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O aleitamento materno na pós-graduação em nutrição no Brasil: um perfil das dissertações e teses de 1974 a 2004

Breastfeeding in post-graduate research on nutrition in Brazil: a profile of dissertations and theses produced between 1974 and 2004

Resumos

OBJETIVOS: traçar o perfil da produção sobre aleitamento materno na pós-graduação stricto sensu em nutrição no Brasil. MÉTODOS: análise descritiva das dissertações e teses produzidas no período de 1974 a 2004 por todos os programas reconhecidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. RESULTADOS: os programas produziram 732 obras, das quais 48 utilizaram o aleitamento materno como objeto de construção, sendo 42 em nível de mestrado e seis de doutorado. A Universidade Federal de Pernambuco concentrou o maior número de publicações, enquanto a Universidade de Brasília e a Universidade Federal do Rio de Janeiro foram as que, proporcionalmente, mais se dedicaram a estudar a temática. Em 44% dos programas não se verificou produção sobre aleitamento materno. Os programas se diferenciaram quanto à especificidade dos estudos, porém não exploraram os aspectos culturais que envolvem a prática do aleitamento materno. CONCLUSÕES: a nutrição, na qualidade de espaço de construção do conhecimento científico, ainda não se encontra, no seu todo, comprometida com a questão do aleitamento materno e não tem se ocupado das peculiaridades sociais e culturais que envolvem sua prática.

Aleitamento materno; Nutrição; Pós-graduação


OBJECTIVES: to trace the profile of academic research on breastfeeding conducted as part of stricto sensu post-graduation courses in nutrition in Brazil. METHODS: a descriptive analysis was carried out of dissertations and theses produced between 1974 and 2004 at all programs recognized by Coordinating Body for the Training of Higher Education Staff. RESULTS: the programs produced 732 studies in all, of which 48 had breastfeeding as the principal object of study, 42 Masters dissertations and six doctoral theses. The Federal University of Pernambuco had the largest number of publications, while the University of Brasilia and the Federal University of Rio de Janeiro were the ones that, proportionally, addressed the issue most. In 44% of the programs, no academic research on breastfeeding was found at this level. The programs were especially strong on the specificity of the studies, but tended not investigate cultural aspects, including adoption of the practice of breastfeeding. CONCLUSIONS: nutrition, as an area of scientific knowledge, has not as yet fully embraced the issue of breastfeeding and has failed to address the social and cultural peculiarities the practice of breastfeeding involves.

Breastfeeding; Nutrition; Post-graduation


ARTIGOS ORIGINAIS ORIGINAL ARTICLES

O aleitamento materno na pós-graduação em nutrição no Brasil: um perfil das dissertações e teses de 1974 a 2004

Breastfeeding in post-graduate research on nutrition in Brazil: a profile of dissertations and theses produced between 1974 and 2004

Raquel Maria Amaral AraújoI; João Aprígio Guerra de AlmeidaII

IDepartamento de Nutrição. Universidade Federal de Viçosa. Av. PH Holfs, s. n. Campus Universitário. Viçosa, MG, Brasil. CEP: 36.570-000. E-mail: raraujo@ufv.br

IIInstituto Fernandes Figueira. Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

OBJETIVOS: traçar o perfil da produção sobre aleitamento materno na pós-graduação stricto sensu em nutrição no Brasil.

MÉTODOS: análise descritiva das dissertações e teses produzidas no período de 1974 a 2004 por todos os programas reconhecidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

RESULTADOS: os programas produziram 732 obras, das quais 48 utilizaram o aleitamento materno como objeto de construção, sendo 42 em nível de mestrado e seis de doutorado. A Universidade Federal de Pernambuco concentrou o maior número de publicações, enquanto a Universidade de Brasília e a Universidade Federal do Rio de Janeiro foram as que, proporcionalmente, mais se dedicaram a estudar a temática. Em 44% dos programas não se verificou produção sobre aleitamento materno. Os programas se diferenciaram quanto à especificidade dos estudos, porém não exploraram os aspectos culturais que envolvem a prática do aleitamento materno.

CONCLUSÕES: a nutrição, na qualidade de espaço de construção do conhecimento científico, ainda não se encontra, no seu todo, comprometida com a questão do aleitamento materno e não tem se ocupado das peculiaridades sociais e culturais que envolvem sua prática.

