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Práticas alimentares e o cuidado da saúde: da alimentação da criança à alimentação da família

Nutrition habits and healthcare: feeding the children and the family

Resumos

A alimentação é um aspecto fundamental para a promoção da saúde da criança. No entanto, nutrir, amamentar, comer e oferecer comida são práticas sociais. O objetivo deste estudo foi analisar o significado das práticas alimentares compreendendo as percepções, experiências e valores sobre a alimentação para mães de criança sob risco nutricional, moradoras da Rocinha e freqüentadoras do grupo de mães do Centro Municipal de Saúde Píndaro de Carvalho Rodrigues. Para análise e compreensão do problema, foi utilizado o método da pesquisa qualitativa, através de entrevistas semi-estruturadas e da observação participante. O estudo possibilitou identificar que os hábitos e as práticas alimentares são permeados pelo aprendizado materno, que tem início na infância e é associado aos hábitos urbanos de consumo. A amamentação, a introdução de alimentos complementares até a alimentação cotidiana da família é um processo construído pela experiência e aprendizado próprios de cada grupo social. Identificamos que as práticas alimentares são construídas a partir de diferentes dimensões: temporal, de saúde e doença, de cuidado, afetiva, econômica e de ritual de socialização, que se entrelaçam conformando uma rede. A partir desse entendimento podemos, profissionais de saúde e usuários dos serviços, intervir na realidade tendo em vista a melhoria da saúde da criança e da família.

Nutrição; Bem-estar da criança; Alimentação


Food is essential to children's health. Nevertheless, nourishing, nursing, eating and offering food are social habits. The objective of this study is to analyze the meaning of eating habits encompassing perception, experiences and values related to food for mothers of children under nutritional risk, living in the Rocinha and members of the mother's group of the Municipal Health Center Píndaro de Carvalho Rodrigues. For purposes of analysis and understanding of the issue, qualitative survey was performed through semi-structured interviews and participative observation. The study identified that food habits and practices are permeated by maternal knowledge stemming from childhood and associated to urban consumption habits. Nursing, the introduction of complementary food and the day to day family meals is a process built by experience and learning inherent to each social group. We identified that food habits are built based on different issues: time, health and disease, care, affection, social and economic rites that intertwine building a network. Based on this understanding both healthcare professionals and service users will be able to interfere in this process aiming at the improvement of child and family health.

Nutrition; Child welfare; Feed


ARTIGOS ORIGINAIS ORIGINAL ARTICLES

Práticas alimentares e o cuidado da saúde: da alimentação da criança à alimentação da família

Nutrition habits and healthcare: feeding the children and the family

Sheila RotenbergI; Sonia De VargasII

IInstituto de Nutrição Annes Dias. Secretaria Municipal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil e Faculdade de Nutrição. Centro de Ciências Médicas. Universidade Federal Fluminense. Rua São Paulo, 30, 4º andar. Valonguinho. Niterói, RJ, Brasil, CEP: 24.020-150. E-mail: srotenberg@terra.com.br

IIMestrado. Faculdade de Educação. Universidade Católica de Petrópolis, RJ, Brasil

RESUMO

A alimentação é um aspecto fundamental para a promoção da saúde da criança. No entanto, nutrir, amamentar, comer e oferecer comida são práticas sociais. O objetivo deste estudo foi analisar o significado das práticas alimentares compreendendo as percepções, experiências e valores sobre a alimentação para mães de criança sob risco nutricional, moradoras da Rocinha e freqüentadoras do grupo de mães do Centro Municipal de Saúde Píndaro de Carvalho Rodrigues. Para análise e compreensão do problema, foi utilizado o método da pesquisa qualitativa, através de entrevistas semi-estruturadas e da observação participante. O estudo possibilitou identificar que os hábitos e as práticas alimentares são permeados pelo aprendizado materno, que tem início na infância e é associado aos hábitos urbanos de consumo. A amamentação, a introdução de alimentos complementares até a alimentação cotidiana da família é um processo construído pela experiência e aprendizado próprios de cada grupo social. Identificamos que as práticas alimentares são construídas a partir de diferentes dimensões: temporal, de saúde e doença, de cuidado, afetiva, econômica e de ritual de socialização, que se entrelaçam conformando uma rede. A partir desse entendimento podemos, profissionais de saúde e usuários dos serviços, intervir na realidade tendo em vista a melhoria da saúde da criança e da família.

Palavras-chave: Nutrição, Bem-estar da criança, Alimentação

ABSTRACT

Food is essential to children's health. Nevertheless, nourishing, nursing, eating and offering food are social habits. The objective of this study is to analyze the meaning of eating habits encompassing perception, experiences and values related to food for mothers of children under nutritional risk, living in the Rocinha and members of the mother's group of the Municipal Health Center Píndaro de Carvalho Rodrigues. For purposes of analysis and understanding of the issue, qualitative survey was performed through semi-structured interviews and participative observation. The study identified that food habits and practices are permeated by maternal knowledge stemming from childhood and associated to urban consumption habits. Nursing, the introduction of complementary food and the day to day family meals is a process built by experience and learning inherent to each social group. We identified that food habits are built based on different issues: time, health and disease, care, affection, social and economic rites that intertwine building a network. Based on this understanding both healthcare professionals and service users will be able to interfere in this process aiming at the improvement of child and family health.

