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O declínio da soberania ou a emergência de normas cosmopolitanas?: Repensando a cidadania em tempos voláteis

Twilight of sovereignty or the emergence of cosmopolitan norms?: Rethinking citizenship in volatile times

Resumo:

Este ensaio examina os recentes debates relacionados à emergência de normas cosmopolitanas como aquelas pertinentes aos direitos humanos universais, crimes contra a humanidade, bem como o status de refugiado, imigrante e exilado. O que alguns veem como a difusão de um novo regime de direitos humanos e uma nova ordem mundial, outros denunciam como a “expansão do império” ou caracterizam como “lei sem um estado”. Em contraste, concentrando-se no relacionamento do capitalismo global com a lei desterritorializada, este ensaio distingue entre a disseminação das normas dos direitos humanos e a desterritorialização dos regimes legais. Embora tanto as normas cosmopolitanas como a lei desterritorializada desafiem o estado-nação e ameacem escapar do controle por meio de legislaturas democráticas, argumenta-se que as normas cosmopolitanas melhoram a soberania popular enquanto muitas outras formas de direito global a debilitam. Conclui-se pleiteando uma visão do “federalismo republicano” e de “iterações democráticas”, os quais aumentariam a soberania popular através do estabelecimento de interconexões entre o local, o nacional e o global.

Palavras-chave:
cidadania; soberania; migrações; direitos humanos; normas cosmopolitanas

Abstract:

This essay examines recent debates concerning the emergence of cosmopolitan norms such as those pertaining to universal human rights, crimes against humanity as well as refugee, immigrant and asylum status. What some see as the spread of a new human rights regime and a new world order others denounce as the “spread of empire” or characterize as “law without a state”. In contrast, by focusing on the relationship of global capitalism to deterritorialized law this essay distinguishes between the spread of human rights norms and deterritorialized legal regimes. Although both cosmopolitan norms and deterritorialized law challenge the nation-state and threaten to escape control by democratic legislatures, it argues that cosmopolitan norms enhance popular sovereignty while many other forms of global law undermine it. It concludes by pleading for a vision of “republican federalism” and “democratic iterations”, which would enhance popular sovereignty by establishing interconnections across the local, the national and the global.

Keywords:
citizenship; sovereignty; migrations; human rights; cosmopolitan norms

Em vários trabalhos na última década, eu documentei a desagregação dos direitos de cidadania, o surgimento de um regime internacional de direitos humanos e a disseminação de normas cosmopolitanas (Benhabib, 2001BENHABIB, S. Transformation of citizenship: dilemmas of the nation-state in an era of globalization – the Spinoza Lectures. Amsterdam: Van Gorcum, 2001., 2002BENHABIB, S. The claims of culture: equality and diversity in the global era. Princeton: Princeton University Press, 2002., 2004aBENHABIB, S. The rights of others: aliens, citizens and residents – The John Seeley Memorial Lectures. Cambridge: Cambridge University Press, 2004a.). A cidadania nacional é um status jurídico e social, que combina alguma forma de identidade coletivamente compartilhada com o direito a benefícios sociais e econômicos e à qualidade de membro político através do exercício de direitos democráticos. Eu argumentei que no mundo atual os direitos civis e sociais de migrantes, estrangeiros e naturalizados estão cada vez mais protegidos por documentos internacionais de direitos humanos.1 1 Os mais proeminentes destes são: A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher; a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. O estabelecimento da União Europeia (UE) foi acompanhado por uma Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e pela formação de um Tribunal de Justiça da União Europeia. A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, que abrange também estados que não são membros da UE, permite que as reivindicações de cidadãos de estados aderentes sejam ouvidas pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Desenvolvimentos paralelos podem ser vistos no continente americano pelo estabelecimento do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Estados africanos aceitaram a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos em 1981 através da Organização de Unidade Africana e até esta data ela foi ratificada por 49 estados (Henkin et al., 2003HENKIN, L. et al. The international human rights movement, human rights. New York: Foundation Press, 2003., p. 147ss).

Apesar destes desenvolvimentos, a conexão entre cidadania nacional e os privilégios da participação democrática foi preservada nas legislações eleitorais que restringem estes privilégios somente aos nacionais; mas também neste domínio mudanças são visíveis, em particular em países da União Europeia: na Dinamarca, na Suécia, na Finlândia e nos Países Baixos, imigrantes (third-country nationals) podem participar nas eleições locais e regionais; na Irlanda estes direitos são garantidos no nível local. Na Comunidade do Reino Unido (Commonwealth) cidadãos podem votar em eleições nacionais.

Essa tendência não está limitada à Europa. Cada vez mais, México e governos da América Central, tais como El Salvador e Guatemala, estão permitindo que filhos de pais com cidadania local, nascidos em países estrangeiros, conservem os direitos de voto no país de origem dos pais e, até mesmo, concorram a cargo eletivo; a prática de reconhecer a dupla cidadania está se generalizando. No sul da Ásia, particularmente entre as elites econômicas que têm três ou mais passaportes e que operam três ou mais economias nacionais, a instituição da “cidadania flexível” está tomando conta (Ong, 1999ONG, A. Flexible citizenship: the cultural logic of transnationality. Durham: Duke University Press, 1999.).

Porém, essas mudanças nas modalidades de pertença política foram acompanhadas por outras formas mais ominosas de exclusão: primeiro, a condição de refugiado e de requerente de asilo não se beneficiou igualmente da difusão das normas cosmopolitanas. Enquanto seu contingente tem aumentado pelo mundo todo como resultado do estado global de violência (Zolberg; Benda, 2001ZOLBERG, A.; BENDA, P. Global migrants, global refugees: problems and solutions. New York: Berghan Books, 2001.), a maioria das democracias liberais desde 11 de setembro de 2001, e mesmo antes disso, já tinham mudado rumo à criminalização do refugiado e requerente de asilo, julgando-o ou como mentiroso em busca de acesso às vantagens econômicas ou como uma ameaça potencial à segurança. As políticas de refugiados e de asilo tornaram-se palco de alguns dos mais intensos confrontos globais distributivos e também racializados do mundo. Mesmo dentro da União Europeia, o estabelecimento de campos de trânsito para o processamento de refugiados (RPTCs) fora das fronteiras da UE, tais como para capturar refugiados e imigrantes ilegais antes que eles cheguem em solo europeu, foram defendidos pelo Reino Unido e Dinamarca e estão em operação nos territórios mantidos pela Espanha no Norte da África e em campos de trânsito na Líbia.

Além disso, como Hannah Arendt observou há mais de meio século atrás, “o direito a ter direitos” permanece um desejo aporético.2 2 Para um tratamento mais extensivo do conceito de Arendt, ver Benhabib (2004a, cap. 2), Benhabib (2004b) e Brunkhorst (1999, p. 52-84). Para quem se deve conceder “o direito a ser um membro”, o direito de pertencer a uma comunidade na qual seu direito a ter direitos deve ser protegido por todos? Dentro de uma humanidade permanentemente dividida é somente através da filiação a uma comunidade política em que o direito a ter direitos é defendido pela solidariedade de todos que as aporias da condição de apátrida podem ser resolvidas. O direito a ter direitos deve combinar a visão liberal de cidadania como titularidade de direitos com a visão democrática republicana de filiação através da participação democrática plena.

A desagregação dos direitos de cidadania através da extensão de normas cosmopolitanas, a liminaridade contínua da condição de refugiados e de requerentes de asilo, e a crescente criminalização de migrantes como uma consequência do estado global de confrontação entre as forças do Islã político e os EUA têm levado uma série de estudiosos a interpretar estes desenvolvimentos sob uma luz completamente diferente do que eu. Para alguns, a disseminação de um regime internacional de direitos humanos e de normas cosmopolitanas representa uma narrativa apollyanada3 3 N. t. Referente a personagem da obra “Pollyana”, de Eleanor H. Porter. que não leva em conta a condição crescente de uma guerra civil global (Hardt; Negri, 2001HARDT, M.; NEGRI, A. Empire. Cambridge: Harvard University Press, 2001.; Agamben, 2005AGAMBEN, G. State of exception. Chicago: University of Chicago Press, 2005.). Para outros, enquanto estas tendências são reais, a defesa do federalismo republicano parece inadequada na medida em que não reconhece os potenciais políticos mais radicais do presente momento (Balibar, 2004BALIBAR, E. We, the people of Europe? Reflections on transnational citizenship. Princeton: Princeton University Press, 2004.; Held, 2004HELD, D. Global covenant: the social democratic alternative to the Washington Consensus. London: Polity Press, 2004.).

A enorme disparidade entre estes diagnósticos da nossa condição contemporânea, que se estendem das previsões de uma guerra civil global e um estado permanente de exceção à utopia de uma cidadania para além do estado e à democracia transnacional, pode ela mesma ser uma indicação do momento volátil e obscuro que estamos atravessando. O que se tornou muito claro é que a situação de segurança em mudança depois de 11 de setembro de 2001 desestabilizou o princípio da igualdade soberana formal dos estados. A disseminação das normas cosmopolitanas e as transformações da soberania inevitavelmente acompanham uma a outra. A ascensão de um regime internacional de direitos humanos, o qual é um dos marcos das mudanças pós-westfalianas na soberania, também anuncia alterações na prerrogativa jurisdicional de estados-nação. Como Jean L. Cohen (2004COHEN, J. L. Whose sovereignty? Empire versus international law. Ethics and International Affairs, v. 18, n. 3, p. 1-24, 2004., p. 2) corretamente observou:

Falar de pluralismo legal e constitucional, constitucionalismo social, redes governamentais transnacionais, lei cosmopolitana de direitos humanos imposta por “intervenção humanitária”, e assim por diante, são todas tentativas de conceitualizar a nova ordem global legal que está supostamente surgindo diante de nossos olhos. A reivindicação perceptiva geral é que o mundo está testemunhando um movimento para a lei cosmopolitana […]. Mas […] alterando-se a perspectiva política, o modelo de direito internacional baseado na soberania parece estar cedendo não à justiça cosmopolitana, mas a uma proposta diferente para reestruturar a ordem mundial: o projeto do império.

