ideológicas da transformação das relações de produção, isto é, da revolução, no sentido marxista-leninista”, indica Pêcheux (2019PÊCHEUX, M. Formações ideológicas, aparelhos ideológicos de Estado, formações discursivas. In: OLIVEIRA, G. A.; NOGUEIRA, L. (org.). Encontros na Análise de Discurso: efeitos de sentidos entre continentes. Campinas: Ed. da Unicamp, 2019., p. 311). Na prática, isso se dá porque, sendo o homem um ser histórico, a mudança é sempre possível. O que explica as diferentes fases da história da humanidade.

Como forma de controlar os conflitos que foram aumentando à medida que as promessas das forças armadas caíam no vazio, restava ao Estado militar alimentar suas narrativas e reforçar seu aparelho repressor. Assim, no AI-5, continuava a empregar como recurso argumentativo as entidades metadiscursivas singulares, a partir de itens lexicais como povo brasileiro (SD5), Nação (SD6), povo (SD6) e País (SD7). Dessa forma, além de reforçar a caracterização da destituição de Goulart há quase quatro anos, como um acontecimento civil-militar, justificava o aumento da repressão no país.

Além das entidades metadiscursivas, o discurso militar também usa formas nominalizadas para marcar a oposição entre os brasileiros e o outro ideológico. Entidades do imaginário político, as formas nominalizadas têm um valor metafórico correspondente à posição política do enunciador, afirma Verón (1987VERÓN, E. La palabra adversativa. Observaciones sobre la enunciación política. In: VERÓN, E. et al. El discurso político. Lenguajes y acontecimientos. Buenos Aires: Hachette, 1987. p. 11-26.). Nesse sentido, merece destaque o termo Revolução (SD1, SD3, SD6, SD7), com o qual os militares e seus apoiadores denominavam a tomada do poder. Desse modo, observa-se a necessidade de reafirmar a legitimidade do Estado militar no movimento de retomada de dizeres, sob o argumento de que a ruptura institucional havia nos livrado do comunismo.

Trata-se de uma discursividade repetida rotineiramente pelas forças armadas, com a conivência da mídia corporativa e de setores conservadores, apagando a real função da ditadura - a de garantir o processo de expansão do grande capital no Brasil. “[...] Lócus de formulação e circulação de sentidos” (Silva Sobrinho, 2023, p. 62), a mídia brasileira foi vital para a constituição do imaginário sobre o comunismo no país, atuando como porta-voz da classe hegemônica ao reproduzir sentidos sobre a esquerda, deturpando-a ao ponto de associá-la à imagem de inimigo do povo.

Ainda sobre o apoio dos meios de comunicação ao golpe militar no Brasil, Vitale (2013VITALE, M. A. Sentidos de “revolução” y “revolución” en la prensa escrita golpista de Brasil (1964) y de Argentina (1966). Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso. São Paulo, v. 1, n. 8, jan./jun., p. 254-274, 2013. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/13787/11717. Acesso em: 7 maio 2017.
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), referindo-se às Organizações Globo, destaca que, graças à qualificação que o léxico revolução recebeu em reescrituras como vitória democrática e jornada de restauração democrática, ele adquiriu o sentido de movimento democrático. Não foi por acaso, portanto, que os apoiadores das forças armadas atribuíram ao povo o papel de protagonista da “revolução”, reproduzindo de forma contínua essa afirmação e, implicitamente, levando o governo Goulart a ser representado como antidemocrático.

Na SD5, temos a ressignificação do léxico em análise acompanhada de sua quebra de sentido, visto que a colocação pessoas ou grupos anti-revolucionários (SD5), vinculada ao outro (comunista), evidencia uma barreira que separa duas FDs antagônicas. Portanto, por antirrevolucionários, entendemos a posição-sujeito que é determinada pela forma-sujeito que se desidentifica5 5 Em síntese, o sujeito poderá assumir três posições: de identificação com a ordem dominante por meio da reprodução da sua ideologia; de contraidentificação com essa ordem (através do distanciamento, do questionamento, da dúvida), submetendo-se, ao mesmo tempo, a ela; e de desidentificação com a ideologia hegemônica, levando-o a se identificar com uma FD contra-hegemônica (Pêcheux, 1988). da FD dominante (capitalista). Com relação à estrutura do termo antirrevolucionários, recorremos a Dubois (2014DUBOIS, J. Lexicologia e análise de enunciado. In: ORLANDI, Eni Puccinelli (org.). Gestos de leitura. Da história no discurso. 4. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. p. 107-123.) para analisar o uso do prefixo anti, identificado pelo autor como traço característico do discurso político (inserido por ele na categoria de discurso polêmico), cujo objetivo, afirma, é persuadir, estando seu funcionamento ligado à negação do discurso do outro.

