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Comunidade quilombola na Região Nordeste do Brasil: saúde de mulheres e crianças antes e após sua certificação

A quilombola community in the Northeast region of Brazil: the health of women and children before and after certification

Resumo

Objetivos:

caracterizar a situação de saúde de mulheres e crianças em uma comunidade quilombola no Nordeste do Brasil, antes e após sua certificação.

Métodos:

os dados procedem de dois inquéritos com metodologias similares, realizados em 2008 e 2009, no universo de mulheres e crianças residentes. As características socioeconômicas e de saúde das populações nos dois períodos foram comparadas pelo cálculo da Razão de Prevalência (RP), utilizando regressão de Poisson.

Resultados:

foram estudadas 143 mulheres e 194 crianças e 172 mulheres e 67 crianças nos anos de 2008 e 2012, respectivamente. As prevalências de excesso de peso (59,1% vs. 62,8%) e circunferência da cintura ≥80cm (59,5% vs. 57,4%) foram semelhantes entre os períodos (p>0,05). As características que apresentaram mudanças significantes (p<0,05) foram: renda familiar per capita >2 dólares/dia (23,2% vs. 67,4%; RP=2,90; IC95%: 2,11-4,01), prevalência de diarreia nas crianças (10,3% vs. 26,9%; RP=2,61; IC95%: 1,46-4,62), calendário vacinal atualizado (80,4% vs. 95,3%%; RP=1,18; IC95%: 1,08-1,30), frequência de suplementação de vitamina A (70,3% vs. 100,0%; RP=1,42; IC95%: 1,29-1,56), período de amamentação exclusiva ≥6 meses (8,7% vs. 44,6%; RP=5,13; IC95%: 2,95-8,92) e prevalência de anemia em crianças (41,6% vs. 20,0%; RP=0,48; IC95%: 0,27-0,87).

Conclusões:

ocorreram melhorias na situação de saúde, todavia ainda são necessários investimentos visando o incremento do padrão de saúde na comunidade.

Palavras-chave
Grupo com ancestrais do continente Africano; Origem étnica e Saúde; Vulnerabilidade em saúde; Brasil

Abstract

Objectives:

to characterize the health status of women and children in a quilombola community in the Northeast region of Brazil before and after certification.

Methods:

the data are taken from two investigations using similar methodologies carried out in 2008 and 2009, among women and children residing in the community. The socio-economic and health characteristics of these populations in the two periods were compared by calculating the Prevalence Ratio (PR), using Poisson regression.

Results:

the studies covered 143 women and 194 children in 2008 and 172 women and 67 children in 2012. The prevalence of overweight (59.1% vs. 62.8%) and waist circumference ≥80cm (59.5% vs. 57.4%) were similar in the two periods (p>0.05). The characteristics that exhibited significant changes (p<0.05) were: per capita family income > 2 US dollars/day (23.2% vs. 67.4%; PR=2.90; CI95%: 2.11-4.01), prevalence of diarrhea in children (10.3% vs. 26.9%; PR=2.61; CI95%: 1.46-4.62), up-to-date vaccination record (80.4% vs. 95.3%%; PR=1.18; CI95%: 1.08-1.30), frequency of receipt of vitamin A supplements (70.3% vs. 100.0%; PR=1.42; CI95%: 1.29-1.56), duration of exclusive breastfeeding ≥6 months (8.7% vs. 44.6%; PR=5.13; CI95%: 2.95-8.92) and prevalence of anemia among children (41.6% vs. 20.0%; PR=0.48; CI95%: 0.27-0.87).

Conclusions:

there have been improvements in the health status of the population, but investment still needs to be made to ensure that health standards in the community continue to rise.

Key words
African continental ancestry group; Ethnicity and health; Health vulnerability; Brazil

Introdução

A maioria da população brasileira é formada por negros ou pardos, sendo que uma importante proporção desse contingente humano se encontra ainda hoje nos estratos mais pobres da população, uma consequência histórica de uma série de iniquidades às quais os negros e seus descendentes foram submetidos, inclusive em relação à atenção à saúde.1Pinto AR, Borges JC, Novo MP, Pires PS. Quilombos do Brasil: Segurança Alimentar e Nutricional em territórios titulados. V. 20. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação; 2014.

Embora essa compreensão seja extensiva aos negros de um modo geral (povos de religião de matriz africana, os negros que vivem nas cidades, os indivíduos pertencentes às comunidades remanescentes dos quilombos), em se tratando de atenção à saúde, uma preocupação especial deve ser reservada aos indivíduos integrantes das chamadas comunidades quilombolas.2Freitas DA, Caballero AD, Marques AS, Hernández CIV, Antunes SLNO. Saúde e comunidades quilombolas: uma revisão da literatura. Revista CEFAC. 2011; 13: 937-43.