Key words: Nutrition, Child welfare, Feed

Introdução

No cuidado da saúde da criança a alimentação é um aspecto fundamental para a promoção de sua saúde. Porém, entendemos que a nutrição e as práticas alimentares são práticas sociais, não podendo ser abordadas por uma única perspectiva disciplinar, pois o significado do ato de nutrir, de comer, ultrapassa o mero ato biológico. Nessa perspectiva, compreendemos como práticas alimentares a seleção, o consumo, a produção da refeição, o modo de preparação, de distribuição, de ingestão, isto é, o que se planta, o que se compra, o que se come, como se come, onde se come, com quem se come, em que freqüência, em que horário, em que combinação, tudo isso conjugado como parte integrante das práticas sociais.

Este trabalho faz parte de um estudo maior,1 e tem como objetivo analisar o significado das práticas alimentares compreendendo as percepções, experiências e valores sobre a alimentação, desde o aleitamento materno à alimentação cotidiana da família, para mães que freqüentam o grupo de mães de crianças sob risco nutricional do Centro Municipal de Saúde Píndaro de Carvalho Rodrigues (CMS VI RA), situado no bairro da Gávea, Rio de Janeiro, e visa contribuir para a interlocução entre os profissionais e mães usuárias do serviço de saúde, na busca de subsídios que possibilitassem a reformulação de propostas de intervenção.

Pensar a nutrição, a alimentação, o alimento de outra forma que não a partir dos aspectos biológicos, da fisiologia, foi durante muito tempo negligenciado. Analisar as práticas alimentares, compreendidas como uma prática social, implica o deslocamento de uma abordagem estritamente biológica e metabólica para uma compreensão antropológica e social. Pois, o homem biológico, o social, o ser psíquico, afetivo e cultural é indissociável.2,3

O estabelecimento de significados, categorias para os diferentes alimentos, os diferentes usos, as prescrições e proibições, os ritos à mesa, as formas de preparação, a composição, o número das refeições diárias e o horário estruturam a alimentação cotidiana, sendo aspectos importantes e marcas diferenciadoras entre os grupos sociais, cuja representação varia em cada cultura, em muitos casos, em função da relação corpo-alimento-trabalho.4-6

A alimentação se diferencia também, dependendo da idade, do estado de saúde e da situação social. Em todas as idades encontramos prescrições e proibições conforme representações e significado dos alimentos. Assim, não existe somente uma diferenciação por idade, como também a alimentação constitui uma variável importante na diferenciação entre pobres e ricos.4,5,7,8

Nessa perspectiva, acrescentamos que tudo o que é permitido consumir, tanto o que é proibido, constitui uma linguagem de classificação social da alimentação, pois a comida simboliza o contato diário com a vida, não apenas na dimensão da necessidade orgânica, mas sobretudo no sentido de continuar a participar socialmente do mundo.7,8

Ao tentar responder sobre o que se come, Giard9 nos informa que se come aquilo que se pode oferecer e o que gostamos de comer. O "poder" é remetido ao disponível, a partir da produção, distribuição e comércio dos alimentos, ao acessível como o preço, ao assimilável pela digestão, ao permitido pela cultura, ao valorizado pela organização social. Para esse autor, o gostar também é um termo amplo, associado ao jogo múltiplo de atrações e repulsas, fundados nos hábitos da infância, a partir do disponível, mas também da forma como o alimento é oferecido, apresentado. Pois comemos nossas lembranças temperadas por afetos, por ritos que marcam a vida humana, sabores de felicidade, de tristeza, de saudade, doces ou amargos sabores do passado.

Podemos também acrescentar, como salienta Arnaiz,10 que as transformações socioeconômicas, urbanas e tecnológicas afetam de forma diferenciada as regiões, os grupos sociais, as famílias, os indivíduos. As práticas alimentares podem ser compreendidas não somente quanto aos alimentos habitualmente consumidos, mas também às condições que favorecem com que sejam habituais e consumidos, pois são determinados pela disponibilidade objetiva dos alimentos, por influências culturais, pelo modo de vida, pela introdução de novos alimentos através da mídia, entre outros. A alimentação do ser humano não é instintiva, é construída e aprendida cognitivamente e ideologicamente nas relações sociais.4,7

Cabe destacar que hoje a construção do aprendizado em nutrição e alimentação humana dá-se a partir de várias fontes de informação. Para Giard,9 outrora a amamentação, as formas de preparação dos alimentos, as receitas, faziam parte do ritual de socialização das crianças, sendo aprendidas em conversas de mulheres, com a experiência e vivência, repassadas de mãe para filha, da avó para a neta. Atualmente, as fontes são diversas, as mulheres estão inseridas no mercado de trabalho, cotidianamente, são divulgadas através de revistas, jornais, programas de rádio e televisão, informações muitas vezes referendadas pelo discurso acadêmico-científico.

Assim, De Vargas11 nos informa que, em contextos diversificados, os grupos sociais criam suas estratégias de construção de saber. Seu aprendizado, no caso específico da alimentação, é construído desde sua infância, no contato com suas avós, mães e comunidade e, no presente, orientam seu trabalho e sua participação na família e vida social.

