Acessibilidade / Reportar erro

Acesso ao atendimento de puericultura nas Regiões Nordeste e Sul do Brasil

Resumo

Objetivos:

estimar o acompanhamento incompleto de puericultura e os fatores associados, em municípios do Nordeste e Sul do Brasil.

Métodos:

estudo transversal, de base populacional, realizado com 7.915 crianças. Considerou-se acompanhamento incompleto da puericultura a ausência em pelo menos um dos sete atendimentos preconizados. Utilizou-se Regressão de Poisson para análise bruta e ajustada.

Resultados:

a prevalência do acompanhamento incompleto da puericultura foi de 53,6% (IC95%= 52,5-54,7) no Nordeste e de 28,3% (IC95%= 27,3-29,3) no Sul, sendo 91% maior no Nordeste (RP=1,91; IC95% 1,73-2,11). Efeito protetor foi observado: em municípios com 30 a 49 mil habitantes no Nordeste (RP= 0,72; IC95%= 0,64-0,82) e 100 a 999 mil habitantes no Sul (RP=0,69; IC95% 0,57-0,84); pertencer ao maior quartil de renda per capita no Sul (RP=0,77; IC95% 0,63-0,95) e fazer seis ou mais consultas de pré-natal (RP=0,83; IC95%=0,75-0,92) Nordeste e (RP=0,65; IC95%= 0,53-0,79) Sul. Pertencer às classes D e E evidenciou risco no Nordeste (RP=1,41; IC95%= 1,19-1,67) e no Sul (RP=1,67; IC95%=1,37-2,03).

Conclusões:

as crianças no Nordeste estão mais sujeitas a não seguir o acompanhamento completo de puericultura, sugerindo que o usuário não comparece ou encontra dificuldades nos acesso aos serviços de saúde.

Palavras-chave
Acesso aos serviços de saúde; Desigualdades em saúde; Estudos transversais; Saúde da criança

Abstract

Objectives:

to estimate the incomplete follow-up on child care services and the associated factors in the municipalities in the Northeast and in the South of Brazil.

Methods:

a population-based cross-sectional study with 7,915 children. The incomplete follow-up on child care regarded the absence of at least one of the seven advocated care services. The Poisson regression was used for crude and adjusted analysis.

Results:

the prevalence of the incomplete follow-up child care was 53.6% (CI95%= 52.5-54.7) in the Northeast and 28.3% (CI95%= 27.3-29.3) in the South, therefore 91% was greater in the Northeast (PR=1.91; CI95%= 1.73-2.11). Protector effect was observed: in the muni-cipalities with 30 to 49 thousand inhabitants in the Northeast (PR= 0.72; CI95%= 0.64-0.82) and 100 to 999 thousand inhabitants in the South (PR=0.69; CI95%= 0.57-0.84); the South has the greatest income quartile (RP=0.77; CI95%= 0.63-0.95) and has six or more prenatal consultations (PR=0.83; CI95%= 0.75-0.92) in the Northeast and (PR=0.65; CI95%= 0.53-0.79) in the South. Social classes D and E showed risks (PR=1.41; CI95%= 1.19-1.67) in the Northeast and (PR=1.67; CI95%= 1.37-2.03) in the South.

Conclusions:

children in the Northeast are more likely not to have a complete child care follow-up, implying that the user does not come to be attended or finds difficulties to have access to the health services.

Key words
Health services accessibility; Health inequalities; Cross-sectional studies; Child health

Introdução

O acesso aos serviços de saúde pode ser entendido como a facilidade em obter assistência de forma que oportunize o alcance de melhores resultados de saúde,11 Assis MMA, Jesus WLAD. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Ciên Saúde Colet. 2012; 17 (11): 2865-75.,22 Sanchez RM, Ciconelli RM. Conceitos de acesso à saúde. Rev Panam Salud Publica. 2012; 31 (3): 260-8.,33 Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad Saúde Pública. 2004; 20 (Supl. 2): 190-8. o que pressupõe a remoção de obstáculos para se chegar aos serviços oferecidos.44 Viacava F, Ugá MAD, Porto S, Laguardia J, da Silva Moreira R. Avaliação de Desempenho de Sistemas de Saúde: um modelo de análise. Ciênc Saúde Colet. 2012; 17 (4): 921-34. Desta forma, a utilização de um determinado serviço pode ser considerada como uma dimensão do acesso realizado55 Andersen RM. Revisiting the behavioral model and access to medical care: does it matter? J Health Social Behav. 1995; 36 (1): 1-10. enquanto sua ausência pressupõe uma falta de acesso.

No Brasil, embora a Constituição Federal garanta o acesso universal à saúde e à integralidade da assistência de forma equânime a todos os cidadãos,66 Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet. 2011; 377 (9779): 1778-97.,77 Victora CG, Aquino EML, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Maternal and child health in Brazil: progress and challenges. Lancet. 2011; 377 (9780): 1863-76. ainda observam-se grandes disparidades. As diferenças socioeconômicas e regionais, somadas às características do indivíduo, têm sido apontadas como influentes na restrição do acesso aos serviços de saúde.88 Travassos C, Oliveira EXD, Viacava F. Desigualdades geográficas e sociais no acesso aos serviços de saúde no Brasil: 1998 e 2003. Ciênc Saúde Colet. 2006; 11 (4): 975-86.

9 Furtado MCDC, Braz JC, Pina JC, Mello DFD, Lima RAGD. Assessing the care of children under one year old in Primary Health Care. Rev Lat Am Enf. 2013; 21 (2): 554-61.
-1010 Cunha CLF, Silva RAD, Gama MEA, Costa GRC, Costa ASV, Tonia SR. O uso de serviços de atenção primária à saúde pela população infantil em um estado do nordeste brasileiro. Cad Saúde Colet. 2013; 21 (2): 115-20. As estratégias para essa compreensão permanecem alvo de grandes debates, dada a complexidade de fatores que a cercam e a necessidade de análise da organização do sistema de saúde.22 Sanchez RM, Ciconelli RM. Conceitos de acesso à saúde. Rev Panam Salud Publica. 2012; 31 (3): 260-8.,44 Viacava F, Ugá MAD, Porto S, Laguardia J, da Silva Moreira R. Avaliação de Desempenho de Sistemas de Saúde: um modelo de análise. Ciênc Saúde Colet. 2012; 17 (4): 921-34.

