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Dinâmica de uso de fontes de pólen por Melipona scutellaris Latreille (Hymenoptera: Apidae): uma análise comparativa com Apis mellifera L. (Hymenoptera: Apidae), no Domínio Tropical Atlântico

Harvesting dynamics of pollen sources by Melipona scutellaris Latreille (Hymenoptera: Apidae): a comparative analysis with Apis mellifera L. (Hymenoptera: Apidae) in the Atlantic Forest Domain

Resumos

O comportamento de forrageio generalista entre os meliponíneos é uma hipótese aceita, mas não testada, assim como a hipótese subsidiária de preferências florais no gênero Melipona. Aqui analisamos essas hipóteses, através de análises simultâneas e pareadas do uso de fontes de pólen por diferentes colônias de Melipona scutellaris Latreille, em diferentes localidades na área de distribuição desta espécie, no Domínio da Mata Atlântica, no nordeste do Brasil. Entre ago/04 e jan/05, amostras mensais de pólen foram coletadas à entrada de doze colônias de M. scutellaris. Em duas localidades, quatro colônias de M. scutellaris foram comparadas com quatro colônias de Apis mellifera L. As principais fontes de pólen para M. scutellaris foram flores das seguintes famílias vegetais, em ordem decrescente de importância: Myrtaceae, Mimosaceae, Anacardiaceae, Sapindaceae e Fabaceae. Fontes produtivas de pólen das famílias Asteraceae, Arecaceae e Rubiaceae foram intensamente exploradas por A. mellifera, mas praticamente descartadas por M. scutellaris. Freqüentemente, as duas espécies se sobrepuseram nas principais fontes de pólen, como as flores de Myrtaceae e Mimosaceae. Entretanto, raramente uma mesma fonte foi intensamente explorada por ambas. Em diferentes locais e períodos, as colônias de M. scutellaris apresentaram alta similaridade entre si no uso das fontes florais de pólen, formando agrupamentos (UPGMA) mais compactos e distintos de A. mellifera. Portanto, a escolha das fontes florais pelas colônias foi dependente da espécie. As comparações pareadas refutam a hipótese nula de forrageio aleatório pelas colônias e sustenta a hipótese subsidiária de seletividade de forrageio em M. scutellaris.

Competição; Mata Atlântica; nicho trófico; seletividade


Generalist foraging behavior among stingless bees is accepted but untested, as well as the subsidiary hypothesis of floral preferences in the genus Melipona. Here we analyzed those hypotheses comparing the use of floral sources of pollen, through paired analyses of pollen samples from different colonies of Melipona scutellaris Latreille, in three areas of the Atlantic Forest Domain, in Northern Brazil. From August, 2004 to January, 2005, monthly samples of pollen were collected at the entrance of twelve colonies of M. scutellaris. In two places, four colonies of M. scutellaris were compared with four colonies of africanized Apis mellifera L. The main pollen sources chosen by the colonies of M. scutellaris were flowers of the following plant families, in decreasing order of importance: Myrtaceae, Mimosaceae, Anacardiaceae, Sapindaceae, Caesalpiniaceae and Fabaceae. Productive pollen sources of Asteraceae, Arecaceae e Rubiaceae were heavily exploited by the colonies of A. mellifera and discharged by the colonies of M.scutellaris. Often, both species shared the main productive pollen sources, as the flowers of Myrtaceae and Mimosaceae. On the other hand, no pollen sources were heavily exploited altogether by both of them, as a rule. In different places and periods, the colonies of M. scutellaris presented high intra-specific similarity and they formed distinct clusters apart from A. mellifera. Therefore, the selection of pollen sources by colonies was species dependent. The paired comparisons refute the hypothesis of random flower exploitation by colonies and give support to the subsidiary hypothesis of selectivity or floral preferences by M.scutellaris.

