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Disciplinas e profissões em debate: Entre cooperação e demarcação de fronteiras

Disciplines and professions challenged: Between cooperation and demarcation of borderlines

A cooperação entre as diferentes áreas do conhecimento tem sido discutida e articulada teoricamente mediante o recurso a uma diversidade terminológica. Inter, multi e a transdisciplinaridade são algumas dessas designações; mas a despeito de seu uso frequente, há pouco consenso sobre definições e implicações epistemológicas e práticas com elas vinculadas. Seus críticos veem no ressurgimento desses conceitos, e nas reivindicações para a transposição de fronteiras disciplinares que os acompanham, um retorno à curta mas agitada era da onipresença dos discursos pós-modernos. Durante o auge daquela onda de argumentações, as estreitas demarcações de fronteiras nas disciplinas científicas foram identificadas como bloqueios para que as transformações sociais pudessem ser compreendidas e explicadas adequadamente. Face àquela percepção, pareceu lógico confrontar os interesses cognitivos diagnosticados como estreitos, uniformes, presos a disciplinas, com uma concepção de ciência baseada na heterogeneidade, na diferença, na multidimensionalidade. A pluralidade tornou-se a referência normativa com a qual a uniformidade científica foi criticada, na pretensão de colocar fim às “metanarrativas” teóricas.

As vozes críticas à diversidade reagem ao que é visto como diluição das fonteiras disciplinares e arbitrariedade científica. Elas temem que os recentes desenvolvimentos levariam a uma perda de identidade e de legitimidade das disciplinas científicas, e colocariam em risco consagradas tradições e escolas de teoria social e de pesquisa. Ou dito de outro modo: há um temor de que as perspectivas trans, multi e interdisciplinar não apenas diluam as fronteiras, mas coloquem em questão até mesmo autonomia e identidade do modo de fazer ciência considerado consagrado.

Independentemente da afiliação teórica que se possa preferir, é possível constatar com crescente frequência que o perfil disciplinar de muitas áreas da ciência se revela estreito e insuficiente para dar conta das questões que elas se colocaram e que as legitimaram como área do conhecimento. Os interesses de conhecimento que hoje predominam na formulação de projetos e na concepção de currículos são menos vinculados a disciplinas e mais decididamente voltados a questões e problemas. A práxis científica e acadêmica não é mais pensada de modo genérico e uniforme, mas cada vez mais de maneira específica e plural. Por exemplo, a cooperação colegial e interdisciplinar nas ciências humanas, sociais e da cultura, entre Sociologia, Ciência Política, Antropologia, Serviço Social, Pedagogia, Direito, para citar apenas algumas, não ocorre mais prioritariamente com base em concepções e inspiração internas; ela é impulsionada por e conduzida com vistas a realidades sociais concretas, com o intuito de gerar mais e melhor conhecimento a respeito delas. A consequência é que algumas disciplinas recorrem crescentemente a conhecimentos, metodologias e técnicas complementares vindas de outras áreas – por vezes apropriando-se deles, ou então estabelecendo em torno de objetos fronteiriços um campo de cooperação.

Nas ciências humanas, sociais e da cultura entrementes o olhar por sobre as fronteiras das competências disciplinares tradicionais e a utilização de contribuições de fontes não necessariamente enquadradas de modo unívoco no cânone científico fazem parte da prática científica cotidiana. Além disso, pode-se observar que cada vez mais programas de formação são concebidos de forma interdisciplinar – e isso não apenas para otimizar recursos. Em algumas áreas, essa cooperação é impulsionada por novas exigências e por novos problemas, enquanto em outras ela serve sobretudo para o aprimoramento de processos e metodologias de pesquisa e para o enriquecimento com novos conhecimentos. E o que está acontecendo na esfera da formação e da pesquisa universitária é apenas um reflexo tênue de um movimento que no cotidiano das profissões se expandiu com muito mais ímpeto – e também com potenciais mais pronunciados de conflito.

