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O ENUNCIADO “LULA LIVRE” COMO ACONTECIMENTO DISCURSIVO: UM OLHAR SOBRE A SOLTURA DE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

The Utterance “Lula Livre” as a Discursive Event: A View at the release of Luiz Inácio Lula Da Silva

El enunciado “Lula Livre” como acontecimiento discursivo: una mirada sobre la liberación de Luiz Inácio Lula Da Silva

Resumo

Discute-se neste artigo de que forma a libertação do então ex-presidente Lula, em 2019, constitui-se como acontecimento discursivo. Para tanto, ancoramo-nos no aporte teórico-metodológico da Análise de Discurso francesa de orientação pecheuxtiana, mobilizando alguns dos dispositivos que compõem essa perspectiva: condições de produção, memória discursiva, formação discursiva, formação ideológica e posição-sujeito. Analisa-se, assim, o modo como esse acontecimento histórico é discursivizado e produz efeitos de sentido, levando-se em conta possíveis elaborações parafrásticas e polissêmicas do enunciado “Lula Livre”. Considerando-se os diferentes modos de significação desse acontecimento/enunciado, dada a posição-sujeito que o enuncia ou que por ele é interpelada, aponta-se como o dizível é “regulado” pelas condições ideológicas de produção do discurso.

Palavras-chave:
Acontecimento discursivo; Jogo parafrástico; Efeitos de sentido

Abstract

This article explores how the release of the then-former president Lula in 2019 constitutes a discursive event. So, we anchor ourselves in the theoretical-methodological contribution of French Discourse Analysis with a Pecheuxtian orientation, mobilizing some of the devices that make up this perspective: conditions of production, discursive memory, discursive formation, ideological formation, and subject position. We therefore analyze the way in which this historical event is discursivized and produces effects of meaning, taking into account possible paraphrastic and polysemic elaborations of the utterance “Lula Livre”. Considering the different modes of meaning of this event/utterance, given the subject position that utters it or is challenged by it, we point out how what is sayable is “regulated” by the ideological conditions of speech production.

Keywords:
Acontecimento discursivo; Jogo parafrástico; Efeitos de sentido

Resumen

Este artículo analiza cómo la liberación del entonces expresidente Lula en 2019 constituye un evento discursivo. Para ello, nos anclamos en el aporte teórico-metodológico del Análisis del Discurso francés con orientación pecheuxtiana, movilizando algunos de los dispositivos que componen esta perspectiva: condiciones de producción, memoria discursiva, formación discursiva, formación ideológica y posición del sujeto. Por lo tanto, analizamos la forma en que este acontecimiento histórico es discursivizado y produce efectos de significado, teniendo en cuenta posibles elaboraciones parafrásticas y polisémicas del enunciado “Lula Livre”. Considerando los diferentes modos de significado de este evento/enunciado, dada la posición del sujeto que lo enuncia o es desafiado por él, señalamos cómo lo que es decible está “regulado” por las condiciones ideológicas de producción del habla.

Palabras clave:
Evento discursivo; Juego parafrástico; Efectos de sentido

1 INTRODUÇÃO

Neste artigo, investigamos1 1 Análise desenvolvida no âmbito do Grupo de Estudos Tocantinenses em Análise de Discurso (GETAD). o modo como a soltura do então ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva se constitui como um acontecimento discursivo, observando a forma como esse fato foi discursivizado, a partir do enunciado “Lula livre”, com seus possíveis efeitos de sentido. Em seguida, discutimos questões como: quem está “verdadeiramente” livre com o acontecimento da libertação do ex-presidente Lula? O que significa a liberdade de Lula?

No limite das aparências, essas questões parecem ser impertinentes. Para mostrar sua pertinência, ancoramo-nos na Análise de Discurso francesa (doravante AD) e partimos pelo viés da compreensão do discurso como uma prática em que devemos observar suas condições de produção para, finalmente, abrir espaço para a produção dos efeitos de sentido.

Sabemos que, pela natureza política da linguagem, há uma divisão desigual de sentidos. Por essa perspectiva, assim como o sentido torna-se sentido quando posto em relação a algo, o sujeito é sujeito apenas nas relações sociais com o outro pela linguagem. Ademais, o sujeito toma uma posição no discurso a partir da sua interpelação pela ideologia, isto é, o sujeito é ideologicamente constituído. Desse modo, destacamos a necessidade de se considerar a posição-sujeito para a composição desta análise, procurando ultrapassar os limites das aparências, discutindo questões como: de que modo esse acontecimento está dito? Como ele significa? Quais sentidos foram apagados? Quais são construídos?

Em AD, é necessário considerar a enunciação funcionando no mundo para examinar suas condições de produção. É assim que um enunciado se torna enunciado. Pelo funcionamento discursivo, “acionamos” uma rede de memórias coletivas, que caracteriza uma posição discursiva, e não outra, para produzir determinados sentidos e não outros, como é o caso das significações possíveis em torno do enunciado “Lula livre”, ligado ao acontecimento da soltura de Lula.

Alguns interlocutores e não outros fazem funcionar o acontecimento - o fato novo da libertação do ex-presidente Lula - pelas condições da atualidade e pelo espaço de memória que ele evoca: movimentos de esquerda pela democracia, mobilização realizada pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, organizações em luta pelos direitos dos trabalhadores, movimentos sindicais. Temos, assim, conforme apontamentos de Cazarin e Rasia (2014CAZARIN, E. A.; RASIA, G. S. As noções de acontecimento enunciativo e de acontecimento discursivo: um olhar sobre o discurso político. Letras, v. 24, n. 48. 2014, p. 193-210.), um acontecimento histórico, que é simultaneamente transparente e opaco.