Competition; trophic niche; selectivity


ECOLOGY, BEHAVIOR AND BIONOMICS

Dinâmica de uso de fontes de pólen por Melipona scutellaris Latreille (Hymenoptera: Apidae): uma análise comparativa com Apis mellifera L. (Hymenoptera: Apidae), no Domínio Tropical Atlântico

Harvesting dynamics of pollen sources by Melipona scutellaris Latreille (Hymenoptera: Apidae): a comparative analysis with Apis mellifera L. (Hymenoptera: Apidae) in the Atlantic Forest Domain

Mauro RamalhoI; Marília D. e SilvaI; Carlos A.L. CarvalhoII

ILab. Ecologia da Polinização - ECOPOL - Depto. Botânica - IBIO/UFBA. Salvador, BA, ramauro@ufba.br, dantasm@ufba.br

IILab. Entomologia - LABENT – Depto. Fitotecnia - AGR/UFBA. Cruz das Almas, BA, bolsista CNPq, calfredo@ufba.br

RESUMO

O comportamento de forrageio generalista entre os meliponíneos é uma hipótese aceita, mas não testada, assim como a hipótese subsidiária de preferências florais no gênero Melipona. Aqui analisamos essas hipóteses, através de análises simultâneas e pareadas do uso de fontes de pólen por diferentes colônias de Melipona scutellaris Latreille, em diferentes localidades na área de distribuição desta espécie, no Domínio da Mata Atlântica, no nordeste do Brasil. Entre ago/04 e jan/05, amostras mensais de pólen foram coletadas à entrada de doze colônias de M. scutellaris. Em duas localidades, quatro colônias de M. scutellaris foram comparadas com quatro colônias de Apis mellifera L. As principais fontes de pólen para M. scutellaris foram flores das seguintes famílias vegetais, em ordem decrescente de importância: Myrtaceae, Mimosaceae, Anacardiaceae, Sapindaceae e Fabaceae. Fontes produtivas de pólen das famílias Asteraceae, Arecaceae e Rubiaceae foram intensamente exploradas por A. mellifera, mas praticamente descartadas por M. scutellaris. Freqüentemente, as duas espécies se sobrepuseram nas principais fontes de pólen, como as flores de Myrtaceae e Mimosaceae. Entretanto, raramente uma mesma fonte foi intensamente explorada por ambas. Em diferentes locais e períodos, as colônias de M. scutellaris apresentaram alta similaridade entre si no uso das fontes florais de pólen, formando agrupamentos (UPGMA) mais compactos e distintos de A. mellifera. Portanto, a escolha das fontes florais pelas colônias foi dependente da espécie. As comparações pareadas refutam a hipótese nula de forrageio aleatório pelas colônias e sustenta a hipótese subsidiária de seletividade de forrageio em M. scutellaris.

Palavras-chave: Competição, Mata Atlântica, nicho trófico, seletividade

ABSTRACT

Generalist foraging behavior among stingless bees is accepted but untested, as well as the subsidiary hypothesis of floral preferences in the genus Melipona. Here we analyzed those hypotheses comparing the use of floral sources of pollen, through paired analyses of pollen samples from different colonies of Melipona scutellaris Latreille, in three areas of the Atlantic Forest Domain, in Northern Brazil. From August, 2004 to January, 2005, monthly samples of pollen were collected at the entrance of twelve colonies of M. scutellaris. In two places, four colonies of M. scutellaris were compared with four colonies of africanized Apis mellifera L. The main pollen sources chosen by the colonies of M. scutellaris were flowers of the following plant families, in decreasing order of importance: Myrtaceae, Mimosaceae, Anacardiaceae, Sapindaceae, Caesalpiniaceae and Fabaceae. Productive pollen sources of Asteraceae, Arecaceae e Rubiaceae were heavily exploited by the colonies of A. mellifera and discharged by the colonies of M.scutellaris. Often, both species shared the main productive pollen sources, as the flowers of Myrtaceae and Mimosaceae. On the other hand, no pollen sources were heavily exploited altogether by both of them, as a rule. In different places and periods, the colonies of M. scutellaris presented high intra-specific similarity and they formed distinct clusters apart from A. mellifera. Therefore, the selection of pollen sources by colonies was species dependent. The paired comparisons refute the hypothesis of random flower exploitation by colonies and give support to the subsidiary hypothesis of selectivity or floral preferences by M.scutellaris.