Um dos pressupostos para explicar a restrição do acesso constitui a organização e a prestação dos serviços de saúde.88 Travassos C, Oliveira EXD, Viacava F. Desigualdades geográficas e sociais no acesso aos serviços de saúde no Brasil: 1998 e 2003. Ciênc Saúde Colet. 2006; 11 (4): 975-86. Regiões mais pobres apresentam contexto desfavorável em relação à organização e oferta dos serviços,66 Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet. 2011; 377 (9779): 1778-97.,1010 Cunha CLF, Silva RAD, Gama MEA, Costa GRC, Costa ASV, Tonia SR. O uso de serviços de atenção primária à saúde pela população infantil em um estado do nordeste brasileiro. Cad Saúde Colet. 2013; 21 (2): 115-20.,1111 Cesar JA, Chrestani AD, Fantinel EJ, Gonçalves TS, Neumann NA. Saúde infantil em áreas pobres: resultados de um estudo de base populacional nos municípios de Caracol, Piauí, e Garrafão do Norte, Pará, Brasil. Cad Saúde Pública. 2009; 25 (4): 809-18. enquanto que populações com melhor nível socioeconômico historicamente, têm tido mais serviços disponíveis.

Em relação aos serviços de saúde infantil e, em especial, de puericultura, entende-se como fundamental o início precoce do atendimento com a realização de pelo menos sete consultas de rotina no primeiro ano de vida que devem ocorrer preferencialmente na 1ª semana e no 1º, 2º, 4º, 6º, 9º e 12º mês,1212 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: crescimento e desenvolvimento. Brasília, DF; 2012. e serem capazes de assegurar a vigilância à saúde da criança. O atendimento contínuo de puericultura contribui no acompanhamento e desenvolvimento neuropsicomotor, no estímulo ao aleitamento materno e na introdução de novos alimentos, no controle do peso, de doenças imunopreveníveis e na produção de hábitos saudáveis, além da promoção da saúde e prevenção de diversas doenças nos primeiros anos de vida.1212 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: crescimento e desenvolvimento. Brasília, DF; 2012. É atribuição de todas as unidades básicas de saúde no Brasil o desenvolvimento de ações vinculadas a estes objetivos.1212 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: crescimento e desenvolvimento. Brasília, DF; 2012. Dados apontam que no Nordeste e no Sul a puericultura está presente em quase 100% das unidades com Estratégia de Saúde da Família (ESF).1313 Piccini RX, Facchini LA, Tomasi E, Thumé E, da Silveira, DS, Siqueira FV, Rodrigues MA, Paniz VV, Teixeira VA. Efetividade da atenção pré-natal e de puericultura em unidades básicas de saúde do Sul e do Nordeste do Brasil. Rev Bras Saúde Matern Infant. 2007; 7 (1): 75-82. Considerando o expressivo avanço da expansão da ESF no país,66 Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet. 2011; 377 (9779): 1778-97.,1414 Macinko J, Harris MJ. Brazil's Family Health Strategy-Delivering Community-Based Primary Care in a Universal Health System. New England J Med. 2015; 372 (23): 2177-81.,1515 Facchini LA, Piccini RX, Tomasi E, Thumé E, Silveira DS, Siqueira FV, Rodrigues MA. Desempenho do PSF no Sul e no Nordeste do Brasil: avaliação institucional e epidemiológica da Atenção Básica à Saúde. Ciênc Saúde Colet. 2006; 11 (3): 669-81. o acesso pleno de todas as crianças a tais atendimentos pode e deve ser garantido em busca de equidade em saúde. Embora o país acumule progressos importantes para a população infantil, como a redução da mortalidade, níveis adequados de cobertura vacinal66 Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet. 2011; 377 (9779): 1778-97. e o aumento médio da prevalência do aleitamento materno,77 Victora CG, Aquino EML, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Maternal and child health in Brazil: progress and challenges. Lancet. 2011; 377 (9780): 1863-76. ainda há lacunas na equidade ao acesso.

A fim de contribuir para o entendimento de algumas barreiras de acesso aos serviços de saúde, este estudo teve como objetivo estimar o acompanhamento incompleto de puericultura e os fatores associados, em municípios do Nordeste e Sul do Brasil.

Métodos

O estudo teve delineamento transversal de base populacional e foi realizado em setores censitários urbanos de 35 municípios das Regiões Nordeste e Sul do Brasil. Os domicílios onde residissem crianças menores de sete anos e suas famílias foram localizados nas áreas de abrangência de Unidades Básicas de Saúde (UBS) tradicionais e de ESF. Esse estudo integra a pesquisa "Situação de saúde, utilização de serviços e qualidade da atenção em crianças e familiares nas Regiões Sul e Nordeste do Brasil",1616 Facchini LA, Nunes BP, Motta JVS, Tomasi E, Silva, SM, Thumé E, et al. Insegurança alimentar no Nordeste e Sul do Brasil: magnitude, fatores associados e padrões de renda per capita para redução das iniqüidades. Cad Saúde Pública. 2014; 30 (1): 161-74. realizada de agosto a outubro de 2010.

