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Hipertensão arterial e aspectos éticos em pesquisa envolvendo seres humanos: implicações para a área da saúde

Arterial hypertension and ethics in research with humans: implications in the health area

Resumos

Encontra-se bem relatada a elevação da prevalência da hipertensão arterial na população mundial. No Brasil, essa desordem metabólica vem sendo relacionada como um dos mais importantes fatores de risco para crianças, adultos e idosos. A utilização de serviços de saúde ocorre em função das necessidades e do comportamento dos indivíduos em relação aos seus problemas de saúde, assim como à disponibilidade de acesso ao sistema de saúde pública. A pesquisa clínica sobre a hipertensão arterial exige a observância dos princípios éticos inalienáveis para o ser humano.

Hipertensão; Saúde pública; Ética


High blood pressure in the World has been the subject of extensive reporting. In Brazil this metabolic disorder has been considered one of the most important risk factors for children, adults and the elderly. The demand on healthcare services results from the needs and behavior of individuals in relation to their health, as well as access to the public health system. Clinical research on arterial hypertension requires the compliance to ethical principles inherent to human beings.

Hypertension; Public health; Ethics


PONTO DE VISTA VIEWPOINT

Hipertensão arterial e aspectos éticos em pesquisa envolvendo seres humanos: implicações para a área da saúde

Arterial hypertension and ethics in research with humans: implications in the health area

Vidigal de Andrade Vieira

Disciplina de Psicologia, Filosofia, Antropologia e Ética. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Carangola. Universidade do Estado de Minas Gerais. Praça dos Estudantes, 23. Santa Emília. Carangola, MG, Brasil. CEP: 36.800-000. E-mail: vvidigal@ig.com.br

RESUMO

Encontra-se bem relatada a elevação da prevalência da hipertensão arterial na população mundial. No Brasil, essa desordem metabólica vem sendo relacionada como um dos mais importantes fatores de risco para crianças, adultos e idosos. A utilização de serviços de saúde ocorre em função das necessidades e do comportamento dos indivíduos em relação aos seus problemas de saúde, assim como à disponibilidade de acesso ao sistema de saúde pública. A pesquisa clínica sobre a hipertensão arterial exige a observância dos princípios éticos inalienáveis para o ser humano.

Palavras-chave: Hipertensão, Saúde pública, Ética

ABSTRACT

High blood pressure in the World has been the subject of extensive reporting. In Brazil this metabolic disorder has been considered one of the most important risk factors for children, adults and the elderly. The demand on healthcare services results from the needs and behavior of individuals in relation to their health, as well as access to the public health system. Clinical research on arterial hypertension requires the compliance to ethical principles inherent to human beings.

Key words: Hypertension, Public health, Ethics

Introdução

Em todas as etapas da vida humana cabem diversas ações de promoção da saúde, voltadas para os indivíduos, para os grupos sociais e para as populações. Essas ações merecem maior atenção e cuidado principalmente na infância e na adolescência, etapas primordiais no processo de estruturação da vida adulta desse indivíduo. Programas e iniciativas na área da saúde pública devem possibilitar a universalização e a capacitação individual e social para a saúde, bem como proporcionar o incremento e a mediação para a elevação da qualidade de vida das populações.1

Entretanto, vivemos hoje em um mundo globalmente interligado, no qual os fenômenos biológicos, psicológicos, sociais e ambientais são todos interdependentes, surgindo problemas relacionados com a autonomia dos sujeitos, com a ética de suas ações e com as explicações definitivas pretendidas pela racionalidade científica. Torna-se necessária a cons-trução de novas explicações, novos referenciais e novos entendimentos da realidade para possibilitar mudanças radicais nos pensamentos, percepções, valores e comportamentos dos indivíduos.

Os processos acerca da saúde e do adoecimento envolvem movimentos de reestruturação e mudança de hábitos na vida dos indivíduos. Os hábitos expressam um conhecimento enraizado no corpo, baseados em suas experiências prévias e também definem comportamentos, escolhas e interpretações que podem resistir à efetiva incorporação de novas representações e formação de novos hábitos.

