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Convergências e divergências na teoria social contemporânea

Convergences and divergences in the contemporary social theory

A teoria social sempre foi caracterizada pela diversidade, não obstante reiteradamente tenham sido empreendidos esforços em busca de unicidade, seja como sistema, como método ou como síntese. Períodos em que alguns poucos autores, algumas escolas ou algumas tendências se destacaram distantemente por sobre os demais alternaram-se com tempos de pluralidade, simbioses e, por vezes, um elevado grau de cacofonia. No momento, parece que a teoria social se encontra bem distante da confiança em unidade e síntese. Precisamente por isso, o presente número de Civitas se propõe a trazer à tona parte desta diversidade, das divergências – mas colocando a pergunta por possíveis diálogos e complementariedades.

Os primeiros impulsos para o dossiê com esta temática surgiram no contexto de uma mesa redonda realizada no Encontro Anual da Anpocs, em 2009. Alguns textos receberam sua primeira versão à época e foram enriquecidos pelo diálogo: outros foram se agregando na medida em que em eventos subsequentes a interlocução em torno da proposta se ampliou. E há textos que se destinavam originalmente a este número, mas aparecerão em alguma outra publicação.

Como abertura do dossiê temático está colocado o texto Entre el universalismo y el relativismo: reposicionamiento de las ciencias sociales latinoamericanas, de Marcelo Arnold-Cathalifaud, cujo diagnóstico sobre a situação da disciplina na parte meridional da América é provocativo. O autor constata que a ciência social aqui produzida tem pouco impacto global, que a produção ensaística tem mais visibilidade que a produção acadêmica, que na sua formação os jovens cientistas sociais são habitualizados como consumidores de conhecimento produzido alhures e que, quando profissionais, têm maiores possibilidades de alcançarem reconhecimento na ação política do que em sua área de origem. Com o argumento de que a ciência social é, por vocação, universalista e que, num mundo cada vez mais globalizado, as relações sociais que esta tem por objeto de estudo também transcendem as fronteiras, Arnold considera inapropriada e até autodestrutiva a opção, feita por alguns, de recolher-se a particularismos histórica ou geograficamente fundamentados. Ao apontar contribuições de cientistas sociais latino-americanos que há algumas décadas tiveram ampla receptividade entre os pares em outros continentes, o autor nos convida a retomar esta senda rumo ao futuro, começando pela valorização, pelos pares, daquilo que neste subcontinente é produzido.

Em seu texto O declínio da soberania ou a emergência de normas cosmopolitanas? Repensando a cidadania em tempos voláteis, Seyla Benhabib anota que a cidadania nacional classicamente reunia pelo menos três formas de expressão de pertencimento e participação: uma identidade coletivamente compartilhada, benefícios sociais e econômicos e o exercício de direitos democráticos. As transformações recentes, no entanto, trazem consigo a contradição entre a expansão de uma democracia transnacional e aspectos de uma guerra civil global, entre a extensão de normas cosmopolitanas, expressas por exemplo na legitimidade ampla dos direitos humanos, e a crescente e ostensiva exclusão de determinados grupos sociais pela negação da condição de cidadãos e, no limite, do direito a ter direitos. Com base nos tópicos migrações transnacionais, surgimento do direito global e aumento de legislação fast-track, Benhabib analisa estas mudanças na relação entre territorialidade e jurisdição, para concluir defendendo que o direito a ter direitos deve combinar a visão liberal de cidadania como titularidade de direitos com a visão democrática republicana de filiação através da participação democrática plena.

A convicção de que “no mundo inteiro nada mais há do que o direito das outras pessoas”, expressa por Kant e que ecoa no texto de Benhabib, serve como inspiração para que Corinna Mieth, no texto Injustiça global, deveres individuais e circunstâncias institucionais não ideais, analise a pergunta sobre quais os deveres que os ricos têm para com os pobres numa ordem global injusta, sobre a abrangência e o grau de vinculação destes deveres. A tese de Kant, de que mesmo numa ordem social em que ninguém violasse o direito alheio, em que miséria só existiria devido a acidentes ou doenças, as ações de benevolência não seriam mais que o cumprimento do dever emanado do direito de outrem, provavelmente não encontrará muitos defensores hoje; e ainda que os tivesse, trataria de um mundo de todo utópico. Mieth, ao contrário, declina situações plausíveis para analisar os limites dos deveres individuais correlatos aos direitos alheios, colocando o foco na importância do bem a ser protegido e nas condições institucionais em que o sujeito se encontra.

Enquanto nos textos de Mieth e Benhabib a influência de Kant é imediatamente evidente, Nythamar de Oliveira, com seu texto As exigências normativas do ethos democrático brasileiro: o habitus em Bourdieu, teoria crítica e filosofia social, escolhe a via de um construcionismo social mitigado para buscar suprir déficits tanto sociológico como normativo que ele detecta em versões correntes da teoria crítica. Uma fenomenologia da libertação que leva em conta tanto a teoria crítica como os estudos culturais poderia, em sua visão, recuperar para a teoria social a necessária normatividade em adequado distanciamento dos extremos objetivista e relativista. Um reexame do conceito de habitus, de Bourdieu, lhe serve de fio condutor.

