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Fenomenologia e Verstehen: Alfred Schutz e Hannah Arendt sobre raça1 1 Traduzido do original em inglês por Melissa de Mattos Pimenta.

Phenomenology and Verstehen: Alfred Schutz and Hannah Arendt on race

Introdução: convergências

Alfred Schutz e Hannah Arendt tinham muito em comum. Ambos eram judeus refugiados do Nazismo nos Estados Unidos, Schutz tendo chegado em 1939 e Arendt em 1941. Ambos, evidentemente, possuíam uma formação em filosofia e teoria social e política na tradição continental fortemente influenciada por seus mentores discordantes: Edmund Husserl acima de todos para Schutz e Martin Heidegger e Karl Jaspers para Arendt. Ainda mais interessante, no final dos anos 1950, cada um abordou em extensos estudos a questão das relações raciais entre negros e brancos nos Estados Unidos. Apesar dessas convergências, as posições que esses autores tomaram acerca desse tema parecem quase completamente opostas.

O artigo “Reflexões sobre Little Rock” de Arendt, escrito em 1958 e publicado na revista Dissent em 1959 (Arendt, 1959aARENDT, Hannah. Reflections on Little Rock. Dissent, v. 6, n. 1, Inverno 1959a., p. 50, 53, 55), recomenda que o governo federal não obrigue a integração das escolas no sul dos Estados Unidos, enquanto “A Igualdade e a Estrutura do Sentido do Mundo Social” de Schutz, publicado em 1957 (Schutz, 1964SCHUTZ, Alfred. Equality and the meaning structure of the social world. In: BRODERSEN, Arvid (Ed.). Studies in social theory. The Hague: Martinus Nijhoff, 1964. (Collected Papers, 2)., p. 260), condena como um exemplo de preconceito racial a afirmação da Suprema Corte em Pessy versus Fergusson de que instalações separadas, mas iguais, seriam mantidas para negros e brancos.

Embora eles cheguem a essas conclusões radicalmente diversas, exibem convergências na medida em que cada um apela a documentos fundadores, como por exemplo, quando Arendt se posiciona contrária às leis de miscigenação como violações da Constituição dos Estados Unidos e tolera a discriminação “social”, uma vez que não é inconstitucional, ou quando Schutz critica o preconceito racial porque ele priva os indivíduos do “direito de buscar a felicidade”, tal como afirma a Declaração de Independência, ou ainda quando ele conclama a autoridade da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas para definir discriminação. Tanto Arendt, como Schutz, mostram-se críticos em relação ao preconceito racial branco, e cada um procura entender por que brancos têm preconceito e explicar por que soluções prontas não são suficientes para superar o racismo (Arendt, 1959aARENDT, Hannah. Reflections on Little Rock. Dissent, v. 6, n. 1, Inverno 1959a., p. 45, 46, 48-49; 1959bARENDT, Hannah. A reply to critics. Dissent, v. 6, n. 2, Primavera 1959b., p. 180; Schutz, 1964SCHUTZ, Alfred. Equality and the meaning structure of the social world. In: BRODERSEN, Arvid (Ed.). Studies in social theory. The Hague: Martinus Nijhoff, 1964. (Collected Papers, 2)., p. 244-245, 248-249, 254, 256-258, 261-266).

Uma grande questão sobre a qual Schutz e Arendt concordam é como a igualdade deve ser entendida diferentemente em domínios diferentes. Na terceira seção de seu artigo, Schutz mostra como o tratamento igual ou desigual precisa ser justificado de acordo com diferentes esferas de relevância ou interesse. Desse modo, seguindo o exemplo de Aristóteles, Schutz afirma que se alguém deseja doar uma boa flauta a um membro de um grupo de flautistas, e assim tratar um dos flautistas desigualmente em relação aos demais, essa pessoa estaria confundindo domínios de relevância caso se recusasse a dá-la ao melhor músico do grupo em razão de sua inferioridade de nascimento ou beleza, uma vez que patrimônio e beleza física são irrelevantes na atividade de tocar flauta (Schutz, 1964SCHUTZ, Alfred. Equality and the meaning structure of the social world. In: BRODERSEN, Arvid (Ed.). Studies in social theory. The Hague: Martinus Nijhoff, 1964. (Collected Papers, 2)., p. 239-243).

De forma semelhante, o núcleo do argumento de Arendt contra a intervenção governamental obrigatória depende de suas distinções claras entre esferas políticas, sociais e privadas. A esfera do político, cuja descrição Arendt se baseia em sua interpretação da polis grega, envolve intercâmbios sem coerção entre interlocutores iguais e uma representação de inúmeras perspectivas e aspectos sem medida ou denominador comum. Arendt insiste que “somente aí somos todos iguais” e que nesse domínio político o direito de votar e ocupar um cargo constitui a própria quintessência da cidadania. Na área social, em contraste, a pessoa ganha a vida, segue uma vocação e busca livremente associações com outros, não com base em uma razão particular, mas antes com base na profissão, na renda, na origem étnica, e aqui “o direito à livre associação e, consequentemente, à discriminação, tem maior validade do que o princípio de igualdade.” Finalmente, na esfera privada, “regida nem pelo tratamento igual a todos, nem pela discriminação, mas pela exclusividade”, é que a pessoa escolhe parceiros, amigos e companheiros em sua singularidade, cria filhos, e tem o direito de fazer o que deseja entre as quatro paredes de sua casa. Tendo pontuado essas distinções, Arendt critica a obrigação federal de integração nas escolas de Little Rock como uma invasão duplamente ilegítima, nomeadamente do domínio político sobre o social, na medida em que as pessoas são forçadas a se associarem àqueles que prefeririam evitar, e no privado, na medida em que o governo interfere no direito dos pais de educarem seus filhos como acharem melhor (Arendt, 1959aARENDT, Hannah. Reflections on Little Rock. Dissent, v. 6, n. 1, Inverno 1959a., p. 50-52, 55; Arendt, 1959cARENDT, Hannah. The human condition – A study of the central dilemmas facing modern man. Garden City, New York: Doubleday & Company, Inc., 1959c., p, 26-27, 30, 51, 73, 180-181; Arendt, 1961ARENDT, Hannah. Between past and future – Six exercises in political thought. New York: The Viking Press, 1961., p. 107-114, 222-225; Arendt, 1982ARENDT, Hannah. Lectures on Kant's political philosophy. Chicago: University of Chicago Press/Ronald Beiner (Ed.), 1982.).