No Brasil, as localidades ocupadas pelos negros escravos que fugiam do trabalho forçado e resistiam à recaptura por parte das forças escravocratas ficaram conhecidas como quilombos. Muitos quilombos, após a abolição da escravatura, deram origem às atuais comunidades quilombolas. Os integrantes dessas comunidades possuem fortes laços culturais, mantendo suas tradições, práticas religiosas, relação com o trabalho na terra e sistema de organização social.3Carvalho JJ, Doria SJ, Oliveira AN. História, tradição e lutas. Salvador: EDUFBA; 1995.

Nessas comunidades, as consequências do processo de escravidão e das lutas por liberdade têm influenciado o acesso diferenciado a bens e serviços, constituindo-se como fatores condicionantes de desigualdades sociais e de saúde.4Brasil. Decreto n° 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. 2003. [acesso em 25 mai 2014]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm. Published Last Modified Date|. Accessed Dated Accessed|.
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Diante disso, o Estado brasileiro vem empreendendo esforços nos últimos anos visando corrigir essa dívida com a população negra e, em especial, com os povos das comunidades quilombolas. Nesse intuito, foi publicado o Decreto nº 4.887, em 2003, que regulamentou os procedimentos para identificação, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes de comunidades de quilombos.4Brasil. Decreto n° 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. 2003. [acesso em 25 mai 2014]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm. Published Last Modified Date|. Accessed Dated Accessed|.
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Nesse mesmo ano foi instituído o Programa Brasil Quilombola (PBQ), uma política de Estado voltada para o reconhecimento do direito das comunidades quilombolas à terra e ao desenvolvimento econômico e social e orientada pelos princípios da cidadania, da segurança alimentar e nutricional, bem como do desenvolvimento sustentável como promotor da qualidade de vida das comunidades.1Pinto AR, Borges JC, Novo MP, Pires PS. Quilombos do Brasil: Segurança Alimentar e Nutricional em territórios titulados. V. 20. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação; 2014.

Portanto, é plausível supor que para se ter acesso a essa política, há a necessidade de que a comunidade seja distinguida pelo Estado como remanescente de quilombos. Segundo consta no Decreto nº 4.887,4Brasil. Decreto n° 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. 2003. [acesso em 25 mai 2014]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm. Published Last Modified Date|. Accessed Dated Accessed|.
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essas comunidades são “[...] grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. A instituição governamental mais diretamente envolvida no processo de certificação das comunidades é a Fundação Cultural Palmares à qual cabe o registro das comunidades quilombolas com base na emissão de uma certidão de autodeclaração.

O Programa Brasil Quilombola5Brasil. Programa Brasil Quilombola: Diagnóstico de Ações Realizadas. Brasília: Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; 2012. prevê uma série de ações e programas executados por diversos Ministérios e órgãos parceiros, os quais se encontram articulados segundo quatro eixos temáticos: 1) acesso à terra, 2) infraestrutura e qualidade de vida, 3) inclusão produtiva e 4) direitos e cidadania. Portanto, considerando que uma vez certificada a comunidade passaria a receber maior atenção por parte do Estado, seria esperado que essa certificação se refletisse em melhores condições de vida e do perfil de saúde de seus integrantes.

Este estudo teve como objetivo caracterizar a situação de nutrição e saúde de mulheres e crianças de uma comunidade antes e após sua certificação como remanescente de quilombo.

Métodos

O estudo foi realizado na comunidade Bom Despacho, que se situa no município de Passo de Camaragibe, distante 78 Km da cidade de Maceió, capital do Estado de Alagoas, e que foi certificada como quilombola no ano de 2009. Os dados desta investigação procedem de dois inquéritos transversais realizados, respectivamente, antes (2008) e após (2012) o processo de certificação pela Fundação Cultural Palmares.

A economia da comunidade é baseada na agricultura familiar, cujo principal produto é a farinha de mandioca, e no trabalho do corte da cana-de-açúcar para usinas sucroalcooleiras, que é realizado por muitos homens da comunidade. Na localidade há apenas uma escola de ensino fundamental. No início de 2011 foi instalada uma unidade básica de saúde dotada de equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF). Esta, além do pessoal de nível médio, conta com apenas três profissionais de nível superior (uma pediatra, uma odontóloga e uma enfermeira). Não há acesso à rede de esgoto nem ao fornecimento público de água tratada.

Dentre os programas do governo, aqueles com maior abrangência de cobertura na comunidade são o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o Programa de Aquisição de Alimentos, o Programa Bolsa Família (PBF), o Pró-jovem, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e o Programa do Leite.

Os dados do inquérito realizado em 2008, doravante denominado “Inquérito quilombola de Alagoas”, foram coletados nos meses de outubro e novembro no contexto de um projeto amplo intitulado “Diagnóstico de nutrição e saúde da população remanescente dos quilombos do Estado de Alagoas”, no qual eram elegíveis todos os indivíduos residentes no total dos domicílios existentes nas 42 comunidades quilombolas estaduais, de acordo com o cadastro do Governo do Estado de Alagoas, em 2008. Detalhes sobre o estudo foram descritos em publicações anteriores.6Ferreira HS, Lamenha ML, Xavier Júnior AF, Cavalcante JC, Santos AM. Nutrição e saúde das crianças das comunidades remanescentes dos quilombos no Estado de Alagoas, Brasil. Rev Panam Salud Pública. 2011; 30: 51-8.

