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Prevalência e fatores associados ao consumo de álcool durante a gravidez

Resumo

Objetivos:

investigar a prevalência de consumo de álcool na gravidez e fatores sociodemográficos, reprodutivos e dos recém-nascidos associados.

Métodos:

estudo transversal e exploratório, desenvolvido sobre amostra sequencial de puérperas, recrutadas diariamente durante seis meses. Foram coletadas informações sociodemográficas e reprodutivas das mulheres, e dados dos recém-nascidos. O questionário T-ACE foi aplicado para identificar o padrão de consumo alcoólico das mulheres, dividindo-as em dois grupos: consumidoras (pontuação T-ACE ≥ 2) e não consumidoras de álcool. As comparações entre os dois grupos foram realizadas utilizando-se os testes t não pareado, qui-quadrado ou exato de Fisher, conforme o tipo de variável analisada. O nível de significância adotado foi de 5%.

Resultados:

925 puérperas foram convidadas e 818 (88,4%) concordaram em participar da pesquisa. Das participantes, 60 (7,3%) foram T-ACE positivas, ou seja, identificadas como consumidoras de álcool. Com relação às informações sociodemográficas, o consumo de álcool foi mais frequente entre mulheres sem companheiro fixo (p=0,010). Nenhuma variável reprodutiva apresentou diferença significativa entre os grupos. Observou-se menor peso entre filhos de mães T-ACE positivas (3.045g±71,0 vs 3.192g±19,2; p=0,040).

Conclusões:

identificar e caracterizar as mulheres mais susceptíveis ao consumo de álcool na gravidez pode colaborar no desenvolvimento de estratégias de intervenção em saúde pública mais eficazes.

Palavras-chave
Gravidez; Consumo de bebidas alcoólicas; Prevalência; Fatores epidemiológicos

Abstract

Objectives:

to investigate the prevalence of alcohol consumption during pregnancy and its sociodemographic, reproductive and newborn-related factors.

Methods:

a cross-sectional and exploratory study carried out on a sample of post-partum women, recruited daily over six months. Sociodemographic and reproductive information about the women and data concerning the newborns were collected. T-ACE questionnaire was used to identify the pattern of alcohol consumption by the women. They were divided into two groups: alcohol consumers (T-ACE score ≥2) and non-alcohol consumers. Comparisons between the two groups were made using the unpaired t test, chi-square test or Fisher's exact test according to the type of variable analyzed. The significance level was set at 5%.

Results:

out of 925 women, 818 (88.4%) agreed to participate. Among them, 60 (7.3%) were T-ACE positive, i.e. identified as alcohol consumers. Regarding the sociodemographic information, alcohol consumption was more frequent among women who did not have a steady partner (p=0.010). No reproductive variable presented a significant difference between the groups. A lower weight was observed among children of T-ACE positive mothers (3,045g±71.0 vs 3,192g±19.2; p=0.040).

Conclusions:

identifying and characterizing women who are more susceptible to alcohol consumption during pregnancy can contribute to developing more effective public health intervention strategies.

Key words
Pregnancy; Alcohol drinking; Prevalence; Epidemiologic factors

Introdução

O consumo abusivo de bebidas alcoólicas é considerado um problema de saúde pública, entre outras razões, porque o álcool é um agente teratogênico comum e potente.11 Montag AC. Fetal alcohol-spectrum disorders: identifying at-risk mothers. Int J Womens Health. 2016; (8): 311-23.,22 Gupta KK, Gupta VK, Shirasaka T. An Update on Fetal Alcohol Syndrome-Pathogenesis, Risks, and Treatment. Alcohol Clin Exp Res. 2016; 40(8): 1594-602. Ele provoca alterações hemodinâmicas na gestante que comprometem o fluxo sanguíneo placentário, além de circular livremente por todos os compartimentos líquidos do corpo, incluindo vasculatura, líquidos intersticial e intracelular.33 Ramadoss J, Magness RR. Vascular effects of maternal alcohol consumption. Am J Physiol Heart Circ Physiol. 2012; 303(4): H414-21. Assim, a concentração de álcool é a mesma na gestante e no concepto, fazendo com que o líquido amniótico permaneça impregnado de álcool não modificado (etanol) e acetaldeído.44 Heller M, Burd L. Review of ethanol dispersion, distribution, and elimination from the fetal compartment. Birth Defects Res A Clin Mol Teratol. 2014; 100(4): 277-83.

O álcool que atravessa a barreira placentária prejudica sobremaneira o concepto, que possui metabolismo e mecanismos de detoxificação mais lentos que os de um indivíduo adulto.22 Gupta KK, Gupta VK, Shirasaka T. An Update on Fetal Alcohol Syndrome-Pathogenesis, Risks, and Treatment. Alcohol Clin Exp Res. 2016; 40(8): 1594-602.,44 Heller M, Burd L. Review of ethanol dispersion, distribution, and elimination from the fetal compartment. Birth Defects Res A Clin Mol Teratol. 2014; 100(4): 277-83. O cérebro é o órgão mais susceptível aos efeitos da exposição pré-natal ao álcool, uma vez que todos os trimestres da gestação são críticos para o seu desenvolvimento. O álcool age de diversas maneiras, dependendo do tipo de célula cerebral e do estágio de desenvolvimento embriofetal, podendo provocar alterações estruturais e funcionais: morte celular, prejuízo na formação de novas células, alterações de migração celular, produção de neurotransmissores e formação de sinapses.22 Gupta KK, Gupta VK, Shirasaka T. An Update on Fetal Alcohol Syndrome-Pathogenesis, Risks, and Treatment. Alcohol Clin Exp Res. 2016; 40(8): 1594-602.,55 Momino W, Sanseverino MT, Schüler-Faccini L. Prenatal alcohol exposure as a risk factor for dysfunctional behaviors: the role of the pediatrician. J Pediatr (Rio J). 2008; 84(Suppl 4): S76-9.