Ressaltamos a importância do estudo sobre as práticas alimentares compreendidas desde a amamentação, a introdução dos alimentos complementares até a alimentação semelhante à da família. Pois estudar a alimentação infantil e da família, compreendendo as representações moldadas no cotidiano da população, seus conhecimentos e práticas alimentares, assim como os diferentes papéis sociais masculinos e femininos, a partir da divisão social do trabalho, nos informa sobre a saúde e a nutrição da criança, sendo parte integrante na construção do saber em nutrição com vistas à reconstrução de práticas sociais.

O caminho do estudo

Compreender as práticas alimentares, do aleitamento materno à alimentação cotidiana da família, a partir do referencial da pesquisa qualitativa e da abordagem socioantropológica, enquanto profissional de saúde e de educação, foi o nosso desafio.

Para a compreensão de nosso objeto de estudo foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com 13 mães que participaram do grupo de mães de crianças sob risco nutricional do CMS VI RA, pelo menos em quatro encontros, representando no mínimo quatro meses de contato. As mães e as crianças estudadas apresentavam portanto, uma proximidade com os serviços e com os profissionais de saúde. O CMS VI RA é uma unidade municipal básica de saúde. Situa-se na Gávea, Zona Sul do Município do Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Tem como abrangência uma região de grandes contrastes sociais, onde cerca de 60% são moradores de alto poder aquisitivo e 40% residem em comunidades faveladas. Mais de 70% da demanda do CMS é oriunda desse último segmento.

Seguindo orientação do Ministério da Saúde, foram consideradas crianças sob risco nutricional (baixo peso), aquelas que apresentavam no indicador peso para a idade, um percentil menor que 10, segundo o padrão de referência do National Center for Health Statistic (NCHS), recomendado pelo Centro de Referência de Alimentação e Nutrição, Região Sudeste, vinculado ao Ministério da Saúde.12 As crianças que nasceram com peso inferior a 2500 g ou com patologias (cardiopatias, neuropatias, AIDS) não foram pesquisadas.

As entrevistas foram realizadas, no período de janeiro a julho de 1998, nas quais procuramos identificar a percepção das mães, práticas, experiências e valores sobre a alimentação da criança.

A técnica de entrevista semi-estruturada foi concebida como um diálogo, onde há estímulo para a livre expressão do entrevistado, ampliando o campo de discurso, que passa a incluir fatos, opiniões, impressões, expressões, dúvidas, hesitações. É nas dobras do discurso que estão as ambigüidades, as contradições entre o pensar e o agir, as quais são importantes de serem captadas e desveladas.13,14

Em nosso estudo, optamos pela análise qualitativa, pois consideramos que essa requer uma análise intensiva do material empírico, procurando penetrar nas suas conexões internas, ultrapassando a aparência dos fatos e situações imediatas, articulando-as numa análise dialética ao contexto sócio-político e cultural. Assim, analisamos os significados para as mães em sua singularidade, procurando articulá-los às suas determinações sociais mais amplas. Consideramos, na análise dos significados, as representações, compreendendo-as como relação entre pensamento e base material, entre a ação dos sujeitos históricos e as determinações que as condicionam. Relação na qual o pensamento, as representações e histórias de vida determinam e são determinadas pelas condições materiais.14,15

As discussões ora apresentadas foram construídas a partir da análise das entrevistas e da observação participante, conjugadas com os conceitos teóricos e com nossas experiências e vivências, a partir de categorias temáticas, nas quais abordamos diferentes dimensões para compreensão da complexidade do problema, tais como: temporal, de saúde e doença, afetiva, econômica, de cuidado e de ritual de socialização, que se interpenetram e integram a rede das tramas sociais.

Destacamos parte de entrevistas das mães, falas representativas, procurando identificar suas seme-lhanças e seus aspectos contraditórios, o "comum" e as heterogeneidades.13-15

Consoante com a perspectiva ética de pesquisas realizadas com seres humanos, todas as mães participantes da pesquisa foram informadas sobre o consentimento pós-informação, sobre a gravação da entrevista, a proteção de anonimato, resguardo do sigilo, assim como puderam participar ou não da pesquisa sem sofrer qualquer prejuízo.

O grupo estudado

Trabalhamos com 13 mães, entre 20 e 30 anos de idade, em sua maioria migrantes da área rural do Nordeste, que vieram para a cidade do Rio de Janeiro e aqui constituíram suas famílias. Trata-se de um modo geral de famílias nucleares; das 13 mães, 10 moravam com companheiro fixo, tinham um número máximo de quatro filhos e habitavam a comunidade da Rocinha há mais de cinco anos. Essas mães, que não tiveram oportunidade para se manter no sistema oficial de ensino, tinham um nível de escolaridade equivalente ao ensino fundamental incompleto, apenas uma completou esse ciclo, duas o ensino médio e sendo ainda uma analfabeta.

