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Geografia da Fome: 75 anos

Para o Brasil e para o mundo, no mês de setembro, celebrou-se um evento que, apesar da resiliência milenar de seu problema de estudo, está mudando os rumos da própria civilização, os 75 anos de um livro profético e até revolucionário, a Geografia da Fome, de Josué de Castro.11 Castro J. Geografia da fome (o dilema brasileiro: pão ou aço). 10 Ed. Rio de Janeiro: Antares Achia-mé; 1980. De fato, só agora, com três quartos de séculos passados, ganha-se a perspectiva temporal para entender a antecipação do futuro e, portanto, sua dimensão profética e, a militância apostolar de seu autor, adotando a luta contra a fome como a causa maior de sua própria vida. Neste compromisso missionário, ao lado de uma força de fé, o autor investe-se de uma cobrança apostolar (ou pelo menos, heroicamente militante): o direito universal de acesso aos alimentos básicos como um atributo fundamental de cidadania. Seria este o princípio ético da própria segurança alimentar e nutricional que o Brasil consignou na própria constituição do país, ou seja, em nossa Carta Magna.22 Brasil. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN comvistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União [DOU]. Brasília, DF, 18 set 2006; Seção 1.

Geografia da Fome foi concebido, nasceu, se consolidou e, sobretudo, se multiplicou como um livro em contínua replicação de mensagens humanas e universais, mais do que objeto de um tema médico-social, sobrepondo-se as amarras de condutas de doutrinas políticas no tempo, no espaço geográfico, de esquemas ideológicos e políticos e fundando como contracultura: o direito humano transnacional e pangeográfico, com o direito mais elementar da alimentação saudável. Tudo começa (mas não termina) quando, como médico de uma indústria, Josué de Castro observa que a doença matriz de quase todas os males do corpo era a fome. O inquérito alimentar de 700 famílias de um bairro recifense se estendia aos custos domésticos com a moradia, vestuário, educação, transporte e saúde, constituindo, assim, um esboço integral do que seriam os orçamentos familiares dos dias atuais, partindo dá observação elementar de que numa família padrão da época (1932) pai, mãe e cinco filhos constitui uma unidade de demandas irrecusáveis e universais.33 Castro J. Condições de vida das classes operárias do Recife. Departamento de Saúde Pública, Recife; 1935. E, numa perspectiva então ainda futurista, o próprio lazer é, ou seria uma necessidade básica. Chega-se assim a um custo muito aproximado do que seria um salário básico para os gastos familiares e suas demandas essenciais com a aquisição de 12 itens alimentares referentes às demandas de calorias, proteínas, vitaminas, sais minerais, (macro e micronutrientes) e suas funções isoladas e combinadas de forma harmônica e fisiologicamente apropriada.44 Andrade MC. Josué de Castro: o homem, o cientista e seu tempo. Estud Av. 1997; 11 (29): 169-94. Foi um enorme avanço, numa época em, mesmo os países ricos e desenvolvidas politica e culturalmente, se envolviam em questões ainda tão primitivas, como a fome, a insegurança alimentar e toda uma estrutura de adversidades, que podem ser enunciados nos chamados “ecossistemas” de pobreza. Trata-se de um processo sustentado pela instabilidade de emprego e renda, pelas condições precárias de moradia e saneamento, pela oferta limitada e de baixa qualidade das ações de saúde, pela cultura da pobreza e até indigência que espalha pelo mundo nichos de famílias irmanadas ou estigmatizadas pelo aparente fatalismo da miséria.

É claro que estas situações que a sociologia da pobreza chamou de “villas miséria” na América Latina, se multiplica como aglomerados urbanos ou rurais nos países de III mundo, principalmente na África Equatorial, sem que se possa entender como um fatalismo geográfico ou uma condenação racial. Com toda certeza, a herança doméstica, geração após geração, moldou o estigma falso de uma herança atávica de pobreza e indigência. A Geografia da Fome se indispôs, prontamente, contra a decorrência de uma “lei das populações”: o crescimento aritmético (2, 4, 6, 8, 10…) da oferta de alimentos, contra o crescimento geométrico (2, 4, 8, 16, 32...) da população. O desencontro dessas duas equações seria a própria raíz do problema numa visão malthusiana. E, nesta perspectica, as epidemias, as próprias “doenças naturais” e as guerras funcionariam como descartes de excessos populacionais para restaurar o equilíbrio da equação de Malthus, o fundador histórico da demografia.