Para entender exatamente as motivações de Arendt para diferenciar tão rigidamente essas três esferas e restringir a igualdade à esfera política, é preciso algum conhecimento de seus outros trabalhos. Em As Origens do Totalitarismo, Arendt atribui a ascensão do totalitarismo, em parte, à ilimitada expansão do capitalismo e à ascensão da burguesia que via as instituições políticas “exclusivamente como um instrumento para a proteção da propriedade individual.” Essa abordagem estratégica das instituições políticas as enfraqueceu e, em sua fase imperialista, destruiu “comunidades vivas, tanto das pessoas conquistadas como das pessoas em casa”, isolando indivíduos uns dos outros e reduzindo-os a “átomos” competitivos em um esforço cruel pela auto-sobrevivência. Esse esfacelamento do domínio político, produzido pela limitação do autointeresse econômico, bem como a deterioração de seus grupos sociais subjacentes, deixou indivíduos desenraizados, sem referências, sempre prontos a serem engolidos em movimentos de massa conformistas como o Pan-Eslavismo e o Pan-Germanismo e, finalmente, em sociedades totalitárias que demandam lealdade “desinteressada”. Não é apenas o autointeresse econômico que pode romper o delicado equilíbrio político entre participantes iguais e distintos, mas também a tentativa moral de retificar desigualdades socioeconômicas nivelando as diferenças sociais por meios políticos, conforme ilustra o relato de Arendt do desfecho da Revolução Francesa em sua obra Sobre a Revolução. Enquanto Arendt nesse e em outros escritos tenha consciência da subversão do domínio político pelo domínio sócio-econômico, em “Reflexões sobre Little Rock” ela resiste em seguir outra direção, especialmente da subversão das esferas social e privada pela política. Tanto num, como noutro caso, entretanto, do seu ponto de vista o problema é o mesmo: a base social pluralista subjacente que sustenta o pluralismo político – o traço diferencial e talvez mais valioso da esfera política – se desintegra, tanto por meio da dissolução econômica de grupos sociais que deixam indivíduos isolados na condição de material apropriado para movimentos de massa e totalitarismo, quanto por meio do fervor revolucionário que compele ao conformismo, como na Europa, ou ainda, por meio da arregimentação política de associações sociais e privadas subjacentes, como em Little Rock. O fato de Arendt ligar os movimentos de massa na Europa totalitária à homogeneização governamental de grupos sociais nos Estados Unidos se torna evidente em seu ensaio sobre Little Rock quando ela comenta:

A sociedade de massas – que obscurece as linhas da discriminação e nivela distinções de grupo – é um perigo para a sociedade em si, mais do que à integridade da pessoa, pois a identidade pessoal tem origem além do meio social. O conformismo, entretanto, não é uma característica somente da sociedade de massas, mas de toda sociedade na medida em que apenas aqueles que se conformam aos traços diferenciais genéricos que mantêm o grupo unido são admitidos em um dado grupo social. O risco de conformismo neste país – um risco quase tão velho quanto a república – é que, por causa da extraordinária heterogeneidade de sua população, o conformismo social tende a se tornar um absoluto e um substituto para a homogeneidade nacional. De todo modo, a discriminação é um direito social tão indispensável como a igualdade é um direito político (Arendt, 1959aARENDT, Hannah. Reflections on Little Rock. Dissent, v. 6, n. 1, Inverno 1959a., p. 51).

Em conclusão, James Bohman resume corretamente a posição de Arendt quando afirma que ela aceita a discriminação racial na esfera social, um fenômeno que produz tanto o pluralismo social quanto lhe provoca repulsa moral, como um dos “custos morais do pluralismo político” (Bohman, 1996BOHMAN, James. The moral costs of political pluralism: the dilemmas of difference and equality in Arendt's “Reflections on Little Rock”. In: MAY, Larry; KOHN, Jerome (Eds.). Hannah Arendt, Twenty Years Later. Cambridge, Massachusetts, and London, England: The MIT Press, 1996., p. 57-60, 65-66, 68, 70; Arendt, 1951ARENDT, Hannah. The origins of totalitarianism. New York: Harcourt, Brace, and Company, 1951., p. 137, 149, 157, 161, 166-167, 221, 226, 236, 249, 269, 297, 302, 309-310, 316-317, 351-352, 371, 419-423; Arendt, 1965ARENDT, Hannah. On revolution. New York: The Viking Press, 1965., p. 55, 81, 85, 91, 108, 231; Arendt, 1959aARENDT, Hannah. Reflections on Little Rock. Dissent, v. 6, n. 1, Inverno 1959a., p. 46, 52-53).