Palavras-chave: Aleitamento materno, Nutrição, Pós-graduação

ABSTRACT

OBJECTIVES: to trace the profile of academic research on breastfeeding conducted as part of stricto sensu post-graduation courses in nutrition in Brazil.

METHODS: a descriptive analysis was carried out of dissertations and theses produced between 1974 and 2004 at all programs recognized by Coordinating Body for the Training of Higher Education Staff.

RESULTS: the programs produced 732 studies in all, of which 48 had breastfeeding as the principal object of study, 42 Masters dissertations and six doctoral theses. The Federal University of Pernambuco had the largest number of publications, while the University of Brasilia and the Federal University of Rio de Janeiro were the ones that, proportionally, addressed the issue most. In 44% of the programs, no academic research on breastfeeding was found at this level. The programs were especially strong on the specificity of the studies, but tended not investigate cultural aspects, including adoption of the practice of breastfeeding.

CONCLUSIONS: nutrition, as an area of scientific knowledge, has not as yet fully embraced the issue of breastfeeding and has failed to address the social and cultural peculiarities the practice of breastfeeding involves.

Key words: Breastfeeding, Nutrition, Post-graduation

Introdução

As questões que permeiam a alimentação e nutrição de populações têm-se configurado objeto de problematização para a academia, resultando em um elenco variado de teses e dissertações. Nesse cenário se insere a preocupação com a alimentação infantil, sobretudo de lactentes, no qual o aleitamento materno representa unanimidade científica, por se tratar de alimentação segura no início de vida, com repercussões favoráveis na saúde futura, bem como a possibilidade de ganhos psicoafetivos para a mãe e a criança.1-3

O número de evidências científicas que qualificam o aleitamento materno como prática inigualável para a alimentação do humano em início de vida segue uma trajetória crescente. Os estudos realizados no campo da alimentação infantil têm gerado o conhecimento para o estabelecimento de diretrizes que norteiam os procedimentos nessa área. Assim é que o aleitamento materno, exclusivo nos seis primeiros meses de vida e continuado até dois anos ou mais, foi oficialmente recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde, por se tratar de uma alimentação cientificamente reconhecida como segura, saudável e sustentável.4,5

A literatura científica brasileira é rica em trabalhos relacionados ao aleitamento materno, desenvolvidos nas diferentes áreas do conhecimento. No campo da saúde, a nutrição é co-responsável no processo de integração de ensino e pesquisa sobre essa temática. Considerando o seu objetivo de proporcionar qualidade de vida, por meio da promoção, manutenção e recuperação da saúde e prevenção de doenças,6 presume-se sua participação na produção científica sobre o aleitamento materno. Acresce-se o status que o Brasil ocupa no cenário mundial de promoção dessa prática. Os organismos internacionais de saúde têm reconhecido os esforços realizados pelo país em prol do aleitamento materno, que tem se revelado fator decisivo para a redução da mortalidade infantil.7

A nutrição, como campo formal de exercício profissional, de ensino e de pesquisa, ou ainda, como política social, constitui um espaço de atividade relativamente recente no mundo, tendo sua emergência no século XX.8 No Brasil, a criação dos primeiros cursos de graduação nessa área data do período de 1939 a 1949,8 sendo essa iniciativa resultante de uma aspiração política de desenvolvimento econômico e social do país, extremamente marcada, no âmbito social, pelo assistencialismo.8-10 Inicialmente, esses cursos formavam dietistas que atuavam na assistência ao paciente por meio da alimentação e em programas governamentais de alimentação.9 Ressalta-se ainda que a base intelectual desse campo do saber constituiu-se de médicos nutrólogos que definiram conceitos, disciplinas e os conteúdos das ciências da nutrição, com uma forte influência do médico argentino, Pedro Escudero, que difundiu suas concepções acerca da nutrição em toda a América Latina.8-10

Ainda que em seu nascedouro a ciência da nutrição tenha constituído a dietética como seu núcleo de identidade,11 o campo de atuação do nutricionista ampliou-se no decorrer do tempo, abrangendo hoje as áreas de nutrição clínica, alimentação coletiva, saúde coletiva, nutrição e dietética, ciência e tecnologia de alimentos e educação.12

