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“Embora lidando com literatura, você está fazendo sociologia”

“Although dealing with literature, you are doing sociology”

Resumo:

As relações entre a literatura e o conhecimento (científico) não parecem satisfatoriamente resolvidas seja pela sociologia do conhecimento, seja pela sociologia da literatura. No primeiro caso, a literatura pode ser concebida como uma forma de conhecimento, mas tem preservada sua “natureza ficcional”, diversa do conhecimento científico. No segundo caso, o que se considera é a dimensão social da literatura e o modo como ela pode expressar de modo exagerado, distorcido, controverso a realidade, sem com ela confundir-se. O argumento que procuro desenvolver não propõe uma equivalência entre literatura e conhecimento científico. Busca explorar novos caminhos em que a literatura seja encarada como uma epistemologia válida para a compreensão das dinâmicas sociais. Esse procedimento, certamente, deve ser exercitado pelo cientista social. Para dar forma a esta reflexão, ainda de caráter exploratório, trago aqui alguns pontos críticos referentes ao meu duplo processo de inserção – na temática dos estudos africanos, de um lado, e na sociologia da literatura, por outro –, para com isso, tentar problematizar em um novo estado, as questões de caráter teórico-epistemológico referentes à produção do conhecimento. Sinalizo antecipadamente que o estado da arte desta reflexão ainda não consegue trazer respostas, mas tenta, antes, elaborar questionamentos que circunscrevam de modo mais preciso onde a pesquisa sistemática considerando essas formas específicas de produção poderá nos levar.

Palavras-chave:
Literatura; Literaturas africanas; Conhecimento; Epistemologia

Abstract:

The relationship between literature and (scientific) knowledge does not seem to be satisfactorily treated neither by the sociology of knowledge nor by the sociology of literature. For the former, the literature can be conceived as a form of knowledge, but has to preserve its “fictional nature” in contrast to scientific knowledge. For the latter, what matters is the social dimension of literature and how it can express in an exaggerated, distorted, controversial manner the reality, without being confounded with it. The argument developed in this article does not expect to establish a similitude between literature and scientific knowledge. It seeks to explore new ways in which literature can be seen as a valid epistemology for understanding social dynamics. This is a job for a social scientist. To shape this reflection, although still in the exploratory stage, I bring together critical references to my two-fold relationship – to the theme of African studies and that of of the sociology of literature – in an attempt to take to a new level the theoritical-epistemological issues relevant to the production of knowledge. The state of the art of this reflection is still without answers, but is producing questions pointing to need for more systematic research and where these specific forms of production can lead us.

Keywords:
Literature; African literature; Knowledge; Epistemology

“Embora lidando com literatura, você está fazendo sociologia”, ouvi esta frase recentemente em um seminário de pós-graduação em sociologia na minha universidade.1 1 Esta frase abriu o comentário de Heraldo Pessoa Souto Maior à exposição da doutoranda Paula Manuella Silva de Santana a respeito dos aspectos metodológicos de sua pesquisa doutoral intitulada Marcas do grotesco na prosa-poética de Washington Cucurto, Ondjaki e Marcelino Freire: alegorias de uma modernidade periférica. Por esta razão o título do artigo deve ser lido com as aspas. Ela diz muito sobre os questionamentos e os desafios que venho enfrentando desde que decidi me dedicar ao estudo das sociedades africanas e ao estudo da literatura. Em qualquer processo de investigação, na medida em que nos aproximamos do tema, objeto, sujeito de investigação, somos tomados por uma perplexidade diante daquilo que não conhecemos, mas principalmente, creio eu, diante daquilo que passamos a conhecer. Explico: quanto mais mergulhamos em nossa pesquisa, mais cresce a nossa desconfiança em relação ao conhecimento inicial, as hipóteses norteadoras começam a desmoronar e com muita resistência precisamos pensar e repensar. A perplexidade é resultante da complexidade que a própria investigação vai adquirindo e que desequilibra os caminhos do nosso modo de pensar.