Key words: Competition, trophic niche, selectivity

Freqüentemente, as abelhas sociais Meliponina (Apidae) são dominantes nas flores do dossel das florestas tropicais úmidas, influenciando diretamente a produção de frutos e sementes e, portanto, a regeneração natural (Roubik 1993). Como têm colônias populosas e perenes, precisam explorar um amplo espectro de fontes florais ao longo do ano (Michener 1979), daí serem consideradas generalistas. Entretanto, parece ser maior do que o esperado a exploração intensiva de copas com floradas em massa, no dossel da floresta (Ramalho 2004), particularmente, entre as espécies com colônias muito populosas.

De maneira geral, a restrição básica da maioria dos estudos sobre Meliponina que discutem o grau de generalismo alimentar está na dificuldade de se estabelecerem bases quantitativas, tais como: 1) medidas da disponibilidade de fontes de pólen e néctar no ambiente; 2) comparações pareadas sobre o uso das fontes florais por diferentes espécies em diferentes condições ambientais, entre outras. No primeiro caso, medidas diretas da disponibilidade são virtualmente inviáveis em experimentos naturais em campo. No segundo caso, há expectativa de que se possam caracterizar níveis de generalização quando espécies diferentes ficam expostas a condições naturais similares.

As relações dos Meliponina com as flores podem ser analisadas de maneira indireta e prática através da análise polínica do alimento transportado pelas campeiras para as colônias. Essa abordagem permite estimar o espectro de fontes florais e sua atratividade relativa sobre as colônias, em dado período ou hábitat (Ramalho et al. 1991, Imperatriz-Fonseca et al. 1993). O acúmulo desse tipo de dado levou aos argumentos em prol da existência de seletividade de fontes florais no gênero Melipona Illiger (p.ex., Ramalho et al. 1989, 1991). Os dados gerados com essa técnica sofrem das mesmas restrições acima apontadas.

Questões relativas ao balanço entre custo e benefício do forrageio, particularmente, aspectos da economia colonial (tamanho versus população de campeiras) e da morfologia funcional das campeiras também dão suporte indireto à premissa de preferências florais. Assim, por exemplo, as abelhas do gênero Melipona se diferenciam de outros Meliponina e da maioria dos Apidae (inclusive Apis mellifera L.), pela capacidade de extração de pólen por vibração da musculatura de vôo, comportamento muito eficiente na coleta de pólen pulverulento e abundante, principalmente de anteras poricidas, mas também comum em muitas flores com anteras não-poricidas (Buchmann 1983, Roubik 1989, Endress 1996).

Neste estudo, compara-se o espectro de fontes florais usadas por colônias de Melipona scutellaris Latreille na sua área original de distribuição, no norte do Domínio Tropical Atlântico. O objetivo básico foi testar a hipótese de forrageio não-generalizado, a partir da análise pareada da alocação de fontes de pólen por várias colônias, em diferentes ambientes e momentos. Para a discussão foram usadas como referência amostras pareadas de colônias da abelha africanizada A. mellifera. Assumiu-se a premissa de que esta espécie é um generalista extremo (Roubik 1989), com mecanismos coloniais eficientes de monitoramento que levam à exploração mais intensa das fontes florais mais produtivas do ambiente (Seeley 1995). A capacidade de se adaptar a diferentes tipos de hábitats e de explorar de maneira plástica pólen e néctar de amplo espectro de flores de famílias vegetais não relacionadas (polilectia ou politrofismo), além de recursos extra-florais, fazem desse híbrido um generalista extremo e, assim, uma medida de referência da ecologia de outras espécies de abelhas sociais nas Américas, em particular o grupo Meliponina.

Aqui, a seletividade ou preferência floral é analisada apenas como uma hipótese subsidiária à hipótese de forrageio não generalizado. Na ausência de seletividade, assumiu-se que as colônias de M. scutellaris e A. mellifera deveriam explorar as fontes florais de maneira independente da variável categórica espécie (hipótese nula): os agrupamentos das colônias deveriam se formar aleatoriamente, quando expostas às condições similares de oferta de fontes florais.