A pós-graduação em Nutrição surgiu na década de 70, período de reformulação das ações em prol da nutrição de populações, que resultou no estabelecimento de planos e programas em alimentação e nutrição. Essa nova formatação para as ações de nutrição centralizou-se no Instituto de Alimentação e Nutrição (INAN), responsável por dinamizar o Programa Nacional de Alimentação e Nutrição (PRONAN), cujo objetivo era melhorar a situação nutricional de grupos com risco biológico e social.13 Segundo Lima et al.,14 a implementação da pós-graduação em Nutrição no Brasil se desenvolveu condicionada ao interesse do Estado em integrar pós-graduação e pesquisa ao projeto de nutrição do Brasil. Dessa forma, a pós-graduação na Nutrição, inicialmente, estruturou-se e moldou suas funções formativas e o seu trabalho de investigação e análise conformando-se aos propósitos do PRONAN, priorizando temas sobre o grave problema da desnutrição brasileira.

A experiência de pós-graduação da Nutrição tem um percurso de três décadas e, nos últimos anos, o surgimento progressivo de novos programas tem significado um impulso para a expansão de sua atividade científica.15

Diante do exposto há de se questionar: qual tem sido a contribuição da Nutrição nesse processo de produção do conhecimento científico sobre aleitamento materno? Embora existam estudos sobre a produção científica da Nutrição no Brasil,14,16 não há relato de estudos que investiguem a produção do conhecimento sobre aleitamento materno nesse campo do saber. Na Enfermagem, Oriá et al.,17 analisaram a produção intelectual dessa área sobre aleitamento materno, com ênfase nas questões teóricas e metodológicas dos estudos publicados em revistas nacionais de enfermagem. Souza18 pesquisou os determinantes biológicos e sociais influentes na construção do conhecimento sobre a alimentação infantil na pediatria brasileira, analisando teses, livros-texto referentes à pediatria e puericultura, e artigos do Jornal de Pediatria.

No sentido de preencher essa lacuna, o presente estudo foi desenvolvido com o objetivo de traçar o perfil da produção sobre aleitamento materno nos programas de pós-graduação stricto sensu em Nutrição no Brasil, reconhecidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no período de 1974 a 2004.

Métodos

O estudo foi desenvolvido em três etapas: mapeamento dos programas de pós-graduação stricto sensu em Nutrição reconhecidos no Brasil; identificação e obtenção das dissertações e teses; e análise descritiva do material.

Os programas de pós-graduação stricto sensu em Nutrição e suas respectivas instituições de ensino superior foram localizados no portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), na área de Nutrição, integrante da grande área de Ciências da Saúde.

Em seguida, foi solicitada à coordenação de cada programa uma relação completa de toda a produção, que serviu de base para identificar as dissertações e teses sobre aleitamento materno. Por meio do Serviço de Comutação Bibliográfica entre Bibliotecas, foram obtidas cópias dos exemplares selecionados.

O estudo corresponde ao período de 1974 a 2004. O ano de 1974 refere-se à data de início da produção do primeiro curso de pós-graduação stricto sensu em Nutrição no Brasil. O ano de 2004 foi estabelecido no sentido de garantir a obtenção de um quantitativo atual e real da produção dos programas. Considerando-se que o espaço de tempo entre a defesa e a entrega da versão final da obra ao respectivo programa pode, em alguns casos, prolongar-se por tempo variável, não foi incluído o ano de 2005.

Para a análise dos temas abordados nas teses e dissertações sobre aleitamento materno utilizou-se, como referência, a classificação de áreas do conhecimento apresentada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Nessa classificação, a Nutrição constitui-se em quatro subáreas do conhecimento: Bioquímica da Nutrição; Dietética; Análise Nutricional de População; e Desnutrição e Desenvolvimento Fisiológico. Considerando que a classificação utilizada foi insuficiente quanto à categorização de alguns estudos, foi incluída mais uma subárea proposta pelos autores: Educação nutricional.

Resultados e Discussão

As instituições de ensino superior envolvidas neste estudo e suas respectivas siglas estão relacionadas na Tabela 1.