Embora Schutz e Arendt frequentemente concordem, particularmente em relação à visão de que a igualdade precisa ser entendida de acordo com esferas separadas de relevância, conforme colocado por Schutz, suas conclusões dissonantes sobre discriminação resultam, conforme argumentarei na próxima seção, de pressupostos filosóficos e metodológicos fundamentais. Além disso, desejo defender na última seção que qualquer teoria política, tal como a de Arendt, pode apenas prescindir das premissas fenomenológicas de Schutz, que informam sua análise de raça, ao custo de sua própria exatidão teórica. Com efeito, a sociologia fenomenológica de Schutz serve como contraponto crítico a toda teoria sociopolítica.

A diferença que faz um ponto de partida fenomenológico

De forma bastante interessante, enquanto a oposição de Arendt à integração forçada ocupa a maior parte de sua atenção, a condenação de Schutz da “doutrina: iguais, mas separados” da Suprema Corte aparece apenas em um exemplo passageiro cujo propósito é ilustrar o efeito espelho. De fato, uma leitura cuidadosa do ensaio de Schutz sobre igualdade indicaria que o autor não está tentando resolver os problemas considerados na conclusão do seu artigo, isto é, os problemas de pertencimento de grupo, igualdade e igualdade de oportunidades. Ele está tentando, antes, mostrar como esses problemas aparecem diferentemente dependendo se eles são abordados de uma perspectiva de dentro do grupo ou de fora dele. Esse foco não tanto no problema, mas no ponto de vista para o qual o problema aparece, reflete a estrutura da fenomenologia que, após a redução fenomenológica, apercebe seu objeto, aborda-o tal como aparece, e também considera o lado noético para o qual essa aparência se apresenta. Essa abordagem fenomenológica também fundamenta a filosofia de Schutz das ciências sociais, cuja marca em face das ciências naturais consiste no fato de que os “objetos” estudados pelos cientistas sociais, especialmente os atores na cena social, pré-selecionam ou pré-interpretam fatos e eventos, enquanto cientistas naturais são os únicos a determinarem os fatos, dados e eventos que estudam, uma vez que o mundo da natureza não “significa” nada para as moléculas, átomos ou elétrons. Assim, no ensaio sobre igualdade não causa surpresa que “oportunidade igual” significaria algo diferente, dependendo das perspectivas interpretativas adotadas em relação a ela (Schutz, 1962SCHUTZ, Alfred. Concept and theory formation in the social sciences. In: The problem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff, 1962. (Collected Papers, 1)., p. 58-59).2 2 Deve ser observado que o ensaio de Schutz sobre igualdade intercala sua discussão do conceito de igualdade entre subseções que tratam do mundo social e das várias interpretações dadas do mundo.

Arendt, entretanto, não ignora o fato de que os outros interpretam seu mundo, mesmo que ela não seja tão atenta a isso quanto poderia ser. Em sua “Resposta a Críticos” ela se inclina à apreciação de como os negros poderiam se sentir a respeito da situação em Little Rock especulando como ela se sentiria caso fosse uma mãe negra. Ela afirma que se fosse uma mãe negra, não exporia de modo algum seu filho à situação de ser rejeitado e consideraria que a decisão da Suprema Corte (Brown v. Brown) teria colocado seu filho “em uma posição mais humilhante do que antes”. Enquanto Arendt aqui se envolve naquilo que Schutz descreve como construindo um tipo e atribuindo-lhe um conjunto de relevâncias fictícias, não deixa de ser significativo que Arendt limite o ponto de vista de seu tipo de mãe negra ao presente. É significativo já que o tipo de mãe negra de Arendt nunca considera se, dali a alguns anos, sua filha e ela, por sua resistência corajosa à discriminação contribuírem para um movimento maior, além delas mesmas, e efetivamente reverterem a situação “humilhante” de segregação, então mãe e filha poderiam sentir maior orgulho de si mesmas do que se tivessem se conformado ao status quo. De fato, quarenta anos após os eventos, evidências recentemente encontradas sugerem que, em muitos casos, foi precisamente isso o que ocorreu. Ironicamente, Arendt adota justamente tal visão temporal mais abrangente em relação aos jovens brancos insultadores que, segundo ela, depois que superarem sua brutalidade atual terão dificuldade em superar a vergonha de suas fotografias expondo impiedosamente sua delinqüência juvenil. Seu tipo ideal de mãe negra que permite a participação de seu filho em um programa de integração forçado em Little Rock é menos do que adequado; ele reflete mais o ponto de vista objetivo do observador e menos o ponto de vista subjetivo da pessoa estudada (Arendt, 1959bARENDT, Hannah. A reply to critics. Dissent, v. 6, n. 2, Primavera 1959b., p. 179; Schutz, 1964SCHUTZ, Alfred. Equality and the meaning structure of the social world. In: BRODERSEN, Arvid (Ed.). Studies in social theory. The Hague: Martinus Nijhoff, 1964. (Collected Papers, 2)., p. 260; Sack, 1997SACK, Kevin. In the Trenches: How civil rights were won; terrior in a voice, even 40 years later, tells a new generation what it missed. The New York Times, March 26, Section C, 11, 1997.).3 3 Esse artigo sobre uma história oral de treze horas do movimento pelos direitos civis, veiculada na rádio pública em abril de 1997, reconta o horror de incidentes tais como os de Little Rock, mas também o orgulho do mesmo, uma vez que, como a história oral “repetidamente demonstra, o movimento dos direitos civis tinha mil soldados não aclamados.” O fato de os participantes se verem como “soldados” em uma “guerra” mais ampla dá uma ideia do tipo de orgulho que esses participantes sentiram anos após os eventos terem ocorrido.