No contexto da ditadura militar brasileira, o uso do prefixo sinaliza o retorno de um pré-construído que compõe uma rede de filiação de sentidos que busca desconstruir as ideias não hegemônicas, negativando-as e silenciando seus ideais. O discurso político é, pois, um lugar de memória, ou, conforme Courtine (2006COURTINE, J.-J. Metamorfoses do discurso político. Derivas da fala pública. Tradução de Nilton Milanez e Carlos Piovezani Filho. São Carlos: Claraluz, 2006., p. 88), “um sistema de conservação de arquivos, uma rede de difusão que permite fazer ressurgir os enunciados, tornando-os, uma vez mais, disponíveis, quando as necessidades da luta os reclamam”. Nessa perspectiva, retornando ao Brasil de 1968, quando foi publicado o AI-5, a atualização da imagem do outro está diretamente ligada à crescente resistência aos militares, via manifestações organizadas por estudantes, greves de trabalhadores, ação dos militantes de esquerda, contra os quais os militares respondiam com mais repressão.

Com um presidente militar mais linha dura, as SDs em análise apontam para o recrudescimento do Estado6 6 Logo após a publicação do AI-5, jornalistas e políticos críticos da ditadura militar foram presos pelo regime, a exemplo do ex-presidente Juscelino Kubitschek e do ex-governador Carlos Lacerda, crítico ferrenho de João Goulart. 11 deputados federais tiveram seus mandatos cassados (FGV, 2023). , que classificava a crise instalada no Brasil desde o golpe de guerra revolucionária, como evidencia a SD7, que anuncia ser imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução. Aqui, vemos o uso do componente prescritivo da ordem do dever (Verón, 1987VERÓN, E. La palabra adversativa. Observaciones sobre la enunciación política. In: VERÓN, E. et al. El discurso político. Lenguajes y acontecimientos. Buenos Aires: Hachette, 1987. p. 11-26.) com o qual os militares indicavam a necessidade de enfrentar os fatos perturbadores da ordem (SD8), obrigando os que por ele [evento de 1964] se responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição (SD8). Aqui, notamos a recorrência ao discurso religioso7 7 Em 1949, Dom frei Feliciano Vasconcelos assim justificava o discurso anticomunista reproduzido pela igreja católica de Alagoas: “O comunismo, prático e doutrinário ou dialético, é o tema que mais fere a consciência cristã na atualidade; é a mais vergonhosa chaga física, moral e religiosa de nossos dias; a mais abundante fonte de apostasia da fé e ruína espiritual; a causa mais eficiente da eterna condenação de inúmeras almas.” (Vasconcelos, 1949, p. 16 apud Medeiros, 2007, p. 131). , um dos pilares do imaginário social sobre o comunismo na formação social capitalista.

Entre dezembro de 1968 e outubro de 1969, o regime militar promulgou mais 12 AIs. Como consequência, o poder ficou concentrado ainda mais nas mãos dos militares. 1969 representou o ápice da repressão oficial, com o regime estabelecendo o banimento de adversários do país, a prisão perpétua em casos de ameaça à segurança do Estado e a pena de morte para os opositores mais atuantes, os militantes de esquerda. Desse modo, o aparelho jurídico teve, mais uma vez, de se moldar ao “processo revolucionário”.