Para a pesquisa principal foi realizado um plano amostral, considerando nas regiões os municípios com cobertura de ESF entre 30% a 70%. Os municípios foram selecionados de forma aleatória com base em uma estratificação de quatro portes populacionais: 10 mil a menos de 29 mil habitantes; de 30 mil a menos de 50 mil; de 50 mil a menos de 100 mil; e de 100 mil a menos de um milhão de habitantes. Foi calculada uma distribuição percentual da população em cada porte dos municípios e essa distribuição foi considerada para seleção da amostra. Todo o procedimento amostral está disponível no estudo de Facchini et al.1616 Facchini LA, Nunes BP, Motta JVS, Tomasi E, Silva, SM, Thumé E, et al. Insegurança alimentar no Nordeste e Sul do Brasil: magnitude, fatores associados e padrões de renda per capita para redução das iniqüidades. Cad Saúde Pública. 2014; 30 (1): 161-74.

Os serviços de atenção básica de cada município sorteado foram organizados por meio de listas com identificação do endereço, do modelo de atenção e dos setores censitários em sua área de abrangência. Para cada serviço incluído, dois setores censitários foram selecionados, um que incluía o serviço de saúde e outro setor censitário mais próximo da unidade de saúde que compunha a amostra.

Em cada setor foi sorteado o ponto de início para localizar o primeiro domicílio do estudo e a amostra de crianças. Na sequência, as demais residências foram incluídas considerando o intervalo de cinco domicílios a partir do ponto inicial. Em cada domicílio, todas as crianças com menos de sete anos eram elegíveis para o estudo.

Para este estudo, a amostra foi restrita às crianças entre um e quatro anos de idade, com o objetivo de conhecer a exposição completa à puericultura ao final do primeiro ano de vida e de minimizar possíveis vieses de recordação pelas mães de crianças de maior idade. O cálculo amostral, para esse estudo, foi realizado a posteriori, estabelecendo nível de significância de 95%, poder de 80%, prevalência de 34% para a falta de acesso à puericultura e razão de prevalência de 1,2. Considerou-se ainda 10% para perdas ou recusas e 30% para controle de fatores de confusão, resultando em 6163 crianças.

A coleta de dados foi feita por entrevistadores previamente treinados, com auxílio de um personal digital assistant (PDA). Foi aplicado um questionário individual contendo informações de cada criança e de suas mães e um questionário socioeconômico com informações sobre o domicílio e a família. Os questionários foram respondidos, em entrevistas domiciliares, pela mãe biológica ou, na sua ausência, por um responsável residente no domicílio. Uma das ações do controle de qualidade foi a re-entrevista de 8% da amostra com repetição de quatro informações sobre a criança e a família. A análise de concordância revelou índices de Kappa entre 0,6 a 0,9.

A prevalência de cada um dos atendimentos de puericultura realizados aos quinze dias, um mês, dois, quatro, seis, nove e doze meses de idade foi analisada separadamente. Em seguida, essas variáveis foram utilizadas para construir um desfecho complexo, considerando-se acompanhamento incompleto da puericultura se a criança não foi atendida em pelo menos um desses sete atendimentos preconizados.

As variáveis independentes foram agrupadas em cinco categorias: localização geográfica - Região (Sul e Nordeste) e porte do município em mil habitantes (10 a 29, 30 a 49, 50 a 99 e 100 a 999); nível socioeconômico - classificação econômica da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas (ABEP)1717 Kamakura W. Socioeconomic stratification criteria and classification tools in Brazil. Rev Adm Empres. 2016; 56 (1): 55-70. (A/B, C, D/E), que expressa à riqueza do domicílio e seu poder de compras, incluindo, por exemplo, itens de bens domésticos e a instrução do responsável pela família, sendo o nível A o mais rico, renda familiar per capita em quartis de salários mínimos (menos de 0,237; 0,238 a 0,431; 0,432 a 0,823; e 0,824 ou mais) e bolsa família (sim e não); demográficas e sociais maternas - idade em anos completos (19 ou menos, 20 a 29, 30 a 39 e 40 ou mais), cor da pele autorreferida (branca, parda, preta, amarela e indígena), escolaridade em anos completos (4 ou menos, 5 a 8 e 9 ou mais) e presença de companheiro (sim e não); antecedentes obstétricos - número total de consultas de pré-natal (até 5 e 6 ou mais) e número de nascidos vivos (1, 2, 3 ou mais); características da criança - sexo (masculino e feminino), idade em anos completos (1, 2, 3 e 4) e cor da pele referida pela mãe (branca, parda, preta, amarela e indígena).

Foram realizadas análises bivariadas entre todas as variáveis independentes com cálculo de prevalência e a significância das associações foi avaliada com o teste do qui-quadrado de heterogeneidade e tendência linear. Para as análises do desfecho sintético utilizou-se a regressão de Poisson com ajuste robusto de variância para estimar as razões de prevalências (RP) com seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). Na análise ajustada, utilizou-se modelo hierárquico, no qual foram incluídas no primeiro nível as variáveis de localização geográfica; no segundo nível, as socioeconômicas; no terceiro nível, aquelas relacionadas a características demográficas e sociais maternas; no quarto nível, os antecedentes obstétricos; e, por fim, no quinto nível, as variáveis relacionadas às características da criança. Para a entrada e a manutenção das variáveis no modelo, considerou-se aquelas que apresentaram valor p<0,20. A significância estatística foi verificada pelo teste de Wald e de heterogeneidade, adotando-se o nível de 5%. Toda a análise dos dados foi conduzida no pacote estatístico Stata 13.0.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas, conforme ofício número 133/09, de 21 de dezembro de 2009. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado por todos os entrevistados.

Resultados

No total, 7.915 crianças entre um e quatro anos dos estados do Rio Grande do Sul (n=715), Santa Catarina (n=1.997), Paraná (n=1.182), Bahia (n=1.777), Pernambuco (n=1.506) e Ceará (n=758) integraram a amostra.