Ferreira HS, Silva WO, Santos EA, Bezerra MK, Silva BC, Horta BL. Body composition and hypertension: a comparative study involving women from maroon communities and from the general population of Alagoas State, Brazil. Rev Nutr. 2013; 26: 539-49.
-8Ferreira HS, Xavier Junior AF, Assuncao ML, Santos EA, Horta BL. Effect of breastfeeding on head circumference of children from impoverished communities. Breastfeed Med. 2013; 8 (3): 294-301. As informações socioeconômicas, demográficas, antropométricas e relativas à saúde foram coletadas por meio de visitas domiciliares e utilizando questionário pré-testado em estudo piloto. No presente estudo, eram elegíveis as mulheres de 18 a 59,9 anos, designadas como “donas de casa” e todas as crianças menores de cinco anos. O projeto previu abranger mulheres e crianças de todos os domicílios da comunidade Bom Despacho.

A coleta de dados do segundo inquérito conduzido na comunidade Bom Despacho ocorreu entre junho e agosto de 2012, utilizando os mesmos instrumentos e procedimentos adotados no inquérito anterior.

Para reduzir perdas, foram adotadas as seguintes estratégias: 1) contato prévio com as lideranças da comunidade para obtenção de apoio e divulgação da pesquisa; 2) as visitas domiciliares contaram com a participação de um membro da comunidade (quase sempre um agente de saúde), o qual fazia a primeira abordagem para realização da pesquisa; 3) nos domicílios fechados deixavam-se recados com vizinhos informando data para uma nova visita.

Em ambos os inquéritos foram obtidas as seguintes informações: tipo de construção predominante das residências (taipa ou alvenaria), número de cômodos da casa (<4 ou ≥4), número de pessoas na família (c4 ou >4), escolaridade da dona de casa (<4 ou ≥4 anos), renda familiar (categorizada segundo a linha da pobreza, definida por renda per capita c2 dólares/dia - US$ 1,00 = R$ 2,03 à época da coleta de dados), usuário do PBF (sim ou não) e cor da pele da dona de casa (autoreferida e categorizada como branca ou preta/parda).

Dados sobre a situação de saúde de mulheres e crianças foram obtidos por meio de perguntas sobre agravos vigentes ou ocorridos nos últimos 15 dias. Para as crianças, adicionalmente, foram obtidas informações relativas à realização de suplementação com vitamina A nos últimos seis meses e atualização do calendário de vacinação (ambas por observação dos respectivos registros na “caderneta de saúde da criança”), se a mãe realizou pré-natal durante a respectiva gestação (considerou-se sim quando a mãe referia ter participado de pelo menos seis consultas no programa), tempo de aleitamento materno exclusivo (em meses), diarreia vigente ou ocorrida nos últimos 15 dias e qual a conduta da mãe em atenção à ocorrência de diarreia (as condutas consideradas adequadas foram a administração de soro caseiro ou industrializado e/ou atendimento médico). Além disso, procedeu-se a aferição da hemoglobina para diagnóstico da anemia. Para as mulheres, aferiu-se a pressão arterial e obtiveram-se informações sobre o número de filhos e uso de medicamentos no momento da entrevista.

O peso dos participantes foi aferido utilizandose balança eletrônica portátil (Marte® PP180, São Paulo, Brasil) com capacidade para 150 kg e sensibilidade para 100 g. As crianças que não conseguiam permanecer em pé na balança foram examinadas nos braços de um adulto previamente avaliado, obtendose o peso por diferença. A estatura dos indivíduos com idade superior a 24 meses foi verificada em posição ortostática em um estadiômetro vertical, enquanto o comprimento das crianças menores de dois anos foi verificado na posição de decúbito dorsal em estadiômetro pediátrico. Ambos os equipamentos eram dotados de fita métrica inextensível com sensibilidade de 0,1cm.

Entre as mulheres, o excesso de peso foi definido como índice de massa corporal (IMC) ≥25 Kg/m2 e a adiposidade abdominal como uma circunferência da cintura ≥80cm.9WHO (World Health Organization). Physical Status: The Use and Interpretation of Anthropometry. Geneva; 1995. Essa foi mensurada com fita métrica inelástica, no ponto médio entre a face externa da última costela e a crista ilíaca ântero-superior.

Além das medidas antropométricas, estimou-se o percentual de gordura corporal utilizando-se aparelhos de bioimpedância, bipolares (Omron®, modelo HBF-306). Valores ࣙ24% foram considerados como elevados.1010 Lohman TG, Roche AF, Martorell R. Anthropometric standardization reference manual. Champaign, Illinois: Human Kinetics Books; 1991.