De maneira semelhante, Arendt tem dúvidas a respeito da opinião de Sidney Hook de que os negros são menos interessados em leis contrárias ao casamento inter-racial e à miscigenação e mais interessados em discriminação no emprego, no acesso à habitação e na educação. Mesmo que imediatamente após esse comentário e aparentemente em contradição com ele, ela admita que as opiniões de negros e as políticas da Associação Nacional para o Desenvolvimento de Pessoas Negras foquem essas questões, ela então critica, de maneira um tanto paternalista, o julgamento dos negros como interessado naquilo que ela duvidava que eles estivessem interessados, defendendo que “minorias oprimidas nunca foram os melhores juízes em relação à ordem de prioridades de tais assuntos”. Schutz, por sua vez, toma como referência o amplo e profundo estudo de Gunnar Myrdal, Um Dilema Americano – nunca mencionado por Arendt – que enfatiza como a hierarquia dos bens que brancos preconceituosos negam aos negros está na ordem inversa daquilo que os negros desejam. Para Schutz, a pesquisa de Myrdal destaca a diferença entre uma interpretação branca, de fora do grupo, dos bens a serem negados e a interpretação negra, de dentro do grupo, dos bens desejados (Arendt, 1959aARENDT, Hannah. Reflections on Little Rock. Dissent, v. 6, n. 1, Inverno 1959a., p. 45-46; Schutz, 1964SCHUTZ, Alfred. Equality and the meaning structure of the social world. In: BRODERSEN, Arvid (Ed.). Studies in social theory. The Hague: Martinus Nijhoff, 1964. (Collected Papers, 2)., p. 266).

Em suas visões do significado de “discriminação”, a diferença entre Schutz e Arendt em sua habilidade de levar em conta o significado subjetivo da perspectiva do outro se torna patente. A princípio, Arendt parece considerar a discriminação um tanto inofensiva, uma vez que a capacidade de reconhecimento dos grupos aos quais as pessoas pertencem na esfera social demanda que elas se discriminem quanto à profissão, à renda e à origem étnica. O fato de Arendt considerar a discriminação meramente como um meio pelo qual um indivíduo se associa livremente a um grupo em oposição a outro se torna claro quando ela afirma que as mesmas possibilidades fundamentais de livre associação e de formação de grupos desapareceriam sem tal discriminação. Ao defender o direito a equipamentos recreativos que satisfaçam alguns grupos étnicos e não outros – uma noção justificada de discriminação na visão de Arendt – ela explicitamente equipara discriminação à “livre associação” ao justapor os termos quando descreve o domínio do social como “o lugar onde o direito à livre associação e, portanto, à discriminação, tem maior validade do que o princípio da igualdade [itálicos meus]” (Arendt, 1959aARENDT, Hannah. Reflections on Little Rock. Dissent, v. 6, n. 1, Inverno 1959a., p. 51-52).

Para Schutz, em contraste com Arendt, as conotações de “discriminação” são negativas, conforme indicado quando ele imediatamente caracteriza a recusa das Filhas da Revolução Americana a permitirem que Marian Anderson utilize sua sala de concertos em Washington como um ato “discriminador”, uma vez que tipifica todos os Afro-Americanos igualmente no que diz respeito à atividade de cantar, que não tem nada a ver com a cor da pele. Porém, Schutz então procede com esse mesmo exemplo perguntando se toda tipificação de outra pessoa ou grupo é necessariamente discriminadora. Schutz responde à sua própria pergunta sugerindo que não seria discriminatório afirmar que Marion Anderson pode cantar Negro Spirituals de maneira incontestável porque, além de seu imenso talento como cantora, ela compartilha uma herança cultural específica da qual os Negro Spirituals são expressão parcial. Argumentando dessa forma, Schutz, na realidade, concorda com Arendt de que há legitimidade em classificar grupos de certa forma e, presumivelmente, em tipificar comportamentos, tais como a associação regular a um grupo e não a outro, sem necessariamente ser discriminatório; porém, para Schutz o termo “discriminação” não designa, à primeira vista, um comportamento inocente (Schutz, 1964SCHUTZ, Alfred. Equality and the meaning structure of the social world. In: BRODERSEN, Arvid (Ed.). Studies in social theory. The Hague: Martinus Nijhoff, 1964. (Collected Papers, 2)., p. 259).

Que as diferenças entre Schutz e Arendt aqui não são simplesmente uma questão de como cada um recorta a terminologia se tornam evidentes quando se considera o esforço de Schutz em definir “discriminação” – uma tarefa à qual Arendt não se lança de forma tão explícita. Discriminação, de acordo com Schutz, pressupõe tanto a imposição de uma tipificação do ponto de vista objetivo de um estranho ao grupo quanto uma avaliação adequada de sua imposição do ponto de vista subjetivo do indivíduo afetado. Desse modo, presumivelmente a tipificação de Marian Anderson como conhecedora da cultura dos Spirituals não seria discriminatória porque não pareceria assim do seu ponto de vista subjetivo, tal como, para citar outro exemplo de Schutz, a negação por princípio aos Afro-Americanos do direito de viajar em carro leito com base em argumentos raciais seria discriminatória porque eles assim a considerariam. Na verdade, Schutz se mostra atento ao ponto de vista subjetivo de outra pessoa ou grupo, não apenas ao incluir uma referência a ele em sua definição de discriminação, mas também ao reconhecer que o termo “discriminação” mesmo é carregado de conotações negativas. Em sua apreciação dessas conotações do termo “discriminação”, Schutz já considerou como os Afro-Americanos, as vítimas de políticas discriminatórias, teriam entendido esse termo. Nesse sentido, as implicações da sua definição do termo “discriminação”, nomeadamente sua inclusão de uma referência ao significado subjetivo do indivíduo afetado, levou-o a apreciar as conotações negativas do próprio termo. Nisso ele contrasta com Arendt, que nunca define cuidadosamente o termo, tampouco reconhece a importância do ponto de vista subjetivo do indivíduo afetado ao determinar se há discriminação, e utiliza o termo em seu sentido etimológico aparentemente neutro de meramente “distinguir”. Nesse contexto, entretanto, esse sentido neutro se torna menos que neutro, e fica evidente que significados objetivos, tal como Schutz destacou, também são relativos ao grupo de pertencimento subjetivo do observador (Schutz, 1964SCHUTZ, Alfred. Equality and the meaning structure of the social world. In: BRODERSEN, Arvid (Ed.). Studies in social theory. The Hague: Martinus Nijhoff, 1964. (Collected Papers, 2)., p. 227, 261).