Face a essa práxis científica cada vez mais fluida e à hibridização de conteúdos disciplinares, portanto, também se articulam vozes que apostam na manutenção de ou no retorno a concepções monolíticas e suficientes em si mesmas. Reclamam para si a competência exclusiva para responder a determinadas questões de modo disciplinar e através das culturas profissionais a elas vinculadas. Aquelas áreas do conhecimento que vinculam estreitamente uma disciplina científica com a formação profissional, como o Serviço Social, o Direito, a Medicina, entre outras, são as que mais têm resistido a aceitar os desafios do novo cenário. Não são poucas as iniciativas que reivindicam para grupos específicos a exclusividade para ministrar disciplinas, para investigar determinados temas e problemas, para desempenhar atividades profissionais ora mais, ora menos essenciais. E mesmo quando a vida acadêmica de algumas dessas áreas é minimamente permeável à cooperação, grupos e corporações profissionais tendem a ser mais refratários, julgando-se detentores de alguma iluminação superior inatingível pelos demais, e por conseguinte buscam demarcar artificialmente fronteiras em torno de objetos que querem sagrar só para si.

No dossiê Disciplinas e profissões em debate, esta edição da Civitas traz à discussão, a partir de perspectivas e contextos distintos e com questionamentos bem diferenciados, as questões e desafios que a relativização das tradicionais fronteiras disciplinares e a formação de campos de atuação multiprofissional representam, apoiando-se em experiências acadêmicas geográfica e disciplinarmente diversas. Os textos que compõem este dossiê estão sendo publicados simultaneamente em alemão na revista Soziale Passagen, da Alemanha. Com isso não se discute apenas nos textos as questões que envolvem a cooperação para além das fronteiras usuais; os próprios textos são parte constitutiva de uma experiência de deslimitação das culturas nacionais atuais na ciência e nas publicações científicas.1 1 Para as leitoras e leitores brasileiros gostaríamos de fazer uma observação sobre as designações Serviço Social e Pedagogia Social, presentes em alguns textos originais da Alemanha e da Suíça. No contexto de fala alemã são duas faces de uma mesma disciplina e de uma mesma profissão – e, muitas vezes, mesmo nos textos aqui publicados, são usados indistintamente. Diferenças históricas fazem com que vínculos e enfoques estejam ora mais orientados à assistência social (“Serviço Social”), ora para a formação não formal (“Pedagogia Social”).

No texto A sociologia no Brasil e a interdisciplinaridade nas ciências sociais, que abre esta edição, Jacob Carlos Lima e Soraya Maria Vargas Cortes descrevem e discutem a tensa relação entre disciplinaridade e interdisciplinaridade nas Ciências Sociais brasileiras, tomando como base a formação e a diferenciação das disciplinas de Sociologia, Ciências Política e Antropologia nos programas de formação a elas relacionados. Eles descrevem o jogo entre desenhos disciplinares e interdisciplinares por que passaram os programas de pós-graduação das Ciências Sociais, e defendem que por trás de um tênue discurso de interdisciplinaridade se perfilam mais e mais as disciplinas autônomas que tradicionalmente ali se abrigavam. Argumentam os autores que, embora a interdisciplinaridade se apresente como o futuro da investigação científica e imponha limites aos excessos da especialização, paradoxalmente, a solidez disciplinar torna a interdisciplinaridade mais efetiva.

Bernd Dollinger, em O elemento político no disciplinar, analisa a situação do Serviço Social e vê em sua pluralidade e heterogeneidade teórica não um déficit, mas um potencial. No fundo, segundo o autor, essa pluralidade teórica tanto historicamente como na atualidade se expressa em duas posturas fundamentais: por um lado há uma focalização que toma como ponto de partida o “sujeito sobrecarregado pela liberdade” e por outro aquela que parte do “sujeito supercontrolado” para desenvolver suas reflexões teóricas. Face a esse diagnóstico, que revela o Serviço Social como participante do jogo político de poder, o autor defende que Serviço Social não se defina primariamente como um projeto social, mas sim político.

Também Karin Böllert e Werner Thole iniciam seu texto Sobre a arquitetura teórica do Serviço Social com a constatação de que o Serviço Social sempre foi objeto de determinações teóricas muito distintas, e advogam que este fato não necessariamente deva ser lamentado. Segundo sua argumentação, as questões que essa trajetória permite colocar podem ser compreendidas como desafio e assumidos através de um processo empiricamente embasado de formação de teoria. Com base em dois exemplos empíricos eles discutem as possibilidades que uma cultura autônoma de pesquisa abre para o Serviço Social com relação a formação e estabilização de arcabouços teóricos próprios, dentro de uma perspectiva interdisciplinar.