A ascensão de normas cosmopolitanas ou a difusão do império? De fato, é crucial deslindar esse potencial ambivalente: enquanto o surgimento de normas cosmopolitanas se destina a proteger o indivíduo em uma sociedade civil global, existem perigos tanto quanto oportunidades criadas pelo enfraquecimento da soberania do estado. O fato de que a internacionalização das normas de direitos humanos e o enfraquecimento da soberania do estado estão se desenvolvendo em conjunto um com o outro decididamente não significa que um pode ser reduzido ao outro; a gênese destes desenvolvimentos assim como sua lógica normativa são distintas.4 4 A gênese das normas cosmopolitanas remonta às experiências das duas Guerras Mundiais, ao colonialismo europeu e as lutas anticoloniais, ao genocídio armênio nos últimos estágios do Império Otomano e ao Holocausto. É errado confundir a “lex mercatoria”, que também é uma lei global, com o desenvolvimento das normas cosmopolitanas dos direitos humanos. Para um relato do desenvolvimento do direito internacional, ver Koskenniemi (2002). Ver também os relatos de inquéritos judiciais contra membros do “Partido Unidade e Progresso” (Union and Progress Party) no Império Otomano, que foram responsáveis pelo genocídio armênio (Akcam, 1996); para os inquéritos judiciais de Nuremberg, comparar Marrus (1997); e para Ralph Lemkin e seus esforços para passar a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (Genocide Convention), comparar Power (2003). Ver também a defesa apaixonada de Brunkhorst (2002) dos “direitos humanos fortes”. Nem deveriam preocupações sobre o enfraquecimento da soberania do estado, algumas das quais eu compartilho, levar a rejeitar a difusão das normas de direitos humanos pelo medo de que elas possam ser utilizadas para justificar intervenções humanitárias.

Uma vez que estas transformações estão alterando as normas da soberania do estado, assim como impactando a presente capacidade dos estados de exercerem a soberania, é importante de início distinguir entre soberania do estado e soberania popular. O conceito de “soberania” ambiguamente refere-se a dois momentos na fundação do estado moderno, e a história do pensamento político moderno no ocidente desde Thomas Hobbes pode ser plausivelmente narrada como uma negociação destes polos: primeiro, soberania significa a capacidade de um corpo público, neste caso o estado-nação moderno, para agir como o alicerce definitivo e indivisível da autoridade com a jurisdição de exercer não só o “monopólio sobre os meios de violência”, relembrando a famosa frase de Max Weber, mas também de distribuir justiça e gerir a economia.

Soberania também significa, particularmente desde a Revolução Francesa, soberania popular, isto é, a ideia do povo como sujeito e objeto do direito, ou como criadores tanto como obedecedores do direito. Soberania popular envolve instituições representativas, a separação de poderes e a garantia não somente de liberdade e de igualdade, mas do “igual valor da liberdade de cada um”. Etienne Balibar (2004BALIBAR, E. We, the people of Europe? Reflections on transnational citizenship. Princeton: Princeton University Press, 2004., p. 152) expressou a interdependência entre a soberania do estado e a soberania popular deste modo:

[…] a soberania de estado tem simultaneamente “protegido” a si mesma da e “fundado” a si mesma sobre a soberania popular na medida em que o estado político foi transformado em um “estado social” […] passando pela instituição progressiva de uma “representação de forças sociais” pelo mecanismo de sufrágio universal e pela instituição da cidadania social […].

A minha questão é: como a nova configuração da soberania do estado influencia a soberania popular? Quais opções políticas estão se tornando possíveis? Quais estão obstruídas? Hoje estamos presos não somente na reconfiguração da soberania, mas também nas reconstituições da cidadania. Estamos nos afastando da cidadania como filiação nacional cada vez mais em direção à cidadania de residência, que fortalece os múltiplos laços à localidade, à região, e às instituições transnacionais.

Eu argumentarei que as normas cosmopolitanas realçam o projeto de soberania popular enquanto forçam a abertura da caixa-preta da soberania do estado. Elas desafiam a prerrogativa do estado de ser a mais alta autoridade, administrando a justiça sobre tudo o que está vivo e morto dentro de determinada fronteira territorial. Ao tornar-se parte de muitos tratados de direitos humanos, os próprios estados “atam” suas decisões. Com muita frequência isto leva a maquinações entre a vontade das maiorias e as normas internacionais, como podemos observar no que diz respeito a questões dos direitos das mulheres e dos direitos de minorias culturais, étnicas e linguísticas, por exemplo. Mas tais maquinações tornaram-se demasiado frequentes somente porque o mundo está caminhando em direção a uma nova forma de política pós-westfaliana de interdependência global.

Ser distinguido da influência de normas cosmopolitanas de direitos humanos é o enfraquecimento da soberania do estado através das demandas do capitalismo global. O capitalismo global está de fato criando sua própria forma de “direito global sem um estado” (Teubner, 1997TEUBNER, G. (org.). Global law without a state. Aldershot: Dartmouth, 1997.), assim como sabotando os esforços de legisladores para conduzir deliberações abertas e públicas sobre legislação que impacte os movimentos do capital e outros recursos. Ademais, muitos estados estão privatizando suas próprias atividades abrindo mão da autoridade sobre prisões e escolas para empresas privadas (Apter, 2001APTER, D. Globalization, marginality, and the specter of superfluous man. Journal of Social Affairs, v. 18, n. 71, p. 73-94, 2001.). Minha tese é de que ao passo que normas cosmopolitanas levam ao surgimento de interesse humano generalizável e à articulação de padrões públicos de justificação de normas, o capitalismo global leva à privatização e segmentação de comunidades de interesse e ao enfraquecimento de padrões de justificação pública pelo aumento da lógica privada de geração de norma. Isto resulta na deterioração da capacidade dos estados de proteger e prover seus cidadãos.

As seções seguintes deste ensaio documentam, a traços largos, três tipos de mudanças no relacionamento de territorialidade e jurisdição na evolução do estado moderno: migrações transnacionais, o surgimento do direito global, e o aumento de legislação fast-track. As últimas duas transformações legal e socioeconômica estão levando ao enfraquecimento da soberania popular e à privatização da soberania do estado, enquanto as migrações transnacionais estão tanto habilitadas pela difusão das normas cosmopolitanas quanto contribuem para sua difusão. Eu concluo com considerações normativas sobre iterações democráticas, que eu defino como processos por meio dos quais as normas cosmopolitanas da vontade e as maiorias democráticas podem ser reconciliadas, ainda que nunca perfeitamente, através da argumentação pública e deliberação em atos de iterações normativas.

Territorialização e direito: colonialismo versus migrações transnacionais

A formação do estado moderno no Ocidente começa com a “territorialização” do espaço. O cercamento de uma porção particular de terra e sua demarcação de outras pela criação de fronteiras protegidas, e a suposição de que tudo que se encontra dentro dessas fronteiras, quer animado ou inanimado, pertence ao domínio do soberano é central para o sistema de estados territorialmente limitados na modernidade ocidental. Neste modelo “westfaliano”, a integridade territorial e uma autoridade jurisdicional unificada são dois lados da mesma moeda; proteger a integridade territorial é a outra face do poder do estado para reivindicar sua autoridade jurisdicional (dominium).

Os estados modernos absolutistas da Europa Ocidental eram governados, nos termos de Carl Schmitt (1997SCHMITT, C. Der Nomos der Erde im Voelkerrecht des Jus Publicum Europaeum. 4. ed. Berlin: Duncker and Humblot, 1997., p. 99), pelo “jus publicum Europaeum” como seu direito internacional. Todavia, este modelo era instável desde o princípio, ou na famosa frase de Stephen Krasner “soberania é hipocrisia”. Já a descoberta das Américas, a aventura imperialista na Índia e na China, a luta por dominação sobre o Oceano Índico e a colonização da África no século dezenove destruíram esta forma de soberania do estado e de direito internacional desbastando-os nas periferias.5 5 Para um relato magistral, que é também uma crítica sustentada de Schmitt, ver Koskenniemi (2002, p. 98-179). Comparar a declaração do historiador belga do direito Ernest Nys: “Um estado usa os territórios que constituem seu domínio privado como deseja; ele os vende, os aluga, atribui tais condições às concessões que concede como se fosse garantido […] em nada disso ele deve uma explicação a outros estados”. Do L'etat Independent du Congo et les dispositions de l'acte generale, citado em Koskenniemi (2002, p. 161). Não apenas a confrontação do Ocidente com outros continentes, mas já a questão de saber se o Império não-cristão Otomano pertenceu ao “jus publicum Europaeum” mostrou as limitações desta ordem. Embora o próprio Schmitt não esteja longe de idealizar este momento na evolução da “lei da terra”, sua própria explicação documenta seus limites inerentes e sua eventual dissolução.6 6 O epílogo de Schmitt para o Jus publicum Europaeum (O direito público da Europa) enfatiza que o sistema “neutraliza” a guerra afastando-se da noção medieval de “guerra justa”. Nesta transformação o inimigo não é mais visto como “inimicus” mas como “justi hostes” (categorias que também retornam no conceito de Schmitt do “político”). Este conceito “neutralizado” de guerra também é denominado “o conceito não-discriminatório de guerra” (der nicht-diskriminierende Kriegsbegriff). “Todas as guerras entre estados sobre o solo europeu, que são realizadas pelos exércitos militarmente organizados dos estados reconhecidos pelo direito europeu das nações (Voelkerrecht), são justas no sentido do direito europeu das nações deste período interestatal” (Schmitt, 1997, p. 115, ênfase no texto). Aqui, Schmitt confunde “justiça” e “legalidade”, não por algum erro de lógica, mas porque ele rejeita todos os padrões normativos para julgar guerras. A “desterritorialização” do estado moderno vai de mãos dadas com a transformação das antigas repúblicas burguesas em impérios europeus, quer sejam eles da Inglaterra, França, Espanha, Portugal, Bélgica, Holanda ou Itália.