Quanto à ocupação, 10 mães realizavam trabalhos domésticos, de cuidado com seus filhos, casa e marido, somados à atividade laborativa no mercado informal, como lavadeira - fonte de renda feminina, para aquisição de complementação alimentar, de vestuário para as crianças e mobiliário para a família. Nove dos 10 companheiros se inseriam no mercado formal de trabalho, em atividades relacionadas ao comércio, prestação de serviços e indústria de construção civil, na Zona Sul, do Rio, que se constituem no principal mercado de trabalho para os moradores da Rocinha. Somente um marido não trabalhava por motivo de doença. Por outro lado, duas mães entrevistadas eram chefes-de-família, "tinham carteira assinada" e estavam inseridas no mercado formal de trabalho.

Quanto às crianças objeto de estudo, identificamos que, com exceção de uma, todas tinham até três anos de idade. Tiveram sua gestação acompanhada, em geral, no CMS VI RA, e nasceram de parto normal, no Hospital Municipal Miguel Couto, local de referência de parto para moradores da área de abrangência do CMS. Quanto à amamentação, percebemos também, que todas foram amamentadas e em grande parte por um período de mais de nove meses, somente três mamaram até três meses. Em relação à situação do estado nutricional no primeiro dia de sua presença no grupo de mães e na entrevista, percebemos que todas as crianças, com exceção de uma, tiveram evolução positiva.

Achados do estudo

A primeira alimentação da criança: o aleitamento materno

A experiência da amamentação foi percebida como única em relação a cada filho e como um processo, compreendendo, na dimensão temporal, dois momentos críticos: o início e o término, ou seja, o estabelecimento da amamentação propriamente dita e o desmame total.

A vivência da amamentação, bem como da maternidade, definem a mulher como algo mais do que uma simples fêmea. São experiências complexas, compreendendo uma rede de fatores psicológicos e sociais. A moral, os valores médicos, sociais, religiosos e culturais têm um peso.16

L: "... ele pegou o peito bem, logo assim que nasceu, não deu trabalho não ..."

D: "Eu acho bom. No início não, no início dói muito, mas depois que está acostumado eu não acho difícil ..."

AC: "Quando ele nasceu, ele não queria pegar o peito, não queria mamar. Eu fiquei chorando lá no hospital. Aí, uma enfermeira ficou me ajudando até o dia seguinte, até que ele pegou o peito e mamou."

Como vimos nas falas a amamentação não é intuitiva, natural ou fácil. Segundo Badinter16 e Almeida17 o estabelecimento da amamentação e do desmame requer estruturas de apoio e informação, sendo um momento crucial para a saúde da mulher e da criança.

Assim, os serviços e profissionais de saúde, a partir da atenção no pré-natal, parto, puerpério imediato e puericultura, exercem papel importante na promoção, informação e apoio às mulheres nesses momentos especiais para mães e crianças.

Nessa direção Silva18 e Nakamo19 assinalam que a amamentação depende do momento vivido pela mulher desde a gestação, de sua experiência com a maternidade, de sua bagagem cultural, construída a partir de sua infância até o contato com os serviços de saúde, isto é sinalizam a amamentação em uma dimensão de ritual de socialização.

Na dimensão da saúde e doença, o leite materno figura nas falas das mães como elemento central, favorecendo o crescimento, o desenvolvimento e a saúde da criança.

MA: "... Mas saúde minha filha tem. Eu acho que é por causa do peito, criança que vive no peito é muito sadia."

As mães valorizam o leite humano como alimento, proteção e cuidado com a criança, em consonância com o preconizado pelos profissionais e serviços de saúde.17,20,21

Por outro lado, em outras vivências, na dimensão afetiva, a dificuldade inicial, o choro da criança, a insegurança, favorecem o desmame precoce:

ML: "Ele mamava mas em poucos minutos ele ficava chorando de fome. Meu leite não sustentava ele ... eu tentei dar mas eu não consegui."

Essa fala traz embutida o sentimento de fracasso, ter leite fraco, não ter conseguido amamentar. O ter leite fica referido a um problema individual da mulher, escamoteando o aspecto social do processo da amamentação, muito bem analisado por Badinter,16 Almeida,17 Silva,18 e Nakamo,19 entre outros.

Por outro lado, o contato físico, a troca de olhares, de calor, de carícias, torna a amamentação uma experiência prazerosa e saudável.

M: "Eu acho que é uma coisa maravilhosa amamentar no peito, acho uma sensação maravilhosa."

A partir desses exemplos vimos que a prática de amamentação se caracteriza pela presença de sentimentos ambíguos: praticidade/dificuldade; saúde, cuidado/trabalho, cansaço; ter leite/não ter leite; prazer/desprazer.

Uma vez vencidos os obstáculos iniciais, dife-rentes sentimentos parecem dificultar o desmame total. Dessa forma, a mãe envolvida afetivamente com seu filho, tem pena, encara o desmame como uma separação definitiva.

D: "Eu acho que ele mama mesmo só para mamar mesmo, porque não tem quase nada. Aí, fica só querendo curtir. Eu tenho dó de deixar."

Promover, proteger, apoiar a amamentação e orientar a introdução complementar de alimentos, assim como o desmame total, são aspectos fundamentais da prática dos profissionais de saúde e da sociedade tendo em vista a saúde e nutrição da criança.17,18,20 Cabe ressaltar que, tratando-se de crianças sob risco nutricional, o aleitamento prolongado, em muitos casos, pode comprometer a saúde da criança.

