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Teoria crítica e justiça social

Critical theory and social justice

Resumo:

O presente artigo se ocupa das seguintes questões: (1) De onde fala a teoria crítica, ou seja, qual é a posição do próprio crítico social relativamente ao seu objeto? A teoria crítica é crítica da ideologia ou é algo diferente, por exemplo, crítica dos modelos de legitimação e justificação próprios de uma sociedade? (2) Qual é o método da teoria crítica? Finalmente (3), se apontará para uma possível aplicação das respostas às questões acima àquele que pode ser considerado o maior problema da sociedade brasileira: a pobreza.

Palavras-chave:
teoria crítica; ideologia; pobreza

Abstract:

The article deals with the following questions: (1) wherefrom does critical theory speak? Which position does the social critic assume with respect to his or her object? Is critical theory critique of ideology or something different, e. g. critique of the legitimating and justifying models of a society? (2) Which is the method of critical theory? Finally (3) it shall point at a possible application of the answers to these questions to what can be considered to be the main problem of Brazilian society: poverty.

Keywords:
critical theory; ideology; poverty

Normalmente, ao ouvir o termo teoria crítica, a tendência é a de pensar na chamada Escola de Frankfurt, em Adorno, Horkheimer ou até em Habermas, considerado o membro mais relevante da segunda geração dessa escola. Na realidade, o termo teoria crítica não se refere somente a uma escola de pensamento específica, mas a uma maneira de fazer filosofia que é, inclusive, mais antiga do que a própria Escola de Frankfurt e inclui pensadores como Marx ou, em parte, Nietzsche, mas que pode ser estendida no passado a ponto de incluir também autores como Etienne de la Boetie que, no seu escrito Sobre a servidão voluntária, analisa as razões que levam os indivíduos a submeterem-se voluntariamente ao poder despótico dos soberanos e do estado. Neste sentido podemos concordar com Jon Anderson quando afirma que a teoria crítica se preocupa em diagnosticar “a cooperação involuntária dos indivíduos a sua própria dominação” (Anderson, 2009ANDERSON, Joel. Autonomielücken als soziale Pathologie: Ideologiekritik jenseits des Paternalismus. In: FORST, Rainer et al. (orgs.). Sozialphilosophie und Kritik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009. p. 433-453., p. 433).

O termo teoria crítica indica, portanto, uma maneira de se fazer filosofia, mais especificamente, de pensar a sociedade em termos críticos. Tilo Wesche afirma que “o ponto de partida de cada crítica consiste no diagnóstico de uma realidade que não deveria existir: de um sofrimento que ofende, de uma injustiça que provoca reação, de uma miséria ultrajante” e que “o objeto da crítica” são justamente as causas destes males (Wesche, 2009WESCHE, Tilo. Reflexion, Therapie, Darstellung: Formen der Kritik. In: JAEGGI, Rahel; WESCHE, Tilo (orgs.). Was ist Kritik? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009. p. 193-220., p. 201). E Rainer Forst considera que o objetivo prático perseguido pela crítica social é justamente “o fim da humilhação e da ofensa” (Forst, 2009FORST, Rainer. Der Grund der Kritik: Zum Begriff der Menschenwürde in sozialen Rechtfertigungsordnungen. In: JAEGGI, Rahel; WESCHE, Tilo (orgs.). Was ist Kritik? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009. p. 150-164., p. 150).

Por mais que motivos e finalidade da teoria crítica possam parecer louváveis e geralmente compartilháveis, há toda uma série de dificuldades teóricas e práticas ligadas à práxis da própria teoria crítica. Em seguida tentarei apontar para algumas delas e esboçar possíveis soluções ou respostas. Em particular, ocupar-me-ei das seguintes questões: (1) De onde fala a teoria crítica, ou seja, qual é a posição do próprio crítico social relativamente ao seu objeto? A teoria crítica é crítica da ideologia ou é algo diferente, por exemplo, crítica dos modelos de legitimação e justificação próprios de uma sociedade? (2) Qual é o método da teoria crítica? Como ficará evidente pela própria exposição de tais questões, não há como respondê-las de maneira plenamente separada, e, ao responder uma, terei sempre que me remeter às outras duas. Finalmente (3), apontarei para uma possível aplicação das minhas considerações àquele que pode ser considerado o maior problema da sociedade brasileira.

De onde fala a teoria crítica?

Começarei pela questão da posição do crítico social perante a realidade que ele critica. Encontra-se ele na posição de um observador neutral ou naquela de um participante, numa Beobachter ou numa Teilnehmersperspektive, como dizem os alemães?

Em uma entrevista de 2009, o sociólogo francês Luc Boltanski criticou seu mestre Pierre Bourdieu por fazer uma distinção excessivamente forte entre a posição do ator social, por um lado, e do sociólogo, pelo outro. Enquanto o primeiro nunca está consciente de seus motivos, ainda que seja capaz de realizar cálculos e escolhas estratégicos, o segundo possui um acesso privilegiado à verdade, já que é capaz de descobrir os motivos escondidos do agente (Boltanski, 2009, p. 82ss). O sociólogo se torna o único sujeito ativo da crítica social, cujo objetivo é abrir os olhos das massas cegas, que desempenham antes um papel passivo. Não discutirei aqui a questão se a crítica de Boltanski a Bordieu está correta. O que me interessa é antes a admoestação de que os críticos sociais podem facilmente assumir uma posição paternalista e achar que eles conhecem melhor do que os envolvidos a situação que pretendem descrever. Eles tendem a negar legitimação ou, pelo menos, valor ao que as pessoas objeto de seus estudos dizem de si, à maneira em que estas pessoas se veem etc., já que tais descrições de si são presumidamente deformadas pela ignorância da sua “verdadeira” situação, que somente o crítico social é capaz de observar. Deste ponto de vista, poder-se-ia objetar que as vítimas da injustiça possuem um acesso privilegiado ao conhecimento de tal injustiça, que a conhecem melhor do que qualquer observador (Renault, 2004RENAULT, Emmanuel. L'expérience de l'injustice: reconnaissance et clinique de l'injustice. Paris: La Découverte, 2004., p. 44). A esta ideia remete também a afirmação do filósofo norte-americano Michael Walzer pela qual o crítico social é ele próprio um membro da sociedade que está criticando (Walzer, 1987WALZER, Michael. Intepretation and social criticism. Cambridge: Harvard University Press, 1987.). Notavelmente Walzer critica o que ele chama de “filósofo heroico”, isto é, o pensador que julga a sociedade com base em ideais e modelos normativos construídos abstratamente (Walzer, p. 1981WALZER, Michael. Philosophy and democracy. Political Theory, v. 9, n. 3, p. 379-399, 1981.). Em outras palavras, a ideia do crítico social como observador externo pode ser criticada quer porque levaria a uma atitude paternalista (a crítica de Boltanski), quer porque levaria a uma espécie de platonismo político segundo o qual se deve observar a sociedade de um lugar que não existe e modificá-la usando um ponto arquimediano (a crítica de Walzer).