A evolução de repúblicas burguesas em impérios destrói a sobreposição entre controle territorial e autoridade jurisdicional, que governa, pelo menos em princípio, o país natal. As colônias da Europa tornam-se locais de usurpação e conquista nos quais são criados espaços extrajurídicos, afastados do alcance do princípio liberal de anuência. Como Edmund Burke expressou sucintamente com respeito a “massacres administrativos” na Índia e o impedimento de Warren Hastings, que era responsável por eles na Câmara Britânica, isto precisava ser feito de modo que “infratores da lei na Índia não pudessem se tornar ‘os criadores de lei para a Inglaterra.’”7 7 Burke, citado em Arendt (1951, p. 183); ver também o poderoso tratamento de Hannah Arendt (1951, p. 132): “A única grandeza do imperialismo reside nas nações perdendo batalhas contra ele”.

Com o surgimento de repúblicas burguesas e democráticas, o “sujeito” do estado absolutista é transformado no “cidadão”. Do mesmo modo que o paradigma westfaliano de soberania encontra seus limites fora da Europa, ele é constitucionalizado em casa pelas lutas sociais por uma maior responsabilização, sufrágio universal, representação expandida, liberdades democráticas e direitos sociais. Estas lutas são o local da soberania popular, de demandas para fazer o aparato estatal responsivo e transparente aos seus cidadãos. Lutas por soberania popular na pátria, a difusão da cidadania moderna e empreendimentos imperialistas no exterior vão de mãos dadas de uma forma que muitos estudiosos sequer começaram a entender (Brodie, 2004BRODIE, J. Introduction: globalization and citizenship beyond the national state. Citizenship Studies, Routledge, v. 8, n. 4, p. 323-333, 2004.; Ikeda, 2004IKEDA, S. Imperial subjects, national citizenship, and corporate subjects: cycles of political participation/exclusion in the modern world system. Citizenship Studies, v. 8, n. 4, p. 333-349, 2004.).

Este legado do império voltou hoje a assombrar os países ricos em recursos do Hemisfério Norte pelo aumento das migrações transnacionais. Migrações transnacionais também produzem um desacoplamento entre territorialidade, soberania e cidadania, mas de uma forma bem diferente do que o colonialismo. Ao passo que nos séculos dezenove e vinte, o imperialismo europeu disseminou formas de jurisdição em territórios coloniais que eram protegidas do consentimento e do controle democráticos, movimentos migratórios contemporâneos dão origem a jurisdições sobrepostas que são frequentemente protegidas por normas internacionais.

Em 1910 cerca de 33 milhões de migrantes viviam em países que não o seu; até o ano de 2000 seu número alcançou 175 milhões (Zlotnik, 2001ZLOTNIK, H. Past trends in international migration and their implications for future prospects. In: M. A. B. SIDDIQUE (org.). International migration into the twenty-first century: essays in honor of Reginald Appleyard. Boston: Edward Elgar, 2001., p. 227). Durante o mesmo período (1910-2000), a população do mundo cresceu de 1,6 para 5,3 bilhões, cerca de três vezes. As migrações, por outro lado, aumentaram quase seis vezes ao longo dos mesmos 90 anos. Notavelmente, mais da metade disto ocorreu nas últimas três décadas do século vinte, entre 1965 e 2000. Neste período, 75 milhões de pessoas empreenderam movimentos transfronteiriços para se estabelecer em países que não o seu de origem (United Nations, 2002UNITED NATIONS, Department of Economic and Social Affairs. International Migration Report, ST/ESA/SER.A/220. New York: United Nations, 2002.).

As transformações nos padrões de migração estão levando mais e mais indivíduos a manter laços com seus países de origem e a não intentar uma imersão total em seus países de imigração. A facilidade fornecida por redes globalizadas de transporte, comunicação, mídia eletrônica, serviços e financiamentos bancários estão produzindo trabalhadores hóspedes, trabalhadores sazonais, cidadãos com dupla cidadania e viajantes habituais por diáspora. As migrações não trazem mais consigo imersão total e socialização na cultura do país de acolhimento – um processo incisivamente simbolizado pela atribuição de novos nomes de família em Ellis Island a imigrantes para os EUA.

Hoje estados-nação encorajam políticas de diáspora entre seus migrantes e ex-cidadãos, vendo na diáspora não apenas uma fonte de suporte político para projetos na pátria, mas também um recurso de redes, habilidades e competências que podem ser utilizados para melhorar a posição do próprio estado em um mundo cada vez mais global. Exemplos notáveis de tais diásporas são as grandes comunidades indiana, chinesa e judia por todo o globo. Sua fidelidade contínua ao então chamado país natal é cuidadosamente cultivada.

Migrações, portanto, levam a uma pluralização de fidelidades e compromissos e à crescente complexidade de cidadãos que, muito frequentemente, no mundo de hoje, são simultaneamente ex, pós e neocoloniais. Nós estamos testemunhando a crescente migração da periferia para o centro, encorajada por amplos diferenciais em padrões de vida entre regiões do mundo, e facilitada pela larga presença anterior de familiares e parentes no centro do antigo império. Indianos, paquistaneses, caxemiras, e cingaleses no Reino Unido; argelinos e marroquinos na França; surinameses e molucanos na Holanda; latino-americanos na Espanha; libaneses na Itália: são todos grupos de populações cuja história está profundamente ligada aos impérios europeus. O estado westfaliano que se estendeu em direção ao resto do mundo agora descobre que suas fronteiras são porosas em ambas as direções e que não é somente o centro que flui para a periferia, mas a periferia que flui em direção ao centro.

Soberania de estado, a qual é eminentemente ligada à habilidade de proteger fronteiras, agora mais do que nunca se revela dependente de hábeis negociações, transações, acordos e fluxos com outros estados. Certamente estados e regiões diferem amplamente em sua habilidade em afirmar sua soberania e sua importância. As economias mais pobres da América Central, Sul da Ásia e África são menos aptas a policiar suas fronteiras; as maiores populações de refugiados do mundo estão também estabelecidas em algumas das regiões mais pobres do mundo tais como Chade, Paquistão e Inguchétia (Benhabib, 2004aBENHABIB, S. The rights of others: aliens, citizens and residents – The John Seeley Memorial Lectures. Cambridge: Cambridge University Press, 2004a.).

Migrações são o local de intensos conflitos por recursos assim como por identidades. No mundo contemporâneo, estados fortes militarizam e crescentemente criminalizam movimentos migratórios. O migrante pobre se torna o símbolo da contínua afirmação da soberania. Corpos de migrantes, tanto vivos quanto mortos, cobrem o caminho do poder do estado.

Migrações transnacionais revelam a pluralização de locais de soberania pelo fato que, com a mudança de padrões de aculturação e socialização, migrantes começam a viver em jurisdições múltiplas. Embora eles estejam cada vez mais protegidos por normas cosmopolitanas na forma de vários tratados de direitos humanos, eles ainda estão vulneráveis a um sistema de soberania de estado que privilegia a cidadania nacional enquanto restringe regimes de cidadania dupla e múltipla.

Militarização e criminalização são respostas defensivas que estados usam para reafirmar sua soberania em face das migrações transnacionais. Mas é possível pensar sobre soberania em outros termos que aqueles sugeridos pelo modelo de impermeabilidade autóctone? É concebível pensar em soberania em termos relacionais? É possível desagregar funcionalmente funções da soberania e ainda criar modalidades de cooperação? Nós ainda podemos manter o ideal de soberania popular e governo democrático se o modelo de soberania centrado no estado está se tornando disfuncional?

Desterritorialização do direito: capitalismo global

Migrações transnacionais revelam a dependência dos estados do movimento mundial dos povos assim como das políticas de seus congêneres. Uma vez que cada centímetro da face do mundo, com a exceção dos Polos Sul e Norte, está agora estatizado e é governado por um estado que tem jurisdição territorial, movimentos transfronteiriços iniciados por migrantes, assim como refugiados e requerentes de asilo, trazem à luz a fragilidade tanto quanto a frequente irracionalidade do sistema estatal. Vis-à-vis aos movimentos transfronteiriços dos povos, o estado permanece soberano, ainda que de uma forma muito reduzida. Vis-à-vis ao movimento de capital e de mercadorias, informação e tecnologia através das fronteiras, o estado hoje é mais refém do que soberano.

Em anos recentes, muito tem sido escrito sobre globalização como um fenômeno mundial e a enfraquecida capacidade dos estados. Estou persuadida pelo argumento de que para entender este fenômeno é mais útil usar o termo “estaticidade”, isto é, a capacidade dinâmica de estados de reagirem a e de controlarem os seus ambientes de formas múltiplas (Nettl, 1968NETTL, J. P. The state as a conceptual variable. World Politics, v. 20, n. 4, p. 559-592, July, 1968., p. 559; Evans, 1997EVANS, P. The eclipse of the state? Reflections on stateness in an era of globalization. World Politics, Princeton, v. 50, n. 1, p. 62-87, 1997.). Há uma variação global enorme na capacidade de “estaticidade”. As democracias afluentes da América do Norte, Europa, Austrália e Nova Zelândia podem manipular, domar e canalizar as forças do capitalismo global assim como o fluxo mundial de informação, comunicação e tecnologias de transporte. Isto obviamente é muito menos válido para muitos estados no Norte da África, Oriente Médio, América Latina e Ásia. A ascensão para a proeminência mundial da China, Índia, Brasil, assim como das economias dos Tigres Asiáticos é em grande medida devido à capacidade destes estados de canalizar a globalização econômica em proveito próprio.