Nesse sentido, mobilizamos, essencialmente, as noções de acontecimento discursivo desenvolvida por Pêcheux (2015aPÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. 7. ed. Campinas: Pontes Editores, 2015a [1983]. [1983]) e explanada por Indursky (2003INDURSKY, F. Lula lá: estrutura e acontecimento. Organon, v. 17, n. 35, p. 101-121, 2003.); de memória discursiva, formação discursiva, formação ideológica, paráfrase e polissemia, para tratar da materialidade linguística e discursiva constitutiva do corpus em discussão.

Em nosso recorte discursivo, procuramos relacionar o enunciado “Lula livre” com o que foi dito e com o que não foi dito, mas que poderia ter sido dito. Nessa esteira, compreendemos que toda ação social ou individual do sujeito carrega marcas histórico-ideológicas. Assim sendo, direcionamo-nos para o modo como o acontecimento histórico da libertação do ex-presidente Lula foi e continua sendo discursivizado.

Nosso viés teórico destaca que há muitas maneiras de significar. Nesse sentido, é relevante mencionar que entendemos o discurso como uma prática de linguagem. O discurso, reiterando Pêcheux (2014aPÊCHEUX, M. Análise automática do discurso. In: GADET, F., HAK, T. (Org.). Por uma Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014a [1969]. p. 59-158. [1969], p. 81), é o “efeito de sentidos” entre “os pontos A e B”, ou, como traduz Orlandi (2015ORLANDI, E. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. 12. ed. Campinas: Pontes, 2015.), entre os interlocutores. Ele está na linguagem em seu funcionamento. Portanto, o discurso está além da palavra, ele gera discursividade. Por sua vez, a discursividade refere-se àquilo que se inscreve na história. Assim, os sentidos vão se estabilizando de tanto circular, vão sendo institucionalizados pela historicidade.

Desse modo, concebemos o ex-presidente não apenas como o sujeito empírico do acontecimento de soltura, Luiz Inácio Lula da Silva, em liberdade carcerária. Para mais, Pensamos, além disso, sentidos possíveis para o recorte em estudo inscrito no enunciado “Lula livre”, em uma operação parafrástica com enunciados outros, passíveis de demarcação pelo não dito.

Nessa esteira, as primeiras reações do Comitê Internacional de Solidariedade em Defesa de Lula e da Democracia no Brasil - principal responsável pelo Movimento Lula Livre - já foram enunciadas antes da prisão do ex-presidente, enquanto ele aguardava julgamento em liberdade. A crença na inocência do representante político considerado popular, apoiado pela classe dos trabalhadores, levou milhares de pessoas a aderir ao movimento em favor do cancelamento das acusações feitas a Lula, pelo que sua figura significa para os movimentos progressistas no país, e, posteriormente, em favor de sua liberdade.

Mas o que levaria todas essas pessoas a se unirem para apoiar esse movimento? Pela natureza opaca da linguagem, compreendemos que os sentidos não estão lá, prontos e acabados. Se a linguagem não é transparente, também não há evidência de sentidos, menos ainda de sentidos únicos. Eles podem sempre ser outros. Nessa esteira, referimos que todo dizer possui um não dizer constitutivo. Isto é, a partir daquilo que foi dito, há também um não dito, como aponta Orlandi (2007ORLANDI, E. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2007.) ao abordar os tipos de silêncio (fundador, constitutivo e local). Algo que foi esquecido (in)voluntariamente. Isso significa dizer que, quando enunciamos algo, invariavelmente deixamos de dizer outra coisa. É por essa perspectiva que objetivamos analisar o acontecimento histórico da soltura do ex-presidente Lula ligado ao enunciado “Lula livre”.

Para melhor exposição de análise, afora a introdução e as considerações finais, o presente artigo vem organizado em três seções, a saber: sobre o aporte teórico-metodológico que nos sustenta, sobre o adjetivo no enunciado em análise: “livre” e sobre o sujeito nomeado no enunciado: “Quem está livre?”

2 SOBRE O APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO

Para fundamentar a análise, tomamos a noção de acontecimento preconizada por Michel Pêcheux (2015aPÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. 7. ed. Campinas: Pontes Editores, 2015a [1983]. [1983], p. 16) retomada como o “ponto de encontro de uma atualidade e uma memória”. Nesse espaço, a atualidade é concebida como intradiscurso, isto é, está associada à formulação do dizer, e a memória é entendida como interdiscurso (ou, mais especificamente, parte dele), ou seja, está no campo da repetibilidade. Em outras palavras, o acontecimento ocorre no atravessamento entre o que é repetido e o que é novo. Nesse sentido, o acontecimento correlaciona-se à formulação do discurso pelo sujeito. Isto é, o discurso de um sujeito “produz-se no ponto em que o interdiscurso encontra-se com o intradiscurso” (Indursky, 2003INDURSKY, F. Lula lá: estrutura e acontecimento. Organon, v. 17, n. 35, p. 101-121, 2003., p. 103).

Dito de outra forma, acontecimento é o cruzamento da repetibilidade com a formulação atualizada. Assim sendo, para a AD interessa o acontecimento histórico - aquele que demanda sentidos. Não a circunstância empírica, mas o acontecimento tomado como fato histórico, “como algo pontual, capaz de gerar múltiplas discursividades” (Cazarin; Rasia, 2014CAZARIN, E. A.; RASIA, G. S. As noções de acontecimento enunciativo e de acontecimento discursivo: um olhar sobre o discurso político. Letras, v. 24, n. 48. 2014, p. 193-210., p. 194). O acontecimento que requer ser discursivizado, com os mesmos ou novos efeitos de sentidos.