Alimentação da criança e da família

Identificamos nesse estudo que a maioria das mães são migrantes do Nordeste. Suas práticas alimentares e de cuidado da criança são permeadas pelo aprendizado construído na infância, acrescido do consumo de bens e serviços oferecidos pela cidade, onde mães e famílias têm mais acesso ao consumo de bens coletivos e individuais. Isso foi uma das vantagens relatadas como atrativo para a vinda ao Rio de Janeiro.

O estudo possibilitou compreender que a introdução de alimentos complementares ao leite materno até a alimentação cotidiana da família é um processo, refletindo assim a dimensão temporal e de ritual de socialização das práticas alimentares. Na alimentação infantil há uma distinção entre a alimentação do lactente e a da criança no segundo e terceiro anos de vida. Conforme a criança vai crescendo e se desenvolvendo, sua alimentação vai progressivamente sofrendo modificações, principalmente em relação à forma de preparação, tipo de alimentos utilizados e consistência da comida.

MA: "Agora ela está comendo comida mais forte, mas no início que eu comecei a dar foi sopinha, mingau, frutas, também ela adora frutas. Agora que está mais pesada, a alimentação dela, porque ela come tudo com a gente ... dependendo da comida, se for uma comida que a gente vê que pode dar, a gente dá e ela come. Comida mais forte é feijão, arroz, carne vermelha, porque antes só tomava mingau, era suco, ela ainda toma, mas ela não comia feijão, porque feijão é forte para caramba. Agora ela já come este tipo de comida."

Para as mães, em consonância com as orientações dos profissionais,20 a alimentação da criança no primeiro ano de vida é um momento de transição entre o alimento líquido, leite materno, para alimentos em consistência pastosa até à comida "de panela", comida mais próxima daquela que a família consome. Identificamos na alimentação da criança maior de um ano e da família, em seu cotidiano, a presença de alimentos básicos, a valorização da comida, arroz, feijão, macarrão, carne e verduras. Alimentos considerados fortes, que alimentam e sustentam, reforçando a dimensão de saúde e doença das práticas alimentares.

ML: "Eu acho que é comida do meu filho, o macarrão, a carne e a verdura. O meu come de tudo, o que der para ele, ele come."

A noção de alimentos fortes, seria aquilo que fortifica o corpo da criança, e que faz bem para a saúde. Para Fischeler,2 alguns alimentos são consumidos porque são considerados a partir de suas propriedades medicinais ou por seus efeitos benéficos sobre o corpo. Nessa perspectiva se insere o destaque dado ao uso do feijão, considerado e aprendido no ritual de socialização como um alimento forte, rico em ferro, bom para o sangue, assim como e dado destaque para outros alimentos, que são também ricos em ferro, entre eles a carne vermelha, o fígado, os vegetais verdes. Pois ter sangue forte significa vida, saúde.

Cabe ressaltar que a preocupação das mães com a ingestão de alimentos ricos em ferro é pertinente, uma vez que na realidade brasileira a anemia é uma doença carencial bastante freqüente, sendo um problema de saúde pública de maior magnitude.12,21,22

Assim, a criança dita "que come" fica referida àquela que come de tudo, que come os alimentos que a família pode oferecer, dentro do possível, "comida" variada e criativa.

M: "Meu filho come de tudo agora. Come verdura, couve-flor, brócolis, espinafre, ele come mais verduras, aí o peso dele não abaixa mais. Ele fica com saúde, ele corre, brinca o dia inteiro, dorme bem"... eu acordo às seis horas, eu dou mamadeira com farinha láctea que ele toma de manhã ... às vezes ele come uma fruta ou então toma suco, um biscoito nesse período. Aí meio dia ele almoça ... lanche, um pão com manteiga café, o que tiver, jantam, aí eu faço a mamadeira para ele e vai dormir."

Entrelaçando as dimensões, destacamos na dimensão do cuidado, a importância de a criança comer "comida" em quantidade e qualidade e nos horários adequados, isto é, arroz, feijão, carne, verduras, alimentação mais próxima da família, nas grandes refeições e sucos, frutas e leite nas pequenas refeições.

Por outro lado, a criança "que não come" é aquela que oferece resistência à ingestão da alimentação cotidiana da família, muitas vezes monótona e pouco variada, apresentando preferência ao consumo de leite.

AU: "Ele gosta de tomar mamadeira, o negócio dele é mamadeira. Ele não gosta de comer, feijão, arroz, essas coisas assim, ele não gosta ... de legumes só se for batido no liqüidificador, feito uma papinha, aí ele come .. .fruta ele gosta de maçã, banana, suco de laranja, eu dou bastante para ele, eu compro."

A partir da queixa "que a criança não come", "não mastiga", as mães ou forçam a criança a comer de qualquer maneira ou substituem a "comida" por mamadeira ou leite. Indo além de cuidar e nutrir, a relação mãe-criança e alimento está inserida numa dimensão afetiva, de estímulo, de busca ou não de autonomia e de socialização. Na ânsia de que a criança fique alimentada, identificamos que algumas mães apresentam práticas alimentares inadequadas.