Em sua análise das economias do Sudeste Asiático, Aihwa Ong dá um convincente exemplo dos modos pelos quais o capitalismo global está criando espaços jurisdicionais acima e além dos controles democráticos. Novas formas de “zonas multinacionais de soberania” na forma de triângulos de crescimento (TCs) estão se espalhando por todo o Sul da Ásia e América Central. Estas “desafiam fronteiras entre estados limítrofes para maximizar as vantagens locacionais e atrair capital global” (Ong, 1999ONG, A. Flexible citizenship: the cultural logic of transnationality. Durham: Duke University Press, 1999., p. 221). Os três TCs formados pela ligação de países vizinhos são Indonésia – Malásia – Singapura (Sijori), Indonésia – Malásia – Tailândia, e Brunei – Indonésia – Malásia – Filipinas. Corporações transnacionais como Nike, Reebok, e Gap agora empregam milhões de mulheres que trabalham 12 horas por dia, ganhando menos de US$ 2,00 por dia. Ong observa que estes “triângulos de crescimento são zonas de soberania especial que são organizadas através de uma rede multinacional de parcerias inteligentes e que exploram a mão de obra barata que existe na órbita de um eixo global como Singapura. Parece que trabalhadores de TC estão menos sujeitos às regras de seu país natal e mais às regras de corporações e a condições competitivas definidas por outros triângulos de crescimento na região” (Ong, 1999ONG, A. Flexible citizenship: the cultural logic of transnationality. Durham: Duke University Press, 1999., p. 222).

Uma explicação paralela é fornecida por Carolin Emcke a respeito dos trabalhadores das maquilladoras na América Central. Estas são estabelecidas por capital estrangeiro em El Salvador, Guatemala, e Costa Rica sob a proteção dos respectivos governos, frequentemente como zonas livres de taxas para atrair investimento estrangeiro. Elas protegem as zonas que ocupam pelo uso de guardas e forças de segurança privada, esmagam qualquer tentativa de organizar a força de trabalho, e ferozmente defendem a si mesmas contra controle e supervisão internacionais e até mesmo nacional. Elas assemelham-se a senhores de guerra medievais que tomaram as populações nativas como refém.

Quer sejam os Triângulos de Crescimento do Sudeste da Ásia ou as maquilladoras da América Central, esta forma de globalização econômica resulta na desagregação da soberania de estados com a sua própria cumplicidade. Como no caso da colonização e do imperialismo, há mais uma vez um desacoplamento de jurisdição e território em que o estado transfere seus poderes de jurisdição, quer com pleno conhecimento ou por consequência não intencional, a organismos privados não-estatais e corporativos. Os perdedores neste processo são os cidadãos de quem a proteção do estado é retirada ou, mais provavelmente, que nunca tiveram uma forte proteção do estado em primeiro lugar, e que se tornaram dependentes do poder e da compaixão de corporações transnacionais e outras formas de capitalismo aventureiro.

Apesar da grande variação em todos os países com respeito às interações entre a economia global e o estado, uma generalização pode ser feita com segurança: a globalização econômica está levando a uma transformação fundamental de instituições legais e do paradigma do estado de direito (the rule of law). Cada vez mais a globalização está gerando um corpo de leis que é autogerador e autorregulador e que não se origina através da atividade legislativa ou deliberativa de legisladores nacionais.

Direito sem um estado?

Em seu influente artigo “‘Bukowina global’: o pluralismo legal na sociedade mundial”, Gunther Teubner (1997TEUBNER, G. (org.). Global law without a state. Aldershot: Dartmouth, 1997., p. 5) elabora o seguinte caso: “a globalização de hoje não é um surgimento gradual de uma sociedade mundial sob a liderança de políticas entre estados, mas é um processo altamente contraditório e altamente fragmentado no qual a política perdeu seu papel de liderança”. Como exemplos do direito global sem um estado Teubner cita a “lex mercatoria”, a lei transnacional de transações econômicas; o direito trabalhista, onde as empresas e os sindicatos dos trabalhadores, atuando como atores privados, tornam-se criadores de leis; a padronização técnica e a autorregulação profissional engajadas mundialmente pelas partes relevantes sem a intervenção de políticas oficiais.

Este corpo emergente de leis é “uma ordem legal”, mesmo que não tenha pontos específicos de originação na forma de instituições produtoras de leis, e menos ainda, uma única e visível agência impingidora de leis. As fronteiras do direito global não são definidas por fronteiras nacionais, mas por “'colegiados invisíveis’, ‘mercados e ramos de atividades invisíveis’, ‘comunidades profissionais invisíveis’, redes sociais invisíveis’ […]” (Teubner, 1997TEUBNER, G. (org.). Global law without a state. Aldershot: Dartmouth, 1997., p. 8). Fronteiras territoriais e poderes jurisdicionais são mais uma vez desacoplados.

Como Teubner reconhece, esta forma de direito tem sérios déficits democráticos. “É um direito que cresce e muda de acordo com as exigências das transações e organizações econômicas globais. Isto o torna extremamente vulnerável a pressões de interesse e de poder dos processos econômicos, porque é ‘indeterminado’ e pode mudar em sua aplicação de caso para caso” (Teubner, 1997TEUBNER, G. (org.). Global law without a state. Aldershot: Dartmouth, 1997., p. 21). O soft law é um direito sem as características tradicionalmente associadas ao estado de direito: transparência, previsibilidade, e uniformidade de aplicação. Estas características do estado de direito, entretanto, não são meras características processuais; elas agem como garantias da igualdade das pessoas e cidadãos perante a lei. O direito global, por outro lado, não é garantia para ou protetor da igualdade; é antes o direito que capacita corporações globais e outros corpos para realizarem suas transações em um ambiente crescentemente complexo pela geração de normas autovinculantes e autorreguladoras.

Existem importantes conflitos e tensões entre estas características da “lex mercatoria” e as leis dos direitos humanos e normas cosmopolitanas: tanto os triângulos de crescimento como as maquilladoras são caracterizados por uma suspensão das normas dos direitos humanos em zonas de privilégio especial econômico e de negócios. Além disto, indivíduos que trabalham nestas zonas não são unicamente, ou nem mesmo primariamente, os cidadãos dos países em que estas zonas de soberania econômica privilegiada operam; muito frequentemente são eles mesmos migrantes transnacionais de países vizinhos, cujos direitos humanos estão sendo espezinhados. Deste modo, malaios, tailandeses, birmaneses e outros trabalham na Indonésia; trabalhadores ilegais chineses abundam nas maquilladoras da América Central. Enquanto, sem dúvida, o fluxo de capital global é ele mesmo responsável por encorajar o fluxo de migrações transnacionais, nós vemos que as normas que deveriam proteger migrantes e as leis que capacitam o capitalismo global não são compatíveis. Lex mercatoria, a lei de transações comerciais internacionais, e a lei dos direitos humanos colidem e conflitam (Fischer-Lescano; Teubner, 2004FISCHER-LESCANO, A.; TEUBNER, G. Regime-collisions: the vain search for legal unity in the fragmentation of global law. Michigan Journal of International Law, v. 25, p. 999–1046, 2004.).8 8 Particularmente interessante é a conspiração entre os interesses econômicos de detentores de patentes, tais como as grandes indústrias farmacêuticas Merck, Pfeizer e Roche, que em 2001 pediram à OMC para investigar o Brasil que permitira a produção doméstica de drogas genéricas através da cópia de medicamentos patenteados. O Brasil se defendeu apontando que a epidemia da AIDS havia tomado 150.000 vidas desde 1981 e que com medidas preventivas a infecção anual poderia ser reduzida para menos de 5.000. Este caso, que implica uma clara reivindicação de direitos humanos para a saúde e proteção pública de doenças epidêmicas, por sua vez, levou a uma grande renegociação dos termos do ADPIC (Acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio) e para mais negociações entre a OMS e a OMC sobre o uso preventivo e não comercial de drogas patenteadas, e levou todo o caminho para uma resolução da Comissão das Nações Unidas sobre Direitos Humanos em 2000 protegendo o uso preventivo de drogas genéricas sempre que possível para ajudar a combater a disseminação de doenças e epidemias. No Encontro de Doha em 2002, uma Declaração sobre o acordo ADPIC e Saúde Pública foi emitido, o qual afirmava as garantias fornecidas no ADPIC com relação aos direitos dos estados de emitir tais medidas como licença compulsória para cooperar com crises da saúde em seus respectivos países. Representantes das empresas em geral preferiram métodos de diferenciação de preços, mas aceitaram que eles devem aceitar a decisão do estado de lidar com seus próprios problemas de saúde. Desde a rodada de Doha em 2002, no entanto, as orientações gerais têm aparentemente ido em direção a acordos bilaterais, ao invés de multilaterais. Ver a publicação Direitos de propriedade intelectual, resultados de um diálogo de acionistas entre Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável e o Centro para Pesquisa em Ciências Sociais de Berlim (Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung (reimpressão de abril de 2004). Contato: wbcsd@earthprint.com.

Essa globalização econômica ameaça características centrais do estado de direito e desse modo desafia as perspectivas para a democracia liberal, assim como é enfaticamente argumentado por William E. Scheuerman em Liberal democracy and the social acceleration of time:

O Capitalismo contemporâneo difere do seu predecessor histórico em muitos aspectos distintos: economias impulsionadas por enormes corporações transnacionais que fazem uso efetivo de tecnologias de comunicação, informação e de transporte de alta velocidade repre- sentam um desenvolvimento relativamente singular. A relação do capitalismo com o estado de direito é, desta forma, transformado também […]. Como a ação social de alta velocidade “comprime” a distância, a separação entre relações exteriores e domésticas erode, e a tradicional visão do executivo como o mais adequado aos ditames da política externa de reação rápida mina os padrões básicos de legalidade na esfera doméstica também (Scheuerman, 2004SCHEUERMAN, W. E. Liberal democracy and the social acceleration of time. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2004., p. 145).