Pouco mais da metade das crianças residiam no Nordeste (51,1%), a maior parte em municípios com mais de 100 mil habitantes (59,7%), pertenciam a famílias de classificação econômica C (53,0%), não recebiam o benefício Bolsa Família (64,9%) e metade vivia com menos de 0,43 salários mínimos mensais per capita. A maioria das mães possuía menos de 30 anos, declararam-se de cor parda (48,1%), atingiram o ensino médio (54,1%), estavam com companheiro (78,8%), fizeram mais de cinco consultas de pré-natal (85,7%) e eram primíparas (43,8%). Dentre as crianças, pouco mais da metade eram do sexo masculino, tinham menos de dois anos (50,8%) e cor da pele branca (52,2%) (Tabela 1).

Tabela 1
Descrição da amostra segundo variáveis demográficas, socioeconômicas, maternas e das crianças por Região Nordeste e Sul. Brasil, 2010.

As Tabelas 2 e 3 evidenciam o acompanhamento incompleto da puericultura nas Regiões Nordeste e Sul, respectivamente. No Nordeste, as prevalências desse desfecho chegaram a valores próximos de 30% ao longo dos sete atendimentos. Já no Sul, as prevalências foram consideravelmente inferiores, não atingindo 10% na maioria dos atendimentos. As características econômicas, de escolaridade e de utilização do serviço de saúde exerceram as maiores influências nos resultados para as duas regiões. Por outro lado, em ambas as regiões, as variáveis maternas (idade, cor e presença de companheiro) e da criança não estiveram relacionadas com o acompanhamento incompleto da puericultura.

Tabela 2
Prevalência do acompanhamento incompleto de puericultura segundo variáveis demográficas, socioeconômicas, maternas e das crianças, em diferentes períodos, na Região Nordeste. Brasil, 2010.
Tabela 3
Prevalência do acompanhamento incompleto de puericultura segundo variáveis demográficas, socioeconômicas, maternas e das crianças, em diferentes períodos, na Região Sul. Brasil, 2010.

Dentre os motivos referidos pelas mães para não ter levado seus filhos as consultas na unidade de saúde no primeiro ano de vida, destaca-se o relato de 60% informando que os agentes comunitários de saúde pesavam e mediam as crianças nos domicílios (dado não mostrado).

Considerando o desfecho complexo, a proporção de crianças que tiveram o acompanhamento incompleto da puericultura na Região Nordeste foi quase o dobro (53,6%; IC95%= 52,5-54,7) da Região Sul (28,3%; IC95%= 27,3-29,3) para todos os sete atendimentos. Na análise ajustada segundo modelo hierárquico, o Nordeste apresentou um risco de 1,91 (RP=1,91; IC95%= 1,73-2,11) e o Sul evidenciou um efeito protetor para o acompanhamento incompleto de puericultura (RP=0,54; IC95%= 0,49-0,59), para ambas as regiões, os fatores que estiveram associados com o desfecho foram: o tamanho do município com diferença no sentido do efeito para o Nordeste (RP=1,22; IC95%= 1,08-1,39); porte de 50 a 99 mil habitantes, comparado ao Sul (RP=0,69; IC95%=0,57-0,84); porte de mais de 100 mil habitantes; a classificação econômica D e E, sendo pouco mais expressivo no Sul (RP=1,67; IC95%=1,37-2,03) do que no Nordeste (RP=1,41; IC95%= 1,19-1,67) e a utilização dos serviços por meio da consulta de pré-natal mantendo o mesmo efeito para o Nordeste (RP=0,83; IC95%= 0,75-0,92) e para o Sul (RP=0,65; IC95%= 0,53-0,79). As variáveis: escolaridade materna e presença de companheiro quando submetidas à análise ajustada não estiveram associadas com o desfecho (Tabela 4).

Tabela 4
Prevalência, análise bruta e ajustada dos fatores associados ao acompanhamento incompleto de puericultura por Região Nordeste e Sul. Brasil, 2010.

Discussão

No total, mais da metade das crianças da Região Nordeste e pouco mais de um quarto das crianças na Região Sul não fizeram o acompanhamento completo de puericultura. Efeito de risco foi observado para as crianças residentes no Nordeste e efeito protetor para as do Sul. Para as duas regiões os fatores mais associados estiveram relacionados ao tamanho do munícipio, à classificação econômica, além da utilização dos serviços de saúde.

A prevalência total para o acompanhamento incompleto da puericultura evidenciado nas Regiões Nordeste e Sul é especialmente preocupante dada às características do cuidado contínuo preconizado para essa fase de vida. Esse resultado sugere que os pais ou os responsáveis pelas crianças não tem acessado os serviços de saúde ou encontram algum tipo de restrição no seu acesso. Nas mesmas regiões do presente estudo, outra pesquisa registrou que apenas uma em cada cinco crianças havia feito pelo menos nove consultas nos dois primeiros anos de vida na unidade de sua área de abrangência.1515 Facchini LA, Piccini RX, Tomasi E, Thumé E, Silveira DS, Siqueira FV, Rodrigues MA. Desempenho do PSF no Sul e no Nordeste do Brasil: avaliação institucional e epidemiológica da Atenção Básica à Saúde. Ciênc Saúde Colet. 2006; 11 (3): 669-81. No estado de Minas Gerais, 24,2% das crianças atendidas pela ESF não faziam controle regular de puericultura.1818 Caldeira AP, Oliveira RMD, Rodrigues OA. Qualidade da assistência materno-infantil em diferentes modelos de Atenção Primária. Ciênc Saúde Colet. 2010; 15 (Supl. 2): 3139-47. No Maranhão, o acesso foi a pior dimensão avaliada entre os usuários da ESF,1919 Reis RS, Coimbra LC, da Silva AAM, dos Santos AM, Lamy ZC, Ribeiro SVO, da Silva RA. Acesso e utilização dos serviços na Estratégia Saúde da Família na perspectiva dos gestores, profissionais e usuários. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18 (11): 3321-31. ainda no mesmo estado, outro estudo identificou que 61,4% das crianças não fizeram consulta de puericultura.1010 Cunha CLF, Silva RAD, Gama MEA, Costa GRC, Costa ASV, Tonia SR. O uso de serviços de atenção primária à saúde pela população infantil em um estado do nordeste brasileiro. Cad Saúde Colet. 2013; 21 (2): 115-20. Os autores atribuem estes resultados a diferenças no território, com grandes distâncias geográficas, além do Estado do Maranhão contar com muitos municípios de pequeno porte, onde muitas ações programáticas não são disponibilizadas à população.1010 Cunha CLF, Silva RAD, Gama MEA, Costa GRC, Costa ASV, Tonia SR. O uso de serviços de atenção primária à saúde pela população infantil em um estado do nordeste brasileiro. Cad Saúde Colet. 2013; 21 (2): 115-20. Tal cenário pode traduzir uma realidade do acesso aos serviços de saúde,11 Assis MMA, Jesus WLAD. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Ciên Saúde Colet. 2012; 17 (11): 2865-75. reflexo histórico das condições socioeconômicas e da organização dos serviços, o que contribui para que seja um fenômeno complexo e multifatorial.