A aferição da pressão arterial das mulheres foi realizada em duplicata, na posição sentada e após 15 minutos de repouso, utilizando-se aparelhos digitais da marca Omron®. A hipertensão foi diagnosticada quando a média da pressão sistólica era ࣙ140 mmHg e/ou pressão diastólica ࣙ90 mmHg e/ou quando a entrevistada referia fazer uso de medicamentos antihipertensivos.1111 Sociedade Brasileira de Hipertensão. VI Diretrizes Brasileiras de Hipertensão Arterial. Rev Bras Hipertens. 2010; 3 (1): 1-68.

Entre as crianças, o estado nutricional foi avaliado pelo cálculo dos índices estatura-para-idade e IMC-para-idade. O padrão antropométrico utilizado foi o proposto pela Organização Mundial da Saúde.1212 WHO (World Health Organization). Multicentre Growth Reference Study Group. WHO childgrowth standards: length/height-for-age,weight-for-age, weight-for-length, weight-for-height and body mass index-for-age: methods and development. Genebra; 2006. Um valor de escore z < 2 desvios-padrão foi definido como déficit para os índices IMC-para-idade (magreza) e estatura-para-idade (déficit estatural), enquanto que o sobrepeso foi definido quando o valor do IMC-para-idade era superior a 2 desvios-padrão.

Para o diagnóstico de anemia nas crianças, realizou- se a coleta de uma gota de sangue por punção da polpa digital para análise dos níveis de hemoglobina (Hb) em hemoglobinômetro portátil (HemoCue®, modelo Hb201+). A anemia foi definida como um nível de hemoglobina <11g/dL.1313 WHO (World Health Organization). Iron deficiency anaemia: assessment, prevention and control: a guide for programme managers. Geneva; 2001. O resultado foi informado ao responsável pela criança em formulário próprio.

Os dados foram digitados em dupla entrada independentes em formulário gerado no Programa Epi-Info®, versão 7.1.3.10 (CDC, Atlanta, USA). Em seguida, os arquivos foram comparados usando o recurso Datacompare desse Programa visando identificar e corrigir erros de digitação.

As características foram descritas como frequências segundo as diferentes categorias das variáveis analisadas.

Para expressar percentualmente as modificações ocorridas nas prevalências das variáveis analisadas entre os dois inquéritos, utilizou-se a seguinte equação: [(prevalência em 2012 – prevalência em 2008) / prevalência em 2008] x 100

A análise comparativa da renda familiar per capita mensal entre os dois inquéritos foi feita transformando-se os valores em número de salários mínimos, de acordo com os valores de salário mínimo vigentes à época da coleta de dados, calculando-se as médias e desvios padrão e aplicando-se o teste t de Student para amostras pareadas.

A análise das diferenças entre as prevalências obtidas nos dois inquéritos (2008-2012) foi realizada utilizando-se o teste qui-quadrado, e a magnitude e direção da diferença foi feita pelo cálculo da razão de prevalência (RP) e respectivos Intervalos de Confiança de 95% (IC95%). Esse cálculo foi realizado por meio de regressão de Poisson com ajuste robusto da variância. As análises foram efetuadas utilizando o programa Stata®, versão 12.0 (StataCorp LP, College Station, TX, USA). A significância estatística foi assumida quando p<0,05.

Os projetos relativos aos inquéritos conduzidos em 2008 (processo nº 010025/2009-17) e 2012 (processo nº 014440/2008–51) foram avaliados e aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas. Todas as mulheres ou responsáveis pelas crianças investigadas leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

Foram investigadas 143 mulheres e 194 crianças e 172 mulheres e 67 crianças, nos inquéritos de 2008 e de 2012, respectivamente. Não houve recusas.

A Tabela 1 apresenta as principais características socioeconômicas e demográficas da comunidade estudada. A maioria das donas de casa (91,9%) se autodeclararam como de cor preta/parda. Observouse uma redução estatisticamente significante do percentual de residências cujo material de construção predominante era taipa (66,4% vs. 21,0%; p=0,001), de famílias com renda per capita abaixo da linha da pobreza (76,8% vs. 32,6%; p<0,001) e de domicílios com menos de quatro cômodos (13,9% vs. 2,3%; p=0,001). Por outro lado, houve aumento da quantidade de famílias cadastradas no PBF (62,2% vs. 75,0%; p=0,018). As variações nas demais variáveis socioeconômicas e demográficas não alcançaram significância estatística.

Tabela 1
Comparação das características socioeconômicas e demográficas da comunidade quilombola antes (2008) e após (2012) sua certificação. Bom Despacho, Alagoas

Quanto à renda familiar mensal per capita, verificou-se que entre 2008 e 2012 houve uma evolução positiva e significante (R$ 96,66 ± 66,92 vs. R$ 189,05 ± 140,77; p<0,001). A correção desses valores para número de salários mínimos vigentes nos períodos avaliados (R$ 415,00 e R$ 622,00, respectivamente) não alteraram essa conclusão (0,23 ± 0,01 em 2008 e 0,30 ± 0,23 em 2012; p=0,002).

A Tabela 2 apresenta a comparação das características nutricionais das mulheres entre os dois inquéritos. A prevalência de percentual de gordura corporal elevado atingiu mais de 70% da população e sofreu um incremento estatisticamente significante entre 2008 e 2012 (72,7% vs. 86,2%; p=0,005). As demais variáveis nutricionais foram semelhantes nos dois períodos.