Por outro lado, e contra Walzer, poder-se-ia observar, como o faz o próprio Boltanski, que “para fazer sociologia, é preciso colocar-se fora da sociedade, pois quem fica no interior do mundo social é somente um expert, um especialista” (Boltanski, 2009, p. 95). O mesmo poder-se-ia afirmar do crítico social: ele deve distanciar-se do objeto da sua crítica para poder operar tal crítica: ele deve, por assim dizer, ficar livre dos mecanismos de dominação ou de alienação que ele pretende analisar e denunciar, se não quer correr o risco de ser presa deles, como o especialista que se limita a pensar nos moldes e segundo as categorias lógicas e intelectuais da própria sociedade. A diferença é radical; é a diferença que existe, por exemplo, entre mostrar como a lógica do mercado acaba dominando a política de saúde pública e até os critérios que orientam em sua ação os hospitais (que é o que se espera do crítico social), e aplicar precisamente tal lógica em planejar políticas públicas de saúde ou na gestão de um hospital tendo como prioridade a rentabilidade e não a saúde dos pacientes (que é precisamente o que se espera dos especialistas). Fica, contudo, difícil defender a ideia de que a posição do crítico social deve ser completamente externa à sociedade; em primeiro lugar, porque tal ponto arquimediano não existe, como salientado por Walzer, e em segundo lugar, porque isso iria contra a intenção da própria teoria crítica que visa a uma crítica imanente à sociedade, para não cair no platonismo acima mencionado de quem critica a sociedade existente em nome de ideais abstratos construídos por filósofos heroicos.

Contra Walzer e Boltanski, poder-se-ia observar também, com Adorno e Horkheimer, que é impossível esperar que pessoas que vivem numa sociedade caracterizada por alienação e ideologia sejam capazes de descrever adequadamente sua situação e alcançar um ponto de vista a partir do qual elas consigam criticá-la. Para exemplificar mais concretamente: pessoas que vivem numa situação de pobreza ou miséria, que são desprovidas das condições mínimas para satisfazer aquelas que muitos autores consideram necessidades básicas, e cuja voz permanece não somente inaudível, mas calada – tais pessoas frequentemente não têm consciência do fato de que são vitimas de alguma injustiça. Elas nem sempre têm a sensação de terem sido tratadas injustamente.1 1 Precisamente nisto consiste a maior dificuldade de uma teoria do reconhecimento baseada na ideia de que o que conta são as experiências subjetivas das pessoas e não a situação objetiva na qual elas se encontram (esta parece-me ser a crítica mais adequada de Nancy Fraser a Axel Honneth: cf. Fraser; Honneth, 2003). Em outras palavras: o que pode chamar a atenção do observador como resultado de uma injustiça pode ser interpretado de maneira bem diferente pelas próprias pessoas que são as vítimas da injustiça. A filósofa norte-americana Brooke Ackerly formula otimamente este dilema: “Já que é difícil reconhecer a opressão que não experimentamos e já às vezes é difícil entender e articular até a opressão que experimentamos, os críticos da sociedade precisam de um método” (Ackerly, 2000ACKERLY, Brooke A. Political theory and feminist social criticism. Cambridge: Cambridge University Press, 2000., p. 15) – um método que nos permita criticar aspectos injustos da vida social sem ser paternalistas ou platônicos no sentido acima mencionado.

Dito de outra forma: precisamos de uma posição que seja imanente à própria sociedade, mas que não fique presa nos mecanismos de alienação e dominação que devem ser objeto de crítica; e precisamos de uma posição que ouça a voz das vítimas de tais mecanismos, levando em conta a possibilidade de que tal voz seja destorcida pelos próprios mecanismos em questão. Como encontrar tal posição?

A tal fim, analisarei brevemente diferentes tipos de crítica para mostrar como a solução do nosso problema consiste em tornar-se consciente da dialética inerente aos processos sociais objetos de análise e à própria crítica social. Servir-me-ei inicialmente da tipologia das formas de crítica introduzida por Tilo Wesche (a). Tal tipologia, contudo, possui limites que poderão ser superados servindo-se da definição da crítica como crítica da ideologia efetuada por Rahel Jaeggi (b) e da teoria da justificação prática de Rainer Forst (c). Destarte, poderemos chegar a uma definição da posição do crítico social juntando elementos recolhidos neste reconhecimento de diferentes posições acerca da essência da teoria crítica.

Para uma tipologia da crítica social

Segundo Wesche, cabe, em primeiro lugar, identificar três tipos de crítica. A primeira diz respeito à crítica de erros e ilusões e toma a forma de reflexão. Esta é a forma de crítica menos interessante para nossos fins, pois é a mais neutra e pode ser aplicada a partir de qualquer perspectiva e para qualquer finalidade. Para voltar ao exemplo de antes, até o especialista de saúde preocupado em tornar rentável a gestão de um hospital pode estar aberto a este tipo de crítica, a fim de aprimorar suas estratégias. A segunda é a crítica terapêutica encarnada de maneira exemplar pela terapia psicanalítica freudiana. Este tipo de crítica nos interessa particularmente pela relação entre analista e analisando. No diálogo psicanalítico há uma “interação entre o ponto de vista do observador externo”, que é aquele do analista, “e uma auto-interpretação hermenêutica”, que o analisando efetua na tentativa de expor e interpretar seus sonhos, etc. Neste modelo, o terapeuta não possui uma posição privilegiada de acesso à verdade, mas se limita a iniciar no analisando o processo que deveria levar este último a modificar sua visão de si. Neste sentido, o analista funciona como um catalisador, não como uma instância de verdade. Finalmente, há uma crítica que Wesche define como representativa e que deveria levar as pessoas a rever suas convicções e suas visões do mundo. Na realidade, parece-me que esta seja precisamente uma das funções da psicanálise, mas acho que ao falar em crítica terapêutica Wesche queira chamar a atenção para a finalidade eminentemente prática da terapia psicanalítica, que, enquanto crítica como representação, não possui uma intenção prática imediata e mirada para uma finalidade tão concreta como a resolução de um problema psicológico, no caso da psicanálise. Em outras palavras, a crítica como representação, assim como Wesche a define, possui um certo desinteresse prático imediato, ainda que, obviamente, tenha um interesse prático de longo prazo.

O primeiro exemplo de crítica como representação oferecido por Wesche é a arte quando ela não possui intenções explicitamente críticas e se limita a expor uma situação e a levar o espectador a questionar tal situação sozinho. Repito, não estamos falando em obras de arte que são explicitamente críticas. Pensem – para ter um exemplo em negativo – nas obras de Brecht, com seu caráter didático e abertamente ideológico e político que suscita nos espectadores de hoje um senso de estranhamento que nos leva a considerá-las ultrapassadas, ainda que a realidade que pretendem criticar não o seja (única exceção é talvez A ópera de três vinténs, que, porém, segue com bastante fidelidade o modelo da Beggar's Opera de John Gay). E pensem, para um exemplo positivo, na música radical de Schönberg, citada por Adorno na sua Filosofia da nova música e na sua Teoria estética. Ou pensem no Grande ditador de Chaplin: como ele consegue mostrar claramente os perigos do totalitarismo e da guerra na cena na qual o ditador dança e brinca com o globo terrestre, deixando, contudo, que o próprio espectador chegue a ver a relação entre esta cena cômica e a realidade nada cômica de seu tempo, e como, pelo contrário, a cena final, com o discurso do barbeiro judeu camuflado de ditador tenha algo insuportavelmente falso e didático, que o aproxima de um sermão.