Cabe aqui destacar mais uma vez a importância dos serviços e profissionais de saúde na busca de prevenir e controlar os agravos nutricionais, como bem nos apontam diversos autores.12,20,21

Associada ao consumo do alimento "básico", ressaltamos a introdução de novos alimentos industrializados, a partir do estímulo do marketing das indústrias, com destaque para o consumo de leite em pó, macarrão instantâneo, achocolatados, iogurtes e biscoitos "salgadinhos".

Segundo Ficheler2 alguns alimentos de sabor diferente, por motivos de status, "modismo", foram sendo incorporados aos hábitos alimentares. No entanto, a visão das mães sobre tais alimentos é ambígua: apesar do seu consumo, consideram-nos "besteiras", pois são caros e podem fazer mal à saúde da criança., incorporando em sua visão, além da dimensão de ritual de socialização, de saúde e doença e de cuidado, a dimensão econômica.

MA: "... em vez de eu comprar um Danoninho por R$1,50 eu dou num saco de laranja, porque laranja ainda tem vitamina. Aquele Danoninho o que tem?"

Seguindo essa linha de pensamento podemos destacar outros alimentos considerados como besteiras.

M: "Besteira, eu acho doce. Para mim besteira é doce ... tem que controlar, se não querem comer toda hora. Só doce, só besteira, Danoninho, refrigerante, eles só querem isso."

Ainda na dimensão econômica, vimos que as mães reconhecem a importância dos alimentos para a criança. Porém, quando falta dinheiro há uma hierarquia entre os "alimentos que até podem faltar."

MS: "Falta fruta, às vezes falta legumes. Falta banana, porque ela adora banana, aí tem que comprar, tem que está comprando a banana dela, aí falta laranja, maracujá, porque ela gosta de tomar suco de maracujá, aí eu tenho que estar sempre comprando. Eu gasto muito com os dois, eu gasto muito mesmo, pode faltar legume, às vezes não tem dinheiro para comprar, pode faltar uma carne. Aí tem que comer ovo, porque não tem dinheiro para comprar carne."

A fala acima ressalta outro aspecto importante nas práticas alimentares cotidianas, a presença ou não do consumo de frutas, verduras e legumes pela criança. Vimos que esse está relacionado à disponibilidade econômica, ao poder de compra. Geralmente, ao lado da carne, são os alimentos que mais podem faltar, sendo sua compra "picada", realizada no "sacolão" e nas feiras da Rocinha. Diferentemente da compra do "básico", que é feita em grandes supermercados dos bairros de São Conrado e Barra da Tijuca. Identificamos no presente estudo, assim como em pesquisas de outros autores,5,10,23,24 que há uma hierarquização, valorização diferenciada dos alimentos, conforme o seu acesso pelos diversos grupos sociais.

Ainda dentro da perspectiva econômica, compondo a cesta básica de alimentação da criança, temos algumas mães que, entre as estratégias de sobrevivência, utilizam-se de doações de alimentos oriundas de instituições religiosas, de parentes e de vizinhos, assim como do leite recebido através do Programa de Suplementação Alimentar executado pelas unidades de saúde, no caso específico do leite distribuído pelo CMS VI RA.

ML: "Às vezes no final do ano tem a igreja que dá, a Santa Margarida Maria, em Botafogo, lá aonde eu moro tem um rapaz que toda sexta-feira dá verdura."

R: "O leite é só para as meninas, o leite daqui me quebra o maior galho, porque não é todo o dia que o meu marido tem dinheiro para ficar comprando leite. Eu acho uma ajuda muito boa esse leite daqui, não é um quebra galho, é uma ajuda mesmo. Eu estou ganhando aqui enquanto ela tiver aqui."

As mães reconhecem a importância do "Programa do Leite" no que tange à sua contribuição indireta para o orçamento das famílias, e consequentemente para a alimentação da criança, pois o leite é considerado um alimento básico e importante para a saúde da criança, tal qual preconizado pelos serviços e profissionais de saúde.12,20,21

Ainda, na dimensão econômica, vimos em nosso estudo, também, que há distinção entre comida de pobre e comida de rico. As mães identificam a comida de rico como mais diversificada, como aquela que tem a presença da carne - alimento tão valorizado -, que faz uso de preparações mais elaboradas, que utiliza vários ingredientes e o forno. Comida esta presente em seus lares nos dias de lazer ou de festa, em ocasiões especiais, em geral no almoço de domingo.

N: "Lá em casa não tem muita coisa, porque pobre não pode comer tudo ... eu gostaria de comer comida boa. Carne, porque pobre não pode comprar carne todo dia. Come ovo que é mais barato ... meu sonho é comprar bastante coisa ... porque tendo só o arroz e o feijão não dá. Ovo também enjoa comer todo dia ..."

E: "Sábado e domingo eu faço uma maionese assim, aquele macarrãozinho picado com ervilha, sardinha, presunto, uma coisa assim melhor. Um macarrão, um feijão, um arroz, uma costela. No outro sábado e no outro domingo eu já não faço em casa, eu vou comer na minha irmã. É assim, a gente troca."