Em 1973, foi identificado e definido um fenótipo específico nas crianças nascidas de mulheres etilistas, denominado "síndrome alcoólica fetal" (SAF ou FAS, fetal alcohol syndrome). Essa é uma condição irreversível caracterizada por anomalias craniofaciais típicas, deficiência de crescimento intra e extrauterino, disfunções do sistema nervoso central (incluindo anormalidades neurológicas, alterações comportamentais, atraso no desenvolvimento neuropsicomotor e deficiência intelectual) além de várias malformações associadas, principalmente cardíacas, oculares, renais e de coluna vertebral.66 Jones KL, Smith DW, Ulleland CN, Streissguth P. Pattern of malformation in offspring of chronic alcoholic mothers. Lancet. 1973; 1(7815): 1267-71.

O termo "desordens do espectro alcoólico fetal" (FASD, fetal alcohol spectrum disorders) foi proposto posteriormente e se refere ao fenótipo descrito em um grupo de crianças expostas ao álcool intraútero, mas que não possuem quadro clínico completo de SAF, embora habitualmente apresentem alterações neurocomportamentais.77 Memo L, Gnoato E, Caminiti S, Pichini S, Tarani L. Fetal alcohol spectrum disorders and fetal alcohol syndrome: the state of the art and new diagnostic tools. Early Hum Dev. 2013; 89 (Suppl 1): S40-3.,88 May PA, Baete A, Russo J, Elliott AJ, Blankenship J, Kalberg WO, Buckley D, Brooks M, Hasken J, Abdul-Rahman O, Adam MP, Robinson LK, Manning M, Hoyme HE. Prevalence and characteristics of fetal alcohol spectrum disorders. Pediatrics. 2014; 134(5): 855-66. Indivíduos com FASD possuem déficits intelectuais, com coeficiente de inteligência médio na faixa limítrofe, deficiências em diferentes componentes da função executiva e da atenção, deficiências no processamento de informações e no processamento numérico, deficiências no raciocínio espacial, na memória visual, na linguagem e nas funções motoras.55 Momino W, Sanseverino MT, Schüler-Faccini L. Prenatal alcohol exposure as a risk factor for dysfunctional behaviors: the role of the pediatrician. J Pediatr (Rio J). 2008; 84(Suppl 4): S76-9.,77 Memo L, Gnoato E, Caminiti S, Pichini S, Tarani L. Fetal alcohol spectrum disorders and fetal alcohol syndrome: the state of the art and new diagnostic tools. Early Hum Dev. 2013; 89 (Suppl 1): S40-3.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA relata prevalência de SAF de 0,2 a 1,5 por 1.000 nascidos vivos norte-americanos, solidificando sua posição como uma das principais causas evitáveis de deficiência intelectual.99 Chokroborty-Hoque A, Alberry B, Singh SM. Exploring the complexity of intellectual disability in fetal alcohol spectrum disorders. Front Pediatr. 2014; 2: 90. Na população infantil geral, a prevalência de SAF é estimada em 0,2 a 7 por 1.000, enquanto FASD é muito mais comum, com prevalência estimada em 20 a 50 por 1.000.88 May PA, Baete A, Russo J, Elliott AJ, Blankenship J, Kalberg WO, Buckley D, Brooks M, Hasken J, Abdul-Rahman O, Adam MP, Robinson LK, Manning M, Hoyme HE. Prevalence and characteristics of fetal alcohol spectrum disorders. Pediatrics. 2014; 134(5): 855-66. Estudo realizado na cidade de São Paulo estimou prevalência de SAF e FASD em 1,52 por 1.000 e 38,69 por 1.000 recém-nascidos, respectivamente.1010 Mesquita, MA, Segre, CAM. Frequência dos efeitos do álcool no feto e padrão de consumo de bebidas alcoólicas pelas gestantes de maternidade pública da cidade de São Paulo. Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Hum. 2009; 19(1): 63-7.

Não há consenso sobre a quantidade segura de álcool que poderia ser ingerida durante a gestação. Admite-se, entretanto, que baixos níveis de exposição pré-natal podem afetar negativamente o desenvolvimento embriofetal.1111 DeVido J, Bogunovic O, Weiss RD. Alcohol use disorders in pregnancy. Harv Rev Psychiatry. 2015; 23(2): 112-21. Nesse sentido, a recomendação dos serviços nacionais de saúde de vários países é que as mulheres se abstenham completamente do uso de álcool durante toda a gravidez.1111 DeVido J, Bogunovic O, Weiss RD. Alcohol use disorders in pregnancy. Harv Rev Psychiatry. 2015; 23(2): 112-21. No Brasil, o Ministério da Saúde propõe que os profissionais de saúde orientem as gestantes sobre os riscos associados ao uso de álcool e recomenda particular abstenção nos três primeiros meses gestacionais.1212 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Atenção ao pré-natal de baixo risco/Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. 1ª ed. rev. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2013. 318 p. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo=publicacoes/cab32
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Pesquisas na América do Norte e Europa indicam que a frequência de uso de bebidas alcoólicas durante a gravidez varia entre 8,5% e 47,3%, sendo essas taxas muito dependentes do instrumento utilizado para identificação do consumo alcoólico e do período da gravidez que foi investigado.1111 DeVido J, Bogunovic O, Weiss RD. Alcohol use disorders in pregnancy. Harv Rev Psychiatry. 2015; 23(2): 112-21.,1313 Chang G. Screening for alcohol and drug use during pregnancy. Obstet Gynecol Clin North Am. 2014; 41(2): 205-12. No Brasil, estudos realizados com diferentes metodologias estimam a frequência de consumo de álcool em torno de 10 a 40% das gestantes.1414 Kaup ZOL, Merighi MAB, Tsunechiro MA. Avaliação do consumo de bebida alcoólica durante a gravidez. Rev Bras Ginecol Obstet. 2001; 23(9): 575-80.