A condição de estar doente relaciona-se com crenças e comportamentos que vão sendo apreendidos e incorporados pelos indivíduos através de sua convivência diária com a doença. As suas características e os seus sintomas fazem parte uma construção de mundo e através do conhecimento de suas percepções será possível desvelar estas representações pessoais sobre ela. Essas crenças e percepções também fornecem pistas e significados para o entendimento de comportamentos adotados por eles, mesmo que aparentemente incoerentes ou de risco, no convívio com a doença.

A elevação da pressão arterial, assim como todo processo que envolve a saúde e a doença, não se limita ao aspecto clínico e para sua compreensão é necessário inseri-la em um contexto muito mais amplo, considerando a experiência cotidiana e a subjetividade como componentes fundamentais. As percepções e significados fornecidos pelos indivíduos hipertensos sobre a doença se encontram principalmente influenciados pela etnia, pelo gênero e pela sua inserção social, o que, ao mesmo tempo, particulariza, diversifica e complexifica a sua apreensão, o seu entendimento, a sua explicação e o seu tratamento pelos próprios hipertensos e pelos profissionais de saúde.2

A maior presença das doenças crônico-degenerativas nas populações coincide com o período de industrialização e de uma maciça urbanização populacional, características marcantes da sociedade moderna. Nesse panorama socioeconômico, determinados grupos sociais ficam muito mais expostos em função do aumento da vulnerabilidade individual e coletiva de seus atores sociais, exigindo novos conhecimentos e explicações adequadas para o entendimento das relações presentes no processo de adoecimento.3

Não são apenas as condições biológicas que determinam os impedimentos encontrados em indivíduos e grupos portadores de doenças crônicas. As restrições e desigualdades socioeconômicas e as dificuldades e impossibilidade ao usufruto dos direitos humanos, em todas as suas esferas de atuação, favorecem a elevação da vulnerabilidade aos diferentes agravos para a saúde e restringem o acesso a ações e serviços especializados para o restabelecimento e a manutenção da saúde.

As doenças cardiovasculares representam a principal causa de mortalidade no Brasil desde os anos 60, sendo que nos dois principais centros urbanos do país, São Paulo e Rio de Janeiro, elas já representavam a principal causa desde os anos 40. A maior parte do benefício do tratamento da hipertensão advém da melhora da qualidade de vida, especialmente pela redução da incidência de acidente vascular cerebral, em menor magnitude na ocorrência de eventos coronarianos e perda da função renal, mas também ocorre pela redução da mortalidade total.4

O diagnóstico da hipertensão encontra-se freqüentemente associado com a presença de um fator traumático, sendo difícil precisar a sua origem e o tempo de sua instalação no indivíduo, assim como prever com exatidão a probabilidade de sua ocorrência. Entretanto, em muitos deles a sua descoberta ocorre de forma casual, sem a presença de uma queixa específica, sendo constatada através de exames periódicos de saúde, em exames pré-cirúrgicos, no acompanhamento durante o pré-natal, em campanhas de saúde pública e através da medida da pressão em farmácias e postos de saúde.

Qualquer que seja a sua etiologia a hipertensão poderá ocasionar complicações cardiovasculares e evoluir para doença hipertensiva, o que a caracteriza como uma variável contínua, com prognóstico limitado e dependente de variados fatores. Atualmente não existe cura definitiva para essa doença. Tratamentos não-medicamentosos e medicamentosos possibilitam o manejo parcial dos seus sintomas, buscando favorecer a adaptação do indivíduo e elevar a expectativa na sua qualidade de vida. O conhecimento dos significados, das crenças e das práticas desses indivíduos sobre a doença poderá possibilitar relacioná-las com as alterações biológicas, psicológicas e sociais, tanto para a saúde como para o adoecimento.5