Material e Métodos

Conhecida popularmente como uruçu, M. scutellaris (Ms) tem distribuição restrita às áreas florestadas (Batista et al. 2003, Ramalho & Batista 2005) da porção norte do Domínio Tropical Atlântico (sensu Ab'Saber 2003). Este estudo foi realizado em três locais que distam entre si cerca de 100Km, dentro desta área de distribuição original da espécie, na Bahia: Campus da Universidade Federal da Bahia-UFBA, em Salvador (12º58'59'S, 38º31'19'W), Campus da Escola de Agronomia-UFBA em Cruz das Almas (12º40'S, 39º06'W) e Campus da Universidade Estadual da Bahia (UNEB), em Alagoinhas (12º08'S, 38º26'W). Esta sub-região abrange a Floresta Semi-Decídua, nas áreas mais interiores, e a Floresta Pluvial Perenifólia na Costa Atlântica.

Foram feitas amostragens de pólen em doze colônias de Ms, quatro em cada uma das três localidades, no período de maior floração regional. Entre agosto de 2004 e janeiro de 2005, a cada mês, as campeiras de uruçu que transportavam pólen foram capturadas com rede entomológica à entrada das colônias. Durante dois dias consecutivos, a cada hora, entre 6:00 e 17:00h, a entrada de cada ninho era fechada com um bastão, temporariamente, até a coleta de 10 operárias com pólen. As cargas polínicas foram extraídas das corbículas de cada campeira, que era em seguida liberada. As amostras de cada colônia foram agrupadas por local. Por conta de restrições logísticas (distâncias entre os três locais de amostragem) e chuvas no período, não foi possível obter amostras pareadas em outubro.

Para estimar, indiretamente, a relação entre oferta e uso de fontes florais por Ms, dados pareados foram obtidos sobre as fontes de pólen exploradas pela abelha africanizada, híbrido feral de Apis mellifera scutellata L. (Am). Durante o mesmo período, (entre as 6:00h e 17:00h) em Cruz das Almas e Alagoinhas, foram feitas amostras de pólen de Am, com coletores de pólen colocados à entrada de quatro colônias. Nas duas localidades, as colônias das duas espécies foram dispostas em uma pequena área (< 30 m2), de modo que as suas áreas de ação de forrageio ficassem expostas à ampla sobreposição espacial, aumentando as chances de que as campeiras de ambas as espécies tivessem acesso ao mesmo conjunto de floradas.

Todas as amostras de pólen foram fixadas em ácido acético glacial por no mínimo 1h. A seguir foram montadas em lâminas para microscopia óptica, separadamente, para determinação dos tipos polínicos. As cargas de pólen foram contadas e identificadas individualmente. Os resultados foram lançados em planilhas como proporção de cargas de pólen, de diferentes tipos polínicos, identificadas por amostra. A relação das fontes polínicas e a discussão sobre a dinâmica de uso de fontes específicas pelas duas espécies de abelhas serão apresentadas em outro artigo (M.D. Silva et al. no prelo).

Foram geradas matrizes de dissimilaridade entre as colônias, comparando a proporção de cada tipo polínico, com o índice Bray Curtis. Para o agrupamento aplicou-se a técnica UPGMA sobre essa matriz, com o programa Multivariate Statistical Package versão 3.1 (MVSP). Na UPGMA, o objeto (no caso, colônia) é vinculado ao agrupamento com o qual tem a menor distância (maior similaridade) média e indica se um conjunto de elementos (colônias) pode ser organizado em subgrupos distintos. O teste ANOSIM (análise de similaridade) Two-Way (software PRIMER v.5.0) foi usado na análise da matriz global de similaridade, de cada localidade, ao longo do período total de amostragem (três meses e comparação entre 3 x 8 colônias): 1) para testar o nível de significância das diferenças entre todos os grupos de colônias de Ms e Am; isto é, se o fator espécie teve influência sobre a formação dos agrupamentos; 2) para testar, simultaneamente, a robustez dos grupos ao longo do tempo; isto é, se o fator tempo também valida todos grupos formados por Ms. Na ANOSIM, "p" indica a probabilidade de que a diferença observada seja devida ao acaso. Entretanto, a interpretação de "p" não deve ser dissociada do valor de "R", que depende do tamanho da amostra (número de elementos nos agrupamentos). "R" descreve a homogeneidade dentro de cada grupo, comparando a distância (similaridade) média observada (ponderada pela relação entre o número de colônias em cada grupo e o número total de colônias) com valores de distância esperados ao acaso. Valores positivos de "R" indicam maior homogeneidade no grupo do que ao acaso. Em particular, quando o tamanho da amostra não é grande (como neste estudo de caso), os valores significativos de "P" podem ser interpretados com segurança apenas quando "R" também é alto (McCune et al. 2002). Em estudos ecológicos, valores ao redor de 0,1 são muito comuns e valores acima de 0,3 são considerados muito altos (quando todos os elementos são iguais num grupo, R = 1).