Ao agir ideologicamente, o direito não se limita à ameaça à normalidade social, afirma Sartori (2010SARTORI, V. B. Lukács e a crítica ontológica ao direito. São Paulo: Cortez, 2010., p. 78), que explica que “normal”, desse ponto de vista, é tudo o que se associa às relações sociais “marcadas pelo antagonismo inerente à sociedade civil-burguesa”. Em síntese, o autor conclui que o direito é, por natureza, um direito de classe. Sob a “aparência da paz social”, a língua jurídica permite conduzir os conflitos sociais, apagando seu caráter político, pontua Pêcheux (1990PÊCHEUX, M. Delimitações, inversões, deslocamentos. Tradução de José Horta Nunes. Cadernos de Estudos Linguísticos, n. 19, p. 7-24, jul./dez., 1990., p. 11). Na mesma direção, Mészáros (2011MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 108) ressalta que, sem a intervenção da estrutura jurídica, “até os menores ‘microcosmos’ do sistema do capital [...] seriam rompidos internamente pelos desacordos constantes, anulando desta maneira sua potencial eficiência econômica”.

O AI-5 deu origem a mais doze AIs, 59 atos complementares e oito emendas constitucionais, “tornando plena a legislação de exceção” pelos militares e legalizando, assim, o uso do “poder coercitivo como alternativa para superar os conflitos políticos”. Menos de dois meses após o AI-5, o Estado militar, a partir do AI-6, diminuiu o número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) de dezesseis para onze: três ministros foram cassados e dois foram aposentados compulsoriamente pelo regime por protestarem contra a cassação dos colegas (FGV, 2023). O AI-6 previu ainda que os crimes contra a segurança nacional não seriam mais julgados pelo STF, mas pela Justiça Militar.

Cerca de três meses depois, o AI-10 previu a perda de cargos ou funções na administração pública, direta ou indireta, e em instituições de ensino e pesquisa ou em organizações consideradas de interesse nacional de funcionários públicos e demais profissionais que se manifestassem contra o regime militar. Desse modo, o inimigo da nação recebe outros contornos, como demonstram as duas sequências abaixo:

SD9 - [...] pessoas atingidas pelas sanções políticas e administrativas do processo revolucionário devem ter igualdade de tratamento sob o império das normas institucionais e demais regras legais delas decorrentes. (AI-6, 1 de fevereiro de 1969).

SD10 - Considerando que se impõe, também, a determinação de normas uniformes a serem impostas a todos quantos, servidores públicos, ou não, hajam sido ou venham a ser atingidos pelas disposições dos Atos Institucionais editados (AI-10, 16 de maio de 1969).

Representado como agitadores e elementos na SD4, o outro da SD9 não tem o seu significado ligado a um campo semântico da ordem do que é marginal, ao menos segundo o imaginário social, havendo, pois, um deslizamento de sentido. Por outro lado, não apresenta uma singularidade que o distinga dos opositores anteriores, visto que também se enquadra na imagem de inimigo, de obstáculo para os militares e apoiadores.

Numa leitura superficial das SD9 e SD10, retiradas, respectivamente, do AI-6 e do AI-10, se desconsiderarmos as condições de produção que as determinaram, somos levados a acreditar que o Estado militar respeitava os princípios democráticos, já que formas nominalizadas como igualdade de tratamento (SD9) e normas uniformes (SD10) são pré-construídos filiados ao imaginário referente à democracia, ainda que se saiba que o respeito a esses princípios não é o fator determinante no funcionamento do direito, mesmo em sociedades avançadas socialmente, menos ainda em ditaduras.

A relutância dos militares e de seus apoiadores em não reconhecer a situação instalada no Brasil como própria de uma ditadura é reveladora de uma formação social que sofre a determinação de um modo de produção que faz circular discursos em torno da valorização da liberdade, da garantia de leis justas para todos. Dessa forma, nega-se a ideologia, apaga-se o real da história, a sua materialidade (Orlandi, 2016ORLANDI, E. P. Discurso em análise: sujeito, sentido e ideologia. 3. ed. Campinas: Pontes Editores, 2016.). Ir de encontro a esses princípios, segundo o imaginário social, é inaceitável. Por outro lado, e contraditoriamente, o outro ideológico é representado como violento, cerceador das liberdades, intentando colocar em prática um sistema injusto, cruel para todos.