A transformação do estado de direito dá origem à legislação fast-track, impulsionada pelos legisladores nacionais sem debate e deliberação adequados; o poder de corpos deliberativos é eclipsado e o do executivo aumenta. “O principal problema colocado pela globalização é menos o fato de que negócios transnacionais somente poderem preservar sua autonomia pela limitação do poder do estado por meio do estado de direito, do que o fato de que o estado-nação democrático somente pode ter esperança de manter sua independência em relação aos negócios globais opondo-se à corrida competitiva virtualmente universal para prover firmas transnacionais com direitos e privilégios especiais” (Scheuerman, 2004SCHEUERMAN, W. E. Liberal democracy and the social acceleration of time. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2004., p. 169). Os estados são empurrados para uma “race to the bottom”, isto é, para adotar reformas neoliberais, reduzindo o estado de bem estar e diminuindo as legislações trabalhistas e ambientais.

Direito sem um estado? Ou race to the bottom? Na primeira parte deste ensaio havia perguntado: difusão de normas cosmopolitanas ou imperialismo? Novamente parece que estamos confrontados com alternativas e disjunções. Certamente, estas não são as únicas alternativas com que os processos de globalização nos confrontam, mas em ambos os casos o modelo de soberania liberal, baseado na unidade da jurisdição administrada sobre um território definido, assegurando a igualdade dos cidadãos pela administração do estado de direito e garantindo bem-estar social pela redistribuição econômica, mais e mais aparece como se fosse memória de um passado singular. É importante enfatizar que estados soberanos são atores com considerável poder neste processo: eles por si mesmos frequentemente criam e guiam as próprias transformações que restringem seus próprios poderes (Sassen, 2006SASSEN, S. Territory, authority, rights: from medieval to global assemblages. Princeton: Princeton University Press, 2006.).

Quer seja pela mudança de padrões de migrações transnacionais; ou pelo surgimento de triângulos de crescimento e novas formas globais de direito sem um estado no mercado global acelerado e fluido; ou pela pressão para adaptar burocracias de estado ao novo capitalismo: uma mudança de época está em andamento em que, pedaço por pedaço, aspectos da soberania de estado estão sendo desmantelados. A jurisdição de estado e a territorialidade são desacopladas, enquanto novos agentes de jurisdição em forma de corporações multinacionais surgem. Em alguns casos, o estado delega a sua própria jurisdição para agências privadas de modo a libertar-se do controle territorial de legisladores populares. O contrato social está cada vez mais desgastado.

Se a análise acima apresentada está parcialmente precisa, o “declínio da soberania de estado” significa o fim da cidadania e das políticas democráticas, o deslocamento da política ou talvez até mesmo o seu eventual desaparecimento na evolução das sociedades mundiais? Quais são as consequências normativas destas transformações? Que luz essa análise teórico-social verte sobre as filosofias políticas do presente período?

O declínio da soberania e a sociedade civil mundial

Do mesmo modo que varia consideravelmente a capacidade de estados-nação de exercitarem sua “estaticidade”, ocorre também com suas reações ao encolhimento da esfera da autonomia e da atividade do estado. Vis-à-vis aos desafios econômicos, ecológicos e legais e à crescente fluidez de migrações de todo o mundo, os estados da Europa escolheram a reestruturação cooperativa da soberania. A esta reestruturação cooperativa da soberania tem de ser justaposta a reafirmação unilateral da soberania. Presentemente, não apenas os Estados Unidos, mas a China, o Irã e a Índia estão indo por este caminho, sem mencionar a Rússia, a Coréia do Norte e Israel. A estratégia aqui é de fortalecer o estado via tentativas de reunir todos os marcadores de soberania na autoridade pública, tendo como consequência uma crescente militarização, a desconsideração do direito internacional e dos direitos humanos, relações regressivas e hostis com vizinhos, e a criminalização da migração. A terceira alternativa é o enfraquecimento das já frágeis instituições da soberania do estado em vastas regiões da África, América Central e Latina, e Sul da Ásia. Nestes casos, além de desestabilizarem as economias frágeis, as forças do mercado global quebram os laços entre o vasto exército dos pobres e oprimidos e suas elites locais, que agora estabelecem uma rede de contatos com as suas contrapartes globais, deste modo deixando as massas à mercê de maquilladoras, paramilitares, traficantes e gangues criminosas. O estado retira-se para uma carapaça, assim como aconteceu na Costa do Marfim, em Congo, no Sudão, em El Salvador, em algumas partes do Brasil, na Birmânia etc. Sob tais condições a soberania popular assume a forma, na melhor das hipóteses, de estado de guerrilha e, na pior, de grupos criminais igualmente lutando para ganhar uma fatia do bolo. Nem a contração de estaticidade nem a sua reafirmação militarizada acentuam a soberania popular.

As configurações voláteis e frequentemente ambivalentes de instituições tais como a cidadania e a soberania, que têm definido nosso entendimento das políticas modernas durante aproximadamente os últimos 350 anos desde o Tratado de Westfália (1648), compreensivelmente deram origem a comentários e interpretações conflitantes no pensamento político contemporâneo. Estes podem ser caracterizados como: teorias do império, teorias da governança transnacional, e teorias da cidadania pós-nacional.

O império, segundo Michael Hardt e Antonio Negri, é o poder sempre expansivo do capital global para trazer os alcances mais distantes do mundo para seu controle. Ao contrário dos impérios de extração e exploração do passado, no entanto, o novo império encoraja a disseminação das normas dos direitos humanos; ele impulsiona as novas tecnologias de rede, destruindo, assim, os muros de separação e gerando uma nova conectividade global consonante com esta nova era.9 9 Embora traduzido para o inglês somente em 2001, a versão italiana de O império foi escrita no período entre a Guerra do Golfo Pérsico de 1991 e a Guerra Civil Jugoslava de 1994. A sua visão do poder dos EUA é mais benevolente do que o trabalho subsequente de Michael Hardt e Antonio Negri (2004), Multidão: guerra e democracia na era do império.

Desde que as teias do império são tão onipresentes, os locais de resistência a ele são difusos, descentralizados e múltiplos. A “multidão” resiste à total penetração das estruturas da vida pelo império ao organizar demonstrações contra o G-7, o Banco Mundial, a Guerra do Golfo, a Guerra do Iraque e a violação do direito internacional. A multidão se concentra no poder como um fenômeno global e tenta gerar uma força contrária ao império.10 10 O último capítulo do livro Multidão de Hardt e Negri se chama “Que a força esteja convosco” (ver p. 341-348); sobre o carnaval, compare “As várias formas de carnaval e mímica que são tão comuns hoje nos protestos contra a globalização devem ser consideradas outra forma de armamento. Simplesmente ter milhões de pessoas nas ruas para uma demonstração é um tipo de arma, assim como o é, de uma forma um tanto quanto diferente, a pressão de migrações ilegais […] Uma semana de ataque biopolítico global bloquearia qualquer guerra” (Hardt; Negri, 2004, p. 347).

As metáforas de rede de comunicação, entrelaçamento, ligação, disseminação de formas comunicativas e assim por diante, que subjazem a esta análise teórica social, são unilaterais precisamente porque apresentam um mundo sem atores institucionais e sem centros estruturados de resistência.11 11 Assim como na teoria do poder de Michel Foucault, também na análise de Hardt e Negri os sujeitos do poder são interpelados por ele, em outras palavras, constituídos em parte pela rede de poder ao invés de precedê-la; estados e outras instituições mundiais desaparecem como agentes e locais de resistência que têm constituição prévia. Eu discordo desta teoria do poder. Pode-se estipular a existência de instituições muito distintas e estruturadas e padrões de resistência ao poder sem pressupor uma primordialidade metafísica seja do estado ou do sujeito. O alcance do império não é nem tão ubíquo nem tão onisciente como Hardt e Negri gostariam que pensássemos. Coerentemente, a multidão, o sujeito revolucionário de Hardt e Negri, não é o cidadão. A multidão não é nem mesmo o portador da soberania popular, uma vez que falta a esta o impulso em direção à constitucionalização do poder, que tem sido o desiderato de todos os movimentos populares desde as revoluções americana e francesa. A multidão dá expressão à fúria daqueles que perderam suas repúblicas: a multidão esmaga instituições e resiste ao poder. Ela não se engaja por aquilo que Hannah Arendt denominou de “constitutio libertatis” (Arent, 1963ARENDT, H. On revolution. New York: Viking Press, 1963.; Benhabib, 2003BENHABIB, S. The reluctant modernism of Hannah Arendt. 2. ed. Totawa: Rowman and Littlefield, 2003.). A soberania popular, em contraste, visa a ampliar o círculo de representação entre todos os membros do demos de forma duradoura: a soberania popular visa ao controle do poder do estado via separação de poderes entre o judiciário, o legislativo e o executivo; a soberania popular significa a criação de estruturas de responsabilização e transparência no exercício público do poder. Isto está muito longe da política da multidão.

Este aspecto do exercício legítimo de poder é bem enfatizado em debates teóricos contemporâneos acerca da governança transnacional tais como de Anne-Marie Slaughter e David Held. Na raiz da extensão do império, argumentam os defensores da democracia transnacional, encontra-se um problema de legitimação. Estamos sob controle de forças e processos que assemelham-se ao cavaleiro galopante sem cabeça. Decisões são tomadas em reuniões de conselho exclusivas do FMI, da OMC e do Banco Mundial, afetando as vidas de milhões, enquanto os estados-nação recusam-se a assinar tratados multilaterais, tais como a Convenção de Kyoto ou o Tratado de Roma que leva ao estabelecimento do Tribunal Penal Internacional. Teóricos da multidão parecem confundir política com carnaval. Somente instituições transnacionais podem construir estruturas permanentes para contrabalançar as forças do império.