Contudo, Schutz também entrou, de outras maneiras, mais profundamente no ponto de vista do indivíduo afetado pela discriminação. Por exemplo, na visão de Arendt, as razões para o pertencimento em grupos se devem aos motivos pelos quais uma pessoa entra em um domínio social, isto é, “a pessoa é conduzida a essa esfera pela necessidade de ganhar a vida ou é atraída pelo desejo de seguir uma vocação ou instigada pelo prazer da companhia,” tal como o desejo de um judeu de passar as férias com outros judeus. Arendt enfatiza que, para um adulto, há uma “livre escolha que, em uma sociedade livre, existe ao menos em princípio na escolha de empregos e associações ligadas a eles”, mas que não está disponível para os filhos cujos pais precisam, assim, selecionar suas escolas por eles. Os comentários de Arendt aqui, porém, parecem negligenciar um fato importante que Schutz traz à tona bem no começo de sua explicação dos grupos sociais, nomeadamente que, além de grupos voluntários, uma pessoa também pertence a grupos involuntários e, portanto, não escolhe seu sexo ou sua raça, seu lugar de nascimento, sua nacionalidade ao nascer, ou sua língua materna – todos os quais formam a situação existencial à qual uma pessoa deve se conformar. Além disso, esse pertencimento a um grupo involuntário se torna ainda mais significativo já que, conforme observado por Schutz, um membro de fora do grupo, tendo poder sobre os membros, pode selecionar uma característica que os vincula ao seu grupo involuntário, tal como a cor da pele, e torná-la enormemente relevante, como por exemplo, desqualificando-os para um emprego muito necessário. Tudo isso pode ocorrer mesmo que a cor da pele seja irrelevante para a execução do trabalho em questão e mesmo que o membro do grupo nunca tenha dado importância a essa característica, ao menos em relação à busca de emprego. Além disso, demonstrando o que pode ser um viés de classe superior, Arendt parece superestimar a disponibilidade de emprego e a facilidade de mudar de trabalho uma vez que ela fala em “escolher” um trabalho da mesma forma que uma pessoa escolhe suas associações e coloca o ganhar a vida no mesmo nível que seguir uma vocação ou ser atraído por certas companhias. Essa atitude indiferente em relação ao emprego sem dúvida a leva a subestimar o sofrimento pelo qual uma pessoa pode passar ao ter recusada uma oferta de emprego desesperadamente perseguida por conta de suas características raciais, sobre as quais não se tem controle algum. De acordo com Schutz, tal tipificação imposta de uma posição de poder “rompe com a integridade da personalidade pela identificação de toda, ou de largas camadas, da personalidade do indivíduo a um traço peculiar ou característica tipificada”, e a vítima “sente que não é mais tratada como um ser humano dotado de direitos e liberdade, mas é degradado a uma espécie intercambiável da classe tipificada”. Dada a ingenuidade de Arendt em relação à coerção às quais são sujeitas vítimas discriminadas, por conta de características compartilhadas pelo grupo que elas não escolheram livremente, entende-se melhor a razão de ela alegar com tanta segurança que minorias oprimidas não são “os melhores juízes acerca da ordem de prioridades”, já que estão mais preocupadas com a discriminação no trabalho do que a discriminação contra a miscigenação (Arendt, 1959aARENDT, Hannah. Reflections on Little Rock. Dissent, v. 6, n. 1, Inverno 1959a., p. 45-46, 51, 55; Schutz, 1964SCHUTZ, Alfred. Equality and the meaning structure of the social world. In: BRODERSEN, Arvid (Ed.). Studies in social theory. The Hague: Martinus Nijhoff, 1964. (Collected Papers, 2)., p. 250, 256-257).4 4 Schutz usa o termo “involuntário”, que poderia ter uma conotação infeliz de que uma pessoa deseja não pertencer a uma dada raça ou sexo. Talvez o termo “não-voluntário”, que sugere simplesmente que um indivíduo não escolheu, originalmente, sua raça ou sexo, seja um termo melhor. Para evitar complicar ainda mais o argumento, esse parágrafo mantém a terminologia de Schutz.