No contexto brasileiro, as Regiões Nordeste e Sul são conhecidas por apresentar discrepâncias em seu desenvolvimento socioeconômico e na gestão dos serviços de saúde. A Região Nordeste é marcada por condições desfavoráveis de sobrevida, num cenário de lento desenvolvimento socioeconômico, e por políticas de saúde produzidas e ofertadas de forma pouco coerentes com as necessidades locorregionais66 Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet. 2011; 377 (9779): 1778-97.; também é caracterizada por um gradiente social com predomínio de posições menos favorecidas, além de apresentar o pior indicador de mortalidade infantil nos anos 1990, 2000 e 2007, no país77 Victora CG, Aquino EML, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Maternal and child health in Brazil: progress and challenges. Lancet. 2011; 377 (9780): 1863-76. e um volume maior de incentivo a programas sociais de transferência de renda. Por outro lado, a Região Sul oferece melhores condições socioeconômicas a sua população,77 Victora CG, Aquino EML, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Maternal and child health in Brazil: progress and challenges. Lancet. 2011; 377 (9780): 1863-76. sendo uma das regiões mais desenvolvidas do país.88 Travassos C, Oliveira EXD, Viacava F. Desigualdades geográficas e sociais no acesso aos serviços de saúde no Brasil: 1998 e 2003. Ciênc Saúde Colet. 2006; 11 (4): 975-86. Estudos apontam que indivíduos residentes nas Regiões Sudeste e Sul possuem maior chance de uso dos serviços de saúde quando comparado às demais regiões.88 Travassos C, Oliveira EXD, Viacava F. Desigualdades geográficas e sociais no acesso aos serviços de saúde no Brasil: 1998 e 2003. Ciênc Saúde Colet. 2006; 11 (4): 975-86.,2020 Alves MGM, Casotti E, Oliveira LGD, Machado MTC, Almeida PF, Corvino MPF, Marin J, Flauzino RF, Montenegro LAA. Fatores condicionantes para o acesso às equipes da Estratégia Saúde da Família no Brasil. Saúde Debate. 2014; 38 (Especial): 34-51. Assim, as diferenças locorregionais existentes no Brasil são capazes de influenciar o contexto do acesso aos serviços pela população, com expressivas desigualdades, o que foi corroborado pelos dados deste estudo, mostrando menor acompanhamento à puericultura no Nordeste.

Em relação ao porte populacional, o estudo identificou na Região Sul uma tendência de redução na falta de acompanhamento à medida que aumentava o porte municipal, evidenciado pelo maior efeito nos municípios com mais de 100 mil habitantes quando comparado àqueles com menos de 30 mil habitantes. É no âmbito municipal que as políticas de saúde voltadas para a atenção primária são conduzidas e gerenciadas, em uma conjuntura que deve considerar as peculiaridades sociais e econômicas. Os municípios maiores podem ter maior disponibilidade de serviços de saúde, facilidades no acesso geográfico e econômico, disporem de unidades de atendimento com equipes de saúde completas e capacitadas, além de possuir uma população provavelmente mais escolarizada e, dessa forma, com mais consciência da necessidade de adotar ações preventivas em saúde. Tais diferenças entre municípios podem influenciar o acesso aos serviços, traduzindo-se em barreiras para os usuários.11 Assis MMA, Jesus WLAD. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Ciên Saúde Colet. 2012; 17 (11): 2865-75. A literatura já aponta evidências de que indivíduos residentes em áreas com melhor desenvolvimento socioeconômico apresentam melhores índices de acesso e utilização de serviços de saúde.88 Travassos C, Oliveira EXD, Viacava F. Desigualdades geográficas e sociais no acesso aos serviços de saúde no Brasil: 1998 e 2003. Ciênc Saúde Colet. 2006; 11 (4): 975-86.,2020 Alves MGM, Casotti E, Oliveira LGD, Machado MTC, Almeida PF, Corvino MPF, Marin J, Flauzino RF, Montenegro LAA. Fatores condicionantes para o acesso às equipes da Estratégia Saúde da Família no Brasil. Saúde Debate. 2014; 38 (Especial): 34-51.,2121 Tomasi E, Nunes BP, Müller RDM, Thumé E, SilveiraSD, Siqueira FV, Duro SMS, Saes MO, Dilélio AS, Reis MBD, Facchini LA.Perfil de utilização de serviços de saúde por crianças de zona urbana no Brasil: estudo transversal de base nacional. Rev Bras Saúde Matern Infant. 2015; 15 (1): 81-90.