Precisamos de estruturas de governança e coordenação mundial transparentes e responsáveis. Algumas destas estruturas já estão visíveis pelas redes de especialistas econômicos, judiciais, militares, imigrantistas, da saúde e em comunicações. Estas formam locais de informação, coordenação e regulação horizontalmente conectados. O futuro da cidadania global está em se tornar ativamente envolvido em tais organizações transnacionais e trabalhar em direção à governança global. Se isto implica num governo mundial ou não está, atualmente, além do ponto: o que importa é aumentar as estruturas de responsabilização e governança.12 12 Ver Held (2004), Kuper (2004), Slaughter (2004). Existe algo muito alegre e otimista nestas propostas que minimizam o perigo de dissociar o constitucionalismo da democracia e da vontade e razão dos cidadãos, transferindo-o para uma peritocracia, mesmo que a uma peritocracia bem intencionada como juízes e profissionais do direito internacional.

Na versão da tese da governança global defendida por Anne-Marie Slaughter, que se concentra menos nas possibilidades normativas para governança democrática para além de fronteiras, e mais nas redes horizontais ligando funcionários do governo em organizações judiciais, regulatórias e administrativas para além das fronteiras do estado, um reino da lei “para além do estado” já foi criado e o alcance do direito global é estendido sem a agência do estado e suas instituições.

Ao passo que seguidores do Niklas Luhmann maduro, tais como Gunther Teubner, veem estruturas da governança global resultando per impossibile da interligação autorreguladora de sistemas anônimos de geração de normas que agem como entorno uns para os outros, Anne-Marie Slaughter coloca sua fé na criação de redes das elites atuais no poder judiciário em todo o mundo, em burocracias administrativas etc. A esperança é que novas normas e padrões para o comportamento público resultarão através de tais interligações.

Defensores da governança transnacional têm uma questão: o atual estado de interdependência global requer novas modalidades de cooperação e regulação. Controle de armas, ecologia, combate a doenças e epidemias e a luta contra a disseminação da pobreza devem ser um empreendimento de articulação global que requererá o trabalho de todas as pessoas de boa vontade e boa fé em todas as nações do mundo. Como David Held em particular argumentou poderosamente, os objetivos não são apenas formar novas instituições de governança transnacional, mas tornar as já existentes, tais como OMC, FMI e a AID [transferência internacional de recursos para desenvolvimento], mais transparentes, responsáveis e responsivas às necessidades dos seus constituintes. Isto, por sua vez, pode apenas acontecer se movimentos populares em países membros e doadores forçarem as elites que governam estas instituições em direção à responsabilização democrática. É ingênuo assumir, como Gunter Teubner e Anne-Marie Slaughte por vezes aparentam fazer, que a boa fé das elites ou os miraculosos sinais sociológicos de sistemas anônimos sozinhos irão mover tais estruturas em direção à democratização e à responsabilização. Eles não irão. Estruturas transnacionais precisam ser propelidas em direção a uma dinâmica onde possam ser controladas pelo direito público.

Aqui, contudo, alcançamos um dilema: precisamente porque hoje políticas centradas no estado tornaram-se tão reduzidas em efetividade, novas teorizações da política surgiram. Ainda assim a minha crítica dos modelos de império e da governança transnacional parece pressupor uma forma de soberania popular, um demos global, que está longe de existir. Onde está a soberania popular que pode conter o império ou que pode ser a portadora de novas instituições de governança transnacional?

Hoje nós estamos presos não apenas na reconfiguração da soberania, mas também nas reconstituições da cidadania. Estamos nos afastando da cidadania entendida como filiação nacional cada vez mais em direção a uma cidadania de residência que fortalece os múltiplos laços com a localidade, com a região e com as instituições transnacionais. A este respeito defensores da cidadania pós-nacional estão corretos. A extensão universalista dos direitos civis e sociais e, em alguns casos, de direitos de participação política também, para imigrantes e estrangeiros naturalizados dentro do contexto da União Europeia em particular, está anunciando uma nova instituição da cidadania. Esta nova modalidade desvincula a cidadania do pertencimento nacional e do enraizamento em uma comunidade cultural particular. Não apenas na Europa, mas por todo o globo, vemos a ascensão do ativismo político por parte dos não-nacionais, pós-nacionais, e ex-colonizados. Eles vivem em vizinhanças multiculturais, eles se reúnem em torno dos direitos das mulheres, da educação de língua secundária para suas crianças, de preocupações ambientais, de trabalho para migrantes, de representação em conselhos escolares e em conselhos municipais. Este novo ativismo urbano, que inclui cidadãos assim como não-cidadãos, mostra que representação política é possível para além da divisória entre membros e não-membros. Os paradoxos do “direito a ter direitos” (Hannah Arendt) são aperfeiçoados por aqueles que exercitam seus direitos de participação democrático-republicana com ou sem os papéis corretos.

O local não é o palco exclusivo da cidadania pós-nacional. Novas modalidades de cidadania e uma nascente esfera pública estão também surgindo ao nível global através dos encontros do Fórum Social Mundial, no qual ativistas de todas as nações, representando grupos da ecologia, de mulheres, de direitos étnicos, de autodeterminação cultural, de democracia econômica, ONGs locais e internacionais, reúnem-se e planejam estratégias e políticas. São, em muitos casos, estes os que articulam e trazem à consciência global problemas aos quais as estruturas transnacionais de governança têm de responder. Estes grupos de cidadãos e ativistas sociais são os transmissores de conhecimento e experiência local e global; eles geram novas necessidades e demandas às quais as democracias devem responder. Eles são membros da nova sociedade civil global. Esta nova sociedade civil global não é apenas habitada por multinacionais e transnacionais, quer públicas ou privadas, mas também por cidadãos, movimentos ativistas e constituintes de vários tipos. Esta sociedade civil global emergente é bem complementária ao federalismo republicano, que em minha opinião constitui a única resposta viável à crise contemporânea da soberania.13 13 A sociedade civil global, como defendida aqui, não deveria ser confundida com o apelo ao voluntarismo e a associações privadas tão características dos neoliberais, que visam a cercear o poder do estado. Eu endosso a provisão pública de bens públicos em um sistema de interdependências abrigadas de autoridades públicas. A sociedade civil global é um espaço de ativismo cívico global e a contraparte para o modelo de “federalismo republicano” que eu desenvolvo abaixo.

Federalismo republicano e soberania democrática

Eu vou definir “federalismo republicano” como a reagregação constitucionalmente estruturada dos criadores da soberania, em um conjunto de instituições interligadas, cada qual responsável por e devedora de prestação de contas perante a outra. Há, como deve haver em qualquer estruturação da soberania, um momento de caráter definitivo, no sentido de conclusão decisional, mas não um momento de ultimação, no sentido de estar imune a questionamento, provocação e responsabilização. Como a jurista Judith Resnik observa, o desenvolvimento do direito internacional e dos tratados cosmopolitanos de direitos humanos estão criando novas modalidades para o exercício do federalismo:

[…] o federalismo também é um caminho para o movimento de direitos internacionais para além das fronteiras, como pode ser visto a partir da adoção dos direitos transnacionais, incluindo a Carta das Nações Unidas, o Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw) e o Protocolo de Kyoto sobre o aquecimento global, por prefeitos, conselhos municipais locais, legislativos dos estados e juízes dos estados. Tais ações são frequentemente supralocais – com municipalidades e estados unindo-se para formar regras que atravessam fronteiras (Resnik, 2006RESNIK, J. Law's migration: American exceptionalism, silent dialogues, and federalism's multiple ports of entry. The Yale Law Journal, v. 15, n. 7, p. 1564-1670, 2006.).

Tais processos de “migração da lei” (Resnik, 2006RESNIK, J. Law's migration: American exceptionalism, silent dialogues, and federalism's multiple ports of entry. The Yale Law Journal, v. 15, n. 7, p. 1564-1670, 2006.) para além das fronteiras do estado e das jurisdições institucionais, quer institucionalizada quer popular, eu chamo de “iterações democráticas”. Por “iterações democráticas” quero dizer processos complexos de argumentação pública, deliberação e troca pelas quais reivindicações de direitos e princípios universalistas são contestados e contextualizados, invocados e revogados, postulados e posicionados em todas as instituições políticas e jurídicas, assim como nas associações da sociedade civil. Iterações democráticas podem realizar-se nos “fortes” órgãos públicos dos legislativos, do judiciário e do executivo, assim como nos informais e “fracos” públicos das associações da sociedade civil e da mídia.

No processo de repetir um termo ou um conceito, nós nunca simplesmente produzimos uma réplica do primeiro uso original e seu significado pretendido: mais propriamente cada repetição é uma forma de variação. Toda iteração transforma o significado e o enriquece de maneiras muito sutis. Na verdade, não há realmente uma fonte originária de sentido, ou um “original” ao qual todas as formas subsequentes devem se adaptar. Mesmo se o conceito de “sentido original” não faz sentido quando aplicado à linguagem como tal – para identificar o original nós já precisaríamos usar a própria linguagem – pode ser pensado que isto não estaria tão mal colocado em conjunção com documentos como a lei e as normas institucionais. Deste modo, todo ato de iteração pode referir-se a um antecedente que é tomado como sendo autoritativo. A iteração e interpretação de normas, e de todos aspectos do universo de valor, entretanto, nunca são apenas atos de repetição. O antecedente é reposto e ressignificado via usos e referências subsequentes. O significado é aperfeiçoado e transformado; reciprocamente, quando a apropriação criativa daquele original autoritativo cessa ou para de fazer sentido, então o original perde sua autoridade sobre nós também.