Neste artigo tenciono refletir sobre literatura e conhecimento, buscando verbalizar aquilo que muitas vezes está em forma de inquietação, como fala interior, mas que necessita ser compartilhado para ganhar outra forma e se converter em argumento.

Comecemos pela frase-tema “embora lidando com literatura, você está fazendo sociologia”. A primeira leitura que faço desta colocação diz respeito à conjunção “embora”, que pode ser substituída na frase por “ainda que”, “apesar de”, “mesmo”. Em qualquer um dos casos, o que esta expressão nos diz é: a literatura não é um objeto evidente da sociologia. Nós não diríamos, provavelmente, “embora trabalhando com o crime, com o protesto social, ou até mesmo com os objetos, você está fazendo sociologia”. Isso nos leva a indagar por que a literatura não é um objeto imediato da sociologia. Não se trata aqui de negar a existência de uma sociologia da literatura ou defender a sua relevância, mas de discutir o estatuto epistemológico da literatura. Para chegar nessa questão, penso que devemos levantar algumas outras, precedentes. O que torna a literatura um objeto de segunda ordem? O que a torna, talvez, mais difícil de ser apreendida como um objeto de estudo da sociologia? O crime, o protesto, o objeto livro fazem parte da vida social, estão próximos daquilo que chamamos vulgarmente de realidade, cotidiano, modos de agir, processos de interação etc. Eles têm uma existência real e uma dimensão social que os legitima como objetos da sociologia. E quanto à literatura, o que é a literatura? A literatura existe?

Estas duas perguntas podem nos ajudar a entender melhor porque, embora lidando com literatura, se possa fazer sociologia. Terry Eagleton (2006EAGLETON, T. Introdução: o que é literatura? In: Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006. [1983]) procura responder a primeira questão passando em revisão distintas definições de literatura. A primeira delas concebe a literatura como escrita imaginativa, ficção, algo que não é literalmente verídico. Essa é uma das definições mais comuns e generalizadas, entretanto nem tudo o que se considera como literatura pode ser aí classificado. A literatura inglesa do século 17 inclui, por exemplo, ensaios de Francis Bacon, sermões, autobiografias e outras formas que não corresponderiam ao estreito rótulo da escrita “imaginativa”, menos ainda à distinção (sempre passível de questionamento) entre “fato” e “ficção”. Outra maneira de definir a literatura é apresentada por Roman Jakobson. Para ele, a literatura é a escrita que representa “uma violência organizada contra a fala comum” (apudEagleton, 2006EAGLETON, T. Introdução: o que é literatura? In: Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 3). A perspectiva dos formalistas russos colocou em evidência o texto literário em si como uma organização peculiar da linguagem, dotada de leis, estruturas e mecanismos próprios: “a obra literária não era um veículo de ideias, nem uma reflexão sobre a realidade social, nem a encarnação de uma verdade transcendental: era um fato material, cujo funcionamento poderia ser analisado mais ou menos como se examina uma máquina” (Eagleton, 2006EAGLETON, T. Introdução: o que é literatura? In: Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 4). Não se tratava de uma negação das possíveis relações entre arte e realidade social, mas da afirmação de que este aspecto não era objeto do crítico literário. A intensificação, a perversão, o estranhamento provocado pelo texto literário, terminaria, nesta acepção, por nos impor uma “consciência dramática da linguagem”, o que nos sensibilizaria em relação a objetos e relações ordinárias. Para exemplificar esse processo Eagleton observa:

Estamos quase sempre respirando sem ter consciência disso; como a linguagem, o ar é, por excelência, o ambiente em que vivemos. Mas se de súbito ele se tornar mais denso, ou poluído, somos forçados a renovar o cuidado com que respiramos, e o resultado disso pode ser a intensificação da experiência de nossa vida material (Eagleton, 2006EAGLETON, T. Introdução: o que é literatura? In: Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 6).