Por outro lado, essa tendência não foi identificada na Região Nordeste. Nessa região os municípios apresentaram variação no efeito de risco e proteção ao acompanhamento incompleto de puericultura. Efeito protetor foi identificado nos municípios com 30 a 49 mil habitantes. Essa observação pode refletir em diferentes contextos de gestão municipal dos serviços de saúde, com organizações diversificadas no âmbito da atenção básica.11 Assis MMA, Jesus WLAD. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Ciên Saúde Colet. 2012; 17 (11): 2865-75.,66 Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet. 2011; 377 (9779): 1778-97. Nota-se, entretanto, que os municípios com mais de 100 mil habitantes também tiveram o mesmo sentido de efeito protetor, identificado na Região Sul, embora não tenha mantido a significância estatística.

A maior falta de acompanhamento à puericultura constatada nas classes D e E em ambas as regiões, reforça o papel dos determinantes econômicos na utilização dos serviços, mesmo em um sistema de saúde público e universal. Vale destacar que, pela estratégia amostral, esse estudo incluiu famílias adscritas a unidades básicas de saúde do Sistema Único de Saúde e não se esperaria que o menor poder aquisitivo das famílias representasse uma possível barreira à utilização de serviços11 Assis MMA, Jesus WLAD. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Ciên Saúde Colet. 2012; 17 (11): 2865-75. de puericultura. Entretanto, tais iniquidades também têm sido descritas por diversos estudos em diferentes locais no Brasil, principalmente relacionadas à utilização de atendimentos de saúde.2121 Tomasi E, Nunes BP, Müller RDM, Thumé E, SilveiraSD, Siqueira FV, Duro SMS, Saes MO, Dilélio AS, Reis MBD, Facchini LA.Perfil de utilização de serviços de saúde por crianças de zona urbana no Brasil: estudo transversal de base nacional. Rev Bras Saúde Matern Infant. 2015; 15 (1): 81-90.

22 Dias da Costa JS, Gigante DP, Horta BL, Barros FC, Victora CG. Utilização de serviços de saúde por adultos da coorte de nascimentos de 1982 a 2004-5, Pelotas, RS. Rev Saúde Pública. 2008; 42 (Supl. 2): 51-9.
-2323 Dias da Costa JS, Cesar JA, Weber AP, da Silva Garcez A, Dalla Nora CR, Rower, HB, Kolling V. Características das crianças menores de cinco anos atendidas em serviços de atenção básica em dois municípios do nordeste brasileiro. Rev Bras Saúde Matern Infant. 2015: 15 (1): 33-46.

Embora a Região Sul apresente melhores condições socioeconômicas e menor prevalência a falta de acompanhamento da puericultura, essa região apontou as maiores diferenças entre as classes econômicas e no quartil de renda per capita, observado pelo maior risco expresso nas classes D e E e efeito protetor nas famílias de maior quartil. Tais achados reforçam a presença expressiva das desigualdades entre as classes econômicas e indicam falhas na estratégia de redução dessas diferenças.

As iniquidades na distribuição de renda implicam de forma considerável nos determinantes sociais e de saúde,11 Assis MMA, Jesus WLAD. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Ciên Saúde Colet. 2012; 17 (11): 2865-75.,2424 Marmot M, Allen J, Bell R, Bloomer E, Goldblatt P. WHO European review of social determinants of health and the health divide. Lancet. 2012; 380 (9846): 1011-29.,2525 Buss PM, Pellegrini Filho A. Iniquidades em saúde no Brasil, nossa mais grave doença: comentários sobre o documento de referência e os trabalhos da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. Cad Saúde Pública. 2006; 22 (9): 2005-8.,2626 Quansah E, Ohene LA, Norman L, Mireku MO, Karikari TK. Social Factors Influencing Child Health in Ghana. PloS One. 2016; 11 (1): 2-20. procedem de uma estratificação social2727 Langellier BA, Chen J, Vargas-Bustamante A, Inkelas M, Ortega AN. Understanding health-care access and utilization disparities among Latino children in the United States. J Child Health Care. 2016; 20 (2): 133-44. e desigualdades políticas que permeiam o sistema de saúde e desafiam a sua gestão.22 Sanchez RM, Ciconelli RM. Conceitos de acesso à saúde. Rev Panam Salud Publica. 2012; 31 (3): 260-8. Nesse sentido, são necessárias ações que envolvam toda a esfera política de governos no intuito de promover políticas sociais e econômicas capazes de reduzir as diferenças de renda e promover a equidade em saúde.22 Sanchez RM, Ciconelli RM. Conceitos de acesso à saúde. Rev Panam Salud Publica. 2012; 31 (3): 260-8.,2424 Marmot M, Allen J, Bell R, Bloomer E, Goldblatt P. WHO European review of social determinants of health and the health divide. Lancet. 2012; 380 (9846): 1011-29.

No nível dos determinantes individuais maternos, na Região Sul, a idade materna entre 30 a 39 anos influenciou na ida dos filhos à puericultura, por outro lado, parece haver uma tendência de risco para faltas no atendimento nas mães com mais filhos. Em ambas as regiões, o acesso foi significativamente maior para as crianças cujas mães fizeram mais de seis consultas de pré-natal, podendo indicar que as mães com maior frequência aos serviços de saúde antes do parto, os mantêm durante o primeiro ano de vida de seus filhos. Por conseguinte, destaca-se a possível construção do conhecimento em saúde adquirido por essas mães com a continuidade do cuidado no pré-natal,1313 Piccini RX, Facchini LA, Tomasi E, Thumé E, da Silveira, DS, Siqueira FV, Rodrigues MA, Paniz VV, Teixeira VA. Efetividade da atenção pré-natal e de puericultura em unidades básicas de saúde do Sul e do Nordeste do Brasil. Rev Bras Saúde Matern Infant. 2007; 7 (1): 75-82. elas teriam possivelmente melhor entendimento da importância desse acompanhamento o que atuaria como um fator positivo para a regularidade da puericultura.1111 Cesar JA, Chrestani AD, Fantinel EJ, Gonçalves TS, Neumann NA. Saúde infantil em áreas pobres: resultados de um estudo de base populacional nos municípios de Caracol, Piauí, e Garrafão do Norte, Pará, Brasil. Cad Saúde Pública. 2009; 25 (4): 809-18.