Tabela 2
Comparação do perfil nutricional das mulheres residentes na comunidade quilombola antes (2008) e após (2012) sua certificação. Bom Despacho, Alagoas

Na Tabela 3 constam os resultados da análise comparativa das características de saúde das mulheres entre os dois inquéritos. Com exceção da proporção de mulheres fazendo uso de algum medicamento no momento da entrevista, a qual sofreu um aumento significante (21,0% vs. 40,1%; p<0,001) e do acesso ao pré-natal, que também apresentou evolução positiva e significante (66,7% vs. 87,8%; p=0,005), não se observaram variações estatisticamente significantes para as demais características de saúde investigadas.

Tabela 3
Comparação de variáveis relacionadas à saúde das mulheres residentes na comunidade quilombola antes (2008) e após (2012) sua certificação. Bom Despacho, Alagoas

A análise comparativa das características de saúde das crianças entre os dois inquéritos é apresentada na Tabela 4. A prevalência de diarreia em 2012 apresentou percentual superior ao observado no ano de 2008, com resultado estatisticamente significante (26,9% vs. 10,3%; p=0,001). Em 2012 em relação a 2008 observou-se um aumento significante na proporção de crianças que tinham sido submetidas a atendimento médico dentro do período de até três meses antecedentes à entrevista (39,1% vs. 60,6%; p=0,001). Resultado semelhante foi observado em relação à maioria das crianças ter apresentado calendário de vacinação atualizado (80,4% vs. 95,3%; p=0,005) e registro de dose de suplementação de vitamina A (70,3% vs. 100,0% p=0,001).

Tabela 4
Comparação das variáveis relacionadas à saúde das crianças residentes na comunidade quilombola antes (2008) e após (2012) sua certificação. Bom Despacho, Alagoas

A prevalência de crianças amamentadas exclusivamente até os seis meses de vida mostrou aumento significante nos dois períodos (8,7% vs. 44,6%; p<0,001), enquanto a prevalência de anemia nas crianças, decresceu entre os períodos na ordem de 51,9% (41,6% vs. 20,0%; p=0,009), resultado estatisticamente significante.

As prevalências de déficit estatural, magreza e sobrepeso foram, respectivamente, 10,9%, 1,6% e 9,4% em 2012, e não se percebeu diferenças estatisticamente significantes em relação aos percentuais observados em 2008.

Discussão

A situação encontrada na comunidade Bom Despacho após o processo de certificação revela que a mesma ainda se encontra sob precárias condições de vida, apesar do incremento favorável em várias características analisadas.

Nesse aspecto, observou-se aumento no número de usuários do PBF, na renda per capita das famílias, no número de casas de alvenaria e com mais de quatro cômodos. As mulheres passaram a ter mais acesso ao pré-natal e as crianças à assistência à saúde, tal como evidenciado pelo maior número de consultas médicas, maior proporção de crianças em aleitamento materno exclusivo até o sexto mês de vida, com calendário vacinal e de suplementação de vitamina A atualizados e, também, pela menor prevalência de anemia. Por outro lado, verificou-se aumento no número de casos de diarreia em crianças e de mulheres com percentual de gordura corporal elevado.

Com relação à situação econômica, constatou-se que as famílias da comunidade Bom Despacho possuem rendas inferiores às da maioria da população não quilombola, apesar da evolução positiva e significante verificada em sua renda per capita, uma vez que o valor verificado em 2012 (R$189,05) foi muito aquém dos observados para a população brasileira ou para os alagoanos na mesma época, R$767,02 e R$421,32, respectivamente.1414 Brasil. Ministério da Saúde. Datasus. Informações de Saúde (TABNET). Demográficas e Socioeconômicas. [acesso em 22 mai 2015]. Disponível em: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0206.
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Provavelmente, esse patamar de renda não é suficiente para atender de forma satisfatória todas as necessidades básicas daquelas famílias.

O volume de riqueza gerado por uma sociedade e a forma como esta é distribuída são elementos fundamentais para viabilizar melhores condições de vida e de saúde a uma população.1515 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis (Rio J.). 2007; 17: 77-93. Assim, a situação em Bom Despacho poderia ser ainda pior não fosse a alta cobertura do PBF (75%), que apresentou um incremento entre os dois inquéritos ora analisados. Essa alta cobertura também foi observada em inquérito que abrangeu todas as comunidades quilombolas de Alagoas em 20086 e em recente estudo que envolveu o universo das comunidades quilombolas brasileiras com territórios titulados, onde se verificou que 61,2% das famílias eram usuárias do PBF.1Pinto AR, Borges JC, Novo MP, Pires PS. Quilombos do Brasil: Segurança Alimentar e Nutricional em territórios titulados. V. 20. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação; 2014.