Esta ideia corresponde à concepção de literatura como uma forma especial de linguagem em contraposição a uma linguagem comum (literatura como violência linguística). Ao adotar essa definição, novamente teríamos a dificuldade de definir o que é desvio e o que é norma. A linguagem que usamos para nos comunicar num seminário pode parecer a todos completamente normal. Mas, em outros contextos, poderia ser esotérica. Entretanto, continuamos com Eagleton (2006EAGLETON, T. Introdução: o que é literatura? In: Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 8), o caráter literário seria resultado das “relações diferenciais entre um tipo de discurso e outro, não sendo, portanto uma característica perene”. O que estava em jogo aqui era uma definição de “literaturidade” (ou literariedade) – compreendida como usos especiais da linguagem e que pode estar presente nos mais diversos tipos de linguagem – e não uma definição de literatura. Outra concepção nos remete à literatura como discurso “não pragmático”, uma linguagem autorreferencial que fala de si mesma. Consequência desta definição é o fato de a literatura não poder ser definida objetivamente, depende da “maneira pela qual alguém resolve ler. E não da natureza daquilo que é lido” (Eagleton, 2006EAGLETON, T. Introdução: o que é literatura? In: Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 12). Complementa Eagleton (2006EAGLETON, T. Introdução: o que é literatura? In: Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 13):

se é certo que muitas das obras estudadas como literatura nas instituições acadêmicas foram ‘construídas’ para serem lidas como literatura, também é certo que muitas não o foram. Um segmento de texto pode começar sua existência como história ou filosofia, e depois passar a ser classificado como literatura, ou pode começar como literatura e passar a ser valorizado por seu significado arqueológico. Alguns textos nascem literários, outros atingem a condição de literários, e a outros tal condição é imposta.

Assim a literatura é percebida em termos funcionais e não em termos ontológicos, isto é, refere-se àquilo que se faz e não ao que é, como um estado fixo (Eagleton, 2006EAGLETON, T. Introdução: o que é literatura? In: Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 14). Uma quarta acepção definiria literatura como a “bela escrita”, ou belle letres. Aceitando a ideia de literatura como uma escrita altamente valorativa, podemos supor que qualquer texto pode ser considerado literatura ou mesmo deixar de sê-lo a qualquer momento, variando ao sabor dos juízos de valor (Eagleton, 2006EAGLETON, T. Introdução: o que é literatura? In: Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 16-17).

Ao problematizar estas quatro concepções de literatura (escrita imaginativa, violência linguística, linguagem não-pragmática e beletrismo), o que Eagleton está querendo dizer é que aquilo que chamamos de literatura pode ter diferentes significados em diferentes contextos sociais, e que não haveria necessariamente uma característica a ela inerente.

Assumindo este pressuposto, temos que perguntar o que é literatura para a nossa sociedade. Assim, as concepções de “cânone literário”, de “tradição da literatura nacional”, por exemplo, podem ser facilmente compreendidas como construtos, isto é, como o resultado de práticas que elegem em dado momento os critérios para definir o valor de uma obra. Eagleton conclui o seu argumento afirmando que

o que descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as ideologias sociais. Eles se referem, em última análise, não apenas ao gosto particular, mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre outros (Eagleton, 2006EAGLETON, T. Introdução: o que é literatura? In: Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 16-17).

Essa reflexão ainda não é suficiente para responder a minha pergunta sobre o que a literatura tem (ou não tem) de diferente quando comparada a outros objetos que se prestam à análise sociológica. Afinal, o que é considerado crime em uma sociedade pode não ser considerado em outra, o que foi considerado crime no passado pode não ser no presente etc. E todas estas definições estarão intrinsecamente relacionadas às disputas entre os grupos sociais. A questão para mim está na noção difusa em nossa sociedade a respeito do que é literatura. Parece que o problema está de algum modo ligado à ideia de literatura como escrita imaginativa, como ficção, como contrária aos fatos da “vida real”. Admitimos, então, o pressuposto de que a literatura (e arte em geral) se produz e se relaciona com o contexto social (é influenciada por e exerce influência no), mas ao mesmo tempo afirmamos que ela não é a realidade (ainda que seja real). Fala-se em sistemas literários, condições sociais de produção das obras, mecanismos de consagração, formação de mercados, construção de estilos, recepção. Ora se debruça sobre os aspectos externos à obra, ora foca-se na obra, e mais recentemente tenta-se dar conta das duas dimensões de modo articulado. Em todas estas perspectivas, a literatura continua a ser vista como ficcional. É este aspecto que a meu ver é responsável pela introdução da conjunção “embora” na frase-título: como a sociologia pode transformar a ficção em forma de compreensão da sociedade, das relações sociais, dos conflitos sociais, das tensões, das ideologias, das práticas?