Embora várias pesquisas11 Assis MMA, Jesus WLAD. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Ciên Saúde Colet. 2012; 17 (11): 2865-75.,22 Sanchez RM, Ciconelli RM. Conceitos de acesso à saúde. Rev Panam Salud Publica. 2012; 31 (3): 260-8.,2424 Marmot M, Allen J, Bell R, Bloomer E, Goldblatt P. WHO European review of social determinants of health and the health divide. Lancet. 2012; 380 (9846): 1011-29.,2525 Buss PM, Pellegrini Filho A. Iniquidades em saúde no Brasil, nossa mais grave doença: comentários sobre o documento de referência e os trabalhos da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. Cad Saúde Pública. 2006; 22 (9): 2005-8. apontem a influência das características demográficas no acesso aos serviços de saúde, o presente estudo não evidenciou tal efeito em relação aos fatores individuais infantis. Espera-se que diferenças relacionadas ao sexo, idade e cor da pele aos poucos deixem de ser fatores que impactam no acesso aos serviços de saúde, além de indicar avanços no alcance da equidade.

Uma das fragilidades do presente estudo é a ausência de informações aprofundadas e completas sobre os motivos pelos quais as crianças não tiveram os atendimentos de puericultura preconizados. Fatores relacionados a barreiras geográficas, financeiras, organizacionais e de informação, além de crenças e valores individuais, podem contribuir para a não concretização da atenção.2828 Travassos C, Castro MSM. Determinantes e Desigualdades Sociais no Acesso e na Utilização dos Serviços de Saúde. In: Giovanella L, Sarah E, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI. Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Parte I: Proteção Social, Políticas e Determinantes de Saúde. Fiocruz; 2012. p. 183-206.,2929 Jacobs B, Ir P, Bigdeli M, Annear PL, Van Damme W. Addressing access barriers to health services: an analytical framework for selecting appropriate interventions in low-income Asian countries. Health Policy Plan. 2012; 27 (4): 288-300. Nesse estudo, foi constatado que a verificação do peso e da estatura da criança pelos agentes comunitários de saúde durante a visita domiciliar trouxe implicações reversas, pois muitas mães relataram considerar esse procedimento como suficiente para o acompanhamento da saúde de seus filhos, o que parece ser um equívoco a ser dissipado pelos serviços de saúde em ações educativas voltadas a comunidade e retoma a necessidade de informação em saúde.

Destaca-se ainda o fato de que as entrevistas foram feitas com até quatro anos de distância dos eventos avaliados, o que pode resultar em possíveis falhas no recordatório. Ressalta-se também a latência entre a coleta de dados e a publicação do estudo, ainda que não tenha havido nesse período transformações importantes nas políticas de saúde que pudessem impactar nas mudanças desses resultados. Embora o estudo não permita inferir causalidade por seu delineamento transversal, ele é capaz de determinar a direção e a magnitude das associações encontradas. Dessa maneira, os achados evidenciam a persistência de desigualdades no acesso universal aos serviços de saúde infantil, trazem contribuições ao debate do acesso e recomendações para a gestão da saúde pública.

A puericultura está disponível na grande maioria das UBS, suas atividades envolvem acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento, da situação vacinal, alimentar/nutricional e medidas de intervenções precoces e oportunas para prevenção de doenças, agravos específicos à idade e recuperação da saúde. É realizada por enfermeiros e médicos,1313 Piccini RX, Facchini LA, Tomasi E, Thumé E, da Silveira, DS, Siqueira FV, Rodrigues MA, Paniz VV, Teixeira VA. Efetividade da atenção pré-natal e de puericultura em unidades básicas de saúde do Sul e do Nordeste do Brasil. Rev Bras Saúde Matern Infant. 2007; 7 (1): 75-82. presentes na maioria das equipes, ou seja, a oferta existe, mas a utilização não é plenamente concretizada. No entanto, ainda faltam informações sobre a qualidade dos serviços ofertados, tanto em termos de estrutura física, quanto em termos de organização da unidade de saúde e da relação profissional-usuário.

De modo geral, conclui-se que as regiões e os municípios sinalizaram diferenças no acompanhamento da puericultura nos serviços de saúde. As desigualdades na distribuição de renda continuam refletindo em diferenças na utilização de serviços para os grupos menos favorecidos. O estudo também mostrou que a continuidade do cuidado parece contribuir no acesso à saúde infantil no âmbito da atenção primária.