De modo semelhante, Arendt restringe igualdade a igualdade política, em particular, apenas para o direito a voto e eligibilidade para um cargo e, enquanto ela favorece a abolição de leis que reforçam a discriminação, ela se opõe a quaisquer tentativas da esfera política de ir além da mera abertura do cargo político para todos, além da mera igualdade formal de oportunidades, a fim de abolir a discriminação social que faz da própria sociedade mais igual. Schutz, em comparação, concebe a possibilidade de a igualdade de oportunidades ter maior relevância, de modo a abrir espaço para reformas tanto no domínio social quanto econômico. Contudo, Schutz, que apela para a Declaração dos Direitos do Homem de 1789 e a posição de Aristóteles em relação à justiça distributiva, parece mais interessado em justificar a igualdade de oportunidades com base em fundamentos morais e, portanto, não apresenta uma teoria política que se contraponha à justificativa de Arendt de uma noção restrita de igualdade baseada na separação do político em relação ao social. Porém, mais importante para Schutz é o fato de, além de definir igualdade de oportunidades objetivamente como “a carreira aberta a todos os que tenham o talento” pode-se deduzir qual o significado essa noção pode ter para indivíduos que buscam se valer eles próprios de tal oportunidade. Esse “significado subjetivo” da igualdade de oportunidades depende da definição particular dos indivíduos de suas situações, se eles têm o conhecimento, o caráter, o esquema de relevâncias ou os recursos socioeconômicos, mesmo para ocuparem a posição para a qual eles são, em termos objetivos, elegíveis (Arendt, 1959aARENDT, Hannah. Reflections on Little Rock. Dissent, v. 6, n. 1, Inverno 1959a., p. 50-51).

Finalmente, a maneira como são colocadas as fronteiras ou são operacionalizadas as distinções, tais como aquelas entre as áreas política e social na teoria de Arendt, depende do quanto os pontos de vista subjetivos de outros foram levados em consideração. Por exemplo, tendo delineado as fronteiras entre o social e o político, Arendt permite ao Estado alguma jurisdição sobre o conteúdo educacional ensinado no sistema educacional, que é parte da esfera social. Ela afirma que o Estado tem “o direito incontestável de prescrever requisitos mínimos ao futuro cidadão e, além disso, estender e apoiar o ensino de disciplinas e profissões consideradas desejáveis e necessárias à nação como um todo.” Ela reitera, entretanto, que isso envolve apenas o conteúdo da educação da criança e não o contexto de associação e vida social a ser vivenciado na escola. Mas se é permitido ao domínio político interferir no sistema social no interesse da cidadania futura e do bem da nação como um todo, ao menos no que respeita ao conteúdo apresentado nas escolas, por que parar por aí? Se, de fato, Arendt mitigou a crueldade da discriminação ao concebê-la como mera livre associação, e se ela ignorou o significado subjetivo da discriminação para suas vítimas e, em particular, deixou de apreender a coerção exercida sobre aqueles que pertencem a grupos involuntários por causa de características compartilhadas com outros nesses grupos, se ela não entendeu, tal como Schutz, de que forma a discriminação “rompe a integridade da personalidade” e degrada sua vítima “a um espécime intercambiável da classe tipificada”, pode-se entender porque ela permite apenas uma breve incursão do político sobre o social (Schutz, 1964SCHUTZ, Alfred. Equality and the meaning structure of the social world. In: BRODERSEN, Arvid (Ed.). Studies in social theory. The Hague: Martinus Nijhoff, 1964. (Collected Papers, 2)., p. 269-273).

Contudo, caso se levasse em conta todos esses fatores subenfatizados por Arendt e salientados por Schutz, então faria sentido que a esfera política, respeitando a liberdade de associação tanto quanto possível, agisse de forma mais extensa sobre a esfera social a fim de eliminar a discriminação. Afinal de contas, tal discriminação pareceria mais severamente alienante e destrutiva em relação à autoconfiança de suas vítimas do que Arendt imagina, sem dúvida prejudicando sua capacidade de participar plena e igualmente como futuros cidadãos (ao menos tanto quanto qualquer falha na transmissão de conteúdos educacionais possa danificá-la) e, assim, prejudicando a nação como um todo. Quem quer que leve adequadamente em consideração o significado subjetivo da discriminação para suas vítimas teria de concordar com o destaque dado por Bohman à falha crucial do argumento de Arendt, especialmente o fato de ela tentar defender a diversidade política à custa das mesmas condições que a mantêm: igualdade pública e cidadania comum – ambas devastadas pela discriminação (Arendt, 1959aARENDT, Hannah. Reflections on Little Rock. Dissent, v. 6, n. 1, Inverno 1959a., p. 55; Bohman, 1996BOHMAN, James. The moral costs of political pluralism: the dilemmas of difference and equality in Arendt's “Reflections on Little Rock”. In: MAY, Larry; KOHN, Jerome (Eds.). Hannah Arendt, Twenty Years Later. Cambridge, Massachusetts, and London, England: The MIT Press, 1996., p. 75).