Breves considerações acerca da hipertensão arterial

A presença da doença na vida de um indivíduo impõe drásticas mudanças e adaptações na maneira de estar no mundo. A experiência e a convivência com a enfermidade referem-se aos meios pelos quais os indivíduos e grupos sociais respondem aos episódios da doença em função de processos significativos intersubjetivamente compartilhados, com base em estruturas cognitivas e determinações sociais. A questão principal que se coloca ao assumir-se a inter-relação de aspectos sociais e cognitivos e, individuais e coletivos da doença, se traduz em como tornar inteligível os processos pelos quais as práticas individuais e a generalidade do social se constituem e reconstituem entre si e como agir sobre eles.6

A Organización Pan-Americana de la Salud (OPS) e Organización Mundial de la Salud (OMS)7 estimam que 8% a 18% da população mundial de adultos sofre de elevação da pressão arterial essencial, com presença de 1% a 5% de prevalência da hipertensão arterial secundária.

Esses estudos realizados em alguns países das Américas, constataram que a prevalência da hipertensão arterial oscila, possivelmente, entre 4,1% a 37,9% entre adultos, com essa variabilidade podendo estar relacionada à presença de diversos fatores raciais, genéticos, ambientais, culturais e relativos ao estilo de vida daquelas populações, bem como a procedimentos e métodos utilizados para a realização da pesquisa. Portanto, é possível afirmar que as doenças cardiovasculares e, dentre elas a hipertensão arterial, devem ser consi-deradas como um problema de saúde prioritário nas Américas, com enormes repercussões sociais e econômicas, atestando a importância do seu diagnóstico precoce e a implementação de medidas educativas e preventivas para a população.

A hipertensão arterial não é apenas o registro de pressão alta, sendo que no seu diagnóstico deve sempre ser considerada a presença de fatores de risco, de co-morbidades e de lesões em órgãos-alvo, o que favoreceria as orientações, o tratamento e o controle precoce da hipertensão. Na rotina diagnóstica existem três situações especiais em que a medida da pressão arterial se reveste de características próprias: na criança, no idoso e na gestante. Os dados de história clínica e de exame físico também devem ser priorizados para o indivíduo hipertenso.8

A hipertensão atinge indiscriminadamente todo o espectro da população, embora alguns grupos apresentem características especiais, tanto quanto à sua prevalência como ao prognóstico e a resposta às diversas modalidades terapêuticas. As situações especiais abrangem os negros e miscigenados, idosos, crianças e adolescentes, mulheres (terapia de reposição hormonal, uso de anticoncepcional oral, gravidez), obesidade, Diabetes Mellitus, dislipidemias, acidente vascular periférico e insuficiência cardíaca.9

A prevalência da hipertensão apresenta significativa variação em relação a fatores socioculturais, o que estabelece modelos explicativos com ênfase centrada na percepção individual do hipertenso. Dois grandes modelos explicativos procuram relacionar esses fatores com as doenças cardiovasculares. O primeiro aproxima o desenvolvimento social e econômico de um país (aculturação e modernização) com a elevação de doenças cardiovasculares, sendo que o seu inverso também seria verdadeiro. O segundo envolve a associação entre desigualdade social e acesso aos cuidados com a saúde. Entretanto, esses dois modelos que enfatizam isoladamente a aculturação e a situação socioeconômica não conseguem incorporar as dinâmicas individuais e populacionais dos processos que resultam em doenças.10

Rompendo com esses modelos convencionais de explicação sobre a doença se destaca uma explicação complementar de influências sociais e culturais sobre o risco de doenças, com maior ênfase em como os indivíduos são capazes de aproximar seus próprios comportamentos aos modelos culturais de vida que são compartilhados pela comunidade. Esse conceito é denominado de consonância cultural e pesquisas no Brasil sugerem que "... quanto maior a consonância cultural de um indivíduo menor será sua pressão arterial." (Dressler e Santos; 2000: 304, tradução nossa).10 A consonância cultural apresenta graus de aproximação de atitudes e comportamentos dos indivíduos com modelos socioculturais de comunidades, sendo que quanto maior a possibilidade e a habilidade dos indivíduos viverem próximos aos padrões definidos por aquela sociedade mais saudáveis eles serão.