Até o ano de 2004, período correspondente ao estudo, somavam-se nove programas de pós-graduação stricto sensu em Nutrição, distribuídos geograficamente nas Regiões Sul, Sudeste e Nordeste, conforme a Relação de Cursos Recomendados e Reconhecidos pela CAPES.

No período de 1974 a 2004, os programas de pós-graduação stricto sensu em Nutrição produziram 732 obras, sendo 608 (83%) dissertações de mestrado e 124 (17%) teses de doutorado (Tabela 2). O aleitamento materno foi utilizado como objeto de estudo em 6,6% do total, o que corresponde a 43 dissertações e cinco teses.

A análise comparativa da produção entre os programas de pós-graduação revelou que a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) detém maior número de publicações sobre aleitamento materno, com 48% do total produzido sobre essa temática no Brasil no período estudado. Embora esse seja um número expressivo, há de se considerar que a UFPE, primeira instituição a implantar um curso de pós-graduação stricto sensu em Nutrição no Brasil, durante 14 anos foi única responsável pela produção de dissertações da Nutrição, o que lhe confere uma margem mais ampla de possibilidades de produção, comparada à maioria dos programas ainda jovens.

A análise do quantitativo da produção sobre aleitamento materno dentro de cada programa revelou que a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) foram as que mais se dedicaram à temática, com cerca de 13,0% e 12% de suas respectivas produções.

Os programas de pós-graduação da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal de Viçosa (UFV), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) não dispõem de teses ou dissertações sobre aleitamento materno no período estudado. A produção dos programas depende de suas linhas de pesquisa, que por sua vez são um reflexo do perfil institucional e do tempo necessário para sua consolidação. Neste sentido, vale destacar que a UFV, UFSC e a UFRN implantaram seus programas a partir de 2000. O programa da USP, cuja primeira produção data de 1994, apresenta um longo percurso de produção intelectual sem considerar as questões relacionadas ao aleitamento materno como um problema para a ciência.

Na Tabela 3 estão relacionados os anos em que ocorreram defesas ou publicações de dissertações e teses sobre aleitamento materno, conforme a instituição de ensino. Todas as instituições apresentaram relativa regularidade na produção sobre a temática ao longo dos anos. Na UFPE o aleitamento materno se configurou como objeto de construção para a pós-graduação desde as primeiras dissertações, assim como a UFRJ e UnB. Vale destacar, no caso da UFPE, uma visível interrupção de publicações na segunda metade da década de 80. A Universidade Federal da Paraíba (UFPB), apesar de ter seu programa implantado em 1993, somente em 2001 apresentou a primeira produção sobre aleitamento materno. Um dado interessante é a observação de que a partir de 1989 o volume da produção dos programas é ascendente e, nos quatro primeiros anos de 2000, o total de dissertações e teses é igual à soma do que foi produzido nos dez anos anteriores.

Essa dinâmica observada na cronologia das publicações de dissertações e teses dos programas de nutrição pode guardar relação com o contexto histórico da situação do aleitamento materno no Brasil na década de 70 e nos anos seguintes a 1980, e com a evolução da pós-graduação em nutrição.

A década de 70, período correspondente à criação da pós-graduação em Nutrição no Brasil, representou o auge do crescimento da indústria de alimentação infantil, que se expandia com um forte apelo para a substituição do leite humano pelo de vaca industrializado.18-20 Da mesma forma, a produção científica sobre alimentação infantil crescia e revelava uma marcante presença de estudos envolvendo o uso de leite não humano, o que proporcionava status científico para os substitutos do leite humano.18 Na pediatria, a conduta médica assumia uma postura favorável ao uso do leite formulado, legitimando-se na literatura científica da época.18 Concomitantemente, estudos também mostravam a alta taxa de morbi-mortalidade infantil nas populações pobres dos países da África, Ásia e América Latina,7,18-20 levando a questionamentos sobre a substituição do leite humano na alimentação infantil, tendo em vista suas implicações na saúde da criança. A publicação "O matador de bebês",21 um relatório denunciando a ocorrência da desnutrição infantil ocasionada pela promoção de alimentação artificial no Terceiro Mundo, é um marco no posicionamento frente ao agressivo marketing das multinacionais de leites industrializados.