Pensar a sociedade em termos críticos e ter como horizonte a superação da injustiça, da humilhação e da ofensa, assim poderia ser descrita a tarefa de uma teoria crítica. Mas por mais legítimos que possam parecer seus objetivos, este fazer teórico não pode isentar-se de prestar contas de seu lugar de fala e de seu método. Este é o tema tratado por Alessandro Pinzani em Teoria crítica e justiça social. Para este autor, não basta fazer uma crítica imanente ou reconstruir os princípios normativos orientadores de uma sociedade para criticá-la; é indispensável também ouvir a voz daqueles que, como no caso da sociedade brasileira, são afetados pela pobreza, sob pena de desrespeitá-los e humilhá-los. Assim, para Pinzani, a crítica social não se vê apenas em luta contra a pobreza material de alguns, mas também contra a pobreza espiritual e moral dos demais concidadãos.

A teoria crítica também é tema no próximo texto; não numa perspectiva interna como assumida por Pinzani, mas enquanto parte de um conflito já distante, onde a busca por melhor interpretação da realidade e relacionamentos interpessoais se entremesclavam. Amalia Barboza em Duas sociologias frankfurtianas: sociologia do conhecimento versus teoria crítica? reconstitui as linhas, ora paralelas, ora cruzadas, da disputa entre Karl Mannheim e Max Horkheimer em Frankfurt antes de 1933. A autora, que não deixa dúvidas sobre seu objetivo de resgatar contribuições de um dos contraentes que ela considera subvalorizadas historicamente, mostra como estes dois grandes teóricos sociais à época compartilhavam preocupações e convicções e que, só pela mútua ignorância, não aproveitaram os potenciais de uma inspiração recíproca. Como a obra dos dois autores foi e segue sendo influente, em suas diversas formas de recepção, em nossa América, o texto de Barboza adquire uma atualidade que em muito transcende sua geografia de origem.

De potenciais interfaces e de diálogo entre proposições teóricas recentes tratam os próximos dois textos, com os quais se encerra o dossiê temático. Em Justificação, reconhecimento e justiça: tecendo pontes entre Boltanski, Honneth e Walzer, Emil A. Sobottka e Giovani A. Saavedra se propõem a explorar possíveis semelhanças e diferenças em concepções centrais de teorias apresentadas por Luc Boltanski e Laurent Thévenot, Axel Honneth e Michael Walzer. Igualdades e diferenças e, em especial, sua legitimação são temas que toda tentativa de elaborar uma teoria da justiça precisa tratar, e o modo como o fazem as diferencia entre si. Nas três proposições em questão, as percepções ou convicções compartilhadas contextualmente – numa determinada esfera da justiça, para Walzer; numa esfera do reconhecimento, para Honneth; num momento crítico numa Cidade, para Boltanski e Thévenot – fornecem os critérios norteadores na respectiva teoria. No texto é tratada a pergunta por aquelas concepções que distanciam e aquelas que permitem um diálogo entre as três proposições teóricas.

No texto Diálogos entre Bruno Latour e Ulrich Beck: convergências e divergências, Tatiana Gomes Rotondaro reconstitui o debate entre estes dois destacados cientistas sociais da atualidade e o toma como pano de fundo para refletir sobre o recente fazer ciência social. Para a autora, sociologia e ciência política estão se expondo crescentemente a uma abertura antropológica para escrutinar as transformações ao mesmo tempo concomitantes e diferenciadas que atualmente ocorrem em praticamente todas as sociedades. O próprio pensar em termos de micro-macro, local-global, ação-estrutura, bem como modernidade e seus correlatos, é exposto como altamente problemático.

Para além do dossiê temático, este número ainda traz uma instigante contribuição de Xavier Rodríguez Ledesma com o título Octavio Paz y la modernidad: una crítica vanguardista desde los suburbios de la civilización. Modernidade e(m) nossa América constitui-se em temática para ensaios e estudos desde os movimentos independentistas. Rodríguez, no entanto, mostra como ainda na primeira metade do último século Octavio Paz coloca a questão em termos bem distintos daqueles pautados até então: não é inferioridade ou atraso neste continente, mas a incapacidade daqueles que se consideram ocidentais, desenvolvidos ou civilizados em reconhecer os povos desta América assim como eles são, em sua “outreidade”. Esta incapacidade vem ainda aliada a um vesgo olhar, que vê os campos mais verdejantes do outro lado do rio, que perpetua a negação do reconhecimento a estes povos e a seus poetas. Um reconhecimento que, como apontado por Arnold em referência às ciências sociais latino-americanas, ainda está por ser conquistado.

Por fim, no texto Uma nota sobre filosofia política João Carlos Brum Torres coloca em discussão as relações internacionais, em especial a questão da formação do direito de ocupação de determinadas porções da superfície terrestre por entidades estatais. Depois de trazer à tona as principais argumentações que subjazem à discussão atual, o autor termina advogando em favor da construção de um arcabouço de instituições políticas internacionais com base na busca republicana da paz internacional.

Boa leitura.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2012
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