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Salário e Cidadania

Deve-se a Josué de Castro, o cidadão do mundo que em, suas exéquias, foi saudado pelo Ministro da Cultura da França, André Malraux, como um dos quatro nomes que pontificaram as ideias e movimentos do Século XX, o pioneirismo de ter realizado, no Brasil e na América Latina, o primeiro inquérito sobre alimentação, nutrição e condições de vida de famílias de trabalhadores de fábricas do Recife, ainda na primeira metade dos anos 1930. Mais precisamente em 1932,11 Castro J. Condições de vida das classes operárias do Recife. Recife: Imprensa Industrial; 1932. quando o país e o mundo já viviam a efervescência de tensões e conflitos políticos que, em 1938, desembocaram na Segunda Guerra Mundial e suas graves e radicais consequências para a humanidade.

Mas sem dúvida o fato potencialmente mais relevante é que o inquérito sobre as condições de vida de famílias de trabalhadores do Recife, reunindo aglomerados urbanos de uns poucos bairros proletários da capital pernambucana, publicado em reduzidos espaços burocráticos de um diário oficial do governo de Pernambuco, acabou se impondo como um estudo sucessivamente estadual, regional e nacional, passando a representar o Brasil e internacionalizando-se com a publicação de "Geografia da Fome" em 25 idiomas.22 Castro J. Geografia da Fome. 11 ed. Rio de janeiro: Editora Gryphus; 1992.

De fato, foi esta pesquisa original que, elevando-se rapidamente a patamares crescentes de importância, acabou fundamentando a própria justificativa do salário mínimo no Brasil em 1938, que extrapola o campo econômico estabelecendo um parâmetro político e social na defesa dos trabalhadores, sustentando a lógica do que pode ser definida como a primeira grande linha de uma ousada (para os padrões da época) política nacional de alimentação, nutrição, saúde coletiva e direitos humanos.

Convém ressaltar, não apenas por razões de caráter memorativo, que o inquérito sobre condições de vida de famílias trabalhadoras do Recife1 foi de fato uma ambiciosa abordagem holística, conceitualmente até revolucionária para o contexto histórico da região e do país, refletindo a realidade em que viviam, adoeciam e morriam os operários e seus familiares, avaliando os custos das moradias, da alimentação, do vestuário, dos transportes, da educação e da saúde. De fato não se pode conceber que o trabalhador, como no filme clássico de Charles Chaplin ("Tempos Modernos") seja apenas uma peça nas engrenagens de produção, se não um elemento de ligação de uma unidade familiar que demanda custos diversos e integrados, como recompensa à sua força de trabalho e sua própria condição humana. Foi uma luta histórica contra velhas resistências até que o salário mínimo no Brasil ganhasse o statusde direito de cidadania.33 Brasil. Decreto-lei n° 399, de 30 de abril de 1938. Rio de Janeiro, 30 abril 1938, 117º da Independência e 50º da República.

É claro que sua atualização periódica passa por uma reciclagem lógica e uma apreciação ética, por força mesmo das mudanças na dinâmica econômica, demográfica, política, sócio-ambiental, ética (nos vários itens contínuos e integrados da cadeia de eventos que precede, sucede e se renova nos ciclos da vida e da própria história). Mediante testemunhos, eventos e reflexões que marcaram sua vida de jovem idealista, Josué de Castro teve o descortino de ver o salário mínimo como a conquista avançada de órbitas superiores do governo e da própria sociedade em escala integral: os direitos e deveres simétricos de cidadania.

muito ilustrativo como a evolução de custos e demandas dinâmicas de uma família padrão, praticamente inquestionáveis durante dezenas e dezenas de anos, assumiram atributos para responder em instâncias dos mais diversos papéis externos e internos de cada contexto, como sinalizadores dos processos coletivos de vida econômica, cultural, política, ecológica, coparticipativa, subjetiva e até mesmo espiritual. São processos que fazem a doutrina do desenvolvimento humano, consolidada com a participação de Josué de Castro e outros pensadores internacionais na Universidade de Paris 8.

Agora mesmo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que gera periodicamente os resultados dos orçamentos familiares, tal como propôs e realizou pioneiramente Josué de Castro, acaba de publicar os dados preliminares da Pesquisa Básica de Orçamentos Familiares (POF), revelando grandes mudanças nos custos de seus componentes que se distribuem num variado espectro de valores, evidenciando as grandes alterações de itens qualitativos e quantitativos de consumo, de bens e serviços no Brasil, no período de 2017/2018.44 IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Pesquisa de Orçamentos Familiares POF 2017 - 2018. Coordenação de Trabalho e Rendimento. Rio de Janeiro; 2019.