A suposição de que o conhecimento a respeito da hipertensão poderia repercutir em efetivas modificações de comportamento é estruturalmente abalada quando se observa considerável índice de abandono do tratamento anti-hipertensivo. O tratamento pressupõe uma igualdade na abordagem terapêutica para todos os indivíduos hipertensos, como se fosse possível desconsiderar as diferentes histórias individuais. A padronização de informações e o tratamento estatístico de dados também funcionam como uma forma de homogeneização da doença, o que se traduz em mais uma dificuldade para a sua compreensão.

O controle da hipertensão envolve processos complexos e multidimensionais, tendo como principais objetivos a prevenção primária, a detecção precoce e o tratamento adequado que previna as suas complicações. Para atingir tais objetivos é necessário ocupar-se tanto das populações como dos indivíduos e buscar intervenções que estão além do sistema de atenção para a saúde. Uma maior sensibilização diante dos efeitos da hipertensão sobre a saúde pública e a economia deverá fazer com que se preste maior atenção à necessidade de elaborar e aplicar programas de controle a longo prazo, centrados na prevenção primária, na detecção precoce e no tratamento adequado da hipertensão.11

Breves considerações acerca do ser humano

Todo indivíduo é um sistema aberto que interage continuamente com seu meio ambiente. Quando ele adoece, surge a necessidade de novas ordenações internas, o que demandará novas trocas, ajustes e relações com outras pessoas e grupos, levando-o a reavaliar e redimensionar suas expectativas e perspectivas para o futuro, dependendo da forma como percebe essa ameaça para sua integridade pessoal. Esse desequilíbrio biopsicossocial poderá ser momentâneo ou permanente, implicando em novas estratégias para preservar sua integridade e direcioná-lo ao novo modelo de estabilidade pessoal.

O homem desenvolve e constrói a sua própria natureza, e a sua relação com o mundo tem sempre por intermédio a relação do homem com outros seres humanos e a possibilidade de ocorrência do inusitado em sua vida. A singularidade de cada indivíduo provém do fato de seu modelo cultural ser constituído por uma incorporação, pelo menos parcial, dos diversos modelos culturais próprios aos grupos e sub-grupos aos quais pertence ou já pertenceu e pela síntese pessoal que deles fez e que continuadamente refaz. Os indivíduos se constroem através de suas relações com o mundo e o seu corpo é movido pela necessidade de elaborar novas histórias, tanto no nível pessoal quanto no nível coletivo, pois os indivíduos não organizam histórias apenas para si próprios.12

O processo de apropriação das aquisições do desenvolvimento histórico das sociedades ocorre não apenas através da acumulação do conhecimento de cada cultura e de cada comunidade. Para se compreender alguém é necessário conhecer as percepções e os anseios primordiais que ele deseja satisfazer. A vida faz sentido, ou não, para os indivíduos, dependendo da medida em que eles conseguem realizar tais aspirações. Porém, esses anseios não estão definidos a priori, pois é necessário que os indivíduos estruturem e vivenciem diversas experiências interpessoais no contexto do seu meio social, através de teias ou tramas que compõem o seu mundo sociocultural.13

A avaliação das pressões do cotidiano, bem como a maneira de resolver conflitos, será totalmente particular e dependente da capacidade de cada indivíduo absorver e suportar as pressões internas e externas que lhe são impostas. A opção pela forma de solucionar esses impasses dependerá diretamente das predisposições constitucionais, das suas primeiras experiências de vida, de normas e valores do contexto sociocultural apropriados pelo indivíduo e de circunstâncias atuais que possibilitem a adoção de determinada reação.14

É também bastante difícil agir sobre a complexidade do ambiente sociocultural, sobre os indivíduos e os grupos. Investimentos em serviços sociais e ações nacionais de saúde envolvem interesses políticos, adequada organização pessoal e logística e elevado custo financeiro. Desta forma, observa-se o agravamento no quadro das doenças crônico-dege-nerativas, especialmente quando se refere à população de baixa renda, onde as perspectivas tornam-se pouco promissoras para a sua solução.15