O segundo exemplo de crítica como representação é o diálogo, quer no sentido corriqueiro, quer no sentido mais específico de uma argumentação ou de um discurso habermasiano. O que está em questão aqui não é vencer o interlocutor em habilidade retórica ou convencê-lo da bondade da própria posição, mas apresentar argumentos ou fatos, para deixar que cada um tire suas conclusões.

Finalmente, o terceiro exemplo de crítica representativa é a teórica, isto é, a crítica que se preocupa não somente em descrever uma situação, mas tenta con-ceitualizá-la, tenta, para usar uma célebre expressão hegeliana, entender sua época em conceitos. Neste sentido, crítica e filosofia acabariam coincidindo, pois a críti-ca, como a filosofia, não teria a pretensão de ser utilizada de maneira imediata na práxis. Ao apontar para as contradições inerentes à realidade social, o filósofo crítico não estaria perseguindo uma finalidade prática imediata, mas somente buscando uma verdade filosófica. Isso faz com que sua análise se oponha à reali-dade pela sua própria natureza de empreitada desinteressada e não utilitária.

Ora, a caracterização da crítica oferecida por Wesche padece sob dois déficits. O primeiro é de caráter empírico e diz respeito à capacidade da crítica representativa em alcançar seu alvo, isto é, em levar o sujeito preso em contradições ou vítima mais ou menos voluntária dos mecanismos de alienação e repressão a enxergar sua situação, a tornar-se consciente de sua alienação. A arte que não pretenda operar uma crítica explícita da realidade, mas suscitar no espectador um processo autônomo de reflexão crítica sobre tal realidade, pressupõe, por um lado, a capacidade de alcançar o espectador e de abrir os olhos dele para uma diferente visão do mundo e, por outro lado, a disponibilidade e a capacidade do espectador em ser atingido pela crítica implícita operada pela obra de arte em questão. Os dois elementos não são sem-pre dados, aliás, são muito raros, particularmente no caso da arte radical como em certas obras de arte contemporâneas. Da mesma maneira, o diálogo bem-sucedido pressupõe a disponibilidade e a capacidade por parte dos participantes em trocar informações e argumentos, sem subtrair-se do discurso ou sem tentar manipular o outro. Como dialogar com um fanático religioso, por exemplo, ou com alguém que acredita em teorias da conspiração e que considera cada fato que desmente sua hipótese como uma ulterior prova de que há uma gigantesca conspiração para esconder a verdade? Neste caso, o fato de deslocar o lugar da racionalidade para o próprio processo comunicativo, como o faz Habermas, não libera das consequências práticas da irracionalidade individual.

O segundo déficit é de caráter teórico: se é verdade que mesmo Adorno e Horkheimer falam da inutilidade prática da teoria crítica, como lembra Wesche, é verdade também que eles fazem isso pensando na utilidade prática imediata de teorias científicas ou sociais que pretendem ser utilizadas de maneira direta como no caso do saber necessário ao nosso especialista de saúde para otimizar a rentabilidade de seu hospital. Contudo, a teoria crítica tem uma forte pretensão de aplicabilidade prática no que diz respeito à transformação da sociedade. Ela não quer somente descrever o que tem de errado em tal sociedade, mas quer chegar a uma mudança social radical. Neste sentido, vale a pena considerar a caracterização da teoria crítica como crítica da ideologia oferecida por Rahel Jaeggi e por Rainer Forst.

Crítica como crítica da ideologia

Em primeiro lugar, precisamos definir o que seria ideologia. Segundo Jaeggi, “Ideologias são, portanto, sistemas de convencimento, mas que têm, ademais, consequências práticas. Elas têm efeito prático e são, por sua parte, efeitos de uma determinada práxis social” (Jaeggi 2008JAEGGI, Rahel. Repensando a ideologia. Civitas, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 137-165, 2008. Também publicado como: Was ist Ideologiekritik? In: JAEGGI, Rahel; WESCHE, Tilo (orgs.). Was ist Kritik? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009. p. 266-295., p. 139). O objeto primário da crítica da ideologia são fenômenos de naturalização e de interpretação da realidade. Pensem, por exemplo, na ideia de que um fenômeno socialmente determinado como a pobreza no Brasil seria um fato natural e o sofrimento dos miseráveis a consequência de tal fato, como se estivéssemos falando de um terremoto ou de uma inundação e não do resultado de uma distribuição desigual de bens e de riqueza, ou seja de uma determinada práxis social, como diz Jaeggi. Ou pensem como no capitalismo contemporâneo inspirado pela ideologia neoliberal o trabalho é tornado precário e os indivíduos são submetidos à incerteza e à insegurança que disso deriva, e como isso é “vendido” como o triunfo da criatividade e da flexibilidade individual, isto é, como um triunfo da liberdade individual.

Ora, o que caracteriza uma crítica da ideologia é o fato de ser imanente, ou seja, de não operar de um lugar externo à realidade criticada. O que ela faz é mostrar contradições inerentes à realidade e às suas normas ou aos seus valores. Não se trata simplesmente de mostrar que a realidade não vive à altura das normas e dos valores que ela mesma se propõe, como no caso do capitalismo que – segundo alguns apologistas como Adam Smith e Milton Friedman – deveria produzir riqueza e liberdade para todos e, de fato, não o faz, já que a riqueza fica nas mãos de poucos e a liberdade é só aparente. Esta crítica seria uma crítica hermenêutica-reconstrutiva, pela qual a contradição estaria entre o modelo no qual uma práxis social se inspira e a realização concreta de tal modelo na própria práxis. A crítica da ideologia é mais radical e considera que a contradição se dá na própria realidade e em seus valores. Por exemplo, a tensão entre a ideia de que no mercado de trabalho capitalista os indivíduos afirmam sua liberdade e igualdade ao concluir contratos de trabalho entre si e o fato de que, na realidade, há uma imensa assimetria entre os empresários e os trabalhadores não é uma tensão derivada da uma incompleta aplicação dos ideais da liberdade e da igualdade na realidade dos contratos, mas aponta para o fato de que são justamente tais ideais que permitem a criação de relações de poder nas quais dominam desigualdade e falta de liberdade. São tais ideais que fundam aqueles mecanismos sociais que levam à naturalização de fenômenos sociais como a propriedade privada dos meios de produção ou o contrato (Jaeggi, 2009BOLTANSKI, Luc; HONNETH, Axel. Soziologie der Kritik oder Kritische Theorie? Ein Gespräch mit Robin Celikates. In: JAEGGI, Rahel; WESCHE, Tilo (orgs.). Was ist Kritik? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009. p. 81-114., p. 143). Isso não significa que devemos rejeitar os ideais de liberdade e igualdade, mas nos impõe considerar o que significa aplicá-los no contexto de um sistema de produção como o capitalista, que se fundamenta de maneira essencial numa assimetria de relações de poder. A realização de uma liberdade e igualdade plenas implicaria no fim do próprio capitalismo, neste sentido.