Este é um problema que persegue a sociologia da literatura, uma vez que a sociologia pode ser definida (entre várias possíveis definições) como estudo do comportamento social. Esse estudo não se dá apenas pela observação daquilo que ocorre nas diferentes esferas da organização social e da vida cotidiana, ele exige do investigador a utilização de métodos diversos que permitam algum tipo de análise que vá além do senso comum, do imediatamente visível. Em outras palavras, o estudo do comportamento social requer uma série de métodos, técnicas e mediações para se realizar. No caso da literatura, aquilo que o sociólogo “lê” é de antemão definido como ficção. Também trabalhamos com outros documentos escritos e a eles aplicamos técnicas de análise, mas estes não são considerados peças de ficção. Têm outro estatuto, são documentos!

Se adotarmos o pressuposto de que fato e ficção não são assim tão rigidamente distintos, seria pertinente perguntar até que ponto a literatura poderia ter um estatuto epistemológico. Isto é, até que ponto ela mesma seria produtora de conhecimento? A título de exemplificação, apresento em grossas pinceladas a visão de Francisco Noa (2011)NOA, F. Entrevista concedida a Eliane Veras Soares e Remo Mutzenberg em Maputo, 13 de julho de 2011. sobre o processo a formação da literatura de Moçambique e de uma problemática que envolve a recepção do escritor Mia Couto em Moçambique, em Portugal e no Brasil.

Para Noa, a formação da literatura moçambicana pode ser explicada como o beijo de duas pirâmides invertidas, formando a imagem de uma ampulheta. A primeira pirâmide apresenta uma variedade temática na sua base, mas aos poucos irá adquirir um conteúdo quase monolítico, daí o estreitamento que se verifica no topo. Considera-se, como ponto de partida, que a formação de uma literatura moçambicana caracteriza-se a por uma dupla articulação: do ponto de vista do conteúdo observa-se o surgimento de um discurso autóctone voltado para a terra, para oprimidos e para um ideal de nação; do ponto de vista estético verifica-se uma sintonização dessa literatura com o modernismo brasileiro e o neorrealismo português. A geração de Noémia de Sousa e José Craveirinha, nos anos 1940, inaugura esta literatura de caráter nacional. Um aspecto importante mencionado por Noa é que a ruptura que aí se processa é em relação à literatura colonial, e não à literatura portuguesa em si, considerando a forte influência do neorrealismo, entre outras.

À medida que a luta pela libertação nacional ganha força e a independência é conquistada, a base da pirâmide fica cada vez mais estreita, a literatura moçambicana passa a ser cada vez mais identificada com o projeto de nação. O grande nó que se dá aí é definir o que é nacional. O projeto político da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) se fundamentava numa ideia homogeneizadora de nação, capaz de apagar as diferenças culturais e étnicas com a formação do “novo homem” moçambicano. O contexto político de forte tensão em relação ao regime do Apartheid na África do Sul e a deflagração da guerra civil provavelmente contribuíram para a radicalização desta política de uniformização cultural.