15 Freire TM, Machado JC, Melo EV, Melo DG. Efeitos do consumo de bebida alcoólica sobre o feto. Rev Bras Ginecol Obstet. 2005; 27(7): 376-81.

16 Moraes CL, Reichenheim ME. Screening for alcohol use by pregnant women of public health care in Rio de Janeiro, Brazil. Rev Saúde Pública. 2007; 41(5): 695-703.

17 Gouvea PB, Souza SNDH, Haddad MCL, Mello DF. Avaliação do consume de álcool entre gestantes cadastradas no SISPRENATAL em Londrina/ PR. Cogitare Enferm. 2010; 15(4): 624-30.

18 Souza LHRF, Santos MC, Oliveira LCM. Padrão do consumo de álcool em gestantes atendidas em um hospital público universitário e fatores de risco associados. Rev Bras Ginecol Obstet. 2012; 34(7): 296-303.
-1919 Costa DO, Neto PFV, Ferreira LN, Coqueiro RS, Casotti CA. Consumo de álcool e tabaco por gestantes assistidas na estratégia de saúde da família. Revista Eletrônica Gestão & Saúde. 2014; 5(3): 934-48.

O T-ACE (acrônimo obtido das palavras inglesas: Tolerance, Annoyed, Cut down e Eye-opener) foi o primeiro questionário de rastreio de consumo de álcool validado para uso na prática obstétrica e ginecológica,2020 Sokol RJ, Martier SS, Ager JW. The T-ACE questions: practical prenatal detection of risk-drinking. Am J Obstet Gynecol. 1989; 160(4): 863-68. sendo usado rotineiramente em vários serviços, demonstrando eficiência na detecção de gestantes que consomem álcool.11 Montag AC. Fetal alcohol-spectrum disorders: identifying at-risk mothers. Int J Womens Health. 2016; (8): 311-23.,2121 Jones KL, Bailey BA, Sokol RJ. Alcohol Use in Pregnancy: Insights in Screening and Intervention for the Clinician. Clin Obstet Gynecol. 2013; 56(1): 114-23.,2222 Fabbri CE, Furtado EF, Laprega MR. Consumo de álcool na gestação: desempenho da versão brasileira do questionário T-ACE. Rev Saúde Pública. 2007; 41(5): 979-84. Uma versão brasileira do T-ACE, traduzida e adaptada do questionário original de Sokol et al.,2020 Sokol RJ, Martier SS, Ager JW. The T-ACE questions: practical prenatal detection of risk-drinking. Am J Obstet Gynecol. 1989; 160(4): 863-68. foi validada por Fabbri et al.2222 Fabbri CE, Furtado EF, Laprega MR. Consumo de álcool na gestação: desempenho da versão brasileira do questionário T-ACE. Rev Saúde Pública. 2007; 41(5): 979-84. em 2001. Quando comparada aos parâmetros da CID-10 para identificação de uso nocivo e síndrome de dependência de álcool, a versão brasileira do questionário T-ACE apresentou coeficientes de sensibilidade e especificidade de 100% e 85,6% respectivamente, indicando bom desempenho como instrumento de triagem para problemas relacionados ao consumo de álcool na gravidez.2222 Fabbri CE, Furtado EF, Laprega MR. Consumo de álcool na gestação: desempenho da versão brasileira do questionário T-ACE. Rev Saúde Pública. 2007; 41(5): 979-84.

Esta pesquisa objetivou investigar a prevalência de consumo de álcool durante a gestação entre puérperas, através da versão brasileira do questionário T-ACE, e fatores sociodemográficos, reprodutivos e dos recém-nascidos associados com o consumo de bebidas alcoólicas na gravidez.

Métodos

Esta pesquisa foi realizada no município de São Carlos, localizado no centro geográfico do Estado de São Paulo. São Carlos tem cerca de 240.000 habitantes (IBGE, http://www.cidades.ibge.gov.br), aproximadamente 3.000 nascimentos/ano (Brasil, DATASUS, http://www.datasus.gov.br) e em 2010 apresentou índice de desenvolvimento humano de 0,805, sendo considerado o 28º município mais desenvolvido do país (Fundação SEADE, http://www.seade.gov.br). Em São Carlos, a cobertura pré-natal é maior do que a média do Estado de São Paulo: em 2014, por exemplo, 86,39% das grávidas fizeram sete ou mais consultas pré-natais, enquanto no estado 76,69% das gestantes atingiram esse número de consultas (Fundação SEADE, http://www.seade.gov.br). O município de São Carlos possui uma única maternidade, a Maternidade Dona Francisca Cintra Silva da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Carlos, cenário deste estudo.