As contradições em questão não são naturalmente contradições lógicas, mas práticas, ou seja, não levam a afirmar a impossibilidade de pensarmos que a realidade seja compatível com seus valores, mas levam a crises, à experiência de um fracasso, de um déficit ou de uma falta, por assim dizer. Portanto, ao apontar para as razões de tais crises, a crítica social possui um valor eminentemente prático, pois nos permite intervir sobre elas. Ao fazer isso, o crítico social não precisa partir de um ponto arquimediano para propor normas ou valores diferentes, mas pode fundar a normatividade de sua análise crítica na normatividade das normas e valores criticados, ainda que de forma negativa, ou seja, apelando para uma transformação deles através de sua negação determinada, ou seja, da negação de sentido que eles assumem numa certa práxis social. A negação da liberdade e igualdade como são entendidas no capitalismo implica a afirmação de uma liberdade e igualdade diferentes, não a afirmação de valores diferentes ou outros. Isso leva inevitavelmente a pensarmos tais normas de maneira radicalmente diversa, mas não cabe ao crítico defini-las sozinho, sem a cooperação dos indivíduos que são vítimas dos déficits e das crises acima mencionados.

Crítica como crítica dos modelos de justificação pública

Este último aspecto oferece uma ponte para a ideia de Rainer Forst segundo a qual as ideologias são “complexos de justificações e de relações de poder, que se imunizam dos questionamentos críticos, destorcendo o espaço para razões justificativas e justificando relações de poder como se fossem naturais e imutáveis” (Forst, 2009FORST, Rainer. Der Grund der Kritik: Zum Begriff der Menschenwürde in sozialen Rechtfertigungsordnungen. In: JAEGGI, Rahel; WESCHE, Tilo (orgs.). Was ist Kritik? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009. p. 150-164., p. 159). O que nos interessa aqui é o fato de Forst chamar atenção para a centralidade do fenômeno da justificação. A crítica social se torna assim crítica das justificativas oferecidas para a práxis social vigente e, ao mesmo tempo, crítica da maneira em que tais justificativas são construídas e outras excluídas de antemão. Em outras palavras, ela não é mera crítica das relações de poder, mas também dos mecanismos que justificam tais relações (uma ideia que lembra muito a crítica de Foucault aos dispositivos). Deste ponto de vista, a existência social dos indivíduos implica num processo no qual se exigem justificativas dos outros e os outros exigem justificativas de nós. A sociedade pode ser entendida, neste sentido, como um ordenamento organizado ao redor de justificativas que mantêm sua legitimação, mas que podem também ser postas em questão (Forst, 2007FORST, Rainer. Das Recht auf Rechtfertigung: elemente einer konstruktivistischen Theorie der Gerechtigkeit. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2007.). A crítica social pode ter como alvo quer as justificativas vigentes, quer a exclusão de parte dos membros da sociedade dos discursos de justificação. Embora Forst não diga isso, uma maneira de cumprir a primeira destas duas tarefas poderia consistir justamente em ouvir a voz dos excluídos ou em considerar as justificativas vigentes do ponto de vista deles.

Destarte, podemos dizer que a posição do crítico social não é uma posição externa à sociedade, nem é tampouco a posição de quem aceita a ideologia que legitima a práxis social vigente (como o faz o especialista). Ao criticar esta ideologia, contudo, ele recorre também à experiência de injustiça ou de exclusão relatada por membros da sociedade. Isso nos leva a considerar a terceira questão.

O método da teoria crítica

Até agora respondemos, ou tentamos responder, às duas questões iniciais, a saber: de onde fala a teoria crítica e que tipo de crítica ela é. Agora devemos ocupar-nos da terceira questão, relativa ao método da própria teoria crítica.

Contrariamente à filosofia política tradicional, a teoria crítica da sociedade não recorre a modelos ideais e universais como a república platônica citada por Kant na primeira Crítica (1998, B 372s). Em outras palavras, ela tem que encontrar os critérios, com base nos quais possa criticar a sociedade, na própria realidade social. Não se trata, em suma, de uma crítica externa, como a baseada nos mencionados modelos ideais, mas de uma crítica interna, que visa revelar as tensões e até as contradições internas à sociedade.2 2 Boltanski (2010) afirma que o sociólogo, a fim de operar uma crítica da sociedade, deve assumir uma posição externa a ela. Para explicar como isso seria possível, Boltanski faz uma distinção entre mundo e realidade: a segunda é parcial e criada pelas instituições sociais, enquanto o primeiro fica sempre fora do alcance de nossa capacidade de descrição e compreensão. Neste sentido, o crítico social apontaria para a discrepância entre mundo e realidade, colocando-se assim ‘fora’ da realidade produzida socialmente. Contudo, ele não se coloca por isso fora da sociedade, em minha opinião. Uma exposição crítica da posição de Boltanski não pode, porém, ser efetuada neste contexto. Isso acontece também no caso da crítica hermenêutica-reconstrutiva mencionada acima. Conforme este tipo de crítica, a sociedade não manteria suas promessas e não respeitaria os valores e ideais que constituem sua base moral e ética e que, por sua vez, são acusados, às vezes, de representar uma mera cobertura ideológica de interesses inconfessados (uma acusação questionável, já que nem sempre há a intenção explícita de servir-se de tais ideais e valores como [escudo], antes há uma incapacidade de viver à altura deles, como no caso de ideais tais quais a justa recompensa, a neutralidade do estado etc.). Pode-se, em suma, acusar alternativamente a sociedade de hipocrisia, de traição dos seus próprios ideais ou de incapacidade de realizá-los. Mas pode-se também pôr em questão os ideais mesmos e mostrar como eles acabam indo contra importantes fenômenos presentes na sociedade (como faziam os críticos burgueses da sociedade do Antigo Regime). Para dar um exemplo: poder-se-ia criticar a sociedade capitalista e globalizada contemporânea por não realizar sua promessa de garantir a plena autonomia individual (o indivíduo fica preso em mecanismos impessoais que tornam impossível decidir de forma verdadeiramente autônoma sobre sua vida) ou, alternativamente, pôr em questão o próprio ideal de autonomia individual (quer por ser a base daquele individualismo que provoca fenômenos de desagregação social que resultam, por sua vez, em formas de alienação características da sociedade atual; quer por ser um conceito vazio ao qual nada corresponde num sistema econômico que, como o capitalismo, é governado por forças anônimas e superindividuais).