Segundo Indursky (2003INDURSKY, F. Lula lá: estrutura e acontecimento. Organon, v. 17, n. 35, p. 101-121, 2003.), quando há rompimento da repetibilidade e a instauração de um novo sentido possível para um enunciado, temos um acontecimento discursivo. A autora destaca que “um acontecimento discursivo rompe com a ordem do repetível, instaurando um novo sentido, mas não consegue produzir o ‘esquecimento’ do sentido-outro que o precede” (Indursky, 2003, p. 107). Ainda de acordo com a autora, quando ocorre um acontecimento discursivo, uma nova “ordem de repetibilidade” é instaurada. Essa nova ordem organiza uma nova estrutura vertical, isto é, organiza uma nova memória social, preservando, porém, relações com a estrutura anterior.

Por essa perspectiva, compreendemos que os dizeres são estruturados por enunciados preexistentes, a partir dos quais se viabiliza a ressignificação do dizer em determinadas condições de produção. Nesse sentido, “dizer, então, é estabelecer este e não aquele sentido, através desse e não de outro enunciado, para este e não para aquele interlocutor, etc, no interior de relações que são sócio-históricas” (Orlandi, 1984ORLANDI, E. Segmentar ou recortar? Linguística: Questões e Controvérsias. Publicação do Curso de Letras do Centro de Ciências Humanas e Letras das Faculdades Integradas de Uberaba. Uberaba: Minas Gerais, 1984., p. 22). Assim, apreendemos que o sujeito enuncia pela tomada de posição que ele assume perante os processos discursivos.

Essa tomada de posição está associada à memória do dizer, mas é preciso que ocorra o fenômeno do apagamento na língua, o esquecimento. Assim, para enunciar, o sujeito posiciona-se frente à dispersão. Isto é, ele apaga a dispersão para enunciar, pois não consegue tudo dizer. Em outros termos, quando o sujeito se apropria de uma possibilidade de dizer, ele apaga, pelo efeito ideológico, as outras possibilidades.

Desse modo, o sentido e o sujeito são constituídos ideologicamente e, portanto, há na divisão de sentidos, aqueles que os afetam e aqueles que não os afetam. Ou seja, os sujeitos identificam-se com alguns sentidos e não com outros. Em tal circunstância, ocorre a tomada de posição, isto é, o sujeito “aciona” a memória discursiva a partir de um amplo repertório discursivo. Nesse sentido, “podemos perceber que o memorável é bastante heterogêneo e não corresponde a uma única formação discursiva. Ele aponta para diferentes regiões do interdiscurso” (Indursky, 2011INDURSKY, F. 2011. A memória na cena do discurso. In: INDURSKY, F.; MITTMANN, S.; FERREIRA, M. C. L. (org.). Memória e história na/da análise do discurso. Campinas: Mercado de Letras, 2011. p. 67-89., p. 84).

Partindo da compreensão acima, o interdiscurso concerne a tudo o que já foi dito por diversas vozes. Ele é “esse ‘todo complexo com dominante’ das formações discursivas” (Pêcheux, 2014bPÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014b[1975]. [1975], p. 149). O interdiscurso compete a todos os sentidos produzidos, enquanto a memória discursiva corresponde apenas aos sentidos inscritos nas formações discursivas em que ela também se insere.

Assim sendo, segundo Indursky (2011INDURSKY, F. 2011. A memória na cena do discurso. In: INDURSKY, F.; MITTMANN, S.; FERREIRA, M. C. L. (org.). Memória e história na/da análise do discurso. Campinas: Mercado de Letras, 2011. p. 67-89.), a memória discursiva ainda se refere aos sentidos negados, àqueles que não devem ser ditos em determinada formação discursiva. Além disso, de acordo com a autora, é em função da memória que “certos sentidos são ‘esquecidos’”. Sentidos estes que já foram permitidos, mas que, “em função de mudanças conjunturais, não podem mais aí ser atualizados, lembrados” (Indursky, 2011, p. 87).

Diante das diversas maneiras de significar, o sujeito afetado ideologicamente se inscreve, pelo inconsciente, em formações discursivas, que organizam os saberes que (re)significarão o seu dizer. Dito de outro modo, as formações discursivas conduzem a posição-sujeito. Elas representam as formações ideológicas. Segundo Pêcheux (2014bPÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014b[1975]. [1975], p. 147), uma formação discursiva é “determinada pelo estado de luta de classes” e “determina o que pode e deve ser dito”. Há uma rede de identificação sobredeterminada pela historicidade. Isto é, há uma trajetória de filiação de sentidos.