Tomando como referência a implementação do Orçamento Participativo, no texto Pesquisa ação participante e convergências disciplinares Danilo Romeo Streck discute a investigação compartilhada com os próprios agentes. Conectando reflexões do sociólogo colombiano Orlando Fals Borda e do pedagogo brasileiro Paulo Freire, ele documenta que com a implementação da participação e da cogestão nas comunidades pode ser implementada uma pesquisa igualmente participativa. Segundo o autor, essa forma de pesquisar participando se habilita a desvelar como são desencadeados processos de aprendizagem em diversos níveis nas comunidades envolvidas com aquela política; a própria pesquisa permite experimentar como as rígidas fronteiras entre disciplinas e também entre pesquisa e práxis social, entre pesquisa e política podem ser questionadas. No entanto, essa pesquisa sempre precisa estar atenta a questões epistemológicas, éticas, políticas, culturais e pedagógicas que seu envolvimento implica. Segundo o autor, a pesquisa participante não pode se orientar unicamente pelas disciplinas acadêmicas; as divergências e convergências entre elas, e delas com a práxis político-pedagógica, são parte do processo de pesquisa, e são através dele heuristicamente dimensionadas.

O encarte digital desta edição traz a contribuição de Birgit Bütow e Eva Gries, intitulada Sobre o tratamento dado às fronteiras profissionais na assistência aos jovens. Trata-se de uma investigação qualitativa que reconstrói a atuação e a reivindicação de competências de profissionais especializados em Pedagogia Social na interface da assistência social a crianças e jovens com a assistência psiquiátrica ao mesmo grupo-alvo. Enquanto na tradição de fala alemã a assistência sociopedagógica é parte constitutiva do Serviço Social e está inserida no campo das ciências sociais aplicadas, a Psiquiatria tem vínculos fortes com as ciências biomédicas, pertencendo pois ambas a campos acadêmico-profissionais distintos; mas as duas áreas têm em comum responsabilidades para com o mesmo grupo de pessoas: as crianças e os adolescentes. As conclusões de sua pesquisa apontam para processos de tratamento de fronteiras e de cooperação hierarquizados a partir de uma percepção diferente sobre a importância das áreas nas respectivas culturas profissionais.

Enquanto os primeiros textos deste núcleo temático tinham como foco as fronteiras disciplinares e os desafios da cooperação na produção de conhecimento, seguem agora dois textos voltados para a formação e demarcação de fronteiras na cooperação multiprofissional. Com base numa reconstrução empírica que enfoca a “boa” e a “má” parentalidade, Catrin Heite, Marion Pomey e Charlotte Pellenberg revelam no texto Práticas de inclusão e exclusão como constituição de fronteiras como o conceito “fronteira” pode abrir uma produtiva perspectiva para a análise sociopedagógica. As autoras mostram como a demarcação de fronteiras é rica em informações sobre as concepções normativas da ordem social, como ela abre e fecha possibilidades. Foco da análise das autoras é a participação dos profissionais da Pedagogia Social nessa constituição: realidades sociais não são apenas analisadas por eles, mas construídas, na medida em que situações de fato são normativamente julgadas e novos modos potenciais do ser são prescritos ou interditos. A importância desta intervenção profissional da realidade social é tanto maior, quanto mais os grupos-alvo de sua atuação são constituídos sobretudo daqueles que, por diversas razões, já são colocados à margem da sociedade: desempregados, “maus pais”, crianças “com problemas comportamentais”, “juventude desviada”, “famílias com baixa escolaridade”, pessoas que “dependem” de políticas sociais, frequentemente vistos como ameaças à ordem social, como perigo para a convivência social, e ainda por cima submetidos a discursos moralizantes e de desprezo.

Em seu texto Colaboração multiprofissional ou prerrogativas exclusivas? Emil Albert Sobottka analisa a tensão entre os ideais muitas vezes presentes nos discursos públicos de profissões e profissionais na busca de legitimidade e um cotidiano conflituoso e bem distante do altruísmo das idealizações discursivas. Em poucas oportunidades essa contradição se revela mais claramente do que na ruidosa disputa em torno do lugar que cabe à atividade médica no concerto das profissões na área da saúde, travada na última década no Brasil e que teve como seu centro a assim chamada “Lei do ato médico”. Enquanto o atendimento à saúde vai se tornando mais e mais complexo, formando um campo por excelência propício à atuação multiprofissional, no qual as diferentes perspectivas profissionais necessitam ser agregadas equitativamente para que as soluções melhores possíveis sejam oferecidas aos usuários dos serviços, médicos e as corporações que os representam, por perceberem a multiprofissionalidade como inadmissível “concorrência”, apelaram ao poder de instituições estatais para que, mediante uma legislação especial, assegurassem prerrogativas especiais exclusivamente a sua profissão, subalternando as demais. O texto reconstitui os argumentos usados para legitimar as pretensões contidas nesta legislação e mostra como também outros profissionais estão mobilizados em busca de exclusividade na prestação de serviços socialmente relevantes.