Em 1982 é fundada a Associação de Escritores Moçambicanos (Aemo), como forte teor nacionalista, impregnada daquilo que Fátima Mendonça nomeia de “cânone da literatura nacional”, produzido a partir do reconhecimento da “existência de um corpus literário nacional que, integrado no ensino, fortemente controlado pelo estado/partido, reproduzia conceitos e valores que, atuando em cadeia, convergiam para a instituição do novo cânone, a literatura nacional” (Mendonça, 2008MENDONÇA, F. Literaturas emergentes, identidades e cânone. In: M. C. Ribeiro; M. P. Meneses (Orgs.). Moçambique das palavras escritas. Porto: Afrontamento, 2008., p. 28). Havia, desde a independência, um intenso debate nos jornais a respeito do que era “ser moçambicano”, no qual a literatura, concebida com literatura nacional, assumia um importante papel. Em 1986 será publicada a primeira obra de prosa de Mia Couto, Vozes anoitecidas, um livro de contos, que será duramente criticado por não corresponder aos padrões de autenticidade proclamados por setores representativos dentro da Aemo.2 2 Segundo Fátima Mendonça “Convém lembrar que o então Secretário-Geral, poeta Rui Nogar, funcionava como garantia de uma certa ‘pureza ideológica’ em que convictamente acreditava, mas o Presidente da Assembléia Geral, José Craveirinha, dotado de uma personalidade rebelde e, por vezes, provocatória acabava por estabelecer com ele uma tensão que estimulava a emergência de uma diversidade de pontos de vista nem sempre conciliáveis. Ainda assim, estes pontos de vista tinham um denominador comum: a definição da literatura moçambicana a partir de valores intrínsecos. A contribuição para esta definição já não provinha do Estado, mas sim dos próprios implicados escritores ou críticos. (…) Assiste-se então à defesa de uma autenticidade fosse ela temática ou discursiva, alargando-se o leque de opiniões, ainda que prevalecesse a tendência para incluir ou excluir quem não coubesse no figurino julgado mais certo” (Mendonça, 2008, p. 28). Rui Nogar, secretário-geral da Associação, atacou na obra, segundo Fátima Mendonça, “aquilo que caracterizava quase toda a literatura produzida em África desde as independências: a eleição de anti-heróis modelados por princípios não conformes com as realidades políticas do momento” (Mendonça, 2008MENDONÇA, F. Literaturas emergentes, identidades e cânone. In: M. C. Ribeiro; M. P. Meneses (Orgs.). Moçambique das palavras escritas. Porto: Afrontamento, 2008., p. 29). Em defesa do escritor vem o patrono da literatura moçambicana, José Craveirinha (2003)CRAVEIRINHA, J. Prefácio à edição portuguesa. In: M. Couto. Vozes anoitecidas. 8. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2003[1987]).. No ano seguinte, em 1987, será publicado Ualalapi, novela de Ungulani Ba Ka Khosa, que narra a queda do império Gaza, a partir da derrota sofrida por seu rei Ngungunhane, no final do século 19, feito que tornou definitiva a presença e o domínio dos portugueses na região sul de Moçambique. Essas duas obras já são portadoras de aspectos críticos em relação à estreita política identitária adotada pela Frelimo. Vozes anoitecidas traz para a luz do dia, ou para a folha impressa, imagens alusivas a um Moçambique rural, justamente aquilo que deveria ser esquecido para a afirmação da nova identidade. A crítica residia, entre outras coisas, na não autenticidade desta imagem, retirando do escritor qualquer possibilidade de criação, distorção, exagero etc. Ualalapi de Ungulani Ba Ka Khosa apresentava outro perfil de Ngungunhane, bem diverso daquele construído para a sua eleição como herói nacional no pós-independência. Embora a polêmica dos anos 1980 tenha sido aparentemente superada, a meu ver, a obra de Mia Couto continuará a ser objeto de críticas locais à medida que a sua recepção pela academia em Portugal e no Brasil, especialmente, tenderá a colocar este escritor como representante da “moçambicanidade”.

Para Noa, esta ideia que foi se generalizando em torno da obra de Mia Couto é perversa. Em primeiro lugar porque nenhum escritor pode abarcar a representação de uma nação. As possíveis representações são sempre parciais, cada escritor tenderá a produzir uma visão própria. Aspecto com que poderíamos concordar até certo ponto visto que de fato nenhum escritor é capaz de dar sentido a uma totalidade ao mesmo tempo diversa e fragmentada. Mas poderíamos também questioná-la, na medida em que as percepções dos escritores não são apenas idiossincráticas, elas também são expressão de uma estrutura de sentimento, o que não significa dizer que todos falem (ou escrevam) as mesmas coisas, mas que a partir das obras e de sua diversidade seria possível identificar as características da(s) estrutura(s) de sentimento em questão.