Neste sentido, cabe distinguir várias perspectivas, a partir das quais é possível uma crítica interna da sociedade ou de seus sistemas econômico, político, jurídico etc. A primeira é uma perspectiva meramente funcional: o alvo da crítica é um mau funcionamento do sistema. Um exemplo clássico seria a crítica hermenêutica-reconstrutiva que acusa o capitalismo de não produzir o bem-estar para todos que ele promete criar (pelo menos segundo seus teóricos mais apologéticos como Adam Smith ou Milton Friedman). Este tipo de crítica julga geralmente ser possível otimizar o sistema por meio de alguns ajustes: ela leva a sério as promessas não mantidas e não pensa que é impossível realizá-las pela própria lógica da sociedade ou do sistema em questão. A segunda é uma perspectiva moral que aponta para o fato de a sociedade (ou o sistema) ir contra uma norma ou um ideal moral aceitos pela própria sociedade (ou pelo próprio sistema). Um exemplo é a crítica ao capitalismo que o acusa de explorar o trabalhador e, portanto, de quebrar a justiça que ele pretende seguir (na ideia da justa recompensa, do contrato livre entre empregador e empregado etc.). Também neste caso, permanece aberta a possibilidade de que uma mudança interior ao sistema (uma moralização ou a eliminação de uma situação de injustiça específica) possa fazer com que ele esteja à altura de seus próprios valores e ideais morais, mas nem sempre isto é possível (por exemplo: na ótica marxista da teoria da mais-valia, o capitalismo é intrinsecamente injusto, pois se baseia na exploração do operário e não pode renunciar a tal exploração, sem deixar de ser capitalismo). A terceira é uma perspectiva ética que salienta como a vida numa determinada sociedade não é uma vida boa conforme os seus próprios critérios de vida boa. Um exemplo é a crítica ao capitalismo que o acusa de criar alienação em vez de tornar os indivíduos autônomos. A partir desta ótica, novamente, pode-se pensar que a sociedade consiga eliminar os obstáculos que impedem os indivíduos de viver uma vida boa, ou pensar que a situação de alienação permanece irremediável.3 3 Retomo – com modificações – esta distinção de três perspectivas de um ciclo de aulas sobre críticas ao capitalismo realizado por Rahel Jaeggi na Humboldt-Universität de Berlim em 2010. Uma posição inspirada na Teoria Crítica tradicional e que pretenda ser, por sua vez, teoria crítica, deveria, portanto, em primeiro lugar, assumir uma destas perspectivas.

Ela deveria, em segundo lugar, encontrar uma base nos resultados empíricos das ciências sociais, mas sem cair na armadilha de uma crença absoluta na verdade de tais resultados (isto é, sem cair num positivismo cego). Ela deveria antes contextualizar tais resultados, quer por meio de uma crítica do método das ciências sociais, no exemplo das considerações sobre o estatuto epistemológico da sociologia feitas por Adorno e Habermas nos anos Sessenta (Adorno et al., 1978ADORNO, Theodor W. et al. Der Positivismusstreit in der deutschen Soziologie. 6. ed. Darmstadt: Luchterhand, 1978.), quer por meio de uma crítica dos pressupostos ideológicos das mesmas, isto é, dos preconceitos e dos interesses que podem levar as ciências sociais a oferecer uma imagem distorcida dos fenômenos sociais.4 4 Na realidade, nem todos os representantes da Teoria Crítica acham que a crítica imanente da sociedade deva começar por um levantamento empírico das experiências das pessoas que nela vivem (das injustiças que elas sofrem ou afirmam sofrer, de seus comportamentos cotidianos, de sua visão do mundo etc.). Habermas, por exemplo, opera uma crítica de instituições sociais como os sistemas da economia e da administração com base em princípios racionais que são pressupostos nos processos de comunicação, mas são violados frequentemente na práxis comunicativa. Ainda que este seja um caminho legítimo, ele me parece ir contra a necessidade – salientada pelo próprio Habermas – de que o crítico social assuma a perspectiva de um participante nas próprias relações sociais que ele critica, em lugar da perspectiva de um observador imparcial. Contudo, o teórico do discurso parece assumir precisamente esta última perspectiva na hora de estabelecer quais são os princípios que deveriam guiar os processos de comunicação e de argumentação com base nos quais os indivíduos chegam a coordenar e regulamentar sua vida comum. Em outras palavras, os indivíduos passam a ser ouvidos somente no âmbito de discursos cujas regras já foram definidas (ainda que não criadas – e isso é, com certeza, um ponto central) pelo teórico do discurso. Não se trata de uma mera questão de sucessão cronológica ou lógica; o ponto é que o crítico social elabora aqui critérios para a crítica social a partir da mera noção de discurso ou de comunicação bem-sucedida – critérios que os indivíduos são ‘obrigados’ a aceitar se querem por sua vez criticar aspectos da realidade social, pois de outra maneira seus argumentos não podem ser aceitos. Além disso, é possível operar uma crítica das mencionadas instituições sociais com base em tais critérios – por exemplo, relativamente a medida em que elas permitem ou impedem processos de comunicação baseados neles –, independentemente de os indivíduos operarem de fato uma crítica de tais instituições: um sistema administrativo que não admitisse nenhuma forma de participação discursiva ao processo de criação de normas práticas seria criticável independentemente de os cidadãos o acharem injusto ou inaceitável. O tipo de posição na qual estou pensando parte de dados empíricos relativos à maneira em que as pessoas relatam experiências de injustiça ou descrevem sua situação, para confrontar tais relatos com os ideais e os valores dominantes na sociedade e mostrar tensões ou até contradições.

Em terceiro lugar, uma posição inspirada na Teoria Crítica deveria operar uma crítica das imagens dominantes na sociedade relativas a certos fenômenos sociais. Esta tarefa está estritamente ligada à crítica das ciências sociais mencionada acima, já que há uma relação de influência recíproca entre as ciências sociais e as imagens dominantes. Em outras palavras: a maneira pela qual certos fenômenos sociais são habitualmente definidos pelas ciências sociais e a imagem destes fenômenos que domina na sociedade se influenciam reciprocamente. Esta terceira tarefa constitui um acompanhamento essencial da segunda tarefa (ouvir a voz dos envolvidos), a fim de dispor de instrumentos críticos para interpretar os dados empíricos, já que os relatos em questão são fortemente influenciados pelas imagens dominantes na sociedade.

Para terminar: um exemplo concreto

Gostaria de terminar esta fala apontando para uma possível aplicação concreta do que acabei de dizer no contexto específico da sociedade brasileira. Contrariamente ao que muitos membros da classe média podem pensar, o maior problema do Brasil não é a violência ou a corrupção dos políticos, mas é a pobreza determinada pela forte desigualdade econômica – e não por uma simples falta de recursos, como em outros países, como em vários estados africanos. Em segundo lugar poder-se-ia colocar a corrupção como hábito difuso não limitado à política, que perpassa todas as camadas sociais e caracteriza inúmeras relações e formas de comportamento sociais que vão de não exigir nota fiscal a recorrer aos laços de amizade para obter privilégios ou favores indevidos, inclusive os mais irrelevantes como furar uma fila. Aplicando à pobreza nossas considerações, fica patente que o primeiro passo consiste em ouvir a voz dos pobres, em vez de definir sua situação do ponto de vista de um observador imparcial. A razão disso não é de natureza meramente epistêmica. Não se trata, em suma, de recorrer a eles porque eles sabem melhor do que os outros em que consiste sua situação – pelo contrário: por causa da sua situação eles possuem frequentemente fortes limitações para entender plenamente tal situação e suas razões. A razão talvez mais importante é, basicamente, de natureza ética e diz respeito à importância que a possibilidade de falar da sua situação possui para os próprios pobres.