Conclusão

Há um sentido no qual esses dois ensaios sobre raça nos Estados Unidos procedem em planos inteiramente distintos, uma vez que Arendt aborda a questão na ciência política, especificamente advogando contra a integração forçada do sistema escolar de Little Rock pelo governo com base no fato de que a característica de igualdade da esfera política não deve ser estendida às esferas social e privada, onde os direitos à livre associação e arbítrio parental dominam. Schutz, em contrapartida, admite que a igualdade precisa ser entendida diferentemente nos diversos domínios de relevância, mas seu interesse não é resolver problemas teóricos relativos a relações raciais, mas mostrar como as noções de pertencimento de grupo, igualdade e igualdade de oportunidades são entendidas diferentemente dependendo do ponto de vista, objetivo ou subjetivo, por meio dos quais são abordados. De fato, está claro que a abordagem de Schutz em seu ensaio sobre igualdade aplica e deriva de seus fundamentos fenomenológicos para a ciência social, especialmente o mundo da vida, do qual toda teoria surge, e é constituído por atores que interpretam o mundo de forma divergente por meio de sistemas de significado socialmente delineados de diferentes formas. Seria tentador destacar e manter separado o percurso de investigação de Schutz em relação à teoria política de Arendt, uma vez que Schutz, a partir de sua base fenomenológica, se concentra nas diferentes perspectivas a influenciarem os problemas, sem abordá-los diretamente. Desse modo, ele parece se engajar em uma espécie de teoria proto-política, uma teoria política anterior ao início da teoria política. À relação Schutz/Arendt poder-se-ia aplicar à caracterização de Schutz de sua relação com Talcott Parsons em A Teoria da Ação Social: “Eu percebi imediatamente a importância e o valor do seu sistema e também o fato de que ele começa exatamente onde meu livro termina” (Schutz, 1978SCHUTZ, Alfred. The theory of social action – The correspondence of Alfred Schutz and Talcott Parsons. Bloomington and London: Indiana University Press/Richard Grathoff (Ed.), 1978., p. 97).

Mas o argumento deste artigo sugere que é preciso mais do que manter níveis de análise separados, já que muitas das alegações e conclusões de Arendt são enfraquecidas ou minadas na medida em que ela não leva suficientemente em consideração o significado subjetivo das vítimas de discriminação. Ela mesma reconheceu esse ponto em uma carta a Ralph Ellison, ao menos no que diz respeito a como uma mãe Afro-Americana poderia legitimamente esperar o tipo de sacrifício que as crianças Afro-Americanas em Little Rock fizeram quando enfrentaram o ódio dos brancos (Young-Bruehl, 1982YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Hannah Arendt, for Love of the world. New Haven and London: Yale University Press, 1982., p. 315-316). O artigo de Arendt sobre Little Rock prova o quanto é fácil partir do próprio ponto de vista, aquele do observador objetivo, como válido sem se estar suficientemente consciente de que há meios alternativos de se interpretar uma situação que parece óbvia para si mesmo. A perspectiva interpretativa da outra pessoa ou grupo, o significado subjetivo do outro, para o qual Schutz provê categorias filosóficas em sua obra Fenomenologia do Mundo Social e à qual ele dedica atenção cuidadosa em seu ensaio sobre igualdade, assombra qualquer teorização científica social, como um eterno contraponto crítico, que deve ser levado em consideração por qualquer teorização que não deseje fracassar. A incerteza epistêmica e a falibilidade que a outra perspectiva interpretativa evoca para qualquer teórico científico social encontram sua contrapartida ética na descrição de Emmanuel Levinas de como um interlocutor em um discurso sempre pode contestar o que qualquer um tenha dito.

A palavra que se liga ao Outro como um tema parece conter o Outro. Mas já foi dito ao Outro que, enquanto interlocutor, abandonou o tema que o abarcava, e se insurge inevitavelmente por detrás do que foi dito. Palavras são ditas, seja apenas pelo silêncio mantido, cujo peso reconhece a evasão do Outro. O conhecimento que absorve o Outro é imediatamente situado dentro do discurso a ele dirigido… No discurso, a divergência que inevitavelmente se abre entre o Outro como meu tema e o Outro como meu interlocutor, emancipada do tema que parecia mantê-la por um momento, imediatamente contesta o significado que eu atribuo ao meu interlocutor (Levinas, 1979LEVINAS, Emmanuel. Totality and infinity – An essay on exteriority. Trans. Alphonso Lingis. The Hague, Boston, London: Martinus Nijhoff Publishers, 1979., p. 195).

Não é somente pela validade epistemológica que a teoria política de Arendt poderia ganhar com a preocupação schutziana pelo significado subjetivo do outro, mas antes o dinamismo intrínseco de seu próprio pensamento, cujo cerne é a ênfase no pluralismo, requer uma complementação schutziana. Richard Bernstein elogia acertadamente Arendt por ter explicado um conceito de liberdade pública baseado no reconhecimento legítimo de uma pluralidade de perspectivas que é radicalmente anti-dogmático, antitotalitário e livre de coerção. Com efeito, a fim de impulsionar tal pluralismo político, Arendt está disposta a tolerar a discriminação, com todas as suas consequências pluralizantes, na esfera social, conforme James Bohman apontou. Bernstein continua seu louvor a ela asseverando que Arendt articulou uma descrição sensível do que significa política participativa, do que a política poderia ter sido na polis Grega em seu auge, e do que a política ainda pode ser. Contudo, tal teoria política, cujo núcleo consiste em “uma representação de inúmeras perspectivas e aspectos sem medida ou denominador comum”, continua necessitando de uma capacidade aguçada de entrar cuidadosamente na perspectiva de outros, além do próprio grupo de pertencimento. A fenomenologia schutziana, com seu maquinário conceitual e sua sintonia com a interpretação subjetiva do significado em oposição a qualquer imposição de fora do grupo de significado sobre o outro, pode auxiliar uma teoria política tal como a de Arendt a alcançar o autêntico pluralismo que é seu ideal central (Bernstein, 1986BERNSTEIN, Richard J. Philosophical profiles, essays in a pragmatic mode. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1986., p. 246-247).