No discurso militar em análise, temos a mobilização do componente didático (da ordem do saber) funcionando na mesma direção. Através dele, o enunciador político faz circular um princípio geral, ou uma verdade universal (Verón, 1987VERÓN, E. La palabra adversativa. Observaciones sobre la enunciación política. In: VERÓN, E. et al. El discurso político. Lenguajes y acontecimientos. Buenos Aires: Hachette, 1987. p. 11-26.). A representação dos opositores do regime como comunistas, independentemente de posição ideológica, contou com a crença, amplamente difundida ao longo de décadas, de que qualquer iniciativa que representa um avanço social, por mínimo que seja, advém de comunistas, ou de “esquerdistas” - crença que segue firme em parcela significativa dos brasileiros.

Em estudo desenvolvido a partir das falas dos cinco presidentes que passaram pelo ditadura militar, Indursky (2013INDURSKY, F. A fala dos quartéis e as outras vozes. 2. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2013., p. 69) constata que suas autorrepresentações são construídas a partir da imagem de um presidente que “acredita no jogo democrático e em suas instituições, razão pela qual está investido de compromissos e deveres cívicos”. Ainda segundo a autora, essa representação revela o desejo dos militares por satisfazer boa parte do imaginário da opinião pública que acredita que o presidente deve ser um democrata. Com isso, buscava-se dotar o Estado militar de autenticidade.

Avançando na análise das duas últimas sequências discursivas, observamos que o outro, ressignificado de pessoas atingidas pelas sanções políticas e administrativas do processo revolucionário (SD9) e todos quantos, servidores públicos, ou não, hajam sido ou venham a ser atingidos pelas disposições dos Atos Institucionais (SD10), tem a sua imagem expandida com a especificação de um novo personagem, a saber, os servidores públicos. Mantidos sob permanente vigilância pelo Estado militar, muitos deles foram aposentados, exonerados e banidos do país.

Logo, quando afirma que os atingidos pelas sanções militares teriam igualdade de tratamento (SD9) e/ou processos fundamentados em normas uniformes (SD10), o Estado militar falseia a realidade. Como vimos ao longo deste estudo, seu compromisso não era com a democracia ou com o povo brasileiro, mas com o grande capital. Nesse sentido, ao indicar que as pessoas atingidas pelas sanções políticas e administrativas do processo revolucionário devem ter igualdade de tratamento sob o império das normas institucionais e demais regras legais delas decorrentes (SD9), silenciando a natureza do direito, as forças militares silenciavam que essa igualdade de tratamento se dava a partir de apreciações judiciais sumárias, sem considerar questões extrínsecas e os ritos necessários para cada caso, transgredindo, não raras vezes, as próprias leis.

4 CONCLUSÃO

Neste estudo, buscamos compreender as estratégias discursivas utilizadas pelo Estado militar para convencer os brasileiros a aceitarem a ruptura institucional e as medidas tomadas em seguida. Elegendo como responsável pela crise instalada no Brasil um adversário construído a partir de uma rede de memórias que atribui à esquerda comunista todos os males existentes no país, as forças militares recorreram a uma discursividade que é ressignificada de acordo com a configuração das condições de produção imediatas, ganhando força em períodos de crise do capital.

Democracia e ditadura são formas políticas de que o sistema capitalista lança mão em diferentes momentos para preservar o status quo da classe hegemônica, afirma Tonet (2017TONET, I. O fim da democracia burguesa. Diário liberdade, Maceió, 13 fev. 2017. Disponível em: https://gz.diarioliberdade.org/mundo/item/135077-o-fim-da-democracia-burguesa.html. Acesso em: 4 jan. 2019.
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), sem desconsiderar o valor da democracia para a humanidade. Neste estudo, vimos que, a partir dessa determinação, a representação do outro (o inimigo da nação) foi ganhando novos sentidos a cada edição dos AIs - à medida que o regime autorizava leis mais autoritárias, disfarçadas de interesse popular e democrático.

Junto a essa narrativa, a negação do outro, mais do que combater um inimigo comunista em potencial, buscava impedir avanços no campo social, por mínimos que fossem, além de anular conquistas da classe trabalhadora.