A década seguinte, de 1980, representou o período de mobilização mundial para a revalorização da amamentação natural, promovida pela OMS e o Fundo das Nações Unidas para a Criança (UNICEF).7,18-20 No Brasil, as repercussões dessa investida foram positivas no sentido da formulação de políticas públicas em favor do aleitamento materno, tendo como base ações de proteção (normas ou leis), promoção (divulgação na comunidade) e apoio (aconselhamento e orientação às mães) a essa prática.7 As iniciativas de grande impacto foram a implementação do Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno,20,22 com diversas atividades em prol da amamentação, e aprovação da Norma para Comercialização de Alimentos para Lactentes, que regulamenta a promoção comercial e o uso apropriado dos alimentos colocados à venda como substitutos ou complementos do leite materno, além de mamadeiras, bicos e chupetas.7,23

Esse período foi marcado pela efervescência dos debates e ações de estímulo à prática do aleitamento materno24 e, conseqüentemente, as instituições de pesquisa foram incitadas a se debruçarem sobre essa questão. Isso poderia explicar a crescente produção científica sobre essa temática na pós-graduação em Nutrição a partir de 1989, observada no presente estudo.

Outro fato que também pode ter contribuído para esse crescimento, especialmente a partir de 1999, é o surgimento de novos programas, como pode ser observado na Tabela 2, bem como o aumento de pesquisadores capacitados no país entre 1996 e 2003.15,25 Assim, tem-se ampliada a possibilidade de investigações sobre a temática do aleitamento materno, considerando-se o potencial de cientistas26 e também a crescente demanda por investigações em alimentação infantil.26

A distribuição das teses e dissertações sobre aleitamento materno, segundo a classificação de subáreas do conhecimento na nutrição, pode ser observada na Tabela 4. A estratificação das publicações por instituições, de acordo com as subáreas mais estudadas, permitiu identificar uma diferenciação dos programas quanto à abordagem dessa temática. Nesse sentido, a UFPE se destaca pelos estudos em análise nutricional de população. A UFRJ, por sua vez, se volta para a bioquímica da nutrição, concentrando 73% de seus estudos nessa subárea. A Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e a UnB problematizaram a temática privilegiando a educação nutricional, totalizando, respectivamente, 44% e 67% de suas publicações. A UFPB dedicou 100% de suas construções em nível de mestrado à análise nutricional de população.

A UFPE foi a única a apresentar estudos em todas as subáreas. As pesquisas dessa instituição se voltaram prioritariamente para a identificação dos efeitos da desnutrição no período de aleitamento e para a situação epidemiológica do aleitamento materno, especialmente no Nordeste. Dessa forma, as subáreas bioquímica da nutrição, desnutrição e desenvolvimento fisiológico, e análise nutricional de população detiveram o maior número de produções. Essa característica de investigação que se estabeleceu desde as primeiras dissertações e se manteve por todo o período estudado, mostra que essas subáreas emergiram na criação do programa e prevaleceram no decorrer do tempo.

Esse perfil da produção da UFPE, polarizada com as perspectivas biológica e social, revela uma possível influência da inclinação intelectual dos pesquisadores que estabeleceram o campo da nutrição em Pernambuco. Segundo Vasconcelos,27 duas vertentes intelectuais constituíram o campo da nutrição em Pernambuco, representadas pelos pesquisadores Nelson Chaves e Josué de Castro. Nelson Chaves, reconhecido pelos estudos bioquímicos sobre o valor dos alimentos no Nordeste e análise da desnutrição em Pernambuco, relaciona-se à vertente biológica, ainda que, posteriormente, tenha ultrapassado esta fronteira para o campo social. A outra vertente é representada por Josué de Castro, considerado iniciador e promotor dos estudos da nutrição na perspectiva social, relacionando a desnutrição com a estrutura social. A predominância de estudos nas subáreas bioquímica da nutrição, desnutrição e desenvolvimento fisiológico e análise nutricional de população no programa da UFPE revela o traço característico desses pesquisadores, definindo o perfil da produção científica naquele ambiente. Conforme Vasconcelos,28 esses pesquisadores exerceram uma forte influência sobre as gerações de cientistas, especialmente médicos e nutricionistas que, subsequentemente, participaram do processo de institucionalização da nutrição em saúde pública no Brasil.