Geografia da Fome evidenciou que a escassez de alimentos e seus milhões de vítimas não se trata de um evento puramente natural, sendo uma decorrência de processos humanos. Ou seja, da forma como são produzi- dos e comercialmente distribuídos os alimentos do nosso planeta, sob a lei enviesada de uma oferta e procura regidas sem nenhuma simetria de direitos e normas entre usuários, ou seja, toda a população humana. Publicado em 20 idiomas, inclusive em sânscrito, uma língua extinta, como é o caso do latim. Mas o que queremos ressaltar é a contribuição de Josué de Castro para reposicionar em outras matrizes de análise da questão da fome no Brasil. Esta mudança de tratamento, que se reafirmou e consolidou na Geopolítica da Fome, além do sucesso editorial sem precedentes, possibilitou no Brasil, a fundamentação do salário mínimo, das leis básicas da Previdência Social, da instituição da Merenda Escolar, até hoje um dos maiores programas de apoio alimentar de todo o mundo, a iodatação do sal de consumo humano para a prevenção de bócio endêmico, a rede de restaurantes da Previdência Social e, sobretudo, a criação de conselhos estaduais e municipais de segurança alimentar e nutricional.44 Andrade MC. Josué de Castro: o homem, o cientista e seu tempo. Estud Av. 1997; 11 (29): 169-94. E, talvez como conquista maior, um esforço colegiado de poderes públicos e representações da sociedade civil que possibilitou retirar nosso país do “mapa da fome”, criando um exemplo histórico utilizado pelas Nações Unidas como plataforma de referenciais para países membros da comunidade ou países pobres da África, Ásia e América Latina.55 FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations), IFAD (International Fund for Agricultural Develoment), WFP(World Food Programme). The state of food insecurity in the world 2014: Strengthening the enabling environment for food security and nutrition. Rome; 2014. [acesso 10 set 2021]. Disponível em: http://www.fao.org/3/i4030e/i4030e.pdf
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Com um louvável senso de oportunismo e de responsabilidade histórica, quando vários eventos e processos se desenvolveram no Brasil e em escala mundial como o caso da pandemia trágica do COVID-19, expandindose rapidamente para todos os continentes e para quase todos os países do Globo terrestre, o Brasil, com o decidido apoio de organizações institucionais: OXFAM Brasil, FREDERICH/EBERT/STIFTUNG Brasil e agências nacionais mais ativas do próprio país para documentar mudanças muito singulares da vida pública e da própria sociedade brasileira ao longo de tempos mais recentes. Estamos nos referindo ao documento "insegurança alimentar e COVID-19 no Brasil" que compõem a grave conjunção de fatores políticos, crise econômica, desmonte de programas do governo e rachaduras nas vigas de sustentação penosamente construídas através de 25 anos da experiência democrática.66 VIGISAN (Vigilância Segurança Alimentar e Nutricional). Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil, 2021. [acesso 10 set 2021]. Disponível em: https://pesquisassan.net.br/olheparaafome/
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E o que revelou o estado sobre a insegurança alimentar e COVID no Brasil? Em linguagem candente, como sempre foi a forma de comunicação de Josué de Castro em seus livros clássicos, a insegurança alimentar está voltando aos cenários de população do país. Assim, entre 212 milhões de patrícios quase 117 milhões convivem com algum grau de insegurança alimentar, o que representa mais de 55% de toda a população. E lembrar que há pouco mais de uma década o Brasil oferecia lições ao mundo ao sair do complicado "mapa da fome" para avançar consistentemente na vanguarda de segurança alimentar e nutricional.

Agora, com 14% da força de trabalho desativada pelo desemprego, com mais de 55% passando fome, com a pobreza no meio rural ultrapassando mais de duas vezes os patamares negativos da pobreza urbana, a insegurança alimentar restaura áreas da geografia da fome e desenha um quadro de fato obscuro e desalentador para as novas legiões de patrícios que sofrem a ameaça e rudeza da realidade documentada por Josué de Castro há 75 anos passados.66 VIGISAN (Vigilância Segurança Alimentar e Nutricional). Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil, 2021. [acesso 10 set 2021]. Disponível em: https://pesquisassan.net.br/olheparaafome/
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References

  • 1
    Castro J. Geografia da fome (o dilema brasileiro: pão ou aço). 10 Ed. Rio de Janeiro: Antares Achia-mé; 1980.
  • 2
    Brasil. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN comvistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União [DOU]. Brasília, DF, 18 set 2006; Seção 1.
  • 3
    Castro J. Condições de vida das classes operárias do Recife. Departamento de Saúde Pública, Recife; 1935.
  • 4
    Andrade MC. Josué de Castro: o homem, o cientista e seu tempo. Estud Av. 1997; 11 (29): 169-94.
  • 5
    FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations), IFAD (International Fund for Agricultural Develoment), WFP(World Food Programme). The state of food insecurity in the world 2014: Strengthening the enabling environment for food security and nutrition. Rome; 2014. [acesso 10 set 2021]. Disponível em: http://www.fao.org/3/i4030e/i4030e.pdf
    » http://www.fao.org/3/i4030e/i4030e.pdf
  • 6
    VIGISAN (Vigilância Segurança Alimentar e Nutricional). Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil, 2021. [acesso 10 set 2021]. Disponível em: https://pesquisassan.net.br/olheparaafome/
    » https://pesquisassan.net.br/olheparaafome/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021
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