O filósofo italiano Salvatore Veca chama nossa atenção para a importância da linguagem em relação à dignidade e à autonomia individual. A linguagem é uma instituição social na qual é possível articular as experiências de sofrimento e que implica a existência de uma comunidade de falantes e agentes que se reconhecem reciprocamente. A dignidade tem a ver com a inclusão em tal comunidade de comunicação e reconhecimento. “Exclusão e falta de reconhecimento geram aquela peculiar espécie de sofrimento […] que definimos como experiência da humilhação ou da degradação” (Veca, 1997VECA, Salvatore. Dell'incertezza: tre meditazioni filosofiche. Milano: Feltrinelli, 1997., p. 107). Tal humilhação representa uma erosão da autonomia individual, pois resulta numa desconexão da comunidade e implica numa perda do respeito de si. Neste sentido, a afirmação da autonomia individual está ligada à possibilidade que o indivíduo tem de utilizar um determinado vocabulário para descrever-se, sem submeter-se à imposição de um vocabulário (e de uma descrição) pelos outros (ibid., p. 111s). A humilhação é dupla: o indivíduo é silenciado, por um lado, e, por outro, vê impor-se a ele uma descrição que não corresponde à sua visão de si e que representa um desrespeito a ele. Ao receber o rótulo de membros perigosos, inúteis e anti-sociais da comunidade, os pobres são de fato excluídos expressamente dela; contudo, espera-se deles, ao mesmo tempo, que se comportem como membros. Os pobres vivem continuamente a tensão entre a exclusão (e humilhação) por parte de um sistema econômico e legal que os prejudica em relação às classes superiores, e o apelo a considerar-se parte daquele mesmo sistema e a respeitar suas regras.

A dimensão linguística é fundamental para a afirmação da dignidade humana, já que esta última se baseia não numa qualidade inata ao ser humano, mas, como mostrou Rainer Forst, no reconhecimento do direito das pessoas de participar de um discurso de justificação dos estados de coisas que afetam sua vida, quando tais estados dependem da ação humana (como no caso de normas jurídicas ou de decisões políticas, de instituições ou de sistemas econômicos). Para este fim, contudo, é necessário que os indivíduos disponham da capacidade e da possibilidade de exercer críticas, de exigir justificativas, de esclarecer sua posição em relação à realidade sentida por eles como injusta ou que precisa ser modificada por alguma razão. A impossibilidade de articular suas exigências e até de descrever sua própria situação em termos e de um ponto de vista que não seja aquele das classes dominantes resulta numa inevitável perda de autonomia, já que esta pressupõe um sujeito capaz de afirmar-se perante os outros como um ator capaz de fundamentar verbalmente suas ações, suas intenções, seus desejos, suas necessidades etc.

É fundamental, portanto, fazer com que os indivíduos envolvidos possam definir eles mesmos os aspectos relevantes de sua situação. Esta é a estratégia escolhida por autores como Pierre Bourdieu com seu projeto de entrevistas La misère du monde (Bourdieu, 1993BOURDIEU, Pierre (sous la direction de). La misère du monde. Paris: Seuil, 1993.) ou como Emmanuel Renault (Renault, 2004RENAULT, Emmanuel. L'expérience de l'injustice: reconnaissance et clinique de l'injustice. Paris: La Découverte, 2004.; 2008RENAULT, Emmanuel. Souffrances sociales: philosophie, psychologie et politique. Paris: La Découverte, 2008.). Como foi afirmado em relação ao estudo de Bourdieu, o material recolhido nas entrevistas com pobres de vários tipos (desempregados crônicos e outras categorias de pessoas às margens de uma sociedade rica como a francesa, como no caso da obra deste autor, ou pessoas que vivem em sociedades tradicionalmente pobres, como no caso de outras pesquisas) “torna acessível à crítica social e política um sofrimento cotidiano que habitualmente é bagatelizado como [miséria genérica] quer pelos envolvidos, quer pelo discurso público” (Sonderegger, 2009SONDEREGGER, Ruth. Wie diszipliniert ist (Ideologie-)Kritik? Zwischen Philosophie, Soziologie und Kunst. In: JAEGGI, Rahel; WESCHE, Tilo (orgs.). Was ist Kritik? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009. p. 55-80., p. 71). Tais entrevistas permitem aos indivíduos em questão expressar sua visão das coisas, oferecendo uma imagem de si e uma explicação de sua situação construídas por eles mesmos.5 5 Um bom exemplo neste sentido é oferecido pelo projeto Consultations with the poor, realizado nos anos Noventa pelo Banco Mundial (Narayan, 2000a; 2000b). O objetivo do projeto era “permitir a um amplo leque de pessoas pobres – homens e mulheres, jovens e idosos – de países e condições diferentes expressar suas visões” sobre a pobreza (Narayan, 2000a, p. 3). O estudo mostrou que nos vários continentes e países, nas situações culturais mais diferentes, há um consenso geral sobre os elementos que definem o bem-estar, mas, sobretudo o mal-estar humano. O coordenador do projeto Deepa Narayan chama nossa atenção para tais elementos, apontados por pessoas de todo o mundo e de todas as culturas: “Experiências de mal-estar incluem carências e faltas materiais (de comida, de moradia e abrigo, de bens e dinheiro); fome e dor; cansaço e falta de lazer; exclusão, rejeição, isolamento e solidão; relações más com os outros, inclusive com a família; insegurança, vulnerabilidade, angústia, medo e baixa autoestima; impotência, frustração e raiva” (Narayan, 2000a, p. 21).

Ora, como já se disse, poderia ser objetado que os indivíduos que vivem na pobreza não são bons juízes de sua situação, pois justamente esta última os torna incapazes de articular suas necessidades de forma relativamente autônoma. A falta de educação e a urgência de satisfazer carências básicas pode levá-los a ter uma visão distorcida de seus problemas e das eventuais soluções. Naturalmente, as pessoas sempre encontrarão obstáculos à compreensão e à formulação das suas necessidades – obstáculos ligados às experiências biográficas, à educação, à eventual crença religiosa etc. Contudo, estes obstáculos se apresentam para todos os indivíduos, independentemente de sua posição social e econômica. Deste ponto de vista, os pobres são tão sujeitos a errar quanto os ricos ou os membros da classe média. Contrariamente a estes últimos, porém, falta-lhes quase sempre a possibilidade de organizar-se para afirmar seus interesses e tentar realizá-los por meio de políticas correspondentes. Uma das razões principais disto consiste na interiorização da imagem negativa que o resto da sociedade ou sua parte mais poderosa do ponto de vista ideológico constrói da pobreza e dos pobres, e que vai da atribuição aos indivíduos da responsabilidade pela sua situação (como se eles tivessem escolhido ser pobres, nascer numa família pobre, num bairro pobre, numa área rural pobre, num país rico que não cuida deles) a uma espécie de racismo que vê neles indivíduos antropologicamente ou – em termos mais “modernos” – geneticamente diferentes do resto da população. No melhor dos casos, a pobreza é estigmatizada como uma situação humilhante que – quaisquer que sejam suas causas – impõe silêncio e vergonha aos que se encontram nela. Tudo isto torna praticamente impossível aos pobres levantar sua voz, pois para isto eles precisariam de um nível mínimo de autoestima que lhes é negado pela imagem negativa mencionada e que eles mesmos tendem a interiorizar.