A UFRJ e a UFPE foram as que mais produziram na subárea bioquímica da nutrição, porém, elas se diferenciaram quanto à abordagem da temática: aleitamento materno. Na UFRJ os estudos se voltam para a composição do leite materno e os aspectos envolvidos na sua produção e utilização. A UFPE, entretanto, buscou identificar os efeitos da desnutrição no período de aleitamento, se preocupando com os aspectos fisiológicos da nutrição.

A nutrição contribuiu amplamente na geração de conhecimento no campo da biologia do aleitamento materno, tanto no que se refere aos aspectos fisiológicos da lactação, como do leite enquanto alimento saudável, seguro e sustentável. Também pesquisou as questões sociais que condicionam o aleitamento materno. Na área social, o enfoque teórico-metodológico que prevalece na nutrição circunscreve-se na epidemiologia, com estudos voltados para o conhecimento da situação do aleitamento materno e seus condicionantes, especialmente no Nordeste. Observa-se, entretanto, ausência de estudos dos aspectos culturais que envolvem a prática de amamentação, especialmente o estudo desse evento a partir da perspectiva da mulher, considerando-se ser essa a protagonista na alimentação da criança.

Ao assumir esta trajetória, os programas reduzem a possibilidade de contribuir para solução de problemas que emergem do social e concorrem para a perpetuação dos elevados índices de desmame precoce, sobretudo no que diz respeito à amamentação exclusiva até o sexto mês de vida do bebê e continuada por dois anos ou mais. A amamentação é um processo alimentar que não pode ser reduzido à dimensão exclusiva do alimento. Para que o leite humano se faça disponível ao lactente, os determinantes biológicos da fisiologia da lactação devem ser facilitados pelos condicionantes sociais que permeiam o cotidiano da mulher que amamenta. Em síntese, a nutrição, preocupada com o leite humano e toda a sua importância como primeiro alimento, não pode perder de vista que a amamentação é uma categoria híbrida29 que se constrói entre os domínios da biologia e da sociedade, ambos mediados pela aparelhagem psíquica da mulher-mãe que amamenta.

Há de se considerar, entretanto, a possibilidade de produções sobre essa temática realizada por nutricionistas em programas de pós-graduação de outras áreas do conhecimento, em linhas de pesquisa concernentes à nutrição.

Conclusões

A análise da produção de um programa de pós-graduação stricto sensu permite identificar, entre outras questões, a prioridade conferida às áreas temáticas nas quais se delimitam os objetivos de estudo. As teses e dissertações dos programas de pós-graduação stricto sensu em Nutrição refletem, para além da dimensão epistemológica, o grau de articulação das construções acadêmicas com as questões que emergem como problema no cenário da saúde pública. Frente a isso, a ausência de estudos sobre aleitamento materno em 44% dos programas exige uma reflexão.

As questões de alimentação e nutrição, quando focadas na perspectiva de ecologia do desenvolvimento humano, remetem ao aleitamento materno não apenas como uma prática segura para o lactente, mas como um determinante capaz de reduzir o risco de agravos decorrentes das doenças crônicas não transmissíveis no ciclo da vida. Assim, problematizar a temática do aleitamento materno no intuito de originar objetos de pesquisa que consubstanciem o desenvolvimento de teses e dissertações implica, entre outras, na possibilidade de construir caminhos que viabilizem a adoção de ações preventivas mais eficazes.

Vale ainda destacar que a análise da produção sobre aleitamento materno na pós-graduação em Nutrição revelou uma tendência de se estudar essa temática abordando seus aspectos biológicos e epidemiológicos, sem se preocupar com as questões subjetivas à mulher no processo de amamentação. Essa situação esboça uma visão reducionista da Nutrição acerca da temática. Tal posicionamento pode influenciar a constituição do aleitamento materno como disciplina na academia, e condicionar a atuação profissional, na assistência à amamentação, a uma abordagem restrita ao campo da biologia, em detrimento das especificidades culturais e emocionais da mulher.

Recebido em 2 de novembro de 2006

Versão final apresentada em 10 de setembro de 2007

Aprovado em 26 de outubro de 2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2008
  • Data do Fascículo
    Mar 2008

Histórico

  • Aceito
    26 Out 2007
  • Revisado
    10 Set 2007
  • Recebido
    02 Nov 2006
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