Este é um estudo transversal e exploratório, conduzido sobre amostra representativa das parturientes de São Carlos, recrutadas de forma sequencial no período de 14 de junho a 14 de dezembro de 2015. O tamanho mínimo da amostra foi estabelecido como 788 participantes, considerando-se: intervalo de confiança de 95%, proporção de 50%, margem de erro de 3%, com correção para população finita (3.000 nascimentos/ano). Foram consideradas como elegíveis e convidadas a participar do estudo todas as puérperas de gestação única atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), cujos filhos nasceram vivos, em até 48 horas após o parto. A presença de condição clínica desfavorável no período perinatal, que resultasse em internação da mulher em UTI, foi considerada critério de exclusão. Esta pesquisa foi previamente aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSCar (parecer 1.071.649) e todas as participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

A coleta de dados foi realizada por meio de aplicação de questionário pré-definido com informações sociodemográficas das mulheres (idade, cor da pele, religião, estado civil, escolaridade, trabalho e renda domiciliar), informações reprodutivas das mulheres (número de gravidezes, de filhos vivos e de abortos, número de consultas no pré-natal e tipo de parto na última gestação, patologias anteriores à gravidez e que ocorreram na última gestação), e dados clínicos antropométricos dos recém-nascidos (sexo, idade gestacional, peso e presença de defeito congênito); além da aplicação da versão brasileira do questionário T-ACE.2222 Fabbri CE, Furtado EF, Laprega MR. Consumo de álcool na gestação: desempenho da versão brasileira do questionário T-ACE. Rev Saúde Pública. 2007; 41(5): 979-84.

No que diz respeito às informações sociodemográficas, a idade das mulheres foi expressa em anos. A cor da pele foi categorizada como no IBGE, nas seguintes opções: branca, preta, amarela, parda ou indígena. Com relação à religião, considerou-se as categorias: católica, evangélica, espírita, de matriz Africana (candomblé, umbanda, etc.) e outras; as participantes que afirmaram não professar nenhuma religião foram consideradas agnósticas e agrupadas com as que se manifestaram ateias. O estado civil foi classificado em "com" ou "sem" companheiro fixo, sendo que o grupo de mulheres "com companheiro" incluiu tanto as casadas quanto as amasiadas. A escolaridade foi definida como ensino fundamental, ensino médio ou ensino superior completos. Em relação ao trabalho, as mulheres foram classificadas em duas categorias: trabalhando ou não fora de casa. A renda domiciliar (divisão da renda familiar total pelo número de pessoas do domicílio) foi categorizada em: até 1/2 salário mínimo por pessoa, entre 1/2 1 salário mínimo por pessoa ou mais de 1 salário mínimo (R$788,00 na época do estudo) por pessoa.

Em relação às informações reprodutivas das mulheres, o número de gravidezes foi categorizado em: uma gravidez (primigesta), duas a quatro gravidezes (multípara) ou cinco ou mais gravidezes (grande multípara). O número de filhos vivos foi ordenado em: um único filho vivo (o recém-nascido considerado nesse estudo), dois a quatro filhos, e cinco ou mais filhos. O número de abortos foi classificado em: zero, um a dois abortos e mais de três abortos (aborto habitual). O número de consultas pré-natais foi categorizado em: menos de seis consultas e seis ou mais consultas, uma vez que esse é o número mínimo de consultas pré-natais recomendado pela Organização Mundial da Saúde.1212 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Atenção ao pré-natal de baixo risco/Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. 1ª ed. rev. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2013. 318 p. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo=publicacoes/cab32
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O tipo de parto foi classificado em normal ou cesárea. As "patologias prévias à gravidez" e as "patologias que ocorreram na última gestação" foram categorizadas em: nenhuma, DST (sífilis, AIDS e HPV) ou diversas (grupo heterogêneo, que incluiu patologias como alergia sem especificação, anemia, cálculo renal, refluxo gastresofágico, gastrite, síndrome nefrótica, hipertensão arterial, diabetes mellitus, hipotireoidismo, asma, lúpus, rinite alérgica, síndrome de ovários policísticos, sinusite, dengue, toxoplasmose, pneumonia e câncer).

Em relação aos dados dos recém-nascidos, o sexo foi categorizado em feminino ou masculino. A idade gestacional foi expressa em semanas e o peso em gramas.

O questionário T-ACE é composto por quatro questões principais e a cada uma dessas questões é atribuída uma pontuação, sendo o valor máximo do questionário igual a 5 (a primeira questão vale até 2 pontos; da segunda a quarta perguntas, a valoração é de até 1 ponto).2222 Fabbri CE, Furtado EF, Laprega MR. Consumo de álcool na gestação: desempenho da versão brasileira do questionário T-ACE. Rev Saúde Pública. 2007; 41(5): 979-84. Quem, respondendo ao questionário, alcança pontuação ≥ 2 é considerada um caso positivo, ou seja, é identificada como consumidora de álcool.2020 Sokol RJ, Martier SS, Ager JW. The T-ACE questions: practical prenatal detection of risk-drinking. Am J Obstet Gynecol. 1989; 160(4): 863-68.,2222 Fabbri CE, Furtado EF, Laprega MR. Consumo de álcool na gestação: desempenho da versão brasileira do questionário T-ACE. Rev Saúde Pública. 2007; 41(5): 979-84. Os resultados coletados foram analisados distinguindo-se dois grupos de participantes, de acordo com a pontuação do questionário T-ACE: T-ACE negativo (pontuação T-ACE < 2) e T-ACE positivo (pontuação T-ACE ≥ 2).

A análise estatística foi realizada utilizando o programa GraphPad Prism, versão 5.00 para Windows (GraphPad Software, La Jolla California USA, http://www.graphpad.com). Os resultados das variáveis quantitativas contínuas foram apresentados como média ± EPM (erro padrão da média), enquanto os resultados das variáveis quantitativas discretas e das variáveis categóricas foram apresentados como frequência simples e percentual. Os grupos foram comparados (T-ACE negativo vs T-ACE positivo) e a significância estatística das diferenças de distribuição das variáveis foi determinada pelo teste t não pareado, pelo teste do qui-quadrado ou teste exato de Fisher, conforme o tipo de variável analisada. O nível de significância foi estabelecido em 5%.