Além da expansão do PBF verificada a partir da certificação da comunidade em 2009, vários outros programas governamentais também foram implementados na localidade. Isso justifica, pelo menos em parte, a evolução favorável ocorrida em diversas características analisadas. O impacto nulo sobre outros indicadores pode ser explicado pela necessidade de um maior período de tempo para que os possíveis efeitos pudessem ser efetivados. Enquadraram-se nessa situação as variáveis “número de pessoas no domicílio” e “escolaridade das mulheres”.

Com relação ao predomínio de casas de alvenaria na comunidade, é importante ressaltar que em muitas dessas residências as paredes não tinham reboco e nem pintura. Sob tais circunstâncias, a parede de alvenaria não é necessariamente uma construção salubre, pois pode acumular maior umidade e abrigar insetos, aumentando os riscos para uma série de agravos, principalmente problemas respiratórios em crianças.1616 Macedo SE, Menezes AM, Albernaz E, Post P, Knorst M. Fatores de risco para internação por doença respiratória aguda em crianças até um ano de idade. Rev Saúde Pública. 2007; 41: 351-8.

Os dados sobre o perfil antropométrico das mulheres revelam que o excesso de peso corporal se constituiu num problema de alta relevância, embora sua prevalência tenha se mantido estável entre os dois inquéritos. Em 2012, 62,8% das mulheres investigadas apresentaram essa condição, valor superior ao obtido no inquérito quilombola de Alagoas (50,1%) e, mais ainda, ao divulgado (48,0%) a partir da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF).1717 IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009. Antropometria e estado nutricional de crianças, adolescentes e adultos no Brasil. Rio de Janeiro; 2010. Essa é uma situação preocupante, haja vista que o excesso de peso corporal é fator de risco para diversas doenças crônicas não transmissíveis.1818 Astrup A, Dyerberg J, Selleck M, Stender S. Nutrition transition and its relationship to the development of obesity and related chronic diseases. Obes Rev. 2008; 9 (Suppl. 1): 48-52.

Esse excesso de peso poderia ser decorrente de um estilo de vida sedentário associado à uma alimentação não saudável, pois, em estudo realizado nas comunidades quilombolas com territórios titulados,1Pinto AR, Borges JC, Novo MP, Pires PS. Quilombos do Brasil: Segurança Alimentar e Nutricional em territórios titulados. V. 20. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação; 2014. verificou-se que a maioria das famílias utilizavam alimentos ultraprocessados, de alta densidade energética e baixo valor nutritivo, em detrimento do consumo de frutas, verduras e legumes. Esse fato foi mais comum nas famílias mais pobres, o que foi interpretado como decorrente do menor custo financeiro desses alimentos industrializados. Os autores1Pinto AR, Borges JC, Novo MP, Pires PS. Quilombos do Brasil: Segurança Alimentar e Nutricional em territórios titulados. V. 20. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação; 2014. argumentaram que essa situação faz parte de um cenário globalizado de insalubridade alimentar e nutricional e revela a susceptibilidade das sociedades urbanas e rurais na medida em que os mercados desses alimentos estão cada vez mais disseminados e afetando, principalmente, os segmentos populacionais em situação de extrema pobreza.

Tal como observado para o excesso de peso corporal, também houve relativa estabilidade da prevalência de circunferência da cintura elevada entre os dois inquéritos em Bom Despacho, resultado semelhante ao verificado na Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS-2006), realizada em 2006.1919 Brasil. Ministério da Saúde. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher - PNDS 2006. Brasília, DF; 2009. Compatível com essa situação, também não houve alteração significante na prevalência de hipertensão arterial entre as mulheres ora analisadas. Contudo, a prevalência observada em 2012 (35,2%) apresentou-se superior àquelas divulgadas em estudos metodologicamente semelhantes, mas desenvolvidos com amostras de mulheres não negras.2020 Hartmann M, Dias-da-Costa JS, Olinto MT, Pattussi MP, Tramontini Â. Prevalência de hipertensão arterial sistêmica e fatores associados: um estudo de base populacional em mulheres no Sul do Brasil. Cad Saúde Pública. 2007; 23: 1857-66.,2121 Rosário TM, Scala LC, França GV, Pereira MR, Jardim PC. Fatores associados à hipertensão arterial sistêmica em Nobres-MT. Rev Bras Epidemiol. 2009; 12: 248-57. Lessa et al.2222 Lessa Í, Magalhães L, Araújo MJ, Almeida Filho N, Aquino E, Oliveira MM. Hipertensão arterial na população adulta de Salvador (BA) - Brasil. Arq Bras Cardiol. 2006; 87: 747- 56. verificaram que a prevalência de hipertensão arterial em mulheres de Salvador (BA) foi de 31,7%, porém, considerando apenas as mulheres negras, esse valor passou para 41,1%. A maior susceptibilidade da mulher negra à hipertensão arterial, conforme evidenciado nessas informações, deve ser levada em consideração pelos gestores e profissionais responsáveis pela atenção à saúde em comunidades quilombolas visando a implementação de ações específicas de prevenção e controle.