Aqui gostaria de focalizar um aspecto, deste exemplo, que interessa diretamente ao debate sobre literatura e conhecimento e que as críticas à obra de Mia Couto ilustram: o fato de a obra ser lida como uma versão legítima ou ilegítima da realidade moçambicana. A crítica elaborada nos anos oitenta argumenta que o autor não era fiel à realidade, pois criava um mundo fantasioso, repleto de personagens insólitos que promoviam uma visão distorcida da sociedade moçambicana e, no limite, criava estereótipos negativos e a ridicularizava.

A crítica de Noa tem outro foco: ela se dirige, em primeiro lugar, à recepção da obra, em especial pela academia portuguesa e brasileira, que tende a reduzir a literatura moçambicana a um único autor, desconhecendo tanto a diversidade existente na literatura moçambicana, quanto a própria obra deste autor específico. É uma crítica voltada à recepção e não à obra. Vejamos o que diz Noa:

Muitas vezes as pessoas têm a tendência de dizer que a obra de Mia Couto apresenta as falas do povo. Eu penso que não é bem assim. Eu penso que aquelas são as falas do autor, são as falas de alguém que está a criar um mundo, está a criar a língua, portanto muitas vezes leituras que são feitas de fora mostram certo desconhecimento da realidade, levam a uma espécie de estereotipia em relação à escrita do Mia Couto, e eu penso que hoje em dia retira muito do valor que ela tem, e de certo modo até anula a obra dele, quando se quer colocar esse rótulo de que representa a alma dos africanos. A alma dos africanos é diversa, e ela tem diversas manifestações, e cada escritor vai capturando as várias facetas que essa alma tem. Agora querer globalizar essa alma com um autor eu penso que é um erro crasso, e que, sobretudo, é contido em muitos estudos que eu vejo no Brasil, em Portugal (Entrevista de Francisco Noa concedida a Eliane Veras Soares e Remo Mutzenberg, 13 jul. 2011).

É interessante notar que a recepção acadêmica de Mia Couto no Brasil e em Portugal, resultante de um “deslumbramento” com a sua escrita, tem um ar de família com a crítica primeira realizada em Moçambique por quadros da Aemo. Isto é, as duas posições, a que consagra e a que rejeita a obra estão situadas dentro de um mesmo campo de interpretação da literatura, aquele que tende a essencializá-la.

Por um lado, a recepção acadêmica obra de Mia Couto em Portugal e no Brasil tende a elegê-la como representativa das “falas do povo”, de suas identidades, como se isto fosse de fato possível. Por outro lado, temos a crítica produzida pela Aemo que seguiria a mesma linha, situando-se no outro extremo, justamente por não identificar aquela escrita com as “falas do povo”, como se assim devesse ser. Subjacente a este debate está uma disputa pelos sentidos de identidade, que não será tratada aqui. Quis com este breve exemplo ilustrar como a tensão fato/realidade versus ficção está aí presente. Mesmo que a literatura seja considerada ficção, em determinados contextos, exige-se dela um “compromisso com a realidade”.3 3 Ainda segundo Fátima Mendonça: “Em janeiro de 1987, o semanário Domingo publicava um texto de autoria de Mbhome Seneia Cuinica, com o título ‘Para uma tentativa de leitura do conto A fogueira”. O autor criticava em Mia Couto a falta de vivência da realidade que descrevia, exigindo um paralelismo entre a ficção e essa mesma realidade. Rematava com uma generalização/recomendação dirigida a todos os escritores no sentido de que deveriam sentir de perto as vivências do povo” (Mendonça, 2008, p. 29). Vimos aqui rapidamente como esta parece ter sido uma exigência em Moçambique no período pós-independência e como tem sido em Portugal e no Brasil uma chave de leitura da obra.