Resultados

Em seis meses de coleta diária, 925 puérperas foram convidadas a participar da pesquisa e 818 (88,4%) concordaram. Das participantes, 60 (7,3%) foram T-ACE positivas, ou seja, foram consideradas consumidoras de álcool durante a gestação. Dentre estas, 29 puérperas (48,3%) foram positivas com dois pontos, compondo o maior grupo de participantes identificadas como "caso positivo", 21 mulheres (35%) tiveram resultado positivo com três pontos, 9 (15%) com quatro pontos e 1 (1,7%) com cinco pontos.

O grupo de puérperas com pontuação inferior ao ponto de corte do questionário T-ACE e consideradas como "caso negativo" compreendeu 758 participantes (92,7%), sendo que 94 mulheres (12,4%) alcançaram um ponto no questionário e 664 mulheres (87,6%) não pontuaram (T-ACE igual à zero).

A diferença das médias de idade das puérperas T-ACE negativas (26,5 anos ± 0,2431) e T-ACE positivas (25,8 anos ± 0,8814) e de sua distribuição não foi significativa (p=0,481 e 0,101, respectivamente). Os dados referentes às informações sociodemográficas são apresentados na Tabela 1, onde se observa que o consumo de álcool durante a gravidez foi mais frequente entre mulheres que não possuíam companheiro fixo (p=0,010).

Tabela 1
Informações sociodemográficas das mulheres e consumo de álcool durante a gravidez nos grupos T-ACE negativo e TACE positivo.

Nenhuma variável reprodutiva apresentou diferença estatisticamente significativa entre os grupos, como pode ser verificado na Tabela 2.

Tabela 2
Informações reprodutivas das mulheres e consumo de álcool durante a gravidez nos grupos T-ACE negativo e T-ACE positivo.

Os resultados referentes às informações do recém-nascido mostraram que a distribuição de sexo não foi diferente nos dois grupos: razão recém-nascido masculino/feminino de 1/1 nas mães T-ACE negativas e 1/1,6 nas mães T-ACE positivas (p=0,080). A idade gestacional média dos recém-nascidos filhos de mulheres T-ACE negativas foi de 38,6 semanas ± 0,1, enquanto nos filhos de mulheres T-ACE positivas foi de 38,4 semanas ± 0,3 (p=0,532). Houve redução média de 147g no peso dos recém-nascidos cujas mães consumiram álcool na gravidez. O peso médio entre os filhos de mães T-ACE negativas foi de 3.192g ± 19,2 e entre os filhos de mães T-ACE positivas foi de 3.045g ± 71,0, sendo essa diferença significativa (p=0,040). Durante os seis meses de coleta de dados, 21 recém-nascidos (2,6%), todos eles filhos de mães T-ACE negativas, apresentaram defeitos congênitos, sendo que três crianças eram polimalformadas.

Discussão

A frequência de consumo de álcool durante a gravidez na amostra investigada foi de 7,3%, valor discretamente menor que o encontrado em outras pesquisas nacionais nas quais a frequência de consumo de álcool detectada pelo T-ACE variou de 10% a 31,1%.1010 Mesquita, MA, Segre, CAM. Frequência dos efeitos do álcool no feto e padrão de consumo de bebidas alcoólicas pelas gestantes de maternidade pública da cidade de São Paulo. Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Hum. 2009; 19(1): 63-7.,1515 Freire TM, Machado JC, Melo EV, Melo DG. Efeitos do consumo de bebida alcoólica sobre o feto. Rev Bras Ginecol Obstet. 2005; 27(7): 376-81.

16 Moraes CL, Reichenheim ME. Screening for alcohol use by pregnant women of public health care in Rio de Janeiro, Brazil. Rev Saúde Pública. 2007; 41(5): 695-703.

17 Gouvea PB, Souza SNDH, Haddad MCL, Mello DF. Avaliação do consume de álcool entre gestantes cadastradas no SISPRENATAL em Londrina/ PR. Cogitare Enferm. 2010; 15(4): 624-30.

18 Souza LHRF, Santos MC, Oliveira LCM. Padrão do consumo de álcool em gestantes atendidas em um hospital público universitário e fatores de risco associados. Rev Bras Ginecol Obstet. 2012; 34(7): 296-303.
-1919 Costa DO, Neto PFV, Ferreira LN, Coqueiro RS, Casotti CA. Consumo de álcool e tabaco por gestantes assistidas na estratégia de saúde da família. Revista Eletrônica Gestão & Saúde. 2014; 5(3): 934-48.,2323 Oliveira TR, Simões SMF. O consumo de bebida alcoólica por gestantes: estudo exploratório. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2007; 11(4): 632-38.

O Ministério da Saúde preconiza que durante o pré-natal seja estabelecido um bom vínculo entre a gestante e a equipe de profissionais da atenção básica, que facilite a identificação de mulheres com propensão para uso abusivo de álcool e a orientação sobre as consequências do uso de álcool na gestação.1212 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Atenção ao pré-natal de baixo risco/Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. 1ª ed. rev. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2013. 318 p. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo=publicacoes/cab32
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Considerando a alta taxa de cobertura de consultas de pré-natal na cidade de São Carlos, é provável que as gestantes do nosso estudo tenham recebido orientações sobre a importância da abstinência de bebidas alcoólicas nos serviços de saúde onde realizaram o pré-natal, contribuindo assim para uma menor prevalência de consumo de álcool em relação a outros e estudos.