Aspectos éticos em pesquisa envolvendo seres humanos

Todo projeto de pesquisa que se propõe a trabalhar com seres humanos apresenta implicações éticas que necessitam serem discutidas, explicitadas e adequadas para sua execução. Para se cumprir com as determinações éticas previstas é necessário observar rigorosamente as recomendações contidas nas "Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas envolvendo Seres Humanos", produto da Resolução n.º 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, de 9 e 10 de outubro de 1996.16

Todo procedimento de qualquer natureza envolvendo os seres humanos, cuja aceitação não esteja ainda consagrada na literatura científica, será considerado como pesquisa e, portanto, deverá obedecer às diretrizes da Resolução n.º 196/96. Os procedimentos referidos incluem, entre outros, os de natureza instrumental, ambiental, nutricional, educacional, sociológica, econômica, física, psíquica ou biológica, sejam eles farmacológicos, clínicos ou cirúrgicos e de finalidade preventiva, diagnostica ou terapêutica.

A questão sobre ética na sociedade contemporânea passou a ter uma importância crescente em face da nova extensão do poder propiciado pelo know-how da biotecnociência, em particular da engenharia genética, que permite manipular informações e re-programar os seres vivos e as espécies, onde as pesquisas com seres humanos ocupam um lugar especial. Essas pesquisas implicam novas responsabilidades institucionais e dos pesquisadores com seus objetos de estudo que são, antes de tudo, indivíduos com direitos e deveres.

Ao desenvolverem pesquisas com a finalidade de obter diagnósticos, medicamentos, novos procedimentos e vacinas as ciências biológicas e biomédicas apropriam-se do imenso potencial do saber instituído, submetendo indivíduos a antigos e novos riscos em busca de prováveis benefícios, nem sempre diretos. Surge, daí, a necessidade de criar regulamentações, nacionais e internacionais, como meio de manter a eticidade dos procedimentos, a privacidade e proteção das informações geradas e o consentimento livre e esclarecido dos participantes das pesquisas. Portanto, é necessário compreender a liberdade científica como ato cultural orientado pelos princípios da autonomia do indivíduo, da justiça, da beneficência, da não maleficência, da responsabilidade e da prudência, movida pela sensibilidade ética própria da natureza humana.

A pesquisa envolvendo seres humanos deverá prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade dos indivíduos pesquisados, garantindo a proteção da sua imagem, a sua não estigmatização e a não utilização das informações em prejuízo dos indivíduos e/ou das comunidades, inclusive em termos de auto-estima, de prestígio econômico e/ou financeiro. A pesquisa é um processo que serve para resolver problemas, para formular novas teorias e para testar teorias já elaboradas. O conhecimento necessita ser entendido como algo dinâmico e provisório, enquanto o pesquisador deve permanentemente ir à sua procura, tendo sempre em mente que descrever é escrever a partir de um referencial apropriado e previamente delimitado, visando fornecer consistência e sentido às análises produzidas.

A pesquisa deve respeitar sempre os valores culturais, sociais, morais, étnicos, religiosos e éticos, bem como os hábitos e costumes quando a pesquisa envolver trabalhos em comunidades, cuidando para que ocorra o retorno dos benefícios obtidos através dos conhecimentos adquiridos para as pessoas e comunidades onde a mesma foi realizada. Embora o pesquisador procure manter um distanciamento no trabalho de campo, nenhuma pesquisa é absolutamente neutra, uma vez que os problemas cotidianos e as escolhas que o pesquisador terá que tomar acarretam conseqüências para os indivíduos cuja vida se toca, assim como para o registro e a interpretação dos dados.

O "Termo de Consentimento Livre e Esclarecido" a ser apresentado aos indivíduos de uma pesquisa é a proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes (questão da autonomia). Deverá ser apresentado em linguagem acessível e que inclua a justificativa, os objetivos e os procedimentos a serem utilizados na pesquisa, assim como os desconfortos, os riscos possíveis e os benefícios esperados. Nesse sentido, a pesquisa envolvendo seres humanos deverá sempre tratá-los em sua dignidade, respeitá-los em sua autonomia e defendê-los em sua vulnerabilidade. Deverão ser prestadas todas as informações e esclarecimentos que se fizerem necessários, sendo que o termo somente será assinado quando houver, de ambas as partes, a mútua percepção de sua total compreensão.