Na verdade, o acesso a um leque limitado de bens e serviços espalhou-se ao longo do tempo e do espaço geográfico por conta de fatores externos e internos que implicam em sucessivas estratificações das camadas e funções sociais, face aos novos hábitos que se sucedem mesmo dentro de cada estrato. Assim, quando Josué de Castro descreveu o primeiro orçamento de famílias de operários recifenses, os alimentos consumiam 50% da cesta de bens e serviços, definindo-se que este seria, para fins de estimativas seguintes, o percentual a ser aplicado para futuros cálculos, representado por 12 itens alimentares e suas ponderações mensais para todo o país. Já agora, as despesas com alimentação básica decaíram substantivamente em termos relativos, sendo suplantadas pelos custos de habitação e transporte.4 O Brasil era essencialmente rural: 70-80% de sua população vivia no campo, cuidando da agricultura e da pecuária. Hoje esta parcela literalmente já se inverteu. Ademais, os doze itens da cesta alimentar tradicional não seguem a mesma ordem. Hoje, 70-80% das pessoas adultas no Brasil tem sobrepeso/obesidade, caracterizando a chamada transição nutricional, estatisticamente associada ao diabetes mellitus tipo 2 e as doenças cardiovasculares. Cada casal tinha 5 a 10 filhos como representação modal. Hoje, não se chega, em média, a dois filhos. Na composição da pirâmide populacional, agora o que mais cresce são os estratos de média e elevada idade, em um contexto de questões sociais não resolvidas, dentre elas, pobreza e exclusão, e elevados níveis de desigualdade.55 IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Pesquisa nacional por amostra de domicílios: síntese de indicadores 2015. IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento. Rio de Janeiro; 2016. O mercado de ocupação mudou, as demandas prioritárias de saúde são outras. Os alimentos "in natura" foram substituídos, em grande parte e muitas vezes, com sensíveis danos para a saúde, por produtos industrializados, como os embutidos, as gorduras saturadas, as bebidas ou sólidos açucarados ou salgados. É uma outra e, em grande parte, uma realidade epidemiologicamente perversa, controlada pelo "marketing", da indústria e comércio de alimentos e a "confortocracia" do sedentarismo.

Nesse cenário, o bloco que Josué de Castro chamou, com muita propriedade de "fome oculta", reapareceu. Este bloco, composto pelas doenças carenciais emergentes ou reemergentes, como a deficiência de vitamina D, do zinco, do selênio, do iodo, além daquelas já bem conhecidas e permanentes, como as anemias despontam ou simplesmente se mantém nos painéis de registro epidemiológico.66 UNICEF (Fundo das Nações Unidas para Infância). The State of the world's children 2019. Children, food and nutrition: Growing well in a changing world. Disponível em: https://www.unicef.org/uzbekistan/en/reports/state-worlds-children-2019
https://www.unicef.org/uzbekistan/en/rep...
Muitas vezes isso ocorre para surpresa de comitês de "experts", dos gestores de saúde pública e da sociedade civil que não raramente é a última a saber de sua ocorrência e mazelas, principalmente doenças da fome oculta.

Como um periódico cujo escopo é epidemiologia da saúde da mulher, da gestante e da criança, cumprenos não apenas resgatar mas realçar o alcance e a oportunidade desta visão daquele que foi um mais dos respeitáveis cientistas sociais do nosso país.

References

  • 1
    Castro J. Condições de vida das classes operárias do Recife. Recife: Imprensa Industrial; 1932.
  • 2
    Castro J. Geografia da Fome. 11 ed. Rio de janeiro: Editora Gryphus; 1992.
  • 3
    Brasil. Decreto-lei n° 399, de 30 de abril de 1938. Rio de Janeiro, 30 abril 1938, 117º da Independência e 50º da República.
  • 4
    IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Pesquisa de Orçamentos Familiares POF 2017 - 2018. Coordenação de Trabalho e Rendimento. Rio de Janeiro; 2019.
  • 5
    IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Pesquisa nacional por amostra de domicílios: síntese de indicadores 2015. IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento. Rio de Janeiro; 2016.
  • 6
    UNICEF (Fundo das Nações Unidas para Infância). The State of the world's children 2019. Children, food and nutrition: Growing well in a changing world. Disponível em: https://www.unicef.org/uzbekistan/en/reports/state-worlds-children-2019
    » https://www.unicef.org/uzbekistan/en/reports/state-worlds-children-2019

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019
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