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Direito à alimentação

EDITORIAL

Direito à alimentação

Malaquias Batista Filho

Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira - IMIP. Rua dos Coelhos, 300. Boa Vista. Recife, PE, Brasil. CEP: 50.070-550. E-mail: mbatista@imip.org.br

É curioso observar que, mesmo representando um dos problemas mais antigos, permanentes e graves de toda a história da humanidade, somente há pouco mais de meio século as questões relacionadas com a alimentação, nutrição, saúde, direitos de cidadania, obrigações do Estado e deveres da sociedade passaram a figurar como parte das grandes reflexões e linhas de ação de políticas públicas. De fato, só no pós-guerra o tema ainda difuso e nebuloso da fome coletiva ingressou na agenda das preocupações dos chefes de Estado, depois de ser enfocado como tema de estudos biológicos, econômicos, sociais, históricos, culturais, religiosos e éticos ligados à própria saga do desenvolvimento humano.

Este despertar de consciência e da ação de governos e sociedade de todo o mundo se deve, em grande parte, aos focos de iluminação acesos por dois livros marcantes de um médico brasileiro: Geografia da Fome (1946) e Geopolítica da Fome (1951), de Josué de Castro. Traduzidos em 25 idiomas, replicados e atualizados em dezenas de edições e sequenciados por duas outras dezenas de livros de sua autoria, deve-se a Josué de Castro o papel vanguardeiro de romper a conspiração do silêncio que, fazendo da fome um problema proibido, representava também uma interdição para o debate de ideias e ações propostas corrigir as linhas tortuosas da própria história do homem em suas diferentes vertentes: a economia, a política, a antropologia, a sociologia, a noso-grafia, a moral e a prática das religiões, o determinismo ecológico e geográfico.

A propósito, a geografia e a religião representavam desculpas apriorísticas para os problemas do homem. Existiriam instâncias sobrenaturais e mediações naturais para justificar a má distribuição das riquezas entre os polos da opulência e da miséria, as práticas perversas de apropriação dos recursos naturais e de exploração dos trabalhadores, desde o absurdo da escravidão até as estratégias dissimuladas de apropriação da mais valia mediante condições insalubres de trabalhos, baixos salários, desemprego e o subemprego mantidos pelo exército potencial de reserva, os contingentes de desempregados disponíveis para ocupar os nichos mais excluídos pelo mercado de mão de obra. São estes os bastidores da história da fome, no Brasil e no mundo, que Josué de Castro em escala mundial, Nelson Chaves e outros no caso do Brasil, denunciaram com a autoridade científica de seus estudos e a ação militante de suas lutas.

Estas observações introdutórias vêm a propósito de um fato auspicioso para o próprio legado de pioneiris-mo que o Brasil, como protagonista de primeira linha, tem exercido no campo da alimentação e nutrição em nível internacional. Na realidade, além de circunstâncias históricas e suas transitoriedades, como a emergência da Liga das Nações após a Primeira Guerra Mundial e da Organização das Nações Unidas (ONU) no fim da Segunda Grande Guerra, define-se uma corrente de pensamento e de ação política no sentido de afirmar valores e princípios como conceito e como práticas de direitos e deveres de cidadania. Pode-se dizer, apesar de todos os desvios de percurso, que o Século XX foi o século dos Direitos Humanos, desde os mais universais até os mais específicos, como os direitos da mulher, das crianças, dos adolescentes, dos trabalhadores, das minorias étnicas, da liberdade de crença religiosa e exercício de seus cultos. Provavelmente, apesar de todas as declarações em contrário, a mais negada de todas as prerrogativas de cidadania seja o direito à segurança alimentar e nutricional, desde que bilhões de pessoas sofrem os riscos ou apresentem manifestações concretas de desvios funcionais ou morfológicos relacionados com as carências alimentares agudas ou crônicas. Não são apenas a incompetência de governos ou os males de algumas sociedades, são pecados estruturais da própria civilização.

Neste contexto, a recente promulgação recente do direito à alimentação como um direitos sociais básicos da Constituição do Estado brasileiro, depois de sete anos de trânsito nas várias comissões de consulta e de decisões plenárias do Senado representa uma conquista histórica. A chamada PEC 047/2003 (ano em que a Proposta de Emenda Constitucional entrou no processo formal de discussão no Senado da República) coloca a alimentação ao lado da educação, da saúde, do trabalho, da moradia, do lazer, da segurança, da previdência social, da proteção à maternidade e à infância, e da assistência aos desempregados, como direito social reconhecido pela Constituição, assegurando, portanto, que todo cidadão brasileiro desde o nascimento até seu último dia de vida, deve contar com a garantia de acesso aos alimentos em quantidade e qualidade adequadas para o atendimento pleno de suas necessidades biológicas todos os dias, em todos os lugares e sob todas as circunstâncias. Isto implica que, em último caso, quando fatores estruturais ou conjunturais do processo econômico e social não possibilitarem a realização deste direito, o poder público pode ser judicialmente acionado para o seu devido cumprimento.

Foram sete anos para que uma única palavra (alimentação) fosse incorporada ao artigo 6° da Constituição Federal, mas, de fato, representa um enorme passo, no sentido de estabelecer um dever obrigatório do Estado e não um ponto facultativo de políticas públicas de um governo ou de um partido político. Não se trata, é oportuno que se diga de um "fiat" mágico que, de uma hora para outra, ponha alimentos saudáveis em todos os pratos e, portanto, em todas as bocas. No entanto, ao se colocar como uma obrigação do Estado como representante da sociedade e não como um cuidado eventual de filantropia pública, este direito estabelece a necessidade de políticas econômicas, sociais, ecológicas, educacionais, culturais e, em última (ou em primeira?) instância de referenciais éticos para sua validação.

Mais do que o coroamento de uma história rica em contribuições na luta contra a fome e de uma experiência auspiciosa de dois mandatos governamentais no enfrentamento de insegurança alimentar no Brasil, a PEC 47 exemplifica para o mundo um compromisso permanente com o mais fundamental de todos os direitos, a alimentação, como condição básica da própria vida.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2010
  • Data do Fascículo
    Jun 2010
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