Desse modo, interessa-nos dizer que os sentidos são moventes. De acordo com Pêcheux (2014aPÊCHEUX, M. Análise automática do discurso. In: GADET, F., HAK, T. (Org.). Por uma Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014a [1969]. p. 59-158. [1969]), os sentidos das palavras, expressões, proposições são oriundos das formações discursivas em que elas são elaboradas. Concordamos com Orlandi (2015ORLANDI, E. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. 12. ed. Campinas: Pontes, 2015., p. 41) ao destacar que “os sentidos sempre são determinados ideologicamente”. A ideologia está ligada à concepção de mundo, valores, costumes, que vão determinar os modos de agir dos sujeitos. Isto é, a ideologia é um mecanismo de funcionamento que determina, juntamente com a historicidade, os gestos de interpretação de um objeto simbólico. Vale lembrar que esse mecanismo ideológico não é estático. Os sentidos podem deslizar para outras interpretações. Há deslocamento do sentido, pois assim como o sujeito e a linguagem, o sentido também é incompleto. Por esse ponto de vista,

falaremos de formação ideológica para caracterizar um elemento suscetível de intervir - como uma força confrontada a outras forças - na conjuntura ideológica característica de uma formação social em um momento dado. Cada formação ideológica constitui desse modo um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘individuais’ e nem ‘universais’, mas que se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em relação às outras (Haroche; Pêcheux; Henry, 2008HAROCHE, C.; PÊCHEUX, M.; HENRY, P. A semântica e o Corte Saussuriano: Língua, Linguagem, Discurso. Linguasagem, v. 03. 2008, p. 1-19. Disponível em: http://www.ufscar.br/linguasagem/edicao03/traducao.php. Acesso em: 29 out. 2020.
http://www.ufscar.br/linguasagem/edicao0...
, p. 12).

Nesse cenário, compreendemos que as formações ideológicas agregam em seu bojo formações discursivas que - persistimos em Pêcheux (2014bPÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014b[1975]. [1975]) -, autorizam o que pode, ou não, ser dito. Isso se dá no interior das relações sociais dos sujeitos inscritos em determinados lugares, que são legitimados pelas instituições do Estado na relação de classes. Por tal aspecto , torna-se relevante considerar também o lugar social ocupado pelo sujeito. O lugar social atribui-se à ocupação do sujeito em determinada instituição social, e o sujeito assume certa posição em desvantagem a outra. Dessa maneira,

levando-se em conta o lugar social dos interlocutores, podemos afirmar que o falante ‘sabe’ a sua língua mas não tem o ‘conhecimento’ completo do seu dizer: o que diz tem relação com o lugar, isto é, com as condições de produção do seu discurso, com a dinâmica de interação que se estabelece, com outros discursos já produzidos ou que poderiam ser produzidos (Orlandi, 1984ORLANDI, E. Segmentar ou recortar? Linguística: Questões e Controvérsias. Publicação do Curso de Letras do Centro de Ciências Humanas e Letras das Faculdades Integradas de Uberaba. Uberaba: Minas Gerais, 1984., p. 12, grifo da autora).

Por esse viés, reiteramos que a divisão dos sentidos é desigual. Ainda de acordo com Orlandi (1984ORLANDI, E. Segmentar ou recortar? Linguística: Questões e Controvérsias. Publicação do Curso de Letras do Centro de Ciências Humanas e Letras das Faculdades Integradas de Uberaba. Uberaba: Minas Gerais, 1984.), dadas as condições de produção, decorre um sentido possível que é dominante. No entanto, tal sentido não perde o ressoar dos sentidos outros, também possíveis para os novos enunciados estabelecidos. Esses sentido s permanecem silenciados. Importa destacar que o silêncio também se constitui de uma multiplicidade de sentidos, isto é, ele é heterogêneo.

A esse respeito, problematizando sentidos gerais sobre o silêncio, Sousa, Sousa e Santos (2019SOUSA, S. L. A. A.; SOUSA, M. A. S.; SANTOS, J. S. dos. Os sentidos do silêncio no discurso musical: uma análise da relação entre poema e melodia na música “Cálice”. Revista Philologus, Rio de janeiro: Cifefil, v. 25, n. 75., set./dez., 2019, p. 2500-2515.) destacam que, no senso comum, silêncio é visto como ausência de som ou mero vazio, o sem-sentido, mas, no contraponto, esse mesmo imaginário do senso comum defende que “quem cala consente” e que, para bom entendedor, meia palavra basta. Assim, indagam-se os autores: “Como o silêncio pode não significar e ao mesmo tempo dizer tanto? Ser uma boa resposta ou mesmo uma explicação?” (p. 2501), ratificando, então, que o silêncio não é ausência, mas um terreno fértil, como bem demonstrado em trabalho de Orlandi (2007ORLANDI, E. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2007.) sobre as formas do silêncio.

Destacamos, aqui, a política do silêncio, não o silêncio do senso comum, como cotejado anteriormente, mas, especificamente, o silêncio constitutivo: quando um sujeito diz uma coisa, ele não pode dizer outra, pois, como já adiantamos, não se pode dizer tudo. De acordo com Orlandi (2007ORLANDI, E. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2007.), há também, na política do silêncio, afora o silêncio constitutivo apontado acima, o silêncio local, que é a censura. Assim, quando o sujeito fala algo, ele deixa de enunciar outras elocuções que também poderiam ter sido ditas (silêncio constitutivo). Dito de outra maneira, há sempre um não dizer em um dizer necessário. Porém, quando o sujeito deixa de dizer algo que poderia dizer, pois (por movimentos coercitivos) é interditado e não diz, sofreu o efeito da censura, temos então o silêncio local funcionando.

Neste espaço, mobilizamos também a noção de paráfrase e de polissemia. Interessa-nos dizer que a paráfrase constitui o equivalente, o já dado. Ela é um modo de se perpetuar o mesmo sentido em formas distintas de uso da linguagem. Importa-nos destacar que os sentidos são institucionalizados nas práticas discursivas, e a paráfrase já está instituída nessas práticas, nela “temos a reiteração de processos já cristalizados pelas instituições” (Orlandi, 1984ORLANDI, E. Segmentar ou recortar? Linguística: Questões e Controvérsias. Publicação do Curso de Letras do Centro de Ciências Humanas e Letras das Faculdades Integradas de Uberaba. Uberaba: Minas Gerais, 1984., p. 11). É pela paráfrase que conseguimos (re)instituir sentidos de diversas maneiras.