Iterações democráticas são processos linguísticos, legais, culturais, e políticos de repetições-em-transformação, invocações que são também revogações.14 14 Desde que eu introduzi o conceito de “iterações democráticas” (Benhabib, 2004a, cap. 5), eu fui questionada para clarificar (1) a relação entre discursos práticos de justificação e iterações democráticas e (2) se interações democráticas também podem ser regressivas e não acrescentar sentido. Iterações democráticas são processos de legitimação e não de justificação. Elas se encontram na mesma relação com os discursos normativos de justificação que as teorias da democracia se encontram com a Teoria da justiça (1971), de John Rawls; isto é, as primeiras estão preocupadas com a legitimidade, as últimas com a justiça; segundo, sim, iterações democráticas “jurispatológicas”, que bloqueiam o aperfeiçoamento de significado e a argumentação de reivindicações de direito, são possíveis. Ver Benhabib (2006). Através de tais atos de iteração um povo democrático que considera a si mesmo ligado a certas normas e princípios orientadores reapropria e reinterpreta estes, demostrando, assim, não ser apenas o sujeito mas também o autor das leis. Visto que as doutrinas do direito natural assumem que os princípios que subjazem as políticas democráticas são impenetráveis a atos transformativos da vontade, e ao passo que o positivismo jurídico identifica a legitimidade democrática com normas corretamente postuladas de uma legislatura soberana, as políticas jurisgenerativas sinalizam um espaço de interpretação e intervenção situados entre normas transcendentes e a vontade das maiorias democráticas.15 15 Para o conceito de “jurisgeneratividade” ver Cover (1983). Por um lado, as reivindicações de direitos que estruturam as políticas democráticas devem ser vistas como transcendendo as ratificações das maiorias democráticas sob circunstâncias específicas; por outro lado, tais maiorias democráticas reiteram estes princípios e os incorporam na formação democrática da vontade do povo pela argumentação, contestação, revisão e rejeição. A soberania popular não mais se refere à presença física de um povo reunido em um território delimitado, mas sim às interligações em uma esfera pública global dos muitos processos de iteração democrática na qual povos aprendem um com o outro.16 16 Ver as primeiras formulações de Jürgen Habermas (1989): “Ist der Herzschlag der Revolution zum Stillstand gekommen?” [O batimento cardíaco da revolução parou?].

Haverá uma tensão inevitável entre discursos transcendentes de fronteiras e limites sobre iterações democráticas e a soberania de estado. Na verdade, a democracia é o processo pelo qual a soberania popular tenta domesticar a soberania de estado, fazendo-a responsiva, transparente e responsabilizável perante o povo. A difusão de normas cosmopolitanas que visam a proteger o ser humano enquanto tal, independentemente da sua filiação nacional, mas antes como cidadão de uma sociedade civil global, e a soberania popular mutuamente reforçam uma à outra. Ao passo que no caso do declínio da soberania de estado é o recuo do exercício público do poder do estado que está em jogo, no caso da argumentação da soberania popular, as normas internacionais e cosmopolitanas sujeitam as agências do exercício público do poder. Em primeiro lugar e sobretudo, o estado é submetido ao elevado escrutínio jurídico e popular, ajudando assim a afirmação da soberania popular. O suposto conflito entre a difusão de normas cosmopolitanas e soberania popular está baseado sobre uma equação errônea do estado com a soberania popular.

Enquanto que as normas cosmopolitanas levam a interligações e coordenações de iterações democráticas que atravessam fronteiras entre aqueles que estão organizados em movimentos de direitos humanos, de direitos das mulheres, de ecologia e de direitos indígenas, a “lex mercatoria” e outras formas de direito sem estado geradas pelo capitalismo, pelo contrário, fortalecem corporações privadas vis-à-vis a órgãos públicos. Deste modo, no caso do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta) são garantidos direitos às empresas até então geralmente limitados aos estados-nação. O capítulo II (B) do tratado permite a empresas privadas submeter queixas contra estados membros a um tribunal de três membros. Um dos membros é escolhido pelo estado afetado, outro pela empresa, e o terceiro conjuntamente pelas partes. Como Scheuerman observa, o “Nafta deste modo efetivamente concede aos estados e às corporações autoridade igual em algumas questões de tomada de decisão”. E ele acrescenta: “em um contraste revelador os procedimentos que compõem o ‘acordo paralelo’ de trabalho do Nafta nega direitos similares ao trabalho organizado” (Scheuerman, 2004SCHEUERMAN, W. E. Liberal democracy and the social acceleration of time. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2004., p. 268-269, n. 52).

Há, aqui, um interessante paralelo para o crescente poder de indivíduos para fazer acusações por violações dos direitos humanos contra os estados que são signatários da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais perante ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Também neste caso, os estados são réus e não mais imunes a acusação legal. Em ambos os casos, a “caixa-preta” da soberania de estado foi rompida, mas com pressuposições normativas muito diferentes: no caso do Nafta e outras formas de lex mercatoria, os estados tornaram-se passíveis de ação judicial por órgãos corporativos que não representam interesses generalizáveis, mas apenas seus interesses particulares e aqueles de seus constituintes. Curiosamente, eles também desapoderam o trabalho organizado e os grupos ambientalistas de desfrutar privilégios jurisdicionais similares para fazerem acusações contra o estado.

No caso de acusações conduzidas contra o estado por violações dos direitos humanos, ao contrário, há um interesse generalizável potencial compartilhado por todos os cidadãos e residentes de um estado semelhante, a saber: prevenir o uso de tortura e outras formas de violação generalizada dos direitos humanos. O processo de direitos humanos contra estados soberanos vai até mesmo além do interesse generalizável de cidadãos nacionais envolvidos, para estabelecer normas universalizáveis de direitos humanos que protegeriam indivíduos em toda e qualquer parte do mundo. Existe um poder que transcende ao contexto dessas iterações de direitos humanos que alimentam o poder normativo de normas cosmopolitanas.

As fronteiras da política se deslocaram para além da república alojada no estado-nação. A desterritorialização do direito traz em seu rastro um deslocamento da política. Está claro que somente múltiplas estratégias e formas de lutas podem reafirmar a ligação rota entre anuência e o exercício público do poder que é a essência da soberania democrática. Estruturas transnacionais de governança são fundamentais a fim de domesticar as forças do capitalismo global; mas a responsabilização das elites transnacionais pode apenas ser demandada pelos seus próprios constituintes que se mobilizam para projetos de cidadania pós e transnacionais. A redes interligadas de ativistas locais e globais, por sua vez, formam uma sociedade civil global emergente, na qual novas necessidades são articuladas para um público mundial, novas formas de conhecimento são comunicadas a uma opinião mundial e novas formas de solidariedade através das fronteiras são criadas.

A soberania popular não pode ser readquirida hoje pelo retorno à era da “caixa-preta” da soberania de estado: a igualdade formal de estados soberanos deve significar a universalização dos direitos humanos através das fronteiras dos estados, o respeito pelo estado de direito e formas democráticas de governo em todo o globo. É um insulto à dignidade e liberdade dos indivíduos em toda parte assumir, como muitos hoje estão tentados a fazer, que os direitos humanos e as normas cosmopolitanas, tais como a proibição de “crimes contra a humanidade”, são produtos das culturas ocidentais sozinhas cuja validade não pode ser estendida a outros povos e outras culturas em todo o mundo. Esta não é apenas uma visão muito inadequada da difusão da modernidade como um projeto global, mas é também uma combinação filosófica de gênese e validade, isto é, das condições de origem de uma norma com as condições de sua validez. Direitos humanos globais e normas cosmopolitanas estabelecem novos limiares de justificação pública para uma humanidade que está cada vez mais unida e interdependente.17 17 Sobre a ideia de um limiar da justificação, ver Benhabib (2004a, p. 15-21). Novas modalidades de cidadania, não apenas no sentido dos privilégios de filiação, mas também no sentido do poder de agência democrática, podem apenas florescer nos espaços transnacionais, locais assim como globais, criados por esta nova estrutura institucional. A multiplicação de locais da política anunciam as transformações da cidadania e as novas configurações da soberania popular.

