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Diálogos do Sul

Dialogues of the South

Este dossiê Diálogos do Sul inaugura uma trilogia, complementada por Literatura conhecimento e política, diálogos entre Brasil e África e Ciências sociais e construção do conhecimento a partir de África.1 1 O próximo dossiê será publicado na Revista Estudos de Sociologia no segundo semestre de 2014 e o último encontra-se em fase de elaboração. Juntos eles apresentam um panorama das pesquisas e das parcerias acadêmicas2 2 Compõem o quadro de pesquisas: “Cultura política, democracia para além do sistema político: um diálogo entre o Brasil e países africanos de língua portuguesa” (2008-2011), apoio Propesq/UFPE/CNPq, edital Pibic 2009/2010, 2010/2011, 2011/2012); “Aspectos da construção do pensamento social nas relações Brasil-África” (2010-2013), apoio CNPq, edital 37/2010 e Propesq/UFPE/CNPq, edital Pibic 2012-2013); “Giros teóricos na América Latina e África” (2009-2013), apoio Facepe (APV, 2010) e Propesq (edital Propesq/UFPE Professor Visitante 01/2011); “Literaturas em África e literaturas brasileiras: estruturas de sentimentos entrecruzadas? Fase I - (2011-2012), apoio Capes (Estágio pós-doutoral, CEA-ISCTE, Lisboa, 2011-2012) e Fase II (2013-2014) apoio Propesq/UFPE/CNPq, edital Pibic 2013-2014). e intelectuais que foram se configurando nos últimos cinco anos, em que o grupo de pesquisa Sociedade brasileira contemporânea: cultura, democracia e pensamento social voltou-se para estudos de questões políticas, sociais, culturais, artísticas e intelectuais em algumas sociedades do vasto continente africano. Ao lado das pesquisas que tinham como foco aspectos diversos das sociedades africanas, continuamos ministrando disciplinas, participando de fóruns acadêmicos e orientando trabalhos voltados para a sociedade brasileira contemporânea. Com isso, o que apresentamos no conjunto dos dossiês não pode ser classificado como “estudos africanos”, uma vez que não o são em sentindo clássico, como formulado nos termos dos area studies; também não poderiam ser chamados de estudos “afro-brasileiros”, pois estes só o são na medida em que problematizam questões como a presença de África no Brasil contemporâneo,3 3 No segundo dossiê constam artigos que podem ser assim classificados. o que não é, por exemplo, o caso de artigos como o de Maria Francisca Sales, A democracia no Brasil não é um mal entendido, que problematiza a democracia a partir de Sérgio Buarque de Holanda sem para isso referir-se à dimensão da nossa formação sócio-racial.

O que vale ressaltar aqui é justamente a diversidade de perspectivas presentes, constituída a partir do diálogo permanente com outros pesquisadores em instituição nacionais e internacionais. Além disso, o que ocorreu foi que da mesma forma que as nossas pesquisas sobre aspectos das sociedades africanas foram marcadas pelo nosso lugar de pesquisadores, que conforma em alguma medida o nosso olhar, também a nossa reflexão sobre a sociedade brasileira passou a ser “contagiada” pelas descobertas resultantes das nossas pesquisas e do contato com a literatura produzida por intelectuais, acadêmicos e artistas africanos.

Neste processo de construção do conhecimento, nos deparamos com dificuldades que tiveram que ser reconhecidas e trabalhadas. Uma delas diz respeito à clareza em relação àquilo que estávamos buscando e aos limites de nossos aportes iniciais. Isso significou decompor em nossos pressupostos muito daquilo que pensávamos estar criticando. Estas “lições” foram sendo incorporadas a partir de provocações que recebemos, direta ou indiretamente, de nossos interlocutores. Temos a expectativa de que a entrevista e os artigos que constituem este dossiê possam, em alguma medida, provocar o leitor e mobilizá-lo em direção a novos questionamentos.

Alberto da Costa e Silva, aqui entrevistado, chamou a nossa atenção em relação a aspectos muito objetivos. Para ele, por exemplo, a história da África é uma história como todas as outras, não deve ser encarada como um nicho específico e descolado do que se denomina “história mundial”. Ela é íntegra e também orienta esta “História”. Dois pecados podem estar envolvidos naquela pressuposição que “separa” África: o primeiro seria considerar a história do continente africano um “subproduto” da história ocidental, de tal forma que África só seja pensada como o lugar de onde se extrai riquezas minerais, matérias primas e mão de obra escravizada e, hoje, proletarizada. A fraqueza deste ponto de vista consiste em não dar atenção às dinâmicas internas que se processaram no continente e o papel ativo que ele tem jogado na formação da “ordem mundial”. O segundo pecado está relacionado a imaginar a África como um lugar de especificidades, daquilo que é diferente e que foge aos padrões de explicação até então elaborados em outros contextos. O risco aqui é o de tornar exótico padrões de comportamentos diversos, essencializando concepções dicotômicas, numa trajetória marcada por intensas trocas culturais, sociais e econômicas que ultrapassam séculos de comercialização e fluxos migratórios naquele continente e além.