Em contrapartida, a polissemia é o dissemelhante, a diferença: “A polissemia é o processo que, na linguagem, permite a criatividade. É a atestação da relação entre o homem e o mundo” (Orlandi, 1984ORLANDI, E. Segmentar ou recortar? Linguística: Questões e Controvérsias. Publicação do Curso de Letras do Centro de Ciências Humanas e Letras das Faculdades Integradas de Uberaba. Uberaba: Minas Gerais, 1984., p. 11). A polissemia está ligada à pluralidade de sentidos. Por este viés, cientes da opacidade da língua, entendemos que os sentidos podem resultar em equivocidade. Assim, a linguagem em uso pode resultar em uma multiplicidade de sentidos que não estão em sua literalidade. Isto é, a linguagem também é polissêmica. Desse modo, elucidamos, tanto os processos parafrásticos como os processos polissêmicos são constitutivos dos sentidos.

Destarte, a partir do dispositivo teórico que nos suporta, buscamos atingir nosso objetivo principal de analisar como a soltura do ex-presidente Lula foi discursivizada e como ela significa em determinadas condições de produção, inscrita em nosso recorte discursivo no enunciado “Lula livre”. Consideramos pertinente apresentar, primeiramente, efeitos de sentido possíveis para o enunciado em estudo, partindo de um jogo polissêmico em um batimento com o significado dicionarizado do adjetivo “livre”. Em seguida, traçamos o desdobramento desse acontecimento histórico por meio de proposições parafrásticas, investigando a maneira como ele está sendo discursivizado.

3 SOBRE O ADJETIVO NO ENUNCIADO EM ANÁLISE: LIVRE

Observamos, no dicionário Aurélio on-line, que o adjetivo livre é definido como:

Classe gramatical: Adjetivo de dois gêneros. Flexão do verbo livrar na: 1ª pessoa do singular do presente do subjuntivo, 3ª pessoa do singular do presente do subjuntivo, 3ª pessoa do singular do imperativo afirmativo, 3ª pessoa do singular do imperativo negativo (Livre , 2020).

No dicionário Michaelis, vimos sobre o conceito de livre:

  • 1 Que tem plena liberdade de agir, conforme sua escolha [ ...] .

  • 2 Que não tem condição servil, que não está sob o jogo de alguém [...].

  • 3 Que recuperou a liberdade depois de estar detido [...] .

  • 4 Diz-se de animal que não é mantido em cativeiro.

  • 5 Que goza dos direitos civis e políticos previstos em lei [...] .

  • 6 Diz-se de nação que mantém soberania política [...].

  • 7 Que age conforme suas convicções e não é controlado ou não cede a pressões [...].

  • 8 Que não está sujeito ao controle do Estado [...].

  • 9 Diz-se de algo cuja prática está prevista em lei [...].

  • 10 Diz-se de algo cujos movimentos se tornam desimpedidos, sem nenhum tipo de entrave [...].

  • 11 Que não está ocupado; disponível [...].

  • 12 Que não mantém uma relação amorosa com alguém [...].

  • 13 Que é isento de preconceitos, problemas ou influências.

  • 14 Que não apresenta obstáculos que possam limitar o uso ou a passagem; liberado [...].

  • 15 Em que não se cobra ingresso para o acesso [...].

  • 16 Que revela um comportamento desregrado ou licencioso [...].

  • 17 Diz-se de tradução ou adaptação de texto que não segue literalmente o original [...].

  • 18 Diz-se de algo que não está sujeito a taxas ou ônus; isento [...].

  • 19 Diz-se de algo cuja forma não é determinada por antecipação [...].

  • 20 LING Diz-se de morfema que não é preso a uma forma, que ocorre em diferentes contextos linguísticos (Livre, 2020).

Que fração cada uma dessas asserções latentes tomou na unidade que é equívoca, desse grito coletivo que ecoou antes mesmo do acontecimento histórico? O desespero do povo e o desejo pela libertação de Lula são clamados com o dito pelo não dito. O ensejo da liberdade se enuncia de modo subjacente. Tomando agora um jogo polissêmico, em que podemos trabalhar com a multiplicidade de sentidos, com o novo, temos como possibilidade, oriunda da formulação “Lula livre”: “Lula inocente”. A hipótese que, sendo concretizada, abre vias para compreendermos que resultaria em “Lula eleito”, mais uma vez, “Lula presidente”.

Assim, concordando com Orlandi (2015ORLANDI, E. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. 12. ed. Campinas: Pontes, 2015.), entendemos que a interpretação é regulada em suas condições de produção. Para a autora só há sentido se houver interpretação, e o processo de interpretação ocorre pela memória discursiva. Por esse viés, a reivindicação pela liberdade de Lula mobiliza uma interpretação sobre a crença em sua inocência. É dizer sobre a sua recandidatura e sobre a confiança de que ele seria reeleito, uma vez que ele era um dos candidatos favoritos nas pesquisas eleitorais mesmo estando preso (G1, 2018; Pessoa, 2018PESSOA, G. S. Lula lidera intenções de voto, seguido por Bolsonaro, aponta pesquisa CNT. São Paulo, 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/08/lula-lidera-intencoes-de-voto-seguido-por-bolsonaro-aponta-pesquisa-cnt.shtml. Acesso em: 10 abr. 2020.
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018...
). E Lula ser reeleito significa o quê? Todavia, para a continuidade da investigação, por ora prosseguiremos analisando unicamente o enunciado “Lula livre” ligado ao acontecimento histórico em tela: a soltura do ex-presidente Lula.