Resultados e Discussão

O número total de tipos polínicos e, portanto, de fontes de pólen exploradas por Ms variou de maneira expressiva entre as três localidades (Tabela 1). Ao contrário, a variação de um mês para outro foi relativamente pequena em uma mesma localidade, a despeito da dinâmica temporal das floradas, como se pode inferir pela relação entre total de tipos polínicos no conjunto de amostras e tipos polínicos por amostra (por mês). Ou seja, as colônias ficaram efetivamente expostas a variações na oferta de floradas. Esses resultados são válidos para as comparações e para caracterizar o padrão geral de alocação das fontes florais pelas colônias, mas tende a subestimar o espectro total de flores visitadas, pois fontes efêmeras (floração de poucos dias), pouco atrativas ou menos produtivas têm menos chances de serem percebidas em amostras de curta duração e a intervalos mensais.

Tanto Ms como Am exploraram mais intensamente o pólen de poucas fontes florais, embora várias fossem visitadas a cada dia e a cada mês (Tabela 1). As campeiras de Ms coletaram mais pólen nas flores das seguintes famílias: Myrtaceae, Mimosaceae, Anacardiaceae, Sapindaceae e Fabaceae, em ordem decrescente de importância e de freqüência nas três localidades (Salvador, Alagoinhas e Cruz das Almas). Nas duas localidades comparadas, fontes de pólen das famílias Asteraceae e Rubiaceae foram intensamente exploradas por Am, mas praticamente descartadas por Ms. Por outro lado, a família Myrtaceae também foi intensivamente visitada por Am.

O hábito generalista é considerado uma necessidade básica e, portanto, aceito como padrão entre essas abelhas eusociais da família Apidae, com grandes colônias perenes, altas taxas de produção de prole, que precisam de muito alimento, ao longo do ano inteiro. Entretanto, com freqüência, tanto em Meliponina como em Am tem se constatado maior concentração da atividade de forrageio de pólen e néctar em poucas fontes florais (Cortopassi-Laurino & Ramalho 1982; Ramalho et al. 1989, 1990). Essa tendência convergente, muito provavelmente resulta da conjunção entre constância floral das campeiras, restrições econômicas do forrageio com ponto central fixo e troca de informações sobre as fontes florais no interior das colônias. Pelo menos, a conjunção dessas variáveis deve ser condição sine qua non para que a seletividade (ou especialização comportamental) se expresse de maneira ativa no nível de colônias tão populosas (p.ex., Tabela 1). A redução sazonal na oferta de floradas apareceria como fator secundário e passivo, especialmente nos ambientes tropicais úmidos e com alta diversidade florística, como a Mata Atlântica.

Decisões econômicas podem levar as campeiras a exibir constância floral ou "especialização temporária". A fidelidade floral é um comportamento freqüentemente observado entre as campeiras de Meliponina (Ramalho et al. 1994, 1998), inclusive M. scutellaris (Silva & Schlindwein 2003). Também é um comportamento dominante entre as campeiras de Am (Ramalho et al. 1991, Seeley 1995), espécie reconhecida como um generalista extremo (Roubik 1989).

Campeiras de Ms atraem outros indivíduos para fontes produtivas de alimento com movimentos rápidos e contatos físicos (jostling run) na colônia. Embora os meios usados para indicar direção e distância ainda sejam controvertidos (Hrncir et al. 2000), o argumento de que essa comunicação é eficiente o suficiente para levar à rápida concentração da atividade de forrageio das colônias em poucas fontes produtivas é sustentado pelo padrão aqui observado (Tabela 1).