Longe de representar o fim do conflito que, de fato, a desencadeou, a ditadura militar passou por um processo que foi nomeado de “democratização” até chegar ao fim em 1985, quando o capitalismo ganhava contornos neoliberais. O retorno da democracia ao Brasil, recebida com alegria pelos brasileiros, silenciou temporariamente as narrativas dos militares. Todavia, elas despertaram com força em 2013, novamente sob a determinação do grande capital, em mais uma crise estrutural, quadro que se mantém.

Portanto, as conclusões de nossa análise não se limitam ao período do regime militar. Isso ocorre porque a memória desse período continua sendo atualizada, com uma parte significativa dos eleitores brasileiros ainda associando o “outro/inimigo” ao comunismo. Essa associação influenciou a eleição de um candidato saudosista da ditadura em 2018, o que resultou no envolvimento de militares no governo brasileiro. Além disso, observamos a reprodução de narrativas em torno do lema “Deus, Pátria e família”, semelhante ao período que estudamos. Essas narrativas foram acompanhadas por discursos de ódio e notícias falsas, que funcionaram como uma espécie de cortina de fumaça para o aumento da precarização do trabalho e, consequentemente, da miséria no país, culminando na tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023.

Logo, ao compreender a discursividade sobre o outro que atravessa os AIs na ditadura militar no período de 1964-1969, nossa análise é válida também para pensarmos a própria formação social do Brasil.

REFERÊNCIAS

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  • ZOPPI-FONTANA, M. Cidadãos modernos: discurso e representação política. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.
  • *
    Estudo orientado pela profa. Dra. Alejandra Vitale, do Instituto de Linguística da Universidade de Buenos Aires (UBA), com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), junto ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Literatura da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
  • 1
    Florestan Fernandes e Caio Prado Júnior (2012), entre outros estudiosos, vinculam o golpe de 1964 a 1º de abril, indo de encontro, assim, às narrativas que indicam 31 de março.
  • 2
    “[...] Forma com que a burguesia cria e expõe suas ideias necessárias à manutenção da ordem do sistema que lhe determinou a sua classe como dominante” (Magalhães, 2019), o irracionalismo tem como principais características a falta de coerência, o apelo à emoção, o culto à violência e o ódio à esquerda, que é tachada de comunista em sua totalidade, tendo como base de sustentação o não pensar criticamente.
  • 3
    Organizadas pelo clero da igreja católica, com o apoio da classe empresarial, de partidos políticos e da classe média, as Marchas da família com Deus pela liberdade, realizadas entre 19 de março e 8 de junho de 1964 em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, alertavam para a comunização do governo Goulart.
  • 4
    Ao todo, cinco militares se revezaram na presidência da república entre 1964 e 1985.
  • 5
    Em síntese, o sujeito poderá assumir três posições: de identificação com a ordem dominante por meio da reprodução da sua ideologia; de contraidentificação com essa ordem (através do distanciamento, do questionamento, da dúvida), submetendo-se, ao mesmo tempo, a ela; e de desidentificação com a ideologia hegemônica, levando-o a se identificar com uma FD contra-hegemônica (Pêcheux, 1988).
  • 6
    Logo após a publicação do AI-5, jornalistas e políticos críticos da ditadura militar foram presos pelo regime, a exemplo do ex-presidente Juscelino Kubitschek e do ex-governador Carlos Lacerda, crítico ferrenho de João Goulart. 11 deputados federais tiveram seus mandatos cassados (FGV, 2023).
  • 7
    Em 1949, Dom frei Feliciano Vasconcelos assim justificava o discurso anticomunista reproduzido pela igreja católica de Alagoas: “O comunismo, prático e doutrinário ou dialético, é o tema que mais fere a consciência cristã na atualidade; é a mais vergonhosa chaga física, moral e religiosa de nossos dias; a mais abundante fonte de apostasia da fé e ruína espiritual; a causa mais eficiente da eterna condenação de inúmeras almas.” (Vasconcelos, 1949, p. 16 apud Medeiros, 2007, p. 131).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2021
  • Aceito
    05 Set 2023
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