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Qual papel da comunidade científica no combate à pandemia de COVID-19? Reflexões sobre fake news, revistas predatórias e políticas públicas

O Brasil foi um dos países mais afetados pela pandemia de COVID-19, com cerca de 684.262 óbitos confirmados.11 Ministério da Saúde (BR). Coronavírus Brasil. [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2022. [access in 2022 Set 5]. Available from: https://covid.saude.gov.br/
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É o segundo país com mais casos de morte pela doença, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.22 World Health Organization (WHO). WHO Coronavirus (COVID-19) Dashboard | WHO Coronavirus (COVID-19) Dashboard With Vaccination Data. Geneva: WHO. [access in 2022 Set 5]. Available from: https://covid19.who.int/
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Estima-se que quatro quintos dessas mortes poderiam ter sido prevenidas.33 Senado Federal (BR). Pesquisas apontam que 400 mil mortes poderiam ser evitadas; governistas questionam [Internet]. Brasília (DF): Senado Notícias; 26/06/2021. [access in 2022 Set 19]. Available from: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/06/24/pesquisas-apontam-que-400-mil-mortes-poderiam-ser-evitadas-governistas-questionam
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Além do elevado número total de casos e óbitos pela COVID-19, chama atenção a mortalidade materna pela doença, que não foi verificada em outros países. Antes da pandemia a razão de mortalidade materna (RMM) no país já era inaceitavelmente alta, muito acima da meta acordada em tratados internacionais -como o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável que propõe a redução da taxa de mortalidade materna em 30% em 2030. Em 2019 foi identificada uma RMM de 57,9, e após a COVID-19 em dois anos a taxa de mortalidade subiu 77%, ultrapassando 107 mortes maternas por 100.000 nascidos vivos em 2021.44 Ministério da Saúde (BR). Plataforma Integrada de Vigilância em Saúde. Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2022. [access in 2022 Set 5]. Available from: http://plataforma.saude.gov.br/mortalidade/materna
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Enquanto isso, documentos internacionais divulgavam que, apesar do maior risco de desfecho materno desfavorável, gestantes com COVID-19 não tiveram maior chance de óbito.55 Khoury R, Bernstein PS, Debolt C, Stone J, Sutton DM, Simpson LL, et al. Characteristics and outcomes of 241 births to women with severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2) infection at Five New York City Medical Centers. Obstet Gynecol. 2020 Aug; 136 (2): 273-82.

A principal hipótese para justificar esse fenômeno é a desigualdade de acesso à serviços de saúde no Brasil. Mesmo contando com um sistema de saúde público, gratuito e universal, cerca de 22% das pacientes no ciclo gravídico-puerperal que foram a óbito por COVID-19 não tiveram acesso à Unidade de Terapia Intensiva e 14% não chegaram nem a ser intubadas.55 Khoury R, Bernstein PS, Debolt C, Stone J, Sutton DM, Simpson LL, et al. Characteristics and outcomes of 241 births to women with severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2) infection at Five New York City Medical Centers. Obstet Gynecol. 2020 Aug; 136 (2): 273-82.,66 Takemoto MLS, Menezes MO, Andreucci CB, Nakamura-Pereira M, Amorim MMR, Katz L, et al. The tragedy of COVID-19 in Brazil: 124 maternal deaths and counting. Int J Gynaecol Obstet. 2020 Oct; 151 (1): 154-6. O Brasil tem dimensões continentais, e serviços terciários e de alta complexidade em saúde ainda estão muito concentrados nas capitais, deixando pacientes que vivem nos interiores vulneráveis a atrasos e falta de acesso ao atendimento adequado devido a questões logísticas e transporte. Além disso, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido subfinanciado ao longo dos anos, recebendo aporte governamental de apenas 3,8% do Produto Interno Bruto em 2019 - valor limitado atualmente pela Emenda Constitucional n° 95 (Teto dos Gastos Públicos), aprovada em 2016. Com isso, pacientes de média e baixa renda, que não têm acesso à saúde suplementar, enfrentam as consequências da superlotação e recursos materiais e humanos insuficientes.

Outro fator que foi determinante para a mortalidade brasileira pela doença ser tão alta foi a falta de políticas públicas consistentes e em tempo hábil para garantir distanciamento social, vacinas, medicamentos e recursos de alta complexidade para toda a população. O governo investiu na promoção de uma suposta “imunidade de rebanho”, e com isto estimulou o povo nas ruas, não promoveu lockdown, recomendou medicamentos sem efetividade comprovada para a COVID-19 e adotou inicialmente uma atitude antivacinas.88 Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA), Conectas. Direitos na Pandemia: Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à COVID-19 no Brasil. Boletim n.º 10; São Paulo (SP): CEPEDISA; 2021. [access in 2022 Set 21]. Available from: https://www.fsp.usp.br/site/wp-content/uploads/2018/02/Boletim_Direitos-na-Pandemia_ed_10.pdf
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Além disso, os investimentos em campanhas informativas foram mínimos, enquanto infelizmente estamos enfrentando a viralização de “fake news”, inclusive na comunidade científica. Diversos profissionais da área da saúde, sobretudo, ligados ao governo, defenderam a prescrição de medicações sem benefício comprovado, divulgando falsos efeitos adversos às vacinas e propagandeando condutas baseadas em artigos publicados em revistas predatórias e em pré-print.

Nesse contexto, estamos enfrentando uma baixa adesão à vacinação, que é uma das principais medidas para evitar mortalidade e complicações graves da COVID-19. Em abril, 14 meses após o início da vacinação no Brasil, o MS estimou mais de 18 milhões de pessoas com o esquema vacinal incompleto.99 Observatório Obstétrico (BR). [Internet]. Boletim Semanal OOBr. Instagram: @observatorioobr; 15 set 2022 [access in 2022 Set 21]. Available from: https://www.instagram.com/p/CilQPB5g2ue/?igshid=NmY1MzVkODY=.
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Dados do boletim do Observatório Obstétrico Brasileiro de 15 de setembro de 2022 mostram que apenas 37% das gestantes e puérperas vacinadas estão com o esquema completo (primeira e segunda dose ou dose única).99 Observatório Obstétrico (BR). [Internet]. Boletim Semanal OOBr. Instagram: @observatorioobr; 15 set 2022 [access in 2022 Set 21]. Available from: https://www.instagram.com/p/CilQPB5g2ue/?igshid=NmY1MzVkODY=.
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Por isso, deve ser compromisso de pesquisadores e de revistas científicas contribuir para a divulgação de informação científica de qualidade e combate às “fake news”. Acreditamos que é necessário gerar conhecimento para orientar políticas públicas e que possam ser apresentadas à população, de forma a colaborar para a superação da tragédia da pandemia de COVID-19 no nosso país.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.

References

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    » https://www.instagram.com/p/CilQPB5g2ue/?igshid=NmY1MzVkODY=

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022
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