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A saúde indígena no Brasil

A população indígena brasileira "oficial", conforme o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010 é composta de 896.917 habitantes, pouco menos de 0,5 % da população total do país. Além da surpresa que significa este numero tão exato, chama a atenção o aumento expressivo deste grupo nos últimos anos, que parece corresponder mais a mudanças nos critérios de identificação e não a fatores demográficos. Ainda assim representa uma fatia considerável da nossa população, que alguns consideraram quase em vias de extinção entre as décadas de 1950 e 1970, quando as cifras oficiais estimavam em torno de 120.000 os sobreviventes dos quase mil povos e cinco milhões de pessoas que os conquistadores portugueses encontraram nestas terras em 1500. A história da colonização européia nesses povos ameríndios mostra que em muitos países eles foram quase dizimados, em parte por extermínio direto em longas guerras, mas fundamentalmente pelas doenças infecciosas que aqueles conquistadores introduziram, às vezes de forma involuntária, como sarampo, gripe ou tuberculose, mas também de forma proposital, como os relatos de surtos de varíola quando as formas de contágio da doença já eram conhecidas. Tudo isto agravado por práticas escravocratas e situações de graves carências alimentares. Determinado em muito pelos constantes conflitos pela posse da terra, este último aspecto ainda é uma realidade para muitas etnias, com graves consequências na situação nutricional, especialmente no grupo materno-infantil, sendo assim uma das causas dos elevados indicadores de morbidade e mortalidade em crianças e mulheres, com taxas e coeficientes varias vezes superior a média brasileira.

Essas populações indígenas, assim como os negros trazidos da África, sempre foram tratados de forma desigual e menosprezados pelas classes dominantes durante a colonização, sem grandes restrições morais. Apenas depois dos pensadores iluministas dos séculos XVIII e XIX é que se fortalecem os conceitos de igualdade, fraternidade, liberdade, e, em quase toda a América, incluindo o Brasil, se iniciam os processos de independência que muitas vezes já introduziam algumas políticas para os grupos menos privilegiados. No Brasil, apenas em 1910 surge o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), porém, sendo órgão vinculado ao Ministério de Agricultura, obviamente priorizava as questões de propriedade das terras. Só na década de 1950 surge o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (SUSA) vinculado ao Ministério da Saúde (MS), destinado a prestar assistência a regiões de difícil acesso. A história mais recente destaca a criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 1967, mas sempre com insatisfações generalizadas, o que leva os legisladores a definir um modelo de atendimento especifico para povos indígenas na constituição de 1988, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), fazendo com que em 1991 a saúde indígena passe da FUNAI para o MS. Este cria os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) como "base operacional para a política de atenção à saúde das populações indígenas no âmbito do SUS", sob a coordenação da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). A descaracterização técnica desta última, motivo de permanentes conflitos com as comunidades indígenas e as organizações prestadoras de serviços de saúde, levaram o MS à criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) em 2010, a qual realizou um processo licitatório para que os DSEIs fossem gerenciados por organizações sociais, entre as quais o Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP) em Pernambuco.

Desde 2011, nesta parceria com o MS, o IMIP criou a Coordenação de Saúde Indígena, iniciativa institucional que possui, como principais objetivos, desenvolver apoio gerencial, técnico e financeiro para a "Atenção Básica à Saúde Indígena" e a "Promoção do Saneamento Ambiental em Terras Indígenas", através da gestão dos DSEIs de Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Sergipe, executando ações complementares na atenção integral à saúde dos povos indígenas destes estados. Esta iniciativa veio somar-se a colaborações que o IMIP, junto com o MS e a Organização Panamericana da Saúde (OPAS), já desenvolvia em outras comunidades indígenas no Brasil desde 2005, com destaque para as etnias Tikunas (Amazonas), Xavantes (Mato Grosso), guaranis Kaiowás (Mato Grosso do Sul) e Yanomamis (RR), Estados que concentram a maior parteda população indígena brasileira.

Em conjunto com estas atividades, o IMIP resolveu também desenvolver ações para que os estudantes de diversas áreas da saúde possam realizar praticas acadêmicas nas aldeias, orientados pelas equipes de saúde locais. Várias dessas experiências tem sido relatadas e apresentadas em congressos, mas ainda é pequena a contribuição potencial que podemos fazer. A partir de 2014, o IMIP ampliou a sua colaboração com o MS, ficando responsável também pelos DSEIs de outros Estados do Nordeste, desde Bahia até o Maranhão. O trabalho assistencial e de ensino que iremos desenvolver deve ser complementado com atividades de pesquisa, respeitando as especificidades que estas ações devem ter em populações vulneráveis, e tudo isto deve ser comunicado, relatado e publicado, como uma forma de contribuição e demonstração de respeito, desde já imaginando que encontraremos realidades impensadas. Daí a importância do artigo neste número da Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil sobre o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional Indígena (SISVAN-I) de Pantoja e colaboradores, relatando as dificuldades de desenvolver estas ações em território Yanomami, realidade que tivemos a possibilidade de conhecer precisamente colaborando com capacitações do SISVAN.

Embora as terras indígenas no Brasil correspondam a 12% do território nacional, e para alguns isto seja um argumento na hora de questionar a legalidade da posse da terra, nem todas são aptas para garantir a sobrevida com qualidade, e àquelas de melhor potencial produtivo estão em permanente estado de conflito com posseiros, garimpeiros e outros produtores rurais, sem que as autoridades tenham conseguido definir políticas que garantam paz e produtividade nestas realidades. O impacto desta situação de conflito nos aspectos de saúde é significativo, criando serias dificuldades para encontrar recursos humanos que queiram trabalhar nestas condições de insegurança.

Nos dias em que escrevíamos este editorial, uma providencial coincidência nos comunicava a canonização do padre jesuíta espanhol José de Anchieta, devido ao seu significativo trabalho de evangelização e pacificação com grupos indígenas durante o século XVI, que incluíam traduções entre português e tupi e outras línguas nativas, alem de escritos abrangentes de cultura indígena e medicina tradicional, demonstrando aquilo que deveria continuar a ser o exemplo de como temos que trabalhar com estas comunidades, respeitando as suas crenças sobre o origem dos problemas de saúde, quase sempre determinados por desequilíbrios entre o comportamento do homem em relação ao seu meio ambiente. E é neste ambiente onde também eles procuram a sua cura: na água, chuva, ervas, plantas, fogo, fumaça, sol, lua, estrelas. É aí que os pajés, xamãs, curandeiros, benzedeiros, comadres, entre outros, são os verdadeiros e maiores especialistas. Quando levamos para eles a "nossa" medicina tradicional (biomédica, tecnológica, farmacológica, baseada em evidências), tentamos quase sempre impor o nosso conhecimento, aquilo que nós "sabemos" e acreditamos ser verdadeiro; mas quantos de nós estamos realmente dispostos a aprender deles, ou com eles? Eis uma proposta interessante que agora temos como desafio.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2014
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