Como assinalam Zaluar23 e Canesqui,24 a carne é um demarcador entre a alimentação do rico, que come carne todos os dias, e as camadas populares, que nem sempre podem consumi-la. O seu consumo passa a ser símbolo de uma posição idealizada.

Outro ponto destacado em nosso estudo refere-se à alimentação do final de semana. A maioria das refeições, além de sua função de nutrir, possui um aspecto ritual, inserido em normas de uma cultura. A alimentação do final de semana é diferenciada da comida cotidiana, por ser a ocasião na qual a família está reunida, sendo considerada um momento de lazer. Ressaltamos que esse momento também expressa solidariedade e convivência entre familiares.

Na ocasião de dias festivos, em especial no domingo, ou na presença de convidados, parentes e amigos, é quando os grupos populares, diante das limitações econômicas, consomem alimentos "mais ricos", mais elaborados, de qualidade superior e mais caros que no dia a dia. Esse ritual permite identificar tanto a presença do "luxo" alimentar, numa situação de carência, quanto o significado social da comida, fato destacado por Zaluar23 e Canesqui.24

AC: "... eu faço na casa da minha avó, bolo para as crianças que eles adoram, faço pudim, pavê. Os ingredientes a minha avó compra, quando ela não compra, ela ganha. Ela pega 'compras' também, na Igreja Santa Margarida Maria, às vezes vem na 'compra'".

MA: "Eu não sei fazer comida de rico, só sei fazer as minhas comidas mesmo... Só uma salada, um arroz, um feijão, uma carne frita, até um ensopadinho eu sei fazer.

Vimos também que a produção das refeições e o cuidado com a saúde da criança, ainda é uma atribuição feminina, em muitos casos passada de geração em geração entrelaçando a dimensão econômica, com a afetiva e com a de ritual de socialização.

E: "Eu aprendi com a minha mãe. Eu gosto de cozinhar quando tem alguma coisa diferente para fazer. Só feijão e arroz não dão muito prazer ..."

Podemos destacar que o cuidar e o cozinhar aparecem como atividades femininas: ora são tarefas cansativas, monótonas desvalorizadas pelas próprias mulheres, ora podem ser vivenciadas como fonte de prazer, de trocas afetivas, de invenção e de sabedoria.

M: "Eu faço de tudo. Invento bolinho de arroz, misturo carne moída com legumes, boto farinha de trigo, bato ovo, faço bolinho para as crianças. Invento bolo, faço bolo de laranja, bolo de limão, invento uma porção de coisas. Faço macarrão com creme de leite, às vezes faço macarrão com molho branco, faço angu, mingau de fubá com ovo dentro, tem até briga lá em casa para comer."

Como salienta Giard,9 apropriando-se do conhecimento adquirido, do "saber-fazer", cada mulher, dentro de suas possibilidades, tem um modo próprio de criar mini-estratégias para improvisar, de compor sobre temas obrigatórios, imprimindo um toque singular e especial. É impossível negar que cozinhar exige memória de aprendizagem dos gestos vistos, do sabor, do cheiro, da consistência.

De uma maneira diferenciada, identificamos também, o trabalho doméstico masculino, pois alguns pais de nosso estudo cozinham, exercem essa atividade no mercado formal de trabalho e no lar. Cinco dos dez pais, além da função de "provedores da família", participam também no cuidado da casa e da alimentação da criança.

MS: "Às vezes meu marido cozinha, às vezes ele lava a roupa, passa e arruma a casa ... As crianças adoram a comida dele. Eu aprendi, aqui com ele. Porque ele trabalhava em restaurante, aí ele foi e me ensinou. Eu não sabia nem fazer um ovo inteiro ...".

Essa fala destaca o aprendizado feminino a partir do companheiro e sua inserção no mercado de trabalho. Essa atitude pode ser uma característica da área estudada, pois dentre as ocupações predominantes dos moradores da Rocinha incluem-se o trabalho em restaurantes, bares, hotéis e similares da região.

Acrescentamos também, na dimensão econômica, do trabalho, outras estratégias de sobrevivência utilizadas, em especial pelas mulheres, no intuito de melhorar o acesso da criança e da família a outros bens de consumo.

AU: "Eu lavo roupa para fora .... Eu ajudo meu marido. Meu marido ganha só R$250,00, paga R$ 150,00 de aluguel, sobram R$100,00, aí não dá. Eu vou ao supermercado e faço as compras, compro arroz, feijão, macarrão, óleo ... Eu acho que trabalho é isso, ter carteira assinada, no final do ano ter o décimo terceiro ... eu preferia trabalhar fora do que cuidar de casa, dá muito trabalho. Lavar, passar, criança doente, levar ao médico, fazer tudo, tudo. Você já trabalhando é melhor ... agora graças a Deus eu lavo a minha roupa. O que der para eu comprar uma roupinha para eles eu compro, eu vou levando."

Destacamos porém, que o trabalho feminino, como trabalhadoras do lar e lavadeiras, fica ainda invisível e desvalorizado. As mães das classes populares identificam como trabalho aquele que tem carteira assinada. Como salienta também Sarti,25 as mães conciliam seus vários papéis, por vezes prevalecendo o papel do cuidado com a casa, a família e os filhos. O dinheiro recebido pelo seu trabalho informal realizado no âmbito doméstico, que em nosso estudo se refere à lavagem de roupa para fora, ora para algum parente, ora para vizinhos, é variável, circunscrita a essas relações de conhecimento, sendo utilizado principalmente na compra de alimentos infantis e no vestuário da família.