Atentamo-nos, mais uma vez, que, para dizer, é preciso não dizer. Assim sendo, quando o povo grita “Lula livre” outros dizeres foram apagados. Não há outra forma. Isto posto, partindo da materialidade discursiva do enunciado em análise, destacamos outro ponto também relevante: considerar, se fôssemos transformar essa frase em oração, qual verbo poderia ser usado? Quais verbos estão sendo silenciados? O que não está dito? Vejamos algumas proposições: Lula (é) livre; Lula (deve permanecer) livre; Lula (precisa ser) livre; Lula (está) livre.

Consideremos que, em Lula (é) livre, ele tem o direito de ir e vir, portanto, “tem plena liberdade de agir, conforme sua escolha”; Lula (deve permanecer) livre, uma vez que ele é inocente, não deve nada à justiça, portanto, “não está sujeito ao controle do Estado”; Lula (precisa ser) livre, visto que somente assim poderá se candidatar novamente à presidência do país e, portanto, gozar “dos direitos civis e políticos previstos em lei”; Lula (está) livre, o ex-presidente, finalmente, “recuperou a liberdade depois de estar detido” (Livre, 2020). Por fim, Lula poderia “libertar” milhares de trabalhadores, o povo brasileiro, aqueles “que de seus direitos guardaram apenas o de cumprir com seus deveres” (Indursky, 1995INDURSKY, F. Que povo é esse? Revista de Estudos da Linguagem, v. 1,1995, p. 101-114., p. 109).

A soltura de Lula foi um acontecimento político-social. Dizemos, nos moldes de Pêcheux (2015aPÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. 7. ed. Campinas: Pontes Editores, 2015a [1983]. [1983]), um acontecimento discursivo, que reverbera esperança para grupos sociais determinados, os quais compõem a classe média baixa. Em contrapartida, esse acontecimento gera desconforto para os demais grupos, que se encontram em outras posições enquanto sujeitos e acreditam que esse fato representa prejuízo aos esforços de combate à corrupção no Brasil, já que, para tais posições-sujeito, “Lula livre” tem efeito de justiça irmanada à corrupção. Por outro lado, quando se observa a seletividade do que é considerado ou não corrupção por essas posições-sujeito, outros efeitos são produzidos nessa luta pelos sentidos.

Há uma construção discursiva anterior ao fato de Lula ser libertado da prisão, resultante de outras discursividades. Estas concebem a luta de uma classe social, representada pelo povo, que elegeu um presidente da classe trabalhadora. Contudo, o enunciado “Lula livre” atravessou o Brasil efetivamente no dia 7 de abril de 2018, data em que o ex-presidente foi preso e gerou uma série de movimentos de resistência unidos em defesa da sua liberdade por uma rede de identificação. Na trajetória de filiação de sentidos, compreendemos que a tomada de posição tem relação com essa rede de identificação dos sujeitos. Dessa forma, a liberdade do Lula simboliza, para esses sujeitos, a esperança de se reeleger um governo popular, isto é, um governo que “olhasse” para o povo (pobres e trabalhadores, desempregados ou não).

No dia 17 de novembro de 2019, todos os brasileiros, para quem esse acontecimento é uma vitória, reuniram-se em massa no pátio da Igreja Nossa Sra. do Carmo em Recife, para gritar “Lula livre” repetidamente em comemoração ao fato. Este festival, especificamente, obteve algo distinto dos demais eventos realizados durante o movimento em defesa da liberdade do ex-presidente: Lula esteve presente. O evento organizado pelo Comitê Nacional Lula Livre já ocorreu em outras cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, e prometeu continuar ativo durante o tempo em que houver luta pela anulação das acusações contra o ex-presidente.

Assim, o movimento de resistência em defesa de Lula foi um movimento político liderado pelo Comitê Internacional de Solidariedade em Defesa de Lula e a Democracia no Brasil, e composto por militantes de movimentos sociais, tanto do Partido dos Trabalhadores (PT) como de vários outros partidos, como o PCdoB (Partido Comunista do Brasil), o Psol (Partido Socialismo e Liberdade), o PCO (Partido da Causa Operária), também de entidades sindicais brasileiras, ativistas e personalidades de mais de 50 países (Redação, 2018). Todos unidos por uma sobredeterminação constituída pela historicidade, até alcançarem seu objetivo no dia 8 de novembro de 2019, quando Lula foi efetivamente desencarcerado. Porém, o ex-presidente não se configura integralmente livre, se considerarmos que não poderá ocupar cargos públicos, pois ele ainda se enquadra na lei da ficha limpa. De todo modo, no dia 8 de novembro, depois da saída de Lula da prisão, a afirmação “Lula livre” tornou-se verdadeira.

4 SOBRE O SUJEITO NOMEADO NO ENUNCIADO: QUEM ESTÁ LIVRE?

Dado nosso foco, apresentamos algumas considerações sobre o acontecimento “a soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva” inscrito discursivamente, em nossa investigação, no enunciado “Lula livre”. Para tanto, iniciamos nossas reflexões pela descrição da prisão de Lula, ocorrida no dia 7 de abril de 2018, no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, quando o ex-presidente se entregou à Polícia Federal.