O Ministério da Saúde tem reconhecido que as ações de promoção da alimentação saudável são imprescindíveis para o enfrentamento do problema da obesidade e suas comorbidades no país.2323 Malta DC, Castro AM, Gosch CS, Cruz DKA, Bressan A, Nogueira JD, Neto OLdM, Temporão JG. A Política Nacional de Promoção da Saúde e a agenda da atividade física no contexto do SUS. Epidemiol Serv Saúde. 2009; 18: 79-86. Para isso, pressupõe-se a necessidade de profissionais habilitados para o exercício dessas atividades. No entanto, não havia nutricionista acessível à comunidade em Bom Despacho.

A implantação da ESF em período intermediário aos dois inquéritos (início de 2011) contribuiu para que os quilombolas de Bom Despacho passassem a ter maior acesso à atenção à saúde, o que provavelmente se relaciona à evolução favorável observada entre os dois inquéritos para diversas características. Nesse aspecto, vale destacar o elevado percentual de incremento verificado em relação ao número de crianças que atingiram a meta dos seis meses em aleitamento materno exclusivo, passando de 8,7% em 2008 para 44,6% em 2012, valor superior ao verificado na chamada nutricional quilombola (28,7%).2424 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. Políticas Sociais e Chamada Nutricional Quilombola: estudos sobre condições de vida nas comunidades e situação nutricional das crianças. Cad Estudos Desenvolvimento Social em Debate. Brasília, DF; 2008. Essa foi uma importante conquista, contudo o ideal seria que todas as crianças atingissem esse patamar. Assim, as ações de promoção dessa prática devem ser implementadas, pois o aleitamento materno exclusivo até os seis meses de vida está associado às boas condições gerais de saúde e nutrição das crianças.8Ferreira HS, Xavier Junior AF, Assuncao ML, Santos EA, Horta BL. Effect of breastfeeding on head circumference of children from impoverished communities. Breastfeed Med. 2013; 8 (3): 294-301.

Outra importante conquista observada na comunidade foi a redução em 51,9% na prevalência de anemia entre as crianças. A prevalência alcançada em 2012 (20,0%) situou-se bem abaixo daquela encontrada para as crianças investigadas por ocasião do Inquérito Quilombola de Alagoas (52,7%),6Ferreira HS, Lamenha ML, Xavier Júnior AF, Cavalcante JC, Santos AM. Nutrição e saúde das crianças das comunidades remanescentes dos quilombos no Estado de Alagoas, Brasil. Rev Panam Salud Pública. 2011; 30: 51-8. bem como das crianças do Estado de Alagoas como um todo (45,0%).2525 Vieira RC, Ferreira HS, Costa AC, Moura FA, Florêncio TM, Torres ZM. Prevalência e fatores de risco para anemia em crianças pré-escolares do Estado de Alagoas, Brasil. Rev Bras Saúde Matern Infant. 2010; 10: 107-16. A Organização Mundial da Saúde1313 WHO (World Health Organization). Iron deficiency anaemia: assessment, prevention and control: a guide for programme managers. Geneva; 2001. classifica a magnitude da prevalência de anemia como aceitável (< 5%), leve (5 a 19,9%), moderada (20 a 39,9%) e grave (ࣙ 40%). Assim, a prevalência observada em Bom Despacho ainda se encontra em níveis superiores aos aceitáveis.

A anemia em crianças afeta negativamente o crescimento físico, a performance cognitiva, o comportamento e a competência imunológica. Além disso, reduz a capacidade metabólica muscular para a utilização dos substratos energéticos, tornando a criança menos capaz de realizar as atividades que exigem maior esforço físico.1313 WHO (World Health Organization). Iron deficiency anaemia: assessment, prevention and control: a guide for programme managers. Geneva; 2001.

Engravidar com menos de 19 anos foi uma situação observada para cerca de 80% das mulheres investigadas. Embora essa condição tenha se apresentado de forma semelhante entre os dois inquéritos, a alta frequência verificada é preocupante e deve receber atenção prioritária, pois a gravidez na adolescência se associa a prejuízos tanto para o concepto como para a gestante. Além das questões biológicas, se estende a outras esferas da vida social da mãe, induzindo a evasão escolar, pior qualificação profissional e desvalorização no mercado de trabalho.2626 Gama SG, Szwarcwald CL, Leal MC. Experiência de gravidez na adolescência, fatores associados e resultados perinatais entre puérperas de baixa renda. Cad Saúde Pública. 2002; 18: 153-61.

No que diz respeito à saúde da criança, o fato mais preocupante foi a elevada prevalência de diarreia, a qual mais do que duplicou entre os anos de 2008 (10,3%) e 2012 (26,9%). A prevalência observada no inquérito de 2008 assemelhou-se à divulgada para crianças do Brasil por ocasião da PNDS-2006 (9,4%),1919 Brasil. Ministério da Saúde. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher - PNDS 2006. Brasília, DF; 2009. enquanto que o valor visto no inquérito de 2012 ultrapassou aquele encontrado para crianças indígenas analisadas com base no I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição Indígena (23,5%).2727 Escobar AL, Coimbra CE, Jr., Welch JR, Horta BL, Santos RV, Cardoso AM. Diarrhea and health inequity among Indigenous children in Brazil: results from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition. BMC Public Health. 2015; 15: 191.

