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Subjetividade e mundo da vida

Subjectivity and life-world

O presente número da Civitas procura, de certa maneira, amortizar uma dívida com uma escola interpretativa muito modestamente incorporada ao debate e à pesquisa sociológica brasileira, a despeito de ser uma referência para importantes pesquisadores das ciências sociais, mais da antropologia e menos na sociologia. Referimo-nos aqui explicitamente ao legado da sociologia influenciada pela fenomenologia, de uma maneira geral, e à obra de Alfred Schutz, de forma específica. Trata-se de um autor e de uma abordagem teórica que têm se mantido ofuscados por diversas outras escolas teóricas concorrentes, como os vários tipos de estruturalismo, pós-estruturalismo, teoria crítica e teoria sistêmica, dentre outras, todas elas bastante mais influentes na sociologia brasileira. Esta condição de marginalidade está evidenciada, por exemplo, no fato de haver uma única coletânea de textos de Schutz disponível em português e praticamente inexistir literatura secundária explorando aspectos de sua sociologia.

Os textos aqui publicados se dispensaram da tarefa de apresentar Alfred Schutz ao leitor brasileiro, pois desnecessário, ou de fazer uma “arqueologia” do seu pensamento. Ao contrário, tratou-se aqui, em boa medida, de explorar a versatilidade que a abordagem teórica proposta por Schutz e a fenomenologia possuem para investigar temas contemporâneos dos mais relevantes, como também para orientar teórica e epistemologicamente pesquisas empíricas na sociologia. Desta maneira, os autores deste número demonstram estarmos diante de uma abordagem que muito ainda poderá contribuir para a compreensão de problemas sociais os mais diversos. Com exceção de um autor brasileiro, todas as demais contribuições são de autores da Alemanha, Estados Unidos, Japão e Argentina, precisamente onde a aproximação entre teoria sociológica e fenomenologia tem se mostrado mais presente e promissora, explorando sobretudo a relação entre subjetividade e mundo da vida.

Uma relação específica entre subjetividade e o conceito de mundo da vida foi estabelecida na interface das ciências sociais e fenomenologia, na qual os artigos aqui reunidos possuem sua orientação teórica. Foi sobretudo Alfred Schutz quem estabeleceu o conceito de um mundo da vida centrado na subjetividade, em uma adaptação sociológica do conceito de mundo da vida de Edmund Husserl. Schutz define o “mundo da vida cotidiana” como a realidade experienciada na atitude natural pelo adulto alerta, que age nele e sobre ele entre seus semelhantes. A “atitude natural” é o estado de consciência no qual aceitamos a “realidade da vida cotidiana” como dada. Em razão de esta ser governada por um “motivo pragmático”, o mundo da vida cotidiana é algo que temos que modificar pelas nossas ações ou que modifica nossas ações (Alfred Schutz). O mundo da vida cotidiana inclui tanto o stratum do significado cultural, que torna objetos físicos em objetos da experiência ingênua, quanto o mundo da vida social. Além disso, o mundo da vida, no uso que Schutz faz do termo, envolve bem mais que a realidade cotidiana. Nós, com frequência caímos no sono e abandonamos a atitude natural a fim de imaginar mundos fictícios e fantasias. Ademais, somos capazes de transcender a cotidianidade por meio de símbolos e, em um caso especial, somos capazes conscientemente de modificar nossa atitude natural e nos voltar para diferentes esferas da realidade. Schutz compreende a ideia do mundo da vida de maneira tão ampla que inclui todas as modificações de atitude e vigilância, em outras palavras, toda tensão na consciência do adulto normal (Schutz e Luckmann). O mundo da vida deve necessariamente ser visto como um mundo pré-teórico da experiência; mundo da vida descreve um certo stratum da experiência humana que antecede o mundo sócio-histórico com suas estruturas invariantes essenciais, que existem em todos os atos da consciência humana (Thomas Luckmann). Edmund Husserl, de quem Schutz adota uma versão modificada do conceito de mundo da vida, descobre uma estrutura geral que pertence ao mundo da vida em todas suas relatividades, em que todo ser relativo está vinculado a esta estrutura geral que, por seu lado, não é relativo.

Os artigos que compõem este número possuem como foco específico a investigação da interface de fenomenologia e ciências sociais no que refere à inter-relação de subjetividade e mundo da vida. Thomas Luckmann considera estas duas disciplinas como diferentes na medida em que se considera suas orientações metodológicas. Fenomenologia se concentra nos princípios gerais da constituição subjetiva do mundo; as ciências sociais analisam a construção sócio-histórica de fenômenos sociais concretos do mundo empírico. O objetivo de Luckmann é combinar as duas disciplinas em uma “ação paralela”. Lester Embree parte das reflexões de Husserl sobre psicologia fenomenológica e as utiliza para explicar os fundamentos das ciências culturais. Além disso, vários artigos usam a abordagem teórica conectada à noção de subjetividade e mundo da vida relacionados a considerações fenomenológicas e sócio-teóricas aplicadas, tal como a “origem da política” (Ilja Srubar), “desigualdade” (Hisashi Nasu) ou “raça” (Michael Barber).