Na data desse acontecimento, instituiu-se um forte movimento de luta pela defesa do ex-presidente, condenado em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). Reunida em concentração na “porta” do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, uma multidão de pessoas gritou a Lula que não se entregasse à justiça, e o enunciado “Lula livre” ganha corpo sendo repercutido incansavelmente atrelado ao fato ocorrido.

Atos em defesa da liberdade de Lula já haviam começado antes do dia 7 de abril, quando o Comitê Internacional de Solidariedade em Defesa de Lula e a Democracia no Brasil instituiu o início de um imenso trabalho de mobilização, de grupos sociais, que deu forma e força ao movimento “Lula livre”, na esperança de se atingir o objetivo de livrar Lula das acusações articuladas pelo Ministério Público Federal (MPF), nas investigações da Operação Lavajato. O movimento em prol da liberdade de Lula efetivou-se, sobretudo, quando ele foi condenado a doze anos e um mês de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro, em 5 de abril de 2018, pelo juiz federal Sérgio Moro.

Nesse sentido, compreendemos que esse acontecimento histórico começou a ser discursivizado antes mesmo de se realizar. Até a data de 7 de abril, o enunciado “Lula livre” produz efeitos de sentido de que “Lula deve ser livrado das acusações do MPF”, “Lula não deve ser preso”, portanto, “Lula (deve permanecer) livre”. No dia 7 de abril de 2018, os sujeitos inscritos na mesma posição discursiva “acionam” a memória que faz ecoar o metalúrgico que liderava movimentos pela luta dos direitos dos trabalhadores e que foi preso em 1980, durante a ditadura militar, em uma greve por aumento salarial.

Continuando em nosso jogo parafrástico, a partir da noite em que o ex-presidente se entregou à Polícia Federal, “Lula livre” reclama novos sentidos. Este enunciado reforça o desejo do povo, seus eleitores. Eles gritam o “Lula livre”, que agora se desloca para a produção de outros efeitos, como o sentido de que “Lula deve ser libertado”, ou seja, “Lula (precisa ser) livre”.

O objeto de desejo desse movimento, finalmente, foi marcado pelo acontecimento histórico do dia 8 de novembro de 2019: a soltura de Lula. E Lula estar de fato livre não era mais inconcebível. Não era apenas um desejo do povo. A realização desse fato ocasionou um acontecimento, que já é histórico, sendo discursivizado pelo acontecimento discursivo inscrito em um enunciado coletivo: Lula livre. O objeto de desejo clamado concretiza-se como um sonho transformado em realidade. Quando o ex-presidente foi solto, “Lula livre” abre vias para se produzir o efeito de vitória, de celebração, “Viva! O Lula, efetivamente, está livre”, agora “Lula (é) livre”.

Este momento não se refere mais ao mesmo enunciado. A materialidade linguística se repete como paráfrase, isto é, como aquilo que se reitera, porém a materialidade discursiva já não é a mesma. Ou seja, seu sentido deslocou, derivou, decorrente da quebra no processo de significação (Orlandi, 2015ORLANDI, E. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. 12. ed. Campinas: Pontes, 2015.). Rompeu-se com a ideia de luta, de defesa, para se desdobrar em sentido de comemoração. Por conseguinte, é relevante destacar que, nos três tempos de enunciação, conforme mostramos, o enunciado “Lula livre” faz ressoar “Lula (é) inocente”. Nesse âmbito, temos o novo fazendo-se soar, mas que deixa ressoar sentidos preexistentes, repetíveis. De uma materialidade discursiva a outra, verificou-se o acontecimento discursivo, afetado pelo movimento parafrástico e polissêmico constitutivo das práticas discursivas.

Nessa esteira, o enunciado “Lula livre”, ligado ao acontecimento da libertação de Lula, convoca o espaço de memória social sobre os movimentos de esquerda pela democracia, sobre as mobilizações sindicais e organizações em luta pelos direitos dos trabalhadores. É pela memória discursiva que os sujeitos se identificam. Desse modo, reiteramos que a memória discursiva é o saber discursivo dos sujeitos.

Destarte, uma questão se impõe: em realidade, quem está livre? Talvez pareça uma questão óbvia, mas que não é tão óbvia assim. Vejamos um ponto: pela necessidade da análise, prefiguramos discursivamente esse acontecimento a partir de relações parafrásticas do enunciado “Lula livre”. Desse modo, para o enunciado em estudo, temos paráfrases tais como: “Trabalhador livre”, “Povo livre”, “Pobre livre”.

Ao clamar pelo trabalhador, o povo e o pobre livre, ainda que pelo não dito, dizemos que esse trabalhador, esse povo, esse pobre está, de alguma maneira, preso. Preso a/por quem? Ou preso em/a quê? Do quê/de quem eles devem ser livres? E, mais, como eles devem estar livres? Nessa esteira, podemos compreender que, ao se dirigir a um líder político do Partido chamado dos Trabalhadores (PT), conclamando por liberdade, o povo protesta em favor de sua própria remição.

Por conseguinte, no desdobramento do acontecimento, a liberdade de Lula significa, em uma paráfrase provável para tal enunciado, a liberdade do povo. Este, entendido como o trabalhador assalariado ou autônomo e pobre, em contraposição ao trabalho exploratório, sem garantia de direitos ao trabalhador, em condições de trabalho ruins. Em outras palavras, em oposição ao modelo de trabalho escravo.