A ponderação entre riscos e benefícios para os sujeitos da pesquisa, tanto atuais como potenciais, tanto individuais como coletivos, deve comprometer-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos, assim como também garantir que danos previsíveis serão evitados (questão da beneficência e questão da não maleficência). Ao reconstruir as ações e as interações dos atores sociais de acordo com seus pontos de vista, explicitam-se suas categorias de pensamento, a lógica de seus significados e a interpretação das explicações, explanações e teorias formuladas pelos indivíduos na sua realidade cotidiana.

Necessário se faz observar a relevância social de toda pesquisa envolvendo seres humanos, que somente deve ser realizada quando o conhecimento que se pretende obter não possa ser obtido por outro meio, com vantagens significativas para os sujeitos pesquisados e minimização do ônus para os sujeitos vulneráveis, o que garante a igualdade na consideração dos interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária (questão de justiça e eqüidade). A pesquisa em qualquer área do conhecimento envolvendo seres humanos deverá ser adequada aos princípios científicos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder às incertezas que a precederam, prevalecendo sempre as probabilidades dos benefícios esperados sobre os riscos previsíveis e, assegurar aos sujeitos da pesquisa os seus benefícios.

Considerações finais

A construção, desconstrução e reconstrução do saber e do fazer da saúde exigem permanente reavaliação e reformulação crítica das informações e formação dos profissionais e instituições de saúde. Possibilita investigações sobre o conhecimento das percepções dos indivíduos portadores de enfermidades, o que poderá viabilizar alternativas mais adequadas na prevenção de doenças e na promoção e manutenção da saúde. Teoria e prática de saúde necessitam caminhar juntas. A desconstrução e a reconceitualização de uma delas, obrigatoriamente deverá implicar no mesmo processo de mudança na outra, visando atualizar, explicitar e sistematizar os novos conhecimentos, essencialmente voltados para a aplicabilidade social.

O pesquisador deve estar consciente de que seu estudo necessita de um plano de trabalho, metódico e organizado, porém aberto e flexível, no qual os focos de investigação vão sendo constantemente revistos, as técnicas de coleta de informações, reavaliadas e complementadas, os instrumentos, reformulados e, os pressupostos teóricos, repensados. Uma vez que o objetivo é possibilitar a descoberta de novos conceitos, novas relações e novas formas de entendimento da realidade da doença, obtidas através de aproximações sucessivas do cotidiano de indivíduos hipertensos, suas experiências, percepções e comportamentos devem ser observados sem que ocorram interferências danosas para sua saúde ou para suas vidas.

A vida humana apresenta uma indissociável imbricação socioeconômica e histórico-cultural, através de uma permanente e dinâmica interinfluência com processos de construção, desconstrução e recons-trução de identidades e de organização dos espaços privados e públicos. A expressiva prevalência e incidência de morbi-mortalidade relacionadas com a presença das doenças crônico-degenerativas provocam uma profunda ruptura no tecido social de qualquer sociedade que se proponha a levar a sério o trabalho de prevenção, cuidados e manutenção da saúde de sua população. Não apenas a socialização do conhecimento, mas o seu compartilhamento, torna possível emergir novas contribuições para o entendimento do objeto de estudo.