A questão posta por Alberto da Costa e Silva, sobre o lugar da África na história, tem uma resposta possível nas elaborações das perspectivas ditas pós-colonial. O artigo de Inocência Mata, Estudos pós-coloniais: desconstruindo genealogias eurocêntricas, poderia levar o leitor a supor que a perspectiva da autora afirma o debate pós-colonial. Na melhor tradição da crítica, ela o afirma e ao mesmo tempo o nega, ao mostrar limites do pós-colonial a partir da adoção de pontos de partida ainda presos a uma percepção eurocêntrica. Trata-se de uma crítica dentro do próprio campo. Isto é, no primeiro plano a autora assume a necessidade da crítica à produção do conhecimento a partir do viés eurocêntrico, ponto de partida da crítica pós-colonial. Mas também denuncia, a partir de Ella Shohat, a dimensão pastoral do termo pós-colonial: é pastoral pois, apontando para o final de um período, bem visível no sufixo pós, ratifica a ideia de um mundo de iguais e sem fronteiras, naturalizando as desiguais relações de poder geradas pelos efeitos homogeneizantes da globalização contemporânea, cujos circuitos (econômicos, sociais, culturais, até científicos) são orientados para o Ocidente (a Europa e a América do Norte)”.

O ensaio de Marcelo Rosa, Sociologias do Sul: limites e perspectivas de um campo emergente, incrementa o debate realizando um breve escrutínio das ideias defendidas por três autores do Sul: a “sociologia das ausências e emergências”, proposta por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses, as “teorias desde o Sul”, dos antropólogos sul-africanos Jean e John Camaroff, e as “teorias endógenas”, vistas como alternativas teóricas àquelas produzidas fora da Euro-américa, problematizadas pela socióloga australiana Raewyn Connell. Mesmo reconhecendo a impossibilidade de se falar em uma epistemologia do Sul, o autor salienta a necessidade e a importância de “trazer os processos sociais vividos fora da Euro-américa para o centro da teoria social de forma qualificada, simétrica e não apenas como contraexemplos ou derivações da grande marcha para o ocidente”.

Por uma razão decolonial: desafios ético-político-epistemológicos à cosmovisão moderna, de Adelia Miglievich-Ribeiro, é um exemplo do tipo de reflexão e das questões trazidas pela crítica decolonial produzida, principalmente, no território latino-americano. Aqui a geopolítica do conhecimento é colocada em causa com o argumento que rejeita “a crença iluminista na transparência da linguagem em prol de uma fratura epistemológica”, que pode ser identificada no campo discursivo e na esfera da ação. De modo que se reafirma a indissociabilidade do conhecimento e de seus pressupostos éticos e políticos.

Os questionamentos sobre as disputas no campo da produção do conhecimento e do reconhecimento de um polo de atração denominado “eurocêntrico”, “euro-americano” ou “colonial”, são deslocados no artigo de Eliane Veras Soares, “Embora lidando com literatura, você está fazendo sociologia”, para a reflexão sobre as modalidades de conhecimento e possíveis aproximações entre a ciência social e a literatura. Em sua perspectiva, a autora argumenta que a “literatura não é sociologia nem é realidade, mas certamente pode ser um instrumento de potencialização de nossa imaginação sociológica”. Algo que, a nosso ver, produz uma ponte ou um meio privilegiado de acesso a significações existentes nas sociedades africanas nem sempre visíveis aos cientistas sociais. Cabe ainda acrescentar que este processo de construção do conhecimento é obviamente aplicável a qualquer contexto social.

Assim como a literatura, o cinema tem sido objeto de interpretação de contextos sociais e políticos periféricos. Paulo Marcondes Ferreira Soares, em Exílio e diáspora nos personagens de ficção Paulo Martins (Terra em transe) e Paco (Terra estrangeira), propõe uma reflexão sobre o cinema novo, tal como promovido por Glauber Rocha, e o cinema da retomada, expresso por Walter Sales e Daniela Thomas, marcados por dois momentos diferentes da história política brasileira e sua relação com os processos de exílio e diáspora nos processos de construção e desconstrução identitárias das personagens analisadas. Em ambos os filmes, as personagens “enredam-se em narrativas sobre a derrota política e os traumas que ela engendra em configurações e na memória coletiva”. As personagens vivem na ditadura ou na democracia os dilemas da exclusão, em forma de exílio e diáspora, colocando também em evidencia os limites da própria democracia em contextos periféricos.

A democracia no Brasil não é um mal entendido, de Maria Francisca Pinheiro Coelho, retoma a frase de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, “a democracia no Brasil é sempre um mal entendido”, para discutir a democracia brasileira contemporânea. Distingue duas dimensões de democracia: a institucional-liberal, que se verifica na presença e eficácia de instituições, e da separação dos domínios do público e do privado, na qual se sobrepõe “no público os interesses particulares, percebe-se o quanto [a democracia] carece de legitimidade”.