References

  • 1
    Assis MMA, Jesus WLAD. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Ciên Saúde Colet. 2012; 17 (11): 2865-75.
  • 2
    Sanchez RM, Ciconelli RM. Conceitos de acesso à saúde. Rev Panam Salud Publica. 2012; 31 (3): 260-8.
  • 3
    Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad Saúde Pública. 2004; 20 (Supl. 2): 190-8.
  • 4
    Viacava F, Ugá MAD, Porto S, Laguardia J, da Silva Moreira R. Avaliação de Desempenho de Sistemas de Saúde: um modelo de análise. Ciênc Saúde Colet. 2012; 17 (4): 921-34.
  • 5
    Andersen RM. Revisiting the behavioral model and access to medical care: does it matter? J Health Social Behav. 1995; 36 (1): 1-10.
  • 6
    Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet. 2011; 377 (9779): 1778-97.
  • 7
    Victora CG, Aquino EML, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Maternal and child health in Brazil: progress and challenges. Lancet. 2011; 377 (9780): 1863-76.
  • 8
    Travassos C, Oliveira EXD, Viacava F. Desigualdades geográficas e sociais no acesso aos serviços de saúde no Brasil: 1998 e 2003. Ciênc Saúde Colet. 2006; 11 (4): 975-86.
  • 9
    Furtado MCDC, Braz JC, Pina JC, Mello DFD, Lima RAGD. Assessing the care of children under one year old in Primary Health Care. Rev Lat Am Enf. 2013; 21 (2): 554-61.
  • 10
    Cunha CLF, Silva RAD, Gama MEA, Costa GRC, Costa ASV, Tonia SR. O uso de serviços de atenção primária à saúde pela população infantil em um estado do nordeste brasileiro. Cad Saúde Colet. 2013; 21 (2): 115-20.
  • 11
    Cesar JA, Chrestani AD, Fantinel EJ, Gonçalves TS, Neumann NA. Saúde infantil em áreas pobres: resultados de um estudo de base populacional nos municípios de Caracol, Piauí, e Garrafão do Norte, Pará, Brasil. Cad Saúde Pública. 2009; 25 (4): 809-18.
  • 12
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: crescimento e desenvolvimento. Brasília, DF; 2012.
  • 13
    Piccini RX, Facchini LA, Tomasi E, Thumé E, da Silveira, DS, Siqueira FV, Rodrigues MA, Paniz VV, Teixeira VA. Efetividade da atenção pré-natal e de puericultura em unidades básicas de saúde do Sul e do Nordeste do Brasil. Rev Bras Saúde Matern Infant. 2007; 7 (1): 75-82.
  • 14
    Macinko J, Harris MJ. Brazil's Family Health Strategy-Delivering Community-Based Primary Care in a Universal Health System. New England J Med. 2015; 372 (23): 2177-81.
  • 15
    Facchini LA, Piccini RX, Tomasi E, Thumé E, Silveira DS, Siqueira FV, Rodrigues MA. Desempenho do PSF no Sul e no Nordeste do Brasil: avaliação institucional e epidemiológica da Atenção Básica à Saúde. Ciênc Saúde Colet. 2006; 11 (3): 669-81.
  • 16
    Facchini LA, Nunes BP, Motta JVS, Tomasi E, Silva, SM, Thumé E, et al. Insegurança alimentar no Nordeste e Sul do Brasil: magnitude, fatores associados e padrões de renda per capita para redução das iniqüidades. Cad Saúde Pública. 2014; 30 (1): 161-74.
  • 17
    Kamakura W. Socioeconomic stratification criteria and classification tools in Brazil. Rev Adm Empres. 2016; 56 (1): 55-70.
  • 18
    Caldeira AP, Oliveira RMD, Rodrigues OA. Qualidade da assistência materno-infantil em diferentes modelos de Atenção Primária. Ciênc Saúde Colet. 2010; 15 (Supl. 2): 3139-47.
  • 19
    Reis RS, Coimbra LC, da Silva AAM, dos Santos AM, Lamy ZC, Ribeiro SVO, da Silva RA. Acesso e utilização dos serviços na Estratégia Saúde da Família na perspectiva dos gestores, profissionais e usuários. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18 (11): 3321-31.
  • 20
    Alves MGM, Casotti E, Oliveira LGD, Machado MTC, Almeida PF, Corvino MPF, Marin J, Flauzino RF, Montenegro LAA. Fatores condicionantes para o acesso às equipes da Estratégia Saúde da Família no Brasil. Saúde Debate. 2014; 38 (Especial): 34-51.
  • 21
    Tomasi E, Nunes BP, Müller RDM, Thumé E, SilveiraSD, Siqueira FV, Duro SMS, Saes MO, Dilélio AS, Reis MBD, Facchini LA.Perfil de utilização de serviços de saúde por crianças de zona urbana no Brasil: estudo transversal de base nacional. Rev Bras Saúde Matern Infant. 2015; 15 (1): 81-90.
  • 22
    Dias da Costa JS, Gigante DP, Horta BL, Barros FC, Victora CG. Utilização de serviços de saúde por adultos da coorte de nascimentos de 1982 a 2004-5, Pelotas, RS. Rev Saúde Pública. 2008; 42 (Supl. 2): 51-9.
  • 23
    Dias da Costa JS, Cesar JA, Weber AP, da Silva Garcez A, Dalla Nora CR, Rower, HB, Kolling V. Características das crianças menores de cinco anos atendidas em serviços de atenção básica em dois municípios do nordeste brasileiro. Rev Bras Saúde Matern Infant. 2015: 15 (1): 33-46.
  • 24
    Marmot M, Allen J, Bell R, Bloomer E, Goldblatt P. WHO European review of social determinants of health and the health divide. Lancet. 2012; 380 (9846): 1011-29.
  • 25
    Buss PM, Pellegrini Filho A. Iniquidades em saúde no Brasil, nossa mais grave doença: comentários sobre o documento de referência e os trabalhos da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. Cad Saúde Pública. 2006; 22 (9): 2005-8.
  • 26
    Quansah E, Ohene LA, Norman L, Mireku MO, Karikari TK. Social Factors Influencing Child Health in Ghana. PloS One. 2016; 11 (1): 2-20.
  • 27
    Langellier BA, Chen J, Vargas-Bustamante A, Inkelas M, Ortega AN. Understanding health-care access and utilization disparities among Latino children in the United States. J Child Health Care. 2016; 20 (2): 133-44.
  • 28
    Travassos C, Castro MSM. Determinantes e Desigualdades Sociais no Acesso e na Utilização dos Serviços de Saúde. In: Giovanella L, Sarah E, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI. Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Parte I: Proteção Social, Políticas e Determinantes de Saúde. Fiocruz; 2012. p. 183-206.
  • 29
    Jacobs B, Ir P, Bigdeli M, Annear PL, Van Damme W. Addressing access barriers to health services: an analytical framework for selecting appropriate interventions in low-income Asian countries. Health Policy Plan. 2012; 27 (4): 288-300.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    11 Jan 2017
  • Aceito
    20 Jun 2017
Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira Rua dos Coelhos, 300. Boa Vista, 50070-550 Recife PE Brasil, Tel./Fax: +55 81 2122-4141 - Recife - PR - Brazil
E-mail: revista@imip.org.br