Portanto, os pobres ficam excluídos da participação política não somente pelos limites impostos a sua capacidade de articular-se pela própria situação de pobreza, mas também pelo próprio fato de serem pobres, ainda que tal exclusão não seja formal (pois nossos ordenamentos democráticos impedem que isto aconteça) e se baseie antes numa falta de respeito e de autorrespeito. A ideia da igual participação que caracteriza de maneira essencial nossas democracias está fundada sobre um princípio ético, a saber, o princípio do igual respeito: todos possuem os mesmos direitos no que concerne à participação na vida política de sua comunidade porque todos merecem a mesma atenção e consideração – e isto vale para as pessoas, as opiniões e os interesses (Galeotti, 2010GALEOTTI, Anna E. La politica del rispetto: I fondamenti etici della democrazia. Roma: Laterza, 2010.). Em quase toda sociedade a pobreza é considerada uma situação humilhante que vem acompanhada de uma perda de respeito e de autorrespeito. Em algumas sociedades, a pobreza é considerada como o resultado de uma falha ou até de uma culpa por parte dos próprios pobres: de sua preguiça ou incompetência ou falta de inteligência. Como demonstrado pelas pesquisas empíricas acima mencionadas, os pobres internalizam frequentemente esta imagem e se culpam pela sua situação, tornando-se vítimas do discurso de autolegitimação avançado pelos grupos dominantes. Às vezes eles podem culpar sua má sorte, ou determinados indivíduos, ou até Deus, mas quase nunca a sociedade em geral. Parece que não se sentem vítimas de um arranjo social injusto ou de uma injusta distribuição de recursos, mas de injustiças pontuais ou de sua pouca sorte – e isto pode explicar a atitude extremamente passiva que os pobres têm em muitos países ou o fato de que, quando eles lutam por seus direitos, o fazem somente em conexão com uma causa específica (por exemplo, contra a privatização da água ou das terras comuns) e não visando mudanças sociais e econômicas mais gerais.

O obstáculo maior a uma participação política efetiva do pobre se dá precisamente nesta falta de autorrespeito que deriva da interiorização de uma imagem criada por outros. Neste sentido, a falta de autorrespeito é a consequência de uma humilhação que toma a forma de estigmatizar a pobreza e de culpar os pobres por sua situação. O debate sobre o Bolsa-Família no Brasil é um bom exemplo disso: os pobres são acusados de preferir viver do dinheiro da bolsa, em vez de trabalhar; de fazer filhos para ganhar mais dinheiro do estado; de usar o dinheiro para comprar cachaça etc. Estas acusações provêm, na maioria dos casos, de pessoas que não dispõem de informações sobre o programa (sobre o valor da bolsa, por exemplo, que com certeza não poderia substituir um salário regular; ou sobre o fato de que as famílias recebem no máximo ajuda para três filhos, enquanto os outros ficam excluídos; ou sobre o fato de que o dinheiro é pago às mulheres, não aos homens etc.).6 6 Na pesquisa de campo efetuada por mim e outros colegas, na qual entrevistamos mais de cem mulheres, encontramos somente uma que admitiu ter deixado seu emprego quando começou a receber a bolsa: antes ela trabalhava como empregada doméstica para uma família de classe média sete dias por semana (com somente a tarde do domingo livre) por R$ 150,00 por mês, obviamente sem contrato nem contribuições; agora recebia R$ 135,00 pela bolsa e fazia bicos (então, seguia trabalhando, ainda que de maneira irregular). Parece-me evidente que, neste caso se alguém deve ser culpado, dever-se-ia tratar da família que explorava cinicamente esta mulher; mas a opinião pública brasileira (formada geralmente pela própria classe média) tende antes a condenar a presumida preguiça de quem não quer deixar-se explorar. Este tipo de argumentos é muito comum no discurso público geral, no qual não se admite que os pobres possam não ser responsáveis por sua situação.7 7 Uma exceção é feita geralmente para as crianças, compadecidas como vítimas de circunstâncias. Trata-se de uma exceção interessante, pois revela uma premissa implícita: se as crianças não podem ser culpadas, já que tiveram a má sorte de nascerem em famílias pobres, o mesmo não vale para os pais, que, porém, na maioria dos casos nasceram por sua vez em famílias pobres. Isto significa que nesta visão cada pessoa que nasceu na pobreza tem a chance de sair dela e, se isto não acontecer, ela é a única que deve ser culpada. O estigma atribuído aos pobres se baseia na premissa de que cada um é responsável pela sua posição socioeconômica como adulto, mas a premissa desconsidera o fato de que a maioria das pessoas que pertence à elite ou às classes mais ricas já nasceu em famílias abastadas e, portanto, não são responsáveis por sua situação de bem-estar ou de poder. As poucas histórias de self-made men que começaram com empregos mais humildes e chegaram a possuir grandes empresas são precisamente as exceções que confirmam a regra que Gaetano Mosca tinha formulado já no começo do século 20: as elites tendem a reproduzir-se monopolizando a riqueza e a educação, transmitindo-as à própria progênie e excluindo na medida do possível os outros membros da sociedade (Mosca, 2004MOSCA, Gaetano. La clase política. México: Fondo de Cultura Económica, 2004.). A regra é a exclusividade do poder econômico e social, e a exceção do “homem que se fez por si próprio” é bem-vinda, pois reforça o discurso oficial pelo qual cada um recebe o que merece: riqueza ou pobreza.

Como já se disse, a democracia se fundamenta na ideia do igual respeito e exclui, portanto, a possibilidade da humilhação: pode aceitar a ideia de punir atos que são considerados ilegais, mas não pode aceitar que cidadãos (inclusive criminosos) sejam humilhados por outros cidadãos. Contudo, é precisamente isso o que acontece em muitos países, nos quais a pobreza é um problema grave, como no Brasil, e é o que está começando a acontecer até em países ‘desenvolvidos’, nos quais a existência da pobreza já não é contingente e não pode ser corrigida pelo mercado ou sem a intervenção do estado. Mas uma ação forte por parte do estado é precisamente o que o discurso político dominante condena com mais vigor. Cada programa público que visa ajudar o pobre é etiquetado como paternalista e se lamentam suas consequências sobre a atitude moral dos pobres, como vimos. Há uma absoluta falta de empatia e de capacidade de pôr-se no lugar do outro (“O que eu teria feito, se tivesse nascido numa família pobre? Que tipo de pessoa me teria tornado?”) – isto é, uma falta daquelas faculdades que estão na base de qualquer verdadeira democracia, como já salientaram John Dewey ou George Herbert Mead (Dewey, 1966DEWEY, John. Democracy and education: an introduction to the philosophy of education. New York: Free Press, 1966.; Mead, 1934MEAD, George H. Mind, self and society. Chicago: Chicago University Press, 1934.). Se os cidadãos não forem capazes de ver as coisas do ponto de vista dos concidadãos, e se eles afirmarem que um certo modelo de vida e os valores correspondentes devem ser adotados por todos como os únicos possíveis, a democracia irá rapidamente rumo a uma tirania ética da maioria, na qual as pessoas que vivem de maneira diferente do modelo em questão serão desprezadas e desrespeitadas.