Raça e uma nova forma de analisar o imaginário da nossa comunidade nação: da miscigenação freyreana ao dualismo fanoniano, artigo de Liana Lewis, interpela o processo de formação da identidade nacional no Brasil, consolidado no século 20 nas teorias da mestiçagem, em diálogo com a perspectiva crítica de Frantz Fanon. De modo que contrapõe a construção freyreana da noção de democracia racial, em que se afirma os processos de miscigenação em detrimento da centralidade da relação racial (branca x negra), fundamental para a análise fanoniana do lugar do negro na construção do imaginário e da dominação ocidental. Este texto está disponível unicamente na versão digital da revista.

O artigo de Remo Mutzenberg, Protestos sociais em Moçambique: uma agenda de pesquisa, que encerra o dossiê, apresenta uma agenda de pesquisa voltada para a análise dos conflitos e das contradições resultantes daquilo que se tem designado como “cooperação Sul-Sul”. O lugar privilegiado para questionar esta agenda é a análise dos protestos sociais que se desencadearam nos últimos anos em Moçambique a partir da presença de mineradoras estrangeiras, entre elas a Vale do Rio Doce, na região Moatize, Tête. Para o autor tal agenda de pesquisa se justifica uma vez que “a consolidação das relações entre Brasil e Moçambique (e África), no sentido de se estabelecerem como relações verticais ou horizontais, não depende somente de acordos de cooperação, mas das dinâmicas políticas internas e externas, em que a Vale é apenas um dos atores”. Acreditamos que trabalhos desta natureza nos levam a questionar “o debate atual sobre desenvolvimento, dependência e cooperação presente nas relações sul/sul”.

Antes de entregar ao leitor o resultado deste dossiê, gostaríamos de agradecer a colaboração da cientista social Paula Sophia de Branco Lima e do mestre em sociologia Aristeu Portela Júnior que voluntariamente secretariaram a elaboração deste dossiê, organizando e facilitando todas as tarefas que o tornaram possível.

Na seção artigos, esta edição traz dois textos. Barbarizações do conflito social: lutas por reconhecimento ao início do século 21 é uma surpreendente releitura que Axel Honneth faz do que denomina uma “vertente menos conhecida, periférica, da teoria dos sistemas de Parsons”, que contém “os primeiros fragmentos da versão sociológica de uma teoria do reconhecimento”. Depois de explicitar como, na concepção daquele autor, as esferas institucionais de reconhecimento funcionalmente especializadas proveriam as pessoas de autorrespeito e confinariam conflitos sociais mediante compensações entre as esferas, Honneth aponta para “algumas das tendências sociais que no último terço do século 20 levaram a uma gradual erosão destas regras compensatórias de pacificação”. Face à dissolução do regramento social, da economia do reconhecimento e do autorrespeito, “cresce a incerteza acerca de como as formas normativamente fundadas de respeito social poderiam ser alcançadas”, permitindo que a legítima busca por reconhecimento social se transforme em conflitos que transbordam os espaços sociais institucionalizados para esse fim.

Em Democratização de políticas sociais no Brasil: venturas e desventuras das organizações da sociedade civil, Armindo dos Santos de Sousa Teodósio e Graziele Andrade Resende analisam mudanças nas estruturas provedoras de bens e serviços sociais, tendo como pergunta de fundo a contribuição que as mudanças possam dar tanto para ampliar a participação popular na gestão das políticas públicas como no incremento do impacto dessas políticas. Descentralização efetiva, parcerias com organizações não governamentais, dentre outras, seriam para os autores medidas com potencial para democratizar as políticas sociais. Mas enquanto no governo é percebida uma dificuldade em compartilhar o poder, nas organizações civis haveria dificuldades em aceitar o controle social de suas atividades e em manter “seu papel como instrumento de participação e democratização das políticas públicas” na medida em que ampliam seu envolvimento com estruturas governamentais.

Desejamos a todos uma boa leitura.

Recife, 25 de novembro de 2013.

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    O próximo dossiê será publicado na Revista Estudos de Sociologia no segundo semestre de 2014 e o último encontra-se em fase de elaboração.
  • 2
    Compõem o quadro de pesquisas: “Cultura política, democracia para além do sistema político: um diálogo entre o Brasil e países africanos de língua portuguesa” (2008-2011), apoio Propesq/UFPE/CNPq, edital Pibic 2009/2010, 2010/2011, 2011/2012); “Aspectos da construção do pensamento social nas relações Brasil-África” (2010-2013), apoio CNPq, edital 37/2010 e Propesq/UFPE/CNPq, edital Pibic 2012-2013); “Giros teóricos na América Latina e África” (2009-2013), apoio Facepe (APV, 2010) e Propesq (edital Propesq/UFPE Professor Visitante 01/2011); “Literaturas em África e literaturas brasileiras: estruturas de sentimentos entrecruzadas? Fase I - (2011-2012), apoio Capes (Estágio pós-doutoral, CEA-ISCTE, Lisboa, 2011-2012) e Fase II (2013-2014) apoio Propesq/UFPE/CNPq, edital Pibic 2013-2014).
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    No segundo dossiê constam artigos que podem ser assim classificados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2014
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