Vários estudos prévios, sob condições naturais, no Domínio Tropical Atlântico também baseados em análises polínicas, detectaram que colônias de diferentes espécies de Melipona utilizavam com freqüência recursos florais de árvores de Myrtaceae e Mimosaceae (Kleinert-Giovannini & Imperatriz-Fonseca 1987, Guibu et al. 1988, Ramalho et al. 1989). Dado o número de réplicas e a escala espacial, o presente estudo dá forte sustentação a essa tendência também em Ms.

Ao contrário de Am, as espécies de Melipona apresentam habilidade de extração do pólen das anteras por vibração da musculatura de vôo. Este comportamento pode ser observado tanto em flores com anteras poricidas (especializadas para o buzz pollination por abelhas) como não poricidas (Buchmann 1983, Roubik 1989), desde que o pólen seja abundante e pulverulento, como em várias espécies de Myrtaceae, Mimosaceae, Melastomataceae, Solanaceae, além do gênero Cassia de Casealpiniaceae (p. ex. Endres 1996). Não surpreende que essas famílias apareçam com freqüência entre as fontes mais exploradas por espécies de Melipona, inclusive M. scutellaris (Tabela 1; Carvalho et al. 2001, Silva & Schlindwein 2003).

Decisões econômicas individuais durante o forrageio aliadas à dinâmica de processamento central de informações nas colônias de A. mellifera têm sido usados para explicar respostas rápidas às variações na qualidade relativa das fontes florais, com a concentração da força de trabalho colonial nas floradas mais produtivas, a cada momento (Seeley 1995). Se esse é um padrão de forrageio colonial, então várias fontes economicamente vantajosas para Am não devem ser, necessariamente, as mais satisfatórias para Ms, e vice-versa: a sobreposição inter-específica foi muito freqüente nas floradas produtivas, mas raramente as mesmas flores apareceram como fontes principais de pólen para ambas as espécies (Tabela 1; M.D. Silva et al. no prelo).

A maioria dos estudos precedentes no Domínio Tropical Atlântico detectou uso de muitas fontes em comum por colônias de Meliponina e Am (Imperatriz-Fonseca et al. 1987; Ramalho et al. 1990, 1991), porém, deveria ser destacado que a sobreposição talvez seja bem mais previsível nas floradas produtivas, onde as chances de encontro estão potencializadas e as interações relaxadas.

Retomando a premissa de que Am explora as fontes mais produtivas, o fato de o pólen das flores de Asteraceae e Rubiaceae praticamente não ter sido explorado pelas colônias de Ms requer explicação particular. A interferência direta nas flores não oferece explicação geral, porque, como mencionado acima, as principais diferenças no forrageio de pólen entre as colônias de Ms e Am decorreram de variações na intensidade de uso de fontes efetivamente compartilhadas (Tabela 1, M.D. Silva et al. no prelo). A priori também pode ser descartada a hipótese de acaso no encontro do recurso, pela natureza conspícua dessas floradas produtivas.

Ms e Am são abelhas robustas, com tamanhos similares, capazes de forragear, efetivamente, num raio de cerca de 2 km ao redor do ninho (Roubik & Aluja 1983, VanNieuwtadt & Iraheta 1996, Araújo et al. 2004). Porém, as duas espécies têm populações coloniais específicas muito distintas: as colônias de Ms são freqüentemente pouco populosas (< 1000 indivíduos, em geral) em comparação com Am (> 10.000 indivíduos). Como nesse delineamento as colônias de Ms e Am foram intencionalmente colocadas próximas umas das outras, as áreas de forrageio ficaram fortemente sobrepostas, com a diferença de que o esquadrinhamento seria feito com alta resolução por uma das espécies (muitas campeiras nas colônias de Am) e com baixa resolução pela outra (poucas campeiras em Ms). Quais os resultados esperados desse delineamento experimental?