Uma das maneiras em que se dá este desrespeito é precisamente pela exclusão dos pobres do discurso sobre a própria pobreza. Esta privação de voz equivale à falta de reconhecimento do indivíduo como sujeito por parte daqueles que o silenciam ou não querem ouvi-lo ou até não querem vê-lo, como se além do silêncio lhe fosse imposta a invisibilidade, como no romance de Ralph Ellison, The Invisible Man (Honneth, 2003HONNETH, Axel. Unsichtbarkeit: Stationen einer Theorie der Intersubjektivität. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2003.). Nas políticas públicas de luta à pobreza, portanto, deveria sempre haver lugar para uma campanha de educação ao respeito do pobre que tenha como alvo as outras classes. Como já vimos, até num estado de bem-estar social a sociedade pode não ser civilizada se seus membros humilham ou desrespeitam outros membros. A luta contra a pobreza material de uma parte da população deve sempre acompanhar a luta contra a pobreza espiritual e moral de outras partes dela.

  • 1
    Precisamente nisto consiste a maior dificuldade de uma teoria do reconhecimento baseada na ideia de que o que conta são as experiências subjetivas das pessoas e não a situação objetiva na qual elas se encontram (esta parece-me ser a crítica mais adequada de Nancy Fraser a Axel Honneth: cf. Fraser; Honneth, 2003FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or recognition? A political- philosophical exchange. London: Verso, 2003.).
  • 2
    Boltanski (2010)BOLTANSKI, Luc. Soziologie und Sozialkritik: Frankfurter Adorno-Vorlesungen 2008. Berlin: Suhrkamp, 2010. afirma que o sociólogo, a fim de operar uma crítica da sociedade, deve assumir uma posição externa a ela. Para explicar como isso seria possível, Boltanski faz uma distinção entre mundo e realidade: a segunda é parcial e criada pelas instituições sociais, enquanto o primeiro fica sempre fora do alcance de nossa capacidade de descrição e compreensão. Neste sentido, o crítico social apontaria para a discrepância entre mundo e realidade, colocando-se assim ‘fora’ da realidade produzida socialmente. Contudo, ele não se coloca por isso fora da sociedade, em minha opinião. Uma exposição crítica da posição de Boltanski não pode, porém, ser efetuada neste contexto.
  • 3
    Retomo – com modificações – esta distinção de três perspectivas de um ciclo de aulas sobre críticas ao capitalismo realizado por Rahel Jaeggi na Humboldt-Universität de Berlim em 2010.
  • 4
    Na realidade, nem todos os representantes da Teoria Crítica acham que a crítica imanente da sociedade deva começar por um levantamento empírico das experiências das pessoas que nela vivem (das injustiças que elas sofrem ou afirmam sofrer, de seus comportamentos cotidianos, de sua visão do mundo etc.). Habermas, por exemplo, opera uma crítica de instituições sociais como os sistemas da economia e da administração com base em princípios racionais que são pressupostos nos processos de comunicação, mas são violados frequentemente na práxis comunicativa. Ainda que este seja um caminho legítimo, ele me parece ir contra a necessidade – salientada pelo próprio Habermas – de que o crítico social assuma a perspectiva de um participante nas próprias relações sociais que ele critica, em lugar da perspectiva de um observador imparcial. Contudo, o teórico do discurso parece assumir precisamente esta última perspectiva na hora de estabelecer quais são os princípios que deveriam guiar os processos de comunicação e de argumentação com base nos quais os indivíduos chegam a coordenar e regulamentar sua vida comum. Em outras palavras, os indivíduos passam a ser ouvidos somente no âmbito de discursos cujas regras já foram definidas (ainda que não criadas – e isso é, com certeza, um ponto central) pelo teórico do discurso. Não se trata de uma mera questão de sucessão cronológica ou lógica; o ponto é que o crítico social elabora aqui critérios para a crítica social a partir da mera noção de discurso ou de comunicação bem-sucedida – critérios que os indivíduos são ‘obrigados’ a aceitar se querem por sua vez criticar aspectos da realidade social, pois de outra maneira seus argumentos não podem ser aceitos. Além disso, é possível operar uma crítica das mencionadas instituições sociais com base em tais critérios – por exemplo, relativamente a medida em que elas permitem ou impedem processos de comunicação baseados neles –, independentemente de os indivíduos operarem de fato uma crítica de tais instituições: um sistema administrativo que não admitisse nenhuma forma de participação discursiva ao processo de criação de normas práticas seria criticável independentemente de os cidadãos o acharem injusto ou inaceitável.
  • 5
    Um bom exemplo neste sentido é oferecido pelo projeto Consultations with the poor, realizado nos anos Noventa pelo Banco Mundial (Narayan, 2000aNARAYAN, Deepa et al. Voices of the poor: can anyone hear us? Oxford: Oxford University Press, 2000a.; 2000bNARAYAN, Deepa et al. Voices of the poor: crying out for change. Oxford: Oxford University Press, 2000b.). O objetivo do projeto era “permitir a um amplo leque de pessoas pobres – homens e mulheres, jovens e idosos – de países e condições diferentes expressar suas visões” sobre a pobreza (Narayan, 2000aNARAYAN, Deepa et al. Voices of the poor: can anyone hear us? Oxford: Oxford University Press, 2000a., p. 3). O estudo mostrou que nos vários continentes e países, nas situações culturais mais diferentes, há um consenso geral sobre os elementos que definem o bem-estar, mas, sobretudo o mal-estar humano. O coordenador do projeto Deepa Narayan chama nossa atenção para tais elementos, apontados por pessoas de todo o mundo e de todas as culturas: “Experiências de mal-estar incluem carências e faltas materiais (de comida, de moradia e abrigo, de bens e dinheiro); fome e dor; cansaço e falta de lazer; exclusão, rejeição, isolamento e solidão; relações más com os outros, inclusive com a família; insegurança, vulnerabilidade, angústia, medo e baixa autoestima; impotência, frustração e raiva” (Narayan, 2000aNARAYAN, Deepa et al. Voices of the poor: can anyone hear us? Oxford: Oxford University Press, 2000a., p. 21).
  • 6
    Na pesquisa de campo efetuada por mim e outros colegas, na qual entrevistamos mais de cem mulheres, encontramos somente uma que admitiu ter deixado seu emprego quando começou a receber a bolsa: antes ela trabalhava como empregada doméstica para uma família de classe média sete dias por semana (com somente a tarde do domingo livre) por R$ 150,00 por mês, obviamente sem contrato nem contribuições; agora recebia R$ 135,00 pela bolsa e fazia bicos (então, seguia trabalhando, ainda que de maneira irregular). Parece-me evidente que, neste caso se alguém deve ser culpado, dever-se-ia tratar da família que explorava cinicamente esta mulher; mas a opinião pública brasileira (formada geralmente pela própria classe média) tende antes a condenar a presumida preguiça de quem não quer deixar-se explorar.
  • 7
    Uma exceção é feita geralmente para as crianças, compadecidas como vítimas de circunstâncias. Trata-se de uma exceção interessante, pois revela uma premissa implícita: se as crianças não podem ser culpadas, já que tiveram a má sorte de nascerem em famílias pobres, o mesmo não vale para os pais, que, porém, na maioria dos casos nasceram por sua vez em famílias pobres. Isto significa que nesta visão cada pessoa que nasceu na pobreza tem a chance de sair dela e, se isto não acontecer, ela é a única que deve ser culpada.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2012

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2011
  • Aceito
    29 Dez 2011
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