Além disso, 107 puérperas convidadas recusaram-se a participar do nosso estudo, o que representou uma frequência de não consentimento de 11,6%. As recusas foram principalmente atribuídas a cansaço, dores relacionadas ao puerpério e ocupação com atividades de maternagem, no entanto, é possível que também tenham colaborado para uma menor prevalência de consumo de álcool na amostra investigada. Existe dificuldade para caracterizar a ingesta de bebida alcoólica na gravidez, mesmo utilizando-se formas mais criteriosas para detecção, por omissão ou negação da informação.2121 Jones KL, Bailey BA, Sokol RJ. Alcohol Use in Pregnancy: Insights in Screening and Intervention for the Clinician. Clin Obstet Gynecol. 2013; 56(1): 114-23. As mulheres temem a falta de sigilo, o estigma do diagnóstico de alcoolistas e até mesmo repercussões legais como a perda da guarda dos filhos.1313 Chang G. Screening for alcohol and drug use during pregnancy. Obstet Gynecol Clin North Am. 2014; 41(2): 205-12. Muitas ainda sentem culpa e vergonha e, especialmente naquelas situações onde os recém-nascidos apresentam desfechos perinatais desfavoráveis (crianças malformadas ou prematuras), é possível cogitar que há viés de memória materna, com menos mulheres admitindo terem bebido enquanto estavam grávidas.2222 Fabbri CE, Furtado EF, Laprega MR. Consumo de álcool na gestação: desempenho da versão brasileira do questionário T-ACE. Rev Saúde Pública. 2007; 41(5): 979-84. Todos esses aspectos podem subdimensionar as estatísticas de consumo de álcool na gravidez e explicar, inclusive, a grande variabilidade na prevalência que há em diferentes estudos que utilizaram o mesmo instrumento de rastreio.

Essa pesquisa identificou duas variáveis cujos resultados apresentaram diferenças estatisticamente significantes entre mulheres que utilizaram ou não álcool na gravidez: menor peso ao nascer e ausência de companheiro fixo. Esses resultados corroboram achados de pesquisas prévias.1010 Mesquita, MA, Segre, CAM. Frequência dos efeitos do álcool no feto e padrão de consumo de bebidas alcoólicas pelas gestantes de maternidade pública da cidade de São Paulo. Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Hum. 2009; 19(1): 63-7.,1515 Freire TM, Machado JC, Melo EV, Melo DG. Efeitos do consumo de bebida alcoólica sobre o feto. Rev Bras Ginecol Obstet. 2005; 27(7): 376-81.

A restrição de crescimento fetal é um efeito conhecido do álcool.2121 Jones KL, Bailey BA, Sokol RJ. Alcohol Use in Pregnancy: Insights in Screening and Intervention for the Clinician. Clin Obstet Gynecol. 2013; 56(1): 114-23. O etanol induz a formação de radicais livres de oxigênio, que danificam proteínas e lipídeos celulares, aumentando a apoptose e prejudicando a organogênese. O álcool compromete a capacidade endógena antioxidante, tanto por diminuir os níveis de glutationa peroxidase como por gerar radicais livres, como o CYP2E1 que oxida o etanol gerando hidroxietil ou superóxido que tem como alvo as cadeias laterais dos ácidos graxos poliinsaturados do tecido cerebral. Esse processo peroxidativo pode causar danos durante a organogênese e resultar em disfunções do sistema nervoso central. Além disso, o álcool causa rápida vasoconstrição placentária, por conta do estresse oxidativo, que causa diminuição do óxido nítrico, e devido à desregulação do balanço de tromboxano (vasoconstritor) e prostaciclina (vasodilatador), reduzindo oferta de oxigênio e nutrientes para o feto e colaborando para restrição de seu crescimento. O etanol pode ainda inibir o transporte de cofatores críticos para o crescimento e desenvolvimento fetal, como biotina e vitamina B6.22 Gupta KK, Gupta VK, Shirasaka T. An Update on Fetal Alcohol Syndrome-Pathogenesis, Risks, and Treatment. Alcohol Clin Exp Res. 2016; 40(8): 1594-602.

O risco de nascimento de bebês com baixo peso (< 2500g no recém-nascido a termo) ou pequenos para idade gestacional aumenta linearmente em mães que consomem diariamente uma dose de álcool (cerca de 10g de álcool absoluto) ou mais.2424 Patra J, Bakker R, Irving H, Jaddoe VWV, Mailini S, Rehm J. Dose-response relationship between alcohol consumption before and during pregnancy and the risks of low birth weight, preterm birth and small-size-for-gestational age (SGA) - A systematic review and meta-analyses. BJOG. 2011; 118(12): 1411-21. Pesquisa, realizada com 1964 gestantes de uma maternidade pública da cidade de São Paulo constatou que quanto maior o consumo de álcool, menores eram o peso, o perímetro cefálico e o comprimento dos recém-nascidos.1010 Mesquita, MA, Segre, CAM. Frequência dos efeitos do álcool no feto e padrão de consumo de bebidas alcoólicas pelas gestantes de maternidade pública da cidade de São Paulo. Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Hum. 2009; 19(1): 63-7.

Em outro estudo, realizado com 150 puérperas da cidade de Ribeirão Preto, no estado de São Paulo, observou-se redução média de 109g no peso e de 0,42cm no perímetro cefálico nos filhos de mães consumidoras de álcool identificadas pelo T-ACE, sendo que nos fetos do sexo feminino a redução de peso foi mais acentuada (186g), sugerindo uma possível maior susceptibilidade relacionada ao sexo do recém-nascido.1515 Freire TM, Machado JC, Melo EV, Melo DG. Efeitos do consumo de bebida alcoólica sobre o feto. Rev Bras Ginecol Obstet. 2005; 27(7): 376-81. No nosso estudo, também observamos maior redução de peso nos recém-nascidos do sexo feminino filhos de mães T-ACE positivas (diminuição média de 151g) quando comparados aos recém-nascidos do sexo masculino, cuja redução de peso foi em média de 99g. Futuras pesquisas sobre os efeitos fetais do álcool considerando-se o sexo do concepto poderão contribuir para o melhor entendimento desse aspecto específico da teratogênese. Uma limitação do nosso estudo é o fato de não termos investigado o uso de tabaco, hábito associado ao consumo de álcool11 Montag AC. Fetal alcohol-spectrum disorders: identifying at-risk mothers. Int J Womens Health. 2016; (8): 311-23.,1616 Moraes CL, Reichenheim ME. Screening for alcohol use by pregnant women of public health care in Rio de Janeiro, Brazil. Rev Saúde Pública. 2007; 41(5): 695-703.,2525 McDonald SW, Hicks M, Rasmussen C, Nagulesapillai T, Cook J, Tough SC. Characteristics of women who consume alcohol before and after pregnancy recognition in a Canadian sample: a prospective cohort study. Alcohol Clin Exp Res. 2014; 38(12): 3008-16.,2626 Esper LH, Furtado EF. Identifying maternal risk factors associated with Fetal Alcohol Spectrum Disorders: a systematic review. Eur Child Adolesc Psychiatry. 2014; 23(10): 877-89. e que sabidamente interfere no peso do recém-nascido, o que pode ter influenciado nossos resultados.