A flexibilidade da abordagem teórica da fenomenologia schutziana é inegável. Sua potencialidade para dar conta da construção de fenômenos sociais tais como o poder, a desigualdade e a violência, entre outros, fica clara no caso de alguns dos trabalhos reunidos neste número da Civitas. Tal é o caso de Power and powerlessness. Ali, o autor coloca em evidência o déficit existente na reflexão sociológica sobre a temática do poder e ressalta os benefícios que envolvem a adoção da teoria das relevâncias de matriz schutziana para analisar as relações de poder. Em seu artigo, Goettlich elabora uma análise detalhada da distinção entre relevâncias intrínsecas e relevâncias impostas, iluminando de modo claro e preciso os elementos-chave desta teoria, muitas vezes ignorada pela análise sociológica contemporânea. O autor demonstra que a aplicação dos conceitos schutzianos – com as revisões necessárias – pode resultar proveitosa para as ciências sociais no que se refere à temática do poder. Em particular a diferenciação entre os diversos tipos de relevâncias fornece um instrumento de grande utilidade para a investigação e se mostra de enorme valor heurístico para estas disciplinas.

No mesmo sentido se apresenta o trabalho Fenomenologia do poder. Ali, Dreher explora as diferentes concepções de poder no pensamento social e a dificuldade de encontrar uma definição unívoca sobre esse fenômeno. Partindo de um roteiro do que pode se denominar um “mapa conceitual” das formas de como se refletiu sobre o poder, o autor se propõe elaborar a especificidade de uma fenomenologia do poder. Baseando-se fundamentalmente nas contribuições de Alfred Schutz, mas também nas de Peter L. Berger e Thomas Luckmann, o autor explora não somente a potencialidade de estabelecer um diálogo teórico com o trabalho de Schutz, como também complexifica e redefine algumas noções próprias de seu pensamento. A fim de descrever as características fundamentais do ponto de vista fenomenológico em relação ao poder, o autor concentra sua análise na conexão entre a subjetividade do ator individual e a sociedade. Desta forma, qualquer análise da constituição do poder e das relações de poder requer uma posição teórica que reflita em detalhe o indivíduo em tensão com o coletivo e a sociedade.

A importância destes artigos reside em que ambos lançam por terra a suposta impossibilidade do pensamento fenomenológico – adjudicada pela literatura sociológica contemporânea –, para tratar de modo analítico com fenômenos como poder e desigualdade. Em oposição àquelas perspectivas que consideram as reflexões fenomenológicas como não-políticas, estes artigos são prova suficiente de que não apenas a reflexão em torno a este tópico está presente no pensamento fenomenológico, como também a tradição fenomenológica constitui uma fonte analítica que aporta à temática novos elementos não explorados pelas definições estabelecidas acerca do poder. O tema da consciência subjetiva do ator individual e seu mundo da vida constituem, neste sentido, noções bastante proveitosas para a análise das manifestações concretas de desigualdade, dominação e exploração.

A potencialidade que envolve o estabelecimento do diálogo teórico com a reflexão fenomenológica também se mostra evidente no artigo La consciência coletiva como “conjunto de fenómenos”. Neste artigo, Belvedere explora a intuição de Edward Tyriakian segundo o qual, a despeito de seu positivismo, Durkheim mostra uma tácita afinidade com a fenomenologia. O autor afirma que há em Durkheim uma fenomenologia embrionária, e para demonstrá-lo propõe-se a explicar a “profunda y programática convergencia entre Durkheim y Husserl”. Este sugestivo vínculo é explorado de modo escalonado pelo autor, defendendo mais que uma inspiração e uma afinidade temática e metodológica com a fenomenologia, a existência de um incipiente programa fenomenológico na obra do sociólogo francês.

Já o artigo de Silvana Figueroa-Dreher, intitulado Material musical como acervo de conocimiento, explora de maneira bastante original a possibilidade de compreensão sociológica do complexo processo de improvisação musical. O empreendimento aqui é realizado ao lançar mão da noção de estoque de conhecimento – elemento fundamental para a compreensão de qualquer interpretação subjetiva da realidade, bem como da ação individual e de grupos. Ao analisar especificamente o caso da improvisação no free jazz, a autora sustenta que o que poderia parecer a um observador (ou ouvinte?) desatento como sendo aleatório na execução deste estilo musical, pode ser melhor compreendido a partir da noção de material musical, que está sedimentado precisamente na experiência anterior dos musicistas.

Experiência ocupa também no artigo Sujeito, sociedade e linguagem, de Marcos Fanton, um lugar central na análise, ao explicitar os fundamentos teóricos da pesquisa com narrativas biográficas, que tem na sociologia de Alfred Schutz uma referência fundamental, ainda que não exclusiva. Neste sentido, o artigo evidencia a versatilidade da obra de Schutz como base epistemológica indispensável para a pesquisa empírica que assume como tarefa explorar a perspectiva subjetiva dos atores para a compreensão de fenômenos sociais.

Todas estas reflexões dão conta da plasticidade da abordagem fenomenológica, mostrando não apenas a ampla variedade de fenômenos sociais que podem ser investigados a partir desta perspectiva, como também a estrutura dialogal de seu pensamento. Neste sentido, a fenomenologia se constitui não apenas em um interlocutor válido, mas também em uma referência obrigatória para qualquer indagação no âmbito das ciências sociais. Os artigos aqui reunidos deverão fornecer aos estudantes e pesquisadores das ciências sociais, em especial da sociologia, elementos adicionais capazes de sustentar esta tese.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2011
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