  • 1
    Os mais proeminentes destes são: A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher; a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança.
  • 2
    Para um tratamento mais extensivo do conceito de Arendt, ver Benhabib (2004aBENHABIB, S. The rights of others: aliens, citizens and residents – The John Seeley Memorial Lectures. Cambridge: Cambridge University Press, 2004a., cap. 2), Benhabib (2004b)BENHABIB, S. Kantian questions, Arendtian answers: statelessness, cosmopolitanism, and the right to have rights. In: S. BENHABIB; N. FRASER (orgs.). Pragmatism, critique and judgment: Festschrift for Richard J. Bernstein. Cambridge: MIT Press, 2004b, p. 171-196. e Brunkhorst (1999BRUNKHORST, H. Hannah Arendt. Munich: C. H. Beck, 1999., p. 52-84).
  • 3
    N. t. Referente a personagem da obra “Pollyana”, de Eleanor H. Porter.
  • 4
    A gênese das normas cosmopolitanas remonta às experiências das duas Guerras Mundiais, ao colonialismo europeu e as lutas anticoloniais, ao genocídio armênio nos últimos estágios do Império Otomano e ao Holocausto. É errado confundir a “lex mercatoria”, que também é uma lei global, com o desenvolvimento das normas cosmopolitanas dos direitos humanos. Para um relato do desenvolvimento do direito internacional, ver Koskenniemi (2002)KOSKENNIEMI, M. The gentle civilizer of nations: the rise and fall of international law 1870-1960, Cambridge: Cambridge University Press, 2002.. Ver também os relatos de inquéritos judiciais contra membros do “Partido Unidade e Progresso” (Union and Progress Party) no Império Otomano, que foram responsáveis pelo genocídio armênio (Akcam, 1996AKCAM, T. Armenien und der Voelkermord: die Istanbuler Prozesse und die tuerkische Nationalbewegung. Hamburg: Hamburger Edition, 1996.); para os inquéritos judiciais de Nuremberg, comparar Marrus (1997)MARRUS, M. The Nuremberg war crimes trial 1945-46: a documentary history. New York: Bedford, 1997.; e para Ralph Lemkin e seus esforços para passar a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (Genocide Convention), comparar Power (2003)POWER, S. A problem from hell: America in the age of genocide. New York: Basic Books, 2003.. Ver também a defesa apaixonada de Brunkhorst (2002)BRUNKHORST, H. Solidaritaet: Von den Buergerfreundschaft zur globalen Rechtsgenossenschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2002. dos “direitos humanos fortes”.
  • 5
    Para um relato magistral, que é também uma crítica sustentada de Schmitt, ver Koskenniemi (2002KOSKENNIEMI, M. The gentle civilizer of nations: the rise and fall of international law 1870-1960, Cambridge: Cambridge University Press, 2002., p. 98-179). Comparar a declaração do historiador belga do direito Ernest Nys: “Um estado usa os territórios que constituem seu domínio privado como deseja; ele os vende, os aluga, atribui tais condições às concessões que concede como se fosse garantido […] em nada disso ele deve uma explicação a outros estados”. Do L'etat Independent du Congo et les dispositions de l'acte generale, citado em Koskenniemi (2002KOSKENNIEMI, M. The gentle civilizer of nations: the rise and fall of international law 1870-1960, Cambridge: Cambridge University Press, 2002., p. 161).
  • 6
    O epílogo de Schmitt para o Jus publicum Europaeum (O direito público da Europa) enfatiza que o sistema “neutraliza” a guerra afastando-se da noção medieval de “guerra justa”. Nesta transformação o inimigo não é mais visto como “inimicus” mas como “justi hostes” (categorias que também retornam no conceito de Schmitt do “político”). Este conceito “neutralizado” de guerra também é denominado “o conceito não-discriminatório de guerra” (der nicht-diskriminierende Kriegsbegriff). “Todas as guerras entre estados sobre o solo europeu, que são realizadas pelos exércitos militarmente organizados dos estados reconhecidos pelo direito europeu das nações (Voelkerrecht), são justas no sentido do direito europeu das nações deste período interestatal” (Schmitt, 1997SCHMITT, C. Der Nomos der Erde im Voelkerrecht des Jus Publicum Europaeum. 4. ed. Berlin: Duncker and Humblot, 1997., p. 115, ênfase no texto). Aqui, Schmitt confunde “justiça” e “legalidade”, não por algum erro de lógica, mas porque ele rejeita todos os padrões normativos para julgar guerras.
  • 7
    Burke, citado em Arendt (1951ARENDT, H. The origins of totalitarianism. New York: Harcourt Brace, 1951., p. 183); ver também o poderoso tratamento de Hannah Arendt (1951ARENDT, H. The origins of totalitarianism. New York: Harcourt Brace, 1951., p. 132): “A única grandeza do imperialismo reside nas nações perdendo batalhas contra ele”.
  • 8
    Particularmente interessante é a conspiração entre os interesses econômicos de detentores de patentes, tais como as grandes indústrias farmacêuticas Merck, Pfeizer e Roche, que em 2001 pediram à OMC para investigar o Brasil que permitira a produção doméstica de drogas genéricas através da cópia de medicamentos patenteados. O Brasil se defendeu apontando que a epidemia da AIDS havia tomado 150.000 vidas desde 1981 e que com medidas preventivas a infecção anual poderia ser reduzida para menos de 5.000. Este caso, que implica uma clara reivindicação de direitos humanos para a saúde e proteção pública de doenças epidêmicas, por sua vez, levou a uma grande renegociação dos termos do ADPIC (Acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio) e para mais negociações entre a OMS e a OMC sobre o uso preventivo e não comercial de drogas patenteadas, e levou todo o caminho para uma resolução da Comissão das Nações Unidas sobre Direitos Humanos em 2000 protegendo o uso preventivo de drogas genéricas sempre que possível para ajudar a combater a disseminação de doenças e epidemias. No Encontro de Doha em 2002, uma Declaração sobre o acordo ADPIC e Saúde Pública foi emitido, o qual afirmava as garantias fornecidas no ADPIC com relação aos direitos dos estados de emitir tais medidas como licença compulsória para cooperar com crises da saúde em seus respectivos países. Representantes das empresas em geral preferiram métodos de diferenciação de preços, mas aceitaram que eles devem aceitar a decisão do estado de lidar com seus próprios problemas de saúde. Desde a rodada de Doha em 2002, no entanto, as orientações gerais têm aparentemente ido em direção a acordos bilaterais, ao invés de multilaterais. Ver a publicação Direitos de propriedade intelectual, resultados de um diálogo de acionistas entre Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável e o Centro para Pesquisa em Ciências Sociais de Berlim (Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung (reimpressão de abril de 2004). Contato: wbcsd@earthprint.com.
  • 9
    Embora traduzido para o inglês somente em 2001, a versão italiana de O império foi escrita no período entre a Guerra do Golfo Pérsico de 1991 e a Guerra Civil Jugoslava de 1994. A sua visão do poder dos EUA é mais benevolente do que o trabalho subsequente de Michael Hardt e Antonio Negri (2004)HARDT, M.; NEGRI, A. Multitude: war and democracy in the age of empire. New York: Penguin Press, 2004., Multidão: guerra e democracia na era do império.
  • 10
    O último capítulo do livro Multidão de Hardt e Negri se chama “Que a força esteja convosco” (ver p. 341-348); sobre o carnaval, compare “As várias formas de carnaval e mímica que são tão comuns hoje nos protestos contra a globalização devem ser consideradas outra forma de armamento. Simplesmente ter milhões de pessoas nas ruas para uma demonstração é um tipo de arma, assim como o é, de uma forma um tanto quanto diferente, a pressão de migrações ilegais […] Uma semana de ataque biopolítico global bloquearia qualquer guerra” (Hardt; Negri, 2004, p. 347).
  • 11
    Assim como na teoria do poder de Michel Foucault, também na análise de Hardt e Negri os sujeitos do poder são interpelados por ele, em outras palavras, constituídos em parte pela rede de poder ao invés de precedê-la; estados e outras instituições mundiais desaparecem como agentes e locais de resistência que têm constituição prévia. Eu discordo desta teoria do poder. Pode-se estipular a existência de instituições muito distintas e estruturadas e padrões de resistência ao poder sem pressupor uma primordialidade metafísica seja do estado ou do sujeito. O alcance do império não é nem tão ubíquo nem tão onisciente como Hardt e Negri gostariam que pensássemos.
  • 12
    Ver Held (2004)HELD, D. Global covenant: the social democratic alternative to the Washington Consensus. London: Polity Press, 2004., Kuper (2004)KUPER, A. Democracy beyond borders: justice and representation in global institutions. Oxford: Oxford University Press, 2004., Slaughter (2004)SLAUGHTER, A. A new world order. Princeton: Princeton University Press, 2004.. Existe algo muito alegre e otimista nestas propostas que minimizam o perigo de dissociar o constitucionalismo da democracia e da vontade e razão dos cidadãos, transferindo-o para uma peritocracia, mesmo que a uma peritocracia bem intencionada como juízes e profissionais do direito internacional.
  • 13
    A sociedade civil global, como defendida aqui, não deveria ser confundida com o apelo ao voluntarismo e a associações privadas tão características dos neoliberais, que visam a cercear o poder do estado. Eu endosso a provisão pública de bens públicos em um sistema de interdependências abrigadas de autoridades públicas. A sociedade civil global é um espaço de ativismo cívico global e a contraparte para o modelo de “federalismo republicano” que eu desenvolvo abaixo.
  • 14
    Desde que eu introduzi o conceito de “iterações democráticas” (Benhabib, 2004a, cap. 5), eu fui questionada para clarificar (1) a relação entre discursos práticos de justificação e iterações democráticas e (2) se interações democráticas também podem ser regressivas e não acrescentar sentido. Iterações democráticas são processos de legitimação e não de justificação. Elas se encontram na mesma relação com os discursos normativos de justificação que as teorias da democracia se encontram com a Teoria da justiça (1971), de John Rawls; isto é, as primeiras estão preocupadas com a legitimidade, as últimas com a justiça; segundo, sim, iterações democráticas “jurispatológicas”, que bloqueiam o aperfeiçoamento de significado e a argumentação de reivindicações de direito, são possíveis. Ver Benhabib (2006)BENHABIB, S. Reply to my critics. In: Another Cosmopolitanism, with commentaries by J. Waldron, B. Honig & W. Kymlicka. Oxford University Press, 2006. p. 147-187..
  • 15
    Para o conceito de “jurisgeneratividade” ver Cover (1983)COVER, R. Nomos and narrative. Harvard Law Review, v. 97, n. 1, p. 4-68, 1983..
  • 16
    Ver as primeiras formulações de Jürgen Habermas (1989)HABERMAS, J. Ist der Herzschlag der Revolution zum stillstand gekommen? Volkssouveraenitaet als Verfahren. In: Die Ideen von 1789 in der deutschen Rezeption. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989, p. 7-37.: “Ist der Herzschlag der Revolution zum Stillstand gekommen?” [O batimento cardíaco da revolução parou?].
  • 17
    Sobre a ideia de um limiar da justificação, ver Benhabib (2004aBENHABIB, S. The rights of others: aliens, citizens and residents – The John Seeley Memorial Lectures. Cambridge: Cambridge University Press, 2004a., p. 15-21).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2012

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2011
  • Aceito
    29 Nov 2011
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