É de vital importância a socialização do conhecimento médico, uma vez que, em grande parte, a prevenção das doenças é uma questão de educação e difusão democrática do conhecimento, com este procedimento ético caracterizando o modelo de sociedade em que se vive e as qualidades sócio-afetivas interpessoais que se estabelecem. A sua aplicação transcende a simples esfera da ação da intervenção médica, uma vez que "... através do discurso sobre a enfermidade se expressa um discurso sobre a sociedade inteira" (Herzlich e Pierret; 1988: 29, tradução nossa).17

Apesar da alta prevalência da hipertensão arterial em todos os países, apenas um pequeno contingente populacional sabe dessa sua condição e, mesmo sabendo, não se trata adequadamente. Essa situação coloca as pessoas à mercê de graves conseqüências da doença, com elevados índices de morbi-mortalidade e inevitáveis custos pessoais e sociais.18

O acesso cada vez maior às informações sobre formas alternativas de atenção à saúde é um componente que pode favorecer e promover a busca da diversidade na abordagem dos processos relacionados com a saúde e a doença, assim como no tocante à atenção e cuidados. No entanto, muitas dessas estratégias terapêuticas ainda não dispõem de suficientes condições para serem utilizadas como formas seguras ou adequadas no tratamento em seres humanos.

Neste novo cenário globalizado, onde as fronteiras não servem como barreiras para a contenção de "soluções mágicas" para os males das populações, a aplicação rigorosa dos preceitos éticos em pesquisa se torna um poderoso instrumento para ampliar a eqüidade e a confiabilidade em novas tecnologias, bens e serviços relacionados com a saúde.

Na atual sociedade ocidental, apesar da hegemonia da biomedicina, observa-se uma enorme gama de procedimentos médicos, ou "pluralismo médico", caracterizados por diversas formas de atenção e cuidados não apenas para diferentes problemas, mas para um mesmo problema ou situação de comprometimento para a saúde.19

Um dos grandes perigos aos quais as pessoas se acham expostas atualmente diz respeito à "indústria da medicalização". Apesar de toda a parafernália biotecnológica moderna, os medicamentos aparecem como a única, a mais adequada e imediata opção para resolver problemas de saúde. Muitas vezes, os problemas são escamoteados de suas verdadeiras origens, ou são superdimensionados, quando tal procedimento serve aos interesses de determinados segmentos da sociedade.

A ética na pesquisa encontra-se vinculada mais a prescrições e normatizações, como imposições que vem de fora do processo de pesquisa. No que se refere à relação entre pesquisador e participantes de pesquisas, alguns cuidados éticos são indispensáveis. A pesquisa ética configura-se pelo compromisso e aceitação de alguns aspectos inadiáveis e impres- cindíveis, tais como: "Pensar a pesquisa como uma prática social, adotando uma postura reflexiva em face do que significa produzir conhecimento; garantir a visibilidade dos procedimentos de coleta e análise dos dados; e, aceitar que a dialogia é intrínseca à relação que se estabelece entre pesquisador e participantes" (Spink e Menegon; 2000: 91).20

No caso de terapêuticas relacionadas com a hipertensão arterial, os cuidados éticos nas condutas e prescrições devem ser rigidamente observados. Por se tratar de uma doença crônica e, portanto, sem remissão completa, os seus portadores ficam bastante expostos a improváveis soluções alternativas para os seus sofrimentos.

As pessoas, em especial aquelas pertencentes às camadas populares, ficam constantemente expostas a procedimentos invasivos, humilhantes ou com efeitos adversos para a sua saúde. A lógica da assistência e da intervenção médica por diversas vezes legitima as desigualdades, mantém a assimetria social, exclui o diálogo e desconsidera a pluralidade dos seres humanos. Dessa forma, demarca e polariza o contexto social entre, por um lado, os benfeitores e, por outro, os necessitados, que são a grande maioria de usuários do sistema público de saúde.21

Ou seja, se a biomedicina, com todo o seu arsenal científico não consegue responder satisfatoriamente aos desafios das doenças crônico-degenerativas, e até por esse motivo, muito maior cuidado deve ser observado com as "promessas de cura" apresentadas por pessoas ou racionalidades que se pretendem médicas ou científicas.

Recebido em 21 de abril de 2003

Versão final reapresentada em 22 de setembro de 2003

Aprovado em 7 de outubro de 2003

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2004
  • Data do Fascículo
    Dez 2003

Histórico

  • Revisado
    22 Set 2003
  • Recebido
    21 Abr 2003
  • Aceito
    07 Out 2003
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