A literatura também aponta associação entre consumo de álcool na gestação e ausência de companheiro fixo, como sugerido no nosso estudo. Mulheres solteiras ainda podem apresentar outros fatores de risco associados ao uso de álcool na gestação como baixa escolaridade, baixo nível socioeconômico e gravidez indesejada.1515 Freire TM, Machado JC, Melo EV, Melo DG. Efeitos do consumo de bebida alcoólica sobre o feto. Rev Bras Ginecol Obstet. 2005; 27(7): 376-81. Gestações não planejadas contribuem para a demora do reconhecimento das mesmas, permitindo que muitas mulheres se envolvam em comportamentos de risco, incluindo o consumo de álcool.2727 Lepper LET, Lluka A, Mayer A, Patel N, Salas J, Xaverius PK, Kramer B. Socioeconomic status, alcohol use, and pregnancy intention in a national sample of women. Prev Sci. 2016; 17(1): 24-31.

Além da ausência de companheiro fixo, outros fatores de risco maternos habitualmente associados ao consumo abusivo de álcool são: idade superior a 30 anos, baixa escolaridade, cor de pele "não branca", uso de tabaco e drogas ilícitas, e situação de vulnerabilidade socioeconômica.1616 Moraes CL, Reichenheim ME. Screening for alcohol use by pregnant women of public health care in Rio de Janeiro, Brazil. Rev Saúde Pública. 2007; 41(5): 695-703.,2525 McDonald SW, Hicks M, Rasmussen C, Nagulesapillai T, Cook J, Tough SC. Characteristics of women who consume alcohol before and after pregnancy recognition in a Canadian sample: a prospective cohort study. Alcohol Clin Exp Res. 2014; 38(12): 3008-16.,2626 Esper LH, Furtado EF. Identifying maternal risk factors associated with Fetal Alcohol Spectrum Disorders: a systematic review. Eur Child Adolesc Psychiatry. 2014; 23(10): 877-89.,2828 Lee SH, Shin SJ, Won SD, Kim EJ, Oh DY. Alcohol Use during Pregnancy and Related Risk Factors in Korea. Psychiatry Investig. 2010; 7(2): 86-92. Revisão recente apontou que mulheres com idades mais avançadas, menor escolaridade, não casadas, desempregadas, com menor estatura, com menor índice de massa corpórea, com estado nutricional considerado subótimo, com problemas de saúde mental, que sofreram abuso sexual, que realizaram menos consultas pré-natais, tabagistas, usuárias de drogas e que possuem parceiros que também consomem álcool, têm maiores riscos de terem uma criança com FASD.1

Na cidade de São Paulo, a pesquisa de Mesquita e Segre1010 Mesquita, MA, Segre, CAM. Frequência dos efeitos do álcool no feto e padrão de consumo de bebidas alcoólicas pelas gestantes de maternidade pública da cidade de São Paulo. Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Hum. 2009; 19(1): 63-7. identificou 31,1% das puérperas como T-ACE positivas. Entre os fatores contribuintes para o consumo abusivo de álcool durante a gestação estavam: falta de planejamento da gravidez, associação de uso de álcool com outras drogas, número de coabitantes também usuários de etanol e a não coabitação com o companheiro.

Estudo realizado com 537 parturientes no Rio de Janeiro constatou que cerca de 40% das mulheres fizeram uso de algum tipo de bebida alcoólica durante a gestação, sendo cerveja a bebida mais comumente citada (83,9%). Nesse estudo, a prevalência de casos suspeitos de uso abusivo de álcool, identificados pelo T-ACE (21,9%) e pelo questionário TWEAK (26,1%), foi maior entre mulheres de idades mais avançadas (a partir dos 30 anos), baixa escolaridade, que se classificaram como tendo cor de pele "não branca", que não viviam com companheiro e referiam menor apoio social.1616 Moraes CL, Reichenheim ME. Screening for alcohol use by pregnant women of public health care in Rio de Janeiro, Brazil. Rev Saúde Pública. 2007; 41(5): 695-703.

Outro estudo realizado no Rio de Janeiro, com 433 puérperas, por meio de entrevistas e consulta de prontuários na maternidade, encontrou frequência de uso de álcool durante a gestação de 7,4%. Os fatores maternos associados à prática foram: situação marital (mães solteiras), idade materna superior a 35 anos e história de aborto prévio. Nesse estudo, as mulheres que viviam sem companheiro apresentaram risco quase três vezes maior de consumir álcool no período gestacional, quando comparadas às mulheres que viviam com seus companheiros.2929 Freire K., Padilha PC., Saunders C. Factors associated to alcohol and smoking use in pregnancy. Rev Bras Ginecol Obstet. 2009; 31(7): 335-41.