O artigo Interdisciplinaridade e pesquisa, com o qual se encerra o dossiê, contém uma breve reflexão de Ruth Chittó Gauer sobre a interdisciplinaridade e questionamentos que ela traz para a própria organização da universidade atual. A autora, que há mais de uma década coordena um programa multidisciplinar de pós-graduação em Ciências Criminais, traz à discussão a importância que tem, não só para o fazer ciência, mas para a forma de estruturar-se a universidade e suas atividades, a convicção de que o conhecimento está estreitamente vinculado e é dependente do binômio linguagem e interpretação. Ainda que se tenha percebido a interdisciplinaridade como resposta necessária, as consequências na e para a universidade, segundo a autora, ainda estão longe de ser bem dimensionadas.

Civitas tem a grata satisfação de publicar ainda dois artigos de Axel Honneth. O primeiro, Educação e esfera pública democrática: um capítulo negligenciado da filosofia política, foi apresentado como conferência de abertura do congresso da Sociedade Alemã de Educação, coordenado por Werner Thole. Honneth revisita os teóricos clássicos da filosofia política e constata que eles estavam convencidos da interdependência entre uma boa educação e uma ordem estatal republicana e democrática. Enquanto a educação forma cidadãos para que possam exercer sua liberdade, estes cidadãos autônomos institucionalizam uma educação pública que possibilitará às novas gerações o caminho para a maioridade política. Mas ele constata hoje um divórcio entre as teorias da democracia e da educação, devido em especial a uma falsa concepção normativa de neutralidade do estado e a uma concepção de democracia que se julga incapaz de reproduzir suas bases ético-culturais, preferindo depender para isso de comunidades tradicionais e mesmo religiosas. Ao defender um nexo fundamental entre educação e liberdade política, entre formação e democracia, o autor chama a atenção para dois grandes desafios que pedagogia e teoria democrática precisam enfrentar: o impacto da revolução digital sobre a esfera pública e a crescente heterogeneidade cultural dos cidadãos. Levá-los a sério permitiria que a educação volte a ser o necessário lugar do aprendizado da cultura democrática.

Axel Honneth tem feito um grande esforço de releitura de autores clássicos da teoria social em busca de possíveis fontes para sua teoria do reconhecimento, e com isso tem ampliado o leque de interpretações de muitos deles. Aproveitando o ensejo dos 300 anos do nascimento de Rousseau, transcorridos no ano passado, em seu texto Abismos do reconhecimento ele traz para a discussão o legado de Jean-Jacques Rousseau para a teoria social na perspectiva da questão dor reconhecimento. Numa compreensão até certo ponto ambígua que Rousseau teria sobre as implicações do amour propre, desenvolvidas em sua concepção mais negativa por Kant e mais positiva por Fichte e Hegel, Honneth vê um legado importante, mas ambíguo para a teoria social atual.

Esperamos que os textos aqui publicados possam dar uma contribuição para os debates que atualmente são travados tanto na Alemanha como no Brasil, e desejamos a todos uma boa leitura.

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    Para as leitoras e leitores brasileiros gostaríamos de fazer uma observação sobre as designações Serviço Social e Pedagogia Social, presentes em alguns textos originais da Alemanha e da Suíça. No contexto de fala alemã são duas faces de uma mesma disciplina e de uma mesma profissão – e, muitas vezes, mesmo nos textos aqui publicados, são usados indistintamente. Diferenças históricas fazem com que vínculos e enfoques estejam ora mais orientados à assistência social (“Serviço Social”), ora para a formação não formal (“Pedagogia Social”).
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    Com a colaboração de Vera Bastian, Karin Bock, Karin Böllert e Holger Ziegler.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2013
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