A premissa básica é que as colônias de Ms deveriam se diferenciar mais entre si ou pelo menos apresentar valores médios de similaridade mais baixos do que as colônias de Am, na ausência de fatores espécie-específicos desencadeadores de seletividade. Isso seria esperado porque, em intervalos curtos de tempo (dias), as oportunidades de escolha de cada colônia de Ms recairiam sobre um subconjunto menor de fontes florais, devido à baixa resolução de forrageio na grande área de ação: assumindo o encontro aleatório das fontes pelas campeiras e concentração espacial da força de trabalho das colônias nas fontes produtivas. Alternativamente, se as colônias de Am esquadrinham com mais detalhe a área sobreposta de forrageio, também era de se esperar que, ocasionalmente, algumas colônias de Am formassem agrupamentos mais estreitos com Ms, na ausência de seletividade. Ambas as previsões acima não foram confirmadas (Figs. 1, 2).



Para avaliar a robustez dos agrupamentos formados durante o período total de amostragem, aplicou-se o teste de similaridade (ANOSIM), que gerou 999 permutações. As colônias de Ms mantiveram-se como grupo mais similar entre si do que com as colônias de Am, tanto em Alagoinhas (R = 0,997; P = 0,001) como em Cruz das Almas (R = 0,983; P = 0,001).

Adotando o mínimo de três colônias diferentes (das quatro comparadas de cada espécie, a cada período) para caracterizar um agrupamento, verifica-se que com freqüência, os agrupamentos de Ms podem ser delimitados pela linha de corte abaixo de 0,4 (acima de 0,6 de similaridade) e de Am pela linha acima de 0,5 (similaridade abaixo de 0,5). Ou seja, as colônias de Ms também se mantiveram como grupos mais compactos do que as colônias de Am, nas duas localidades (Alagoinhas e Cruz das Almas, Figs. 1 e 2). Contrariando, portanto, os resultados esperados das premissas de forrageio aleatório e com menor resolução na área de ação colonial por parte de Ms.

Quando se observa o período total de amostragem (Fig. 3), os agrupamentos parecem apenas refletir as tendências de curto prazo (mensais). Entretanto, deve ser destacado o agrupamento temporal: vias de regra, as colônias de uma mesma espécie se mantiveram mais similares entre si, a cada momento. Como conseqüência, tanto os grupos formados por Ms como os grupos formados por Am também se mantiveram consistentes no tempo, isto é, durante o período total de amostragem, em Alagoinhas (R = 0,807, P = 0,001) e em Cruz das Almas (R = 0,795; P = 0,001). Isso significa que as colônias de Ms responderam de maneira mais similar à dinâmica temporal na oferta de floradas.


Os resultados gerais das comparações pareadas entre Ms e Am refutam a hipótese nula de forrageio aleatório pelas colônias e sustentam a hipótese de que o padrão de escolha das fontes de pólen é espécie dependente. Os agrupamentos mais estreitos entre as colônias de Ms combinados às particularidades de algumas das fontes de pólen mais exploradas levam ao argumento de que certas características morfo-funcionais das campeiras influenciam a seletividade, destacando-se a habilidade de buzz-pollination em flores de várias espécies de Myrtaceae, Mimosaceae, entre outras.

A concentração da atividade de forrageio em recursos produtivos espacialmente concentrados e discretos (copas floridas), por si só, aparece como provável desencadeador da diferenciação entre as colônias de Ms e Am, se há centenas de fontes acessíveis na área de ação colonial ao longo do ano: centenas de espécies de árvores/ha de Mata Atlântica, por exemplo (Guedes et al. 2005). Entretanto, evidentemente, na ausência de seletividade, esse argumento continuaria sendo inadequado para explicar porque as diferenças em diferentes locais e períodos mantêm-se maiores entre as duas espécies do que entre as colônias de mesma espécie.

Agradecimentos

Ao Professor Luís H. Figueroa por ter disponibilizado colônias e pelo apoio durante as coletas no campus da UNEB, em Alagoinhas. À Fundação de Apoio à Pesquisa da Bahia (Fapesb) pelo auxílio regular ao projeto de mestrado.

Received 25/V/06. Accepted 29/VIII/06.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2007
  • Data do Fascículo
    Fev 2007

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2006
  • Aceito
    29 Ago 2006
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