Além disso, a emergência de diversas perspectivas, a respeito das quais este mesmo texto é um exercício, sugere que o isolamento da esfera social em relação à política de Arendt e sua recusa em utilizar a força política para conter os efeitos da discriminação, a fim de garantir o máximo pluralismo político, pode ter o efeito contrário de apoiar o prejuízo contínuo das vítimas da discriminação, de prolongar sua exclusão da participação política e, desse modo, impedir a realização de um pluralismo mais amplo. Conforme Richard Bernstein observou perspicazmente e este artigo sustenta, a exclusão a priori de questões sociais, tais como discriminação, como um tópico legítimo para o debate político e decisão, envolve um julgamento político oculto a respeito do que será de interesse da esfera política. Tal julgamento político não deve ser feito pelo cientista social, mas pelos participantes do processo político. Ao admitir, em um debate político conduzido racionalmente, questões como se o poder do governo deve ser usado para obter integração social e se tal integração social pode ser mais benéfica ao pluralismo político do que a segregação continuada, haveria maior possibilidade para que o ponto de vista das vítimas de discriminação fosse levado a sério do que se essas questões fossem monologicamente impedidas de serem discutidas desde o início. Quanto mais amplo for o campo de problemas acessíveis à discussão, mais as perspectivas de pluralismo são ampliadas (Bernstein, 1986BERNSTEIN, Richard J. Philosophical profiles, essays in a pragmatic mode. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1986., p. 246-247).

Desse modo, no interesse do próprio pluralismo, que é a marca registrada do pensamento de Arendt, seria melhor, em vez de tomar o político e o social como duas esferas com conteúdos incompatíveis, conceber a esfera social como repleto de problemas e a esfera política como uma estrutura formal dentro da qual se pode decidir quais problemas são apropriados para serem levados em consideração e quais não são, e na qual os problemas apropriados podem ser discutidos e decididos. Porém, essa formalização da esfera política e a consequente acessibilidade de mais problemas em sua inteira complexidade torna ainda mais imperativo que os interlocutores sejam capazes de entender empaticamente pontos de vista diferentes daqueles do seu grupo de pertencimento. A fenomenologia schutziana oferece recursos para levar a cabo tal discurso político, tal como os diferentes pontos de vista que ela traz à tona colocam em questão as distinções precisas entre as esferas política e social que podem impedir que tal discurso político ocorra.

  • 1
    Traduzido do original em inglês por Melissa de Mattos Pimenta.
  • 2
    Deve ser observado que o ensaio de Schutz sobre igualdade intercala sua discussão do conceito de igualdade entre subseções que tratam do mundo social e das várias interpretações dadas do mundo.
  • 3
    Esse artigo sobre uma história oral de treze horas do movimento pelos direitos civis, veiculada na rádio pública em abril de 1997, reconta o horror de incidentes tais como os de Little Rock, mas também o orgulho do mesmo, uma vez que, como a história oral “repetidamente demonstra, o movimento dos direitos civis tinha mil soldados não aclamados.” O fato de os participantes se verem como “soldados” em uma “guerra” mais ampla dá uma ideia do tipo de orgulho que esses participantes sentiram anos após os eventos terem ocorrido.
  • 4
    Schutz usa o termo “involuntário”, que poderia ter uma conotação infeliz de que uma pessoa deseja não pertencer a uma dada raça ou sexo. Talvez o termo “não-voluntário”, que sugere simplesmente que um indivíduo não escolheu, originalmente, sua raça ou sexo, seja um termo melhor. Para evitar complicar ainda mais o argumento, esse parágrafo mantém a terminologia de Schutz.

Referências

  • ARENDT, Hannah. The origins of totalitarianism. New York: Harcourt, Brace, and Company, 1951.
  • ARENDT, Hannah. Reflections on Little Rock. Dissent, v. 6, n. 1, Inverno 1959a.
  • ARENDT, Hannah. A reply to critics. Dissent, v. 6, n. 2, Primavera 1959b.
  • ARENDT, Hannah. The human condition – A study of the central dilemmas facing modern man. Garden City, New York: Doubleday & Company, Inc., 1959c.
  • ARENDT, Hannah. Between past and future – Six exercises in political thought. New York: The Viking Press, 1961.
  • ARENDT, Hannah. On revolution New York: The Viking Press, 1965.
  • ARENDT, Hannah. Lectures on Kant's political philosophy Chicago: University of Chicago Press/Ronald Beiner (Ed.), 1982.
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  • BOHMAN, James. The moral costs of political pluralism: the dilemmas of difference and equality in Arendt's “Reflections on Little Rock”. In: MAY, Larry; KOHN, Jerome (Eds.). Hannah Arendt, Twenty Years Later Cambridge, Massachusetts, and London, England: The MIT Press, 1996.
  • LEVINAS, Emmanuel. Totality and infinity – An essay on exteriority. Trans. Alphonso Lingis. The Hague, Boston, London: Martinus Nijhoff Publishers, 1979.
  • SACK, Kevin. In the Trenches: How civil rights were won; terrior in a voice, even 40 years later, tells a new generation what it missed. The New York Times, March 26, Section C, 11, 1997.
  • SCHUTZ, Alfred. Concept and theory formation in the social sciences. In: The problem of social reality The Hague: Martinus Nijhoff, 1962. (Collected Papers, 1).
  • SCHUTZ, Alfred. Equality and the meaning structure of the social world. In: BRODERSEN, Arvid (Ed.). Studies in social theory The Hague: Martinus Nijhoff, 1964. (Collected Papers, 2).
  • SCHUTZ, Alfred. The theory of social action – The correspondence of Alfred Schutz and Talcott Parsons. Bloomington and London: Indiana University Press/Richard Grathoff (Ed.), 1978.
  • YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Hannah Arendt, for Love of the world New Haven and London: Yale University Press, 1982.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2011

Histórico

  • Recebido
    22 Out 2010
  • Aceito
    29 Jun 2011
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