É importante ressaltar que os fatores de risco apresentados aqui não devem ser considerados isoladamente, pois o consumo de álcool durante a gravidez é uma condição complexa que envolve aspectos sociais e biológicos. Nessa perspectiva, a identificação de mulheres sob risco de consumirem álcool de forma abusiva na gestação também pode ser feita pesquisando-se certos biomarcadores que verificam se houve exposição da gestante ao álcool. Metabólitos do etanol, como os ésteres etílicos de ácidos graxos (FAEEs, fatty acid ethyl esters), podem ser identificados em amostras de sangue, plasma, soro, cabelo, unha e mecônio, e são usados para mensurar a exposição cumulativa ao longo do tempo. Outros produtos diretos e não-oxidantes do metabolismo do etanol, como o sulfato etílico (EtS) e o glicuronideo etílico (EtG), detectam se houve consumo recente de álcool e também podem ser verificados. Embora a utilização desses biomarcadores na rotina do pré-natal tenha um custo elevado, alguns autores advogam sua utilidade clínica, considerando-se a relevância do diagnóstico precoce de situações de risco para SAF e FASD.11 Montag AC. Fetal alcohol-spectrum disorders: identifying at-risk mothers. Int J Womens Health. 2016; (8): 311-23.

O reconhecimento do perfil de mulheres que fazem uso inadequado do álcool durante a gestação pode ser utilizado para priorizar ações de educação em saúde voltadas para parcela da população mais vulnerável. No entanto, não pode ser utilizado para restringir a atenção à uma população aparentemente de risco, uma vez que muitas mulheres com suspeita de uso abusivo do álcool não correspondem ao padrão estabelecido na literatura.1616 Moraes CL, Reichenheim ME. Screening for alcohol use by pregnant women of public health care in Rio de Janeiro, Brazil. Rev Saúde Pública. 2007; 41(5): 695-703. Com relação a isso, outro fator limitante do nosso estudo foi o fato de investigarmos somente mulheres atendidas pelo Sistema Único de Saúde. A inclusão de puérperas atendidas pelo sistema de saúde suplementar poderia modificar os nossos resultados.

A gestação pode gerar um impacto positivo na vida da mulher, resultando na redução do uso de substâncias prejudiciais e diminuindo os efeitos nocivos para o concepto.2424 Patra J, Bakker R, Irving H, Jaddoe VWV, Mailini S, Rehm J. Dose-response relationship between alcohol consumption before and during pregnancy and the risks of low birth weight, preterm birth and small-size-for-gestational age (SGA) - A systematic review and meta-analyses. BJOG. 2011; 118(12): 1411-21. Além disso, considerando que o risco de recorrência de SAF tem sido registrado como em torno de 50 a 75%,3030 Paintner BAA, Williams AD, Burd L. Fetal Alcohol Spectrum Disorders-Implications for Child Neurology Part 2: Diagnosis and Management. J Child Neurol. 2011; 27(3): 355-62. identificar consumo abusivo de álcool entre mulheres em idade fértil é importante também para prevenção de danos ao concepto em futuras gravidezes. Mais recentemente, pesquisas experimentais em modelos animais investigaram os efeitos de antioxidantes, como vitaminas C e E, resveratrol, astaxantina e curcumina em fetos expostos ao álcool. Esses antioxidantes combatem o estresse oxidativo causado pelo etanol e, por isso, postula-se que tratar as gestantes com suplementos alimentares contendo essas substâncias poderia ajudar a reverter e prevenir SAF e FASD, embora nenhum protocolo de suplementação esteja aprovado para uso clínico até o momento. Outros suplementos, como ácido fólico, L-glutamina, ácido bórico e colina, também parecem minimizar os efeitos nocivos do álcool no desenvolvimento embriofetal e podem vir a ter um papel terapêutico no futuro.22 Gupta KK, Gupta VK, Shirasaka T. An Update on Fetal Alcohol Syndrome-Pathogenesis, Risks, and Treatment. Alcohol Clin Exp Res. 2016; 40(8): 1594-602.

Uma vez que não existe quantidade segura de ingesta de álcool durante a gravidez e que qualquer quantidade pode afetar o desenvolvimento embriofetal,22 Gupta KK, Gupta VK, Shirasaka T. An Update on Fetal Alcohol Syndrome-Pathogenesis, Risks, and Treatment. Alcohol Clin Exp Res. 2016; 40(8): 1594-602.,1111 DeVido J, Bogunovic O, Weiss RD. Alcohol use disorders in pregnancy. Harv Rev Psychiatry. 2015; 23(2): 112-21. recomendamos que o material publicado pelo Ministério da Saúde, para educação tanto dos profissionais de saúde quanto da população leiga, explicite a importância da abstenção de consumo de bebidas alcoólicas ao longo de toda gestação, e não apenas no primeiro trimestre. A promoção de campanhas publicitárias sobre o assunto também pode ser uma medida adicional de educação em saúde.

O reconhecimento dos problemas relacionados com a exposição fetal ao álcool permite uma maior adequação do atendimento oferecido à gestante, ao recém-nascido e à sua família. Nesse sentido, a identificação e caracterização das mulheres mais susceptíveis ao consumo de álcool na gestação pode colaborar no desenvolvimento de estratégias de intervenção mais eficazes para prevenir e/ou diminuir os impactos negativos do uso de álcool, contribuindo para prevenção primária das alterações neurocomportamentais e da deficiência intelectual.

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo auxílio recebido por meio do processo 15/08279-0; e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelas bolsas recebidas por meio do Programa Jovens Talentos para Ciência. A Damaris de Souza Nassif e Cindy Paola Herrera Celin, pela ajuda na construção do banco de dados.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2016
  • Aceito
    07 Abr 2017
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