Destarte, de outro lado, para outras posições-sujeito, a liberdade de Lula significa de outro modo, com outras nuances. Isto é, para um grupo de sujeitos que assumem uma posição-sujeito identificada com determinadas formações discursivas, constituídas estas por formações ideológicas de direita, Lula estar em liberdade, fora da cadeia, significa certa “desmoralização” do sistema judiciário brasileiro. De outra parte, para outro grupo social que toma uma posição-sujeito também identificada por outras formações discursivas em comum, instituídas pelas formações ideológicas de esquerda, essa liberdade significa algo para além da liberdade do povo.

Para esse último grupo, essa liberdade garantiria a recandidatura de Lula ao cargo de presidente do Brasil e a forte possibilidade de sua reeleição. Além disso, por um lado, para os sujeitos que assumem uma posição discursiva pautada por discursividades que envolvem apoio às minorias sociais, a soltura de Lula representa a esperança da garantia de direitos adquiridos aos trabalhadores assalariados e autônomos.

A propósito, na época do acontecimento em análise havia uma discursividade política de esquerda de que a prisão de Lula era exatamente para evitar sua candidatura e, consequentemente, sua eleição. Em contrapartida, consolidou-se, pela direita, a pauta da corrupção em suas campanhas, no sentido de enfatizar que se um político está sendo preso, independente da presença ou ausência de provas contundentes, significa que ele está envolvido em corrupção. Quando se prende Lula, diz-se que ele é corrupto e que, portanto, não pode exercer função em cargo político.

Dado nosso percurso analítico, reiteramos nossa concepção de sujeito como posição discursiva. É relevante destacar que a tomada de posição do sujeito tem a ver com sua rede de identificação. Assim, quando o sujeito diz algo, ele estabelece determinados sentidos em detrimento de outros. Como já dissemos, isso ocorre por sua inscrição nas formações discursivas e pelo lugar social que ele ocupa, visto que os sentidos são produzidos em condições sócio-históricas de forma coletiva. Isto é, os sentidos são articulados socialmente.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, pontuamos como a soltura de Lula se constitui um acontecimento discursivo associado ao enunciado “Lula livre”. Assim, analisamos como “Lula livre” repercutiu em manifestações de defesa da liberdade do ex-presidente e continuou como um eco atrelado ao acontecimento histórico (fato novo) ocorrido. Levando em conta a instituição cujo discurso foi enunciado, o Comitê Internacional de Solidariedade em Defesa de Lula e a Democracia no Brasil, a figura do ex-presidente surge como a representação do povo brasileiro, o trabalhador assalariado, autônomo e pobre.

Desse modo, Lula estar livre significa, como demonstramos em nosso exercício analítico, mais do que a liberdade da detenção. Significa liberdade para o povo brasileiro. Lula estar livre abre vias para compreendermos esse fato como sinônimo de esperança de reeleger um líder que representasse esse povo. Nesse espaço, deixamos para o leitor uma indagação: será que Lula, com todos os efeitos de sentidos que “Lula livre” nos permite, está verdadeiramente livre?

Ancorados na AD francesa, reiteramos que os sujeitos não podem formular seus dizeres de todas as perspectivas. É necessário tomar posição. Desse modo, ao analisar a materialidade discursiva que compõe o enunciado “Lula livre”, reconhecemos que sempre restará algo que poderia ter sido dito, mas que foi apagado no instante do dizer. Isso em razão de que tanto os sentidos como os sujeitos são constituídos ideologicamente. Além disso, os sentidos se abrem para a dispersão, ainda que aparentem ter o efeito de unidade, de transparência.

Para os sentidos possíveis no acontecimento discursivo estudado, as formações ideológicas de esquerda promovem a constituição de sentidos diferentes das formações ideológicas de direita. Assim, reiteramos, o sujeito é posição discursiva. Isso implica dizer que um enunciado tem seu sentido alterado segundo a posição dos sujeitos que o utilizam. Atrelado a isso, temos a divisão de classes, visto que a determinação econômica é fator constituinte da instituição dos sentidos, uma vez que ela está relacionada às posições ideológicas. No entanto, a partir da noção de sujeito como posição discursiva, sabemos que, mesmo fazendo parte de uma mesma classe social, não é sempre que os sujeitos possuem as mesmas convicções ideológicas. Isso não é estático. O sujeito, ao ser interpelado, posiciona-se conforme o matiz ideológico que o constitui. Assim sendo, o que seria uma vitória para um grupo de sujeitos interpelados por ideologias de esquerda, o acontecimento, isto é, a soltura do ex-presidente Lula, é sinônimo de retrocesso em relação à justiça brasileira, e ao progresso do país, para outros sujeitos interpelados por ideologias de direita. Estes rejeitam a ideia de “Lula livre” pelas suas manifestações sociais - aqui não retratadas pela necessidade de recorte analítico.

Antes, o enunciado, como acontecimento discursivo, já lhes causava desdém e deboche, o acontecimento histórico lhes causa repúdio. O fato mesmo da libertação de Lula, por um lado, despertou repulsa. Por outro, trouxe a esperança de milhares de sujeitos que se identificam e se constituem pelas formações discursivas estabelecidas por discursividades que acionam as memórias de resistência, dos movimentos sociais, das militâncias, em luta pela assistência da classe popular. Independentemente das formações discursivas em que os sujeitos envolvidos nessas relações se inscrevem, a soltura do ex-presidente compõe, desse modo, a história e a memória político-social dos brasileiros, que experienciaram o referido fato histórico.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Análise desenvolvida no âmbito do Grupo de Estudos Tocantinenses em Análise de Discurso (GETAD).

Editado por

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2020
  • Aceito
    08 Set 2023
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