A participação feminina no mercado formal de trabalho depende da articulação entre o trabalho remunerado e as responsabilidades familiares. Uma das formas encontradas para esse equilíbrio tem sido a eliminação da jornada de tempo integral, concentrando atividades por conta própria, desempenhadas em conjunto com as tarefas domésticas e o cuidado dos filhos.25

Por outro lado, identificamos mães que exercem a função de chefes-de-família.

D: "Só eu que trabalho; trabalho em limpeza, ganho uma mixaria. Eu recebo R$184,00 para quatro pessoas. Meu marido é doente, não trabalha. Eu gosto de trabalhar, só uma coisa que eu acho é que não acho que a gente recebe bem, porque lá trabalha todos os dias, e lá não tem os direitos. É firma com carteira assinada ..."

Essas mães assumem portanto todas as respon-sabilidades: de manutenção e sustento econômico, afetivo, de cuidado da criança e da casa.

Considerações finais

As práticas alimentares, compreendidas da amamentação à alimentação cotidiana da família, são oriundas de conhecimentos, vivências e experiências, construídas a partir das condições de vida, da cultura, das redes sociais e do saber científico de cada época histórica e cultural.

O presente estudo possibilitou identificar que os hábitos e as práticas alimentares são permeados pelo aprendizado materno, que têm início na infância, e são associados aos hábitos urbanos de consumo.

A pesquisa evidenciou que a vivência da amamentação bem como da maternidade, definem a mulher como algo mais do que uma simples fêmea. São experiências complexas compreendendo uma rede de fatores. O estabelecimento da amamentação, o início da alimentação complementar e o desmame total da criança são etapas cruciais para o estado de saúde e nutrição, para as quais as mulheres necessitam de informação e apoio.

Identificamos na alimentação da criança maior de um ano e da família, em seu cotidiano, a presença de alimentos básicos, a valorização do leite, do arroz, feijão e carne, alimentos considerados fortes, que alimentam e sustentam. Assim, a criança dita "que come" fica referida àquela que come de tudo, que come os alimentos que a família pode oferecer. Por outro lado, a criança "que não come" é aquela que oferece resistência à ingestão da alimentação cotidiana da família, em especial do feijão e arroz, apresentando preferência ao consumo de leite.

Vimos que o consumo de frutas, verduras e legumes, está relacionado à disponibilidade econômica, ao poder de compra que, geralmente, ao lado da carne, podem estar pouco presentes na alimentação cotidiana. Paralelamente ao consumo dos alimentos básicos, vimos a introdução de outros industrializados, a partir do estímulo do marketing das indústrias, com destaque para o consumo de leite em pó, macarrão instantâneo, achocolatados, iogurtes e biscoitos "salgadinhos". A visão das mães sobre esses alimentos é ambígua. Apesar do seu consumo, consideram-nos "besteiras", pois são caros e podem fazer mal à saúde da criança. As práticas alimentares constituem-se num campo no qual presente e passado se entrelaçam, onde a tradição e inovação estão presentes.

Quanto à produção das refeições destacamos o trabalho feminino, mas em alguns casos também, a participação masculina no cuidado da criança. Na perspectiva econômica, vimos que as mães, entre as estratégias de sobrevivência, utilizam-se de doações de alimentos, no intuito de melhorar o acesso da criança à alimentação, procurando ainda, pela atividade laborativa de lavadeira, aumentar a renda familiar. Por outro lado, outras mães são chefes de família, sendo provedoras, responsáveis pelo sustento e pelo cuidado da saúde da criança.

Assim, identificamos que as práticas alimentares são construídas a partir de diferentes dimensões: temporal, de saúde e doença, de cuidado, afetiva, econômica e de ritual socialização, que se entrelaçam conformando uma rede. A partir desse entendimento podemos, profissionais de saúde e usuários dos serviços, intervir na realidade tendo em vista a melhoria da saúde da criança e da família.

Ressaltamos que a discussão de nossa pesquisa se deu a partir da compreensão das práticas alimentares para mães de crianças com baixo-peso. Porém, entendemos que as reflexões ora apresentadas possam ser estendidas para outras situações encontradas na prática de nutrição e saúde pública. Acreditamos que o incentivo à adoção de práticas alimentares saudáveis deva ser planejado, em conjunto com outras ações. A questão da qualidade dos alimentos e do acesso à alimentação saudável implica, a partir do conceito de segurança alimentar, na possibilidade do consumo por todos os cidadãos de alimentos seguros que satisfaçam suas necessidades nutricionais, seus hábitos e práticas alimentares culturalmente construídas, promovendo assim o cuidado da saúde.

Recebido em 15 de maio de 2003

Versão final apresentada em 29 de setembro de 2003

Aprovado em 27 de novembro de 2003

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2004
  • Data do Fascículo
    Mar 2004

Histórico

  • Aceito
    27 Nov 2003
  • Revisado
    29 Set 2003
  • Recebido
    15 Maio 2003
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