Conforme argumenta Costa,2828 Costa SS, Heller L, Brandão CC, Colosimo EA. Indicadores epidemiológicos aplicáveis a estudos sobre a associação entre saneamento e saúde de base municipal. Eng Sanit Ambient. 2005; 10: 118-27. a falta de destinação adequada dos dejetos humanos e do lixo e a inexistência de água tratada são os principais fatores de risco para eventos mórbidos tais como diarreia e parasitoses intestinais, principalmente, em crianças. Todos esses fatores continuam a fazer parte do cenário de Bom Despacho, sobretudo a ausência de abastecimento de água de qualidade. Sob tais circunstâncias, é alta a probabilidade de contaminação das fontes alternativas nas quais as pessoas buscam a água que utilizam no domicílio, inclusive para beber, ocasionando os surtos episódicos de doenças diarreicas, sobretudo em períodos de menor disponibilidade hídrica. A propósito, em 2012 vivenciou- se no Nordeste do Brasil uma das maiores secas dos últimos 40 anos.2929 Carvalho CPO. O novo padrão de crescimento no Nordeste semiárido. Rev Econ Nordeste. 2014; 45 (3): 160-84.

As prevalências das diferentes condições nutricionais analisadas entre as crianças não sofreram alterações significantes entre os dois inquéritos. A prevalência de déficit estatural em 2012 (10,9%), indicativa de desnutrição crônica, foi semelhante à observada no Inquérito Quilombola (11,5%)6Ferreira HS, Lamenha ML, Xavier Júnior AF, Cavalcante JC, Santos AM. Nutrição e saúde das crianças das comunidades remanescentes dos quilombos no Estado de Alagoas, Brasil. Rev Panam Salud Pública. 2011; 30: 51-8. e superior à encontrada na POF 2008-2009 para crianças brasileiras (6,0%).1717 IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009. Antropometria e estado nutricional de crianças, adolescentes e adultos no Brasil. Rio de Janeiro; 2010. O declínio do déficit estatural em crianças observado em nível nacional1919 Brasil. Ministério da Saúde. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher - PNDS 2006. Brasília, DF; 2009. tem sido justificado pela identificação de quatro fatores: aumento da escolaridade das mães; ampliação das redes públicas de abastecimento de água e de coleta de esgoto; crescimento do poder aquisitivo dos estratos mais pobres da população e expansão da assistência à saúde materno-infantil.1919 Brasil. Ministério da Saúde. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher - PNDS 2006. Brasília, DF; 2009. Assim, admitindo-se que os dois últimos fatores estejam relativamente contemplados na comunidade Bom Despacho, parece que, para que se atinjam os patamares observados para a média das crianças brasileiras, há necessidade que os demais fatores sejam também assegurados.

O sobrepeso esteve presente em 9,4% das crianças estudadas em 2012, valor superior aos 6,9% verificado em 2008, mas sem significância estatística. A prevalência encontrada em 2012 assemelhouse à verificada para as crianças de Alagoas (9,3%). Neste Estado tem havido um rápido declínio da desnutrição crônica e, paralelamente, um aumento da prevalência da obesidade, evidenciando um antagonismo de tendências, característica da terceira etapa da transição nutricional, representada pelo aparecimento do excesso de peso em escala populacional.3030 Ferreira HS, Cesar JA, Assunção ML, Horta BL. Time trends (1992-2005) in undernutrition and obesity among children under five years of age in Alagoas State, Brazil. Cad Saúde Pública. 2013; 29: 793-800. Pinto et al.,1Pinto AR, Borges JC, Novo MP, Pires PS. Quilombos do Brasil: Segurança Alimentar e Nutricional em territórios titulados. V. 20. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação; 2014. ao estudarem as comunidades quilombolas brasileiras com territórios titulados, encontraram 23,2% das crianças com excesso de peso. Argumentaram que essa alta prevalência, apesar da grande vulnerabilidade econômica e social dessas populações, pode estar relacionada à má qualidade da dieta que as crianças têm acesso.

Este trabalho, de caráter observacional, embora tendo como limitação a ausência de um grupo controle, traz evidências inéditas a respeito dos efeitos associados à certificação da comunidade como remanescente de quilombos.

A certificação da comunidade como quilombola se associou à implementação de uma série de ações e programas do governo e à melhoria em vários indicadores de saúde de mulheres e crianças. Todavia, a comunidade ainda apresenta precárias condições de vida e encontra-se privada de alguns direitos fundamentais, tais como o direito à terra onde sobrevivem e à água de qualidade. Portanto, para os quilombolas de Bom Despacho, a certificação foi uma etapa importante no processo de resgate dos seus direitos, mas a situação ainda exige investimentos objetivando incrementar o padrão de saúde e qualidade de vida naquela localidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2015
  • Revisado
    27 Mar 2015
  • Aceito
    01 Abr 2015
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