Por outro lado, no debate epistemológico contemporâneo, constituído a partir da “virada epistemológica”, o discurso sociológico pode ser concebido como uma versão da realidade (Melucci, 2005MELUCCI, A. Por uma sociologia reflexiva: pesquisa qualitativa e cultura. Petrópolis: Editora Vozes, 2005., p. 32-40). Considerando a impossibilidade de uma transposição ou “representação do próprio real”, o discurso sociológico apresenta versões sobre o real, construídas a partir de métodos sistemáticos, dentro de um conjunto de normas estabelecidas e sancionadas pelos pares. Nessa direção podemos aproximar o exercício do escritor e do sociólogo: se cada escritor pode elaborar uma versão da realidade, seria importante indagar em que medida a sociologia e os sociólogos também o fazem. Para Melucci, a dupla hermenêutica, que caracteriza o processo de redefinição epistemológica, implica em admitir que não se produz conhecimentos em termos absolutos, mas “interpretações plausíveis”. Ao se produzir “interpretações que buscam dar sentido aos modos nos quais os atores buscam, por sua vez, dar sentido às suas ações”, o que se produz pode ser denominado “narrações de narrações” (Melucci, 2005MELUCCI, A. Por uma sociologia reflexiva: pesquisa qualitativa e cultura. Petrópolis: Editora Vozes, 2005., p. 33). A questão da plausibilidade fica em aberto, constituindo-se em novo desafio metodológico. Como decorrência, o objetivo da pesquisa passa ser a “tradução de um sentido” produzido em um determinado sistema para outro sistema de relações da comunidade científica. A produção do conhecimento passa a ser compreendida como resultante de um processo de interação entre o pesquisador e o pesquisado: “A pesquisa não tem mais a pretensão de descrever fatos reais, mas se apresenta como construção de textos que dizem respeito a fatos socialmente construídos e que mantêm a consciência da distância que separa a interpretação da ‘realidade’” (Melucci, 2005MELUCCI, A. Por uma sociologia reflexiva: pesquisa qualitativa e cultura. Petrópolis: Editora Vozes, 2005., p. 34). A consequência mais extrema desta perspectiva epistemológica é o reconhecimento de que o conhecimento científico é uma prática social entre outras. O que a diferencia é o seu “privilégio específico que consiste em dispor de recursos institucionais para dar conta das condições de produção do conhecimento”, assim, conclui Melucci (2005MELUCCI, A. Por uma sociologia reflexiva: pesquisa qualitativa e cultura. Petrópolis: Editora Vozes, 2005., p. 38), “o conhecimento científico é sempre mais um conhecimento entre outros”.

Podemos, então, pensar a literatura como uma forma de conhecimento, que certamente não é ciência, e nos perguntarmos em que sentido a literatura se prestaria à inspiração para se (re) pensar conceitos sociológicos. Literatura não é sociologia, nem é realidade, mas certamente pode ser um instrumento de potencialização de nossa imaginação sociológica. Não se trata de substituir uma pela outra, mas de refletir sobre os mecanismos de construção de cada uma e as influências recíprocas entre elas.

Até agora parece ser mais evidente e até legitimada a inspiração da ciência em relação à literatura. Para ficar apenas no quadro de referência de escritores africanos que escrevem em português, Pepetela, escritor angolano, autor de vários romances históricos, é sociólogo e afirma que é sociólogo para ser escritor. Outro exemplo que chama a atenção é o de João Paulo Borges Coelho, historiador moçambicano que desponta na literatura a partir do ano de 2003 com uma profícua produção de romances “estóricos” – para utilizar a expressão de Pepetela, que trago em jeito de finalização, ao comentar o seu livro A gloriosa família:

O livro não é um romance histórico, é um romance estórico. Não é por acaso que o próprio Cadornega [autor de História Geral das Guerras em Angola, 1680] aparece como personagem. É ele próprio a explicar, no fundo a dar uma justific ação a certos aspectos ideológicos da sua crônica das guerras angolanas. Não é por acaso, é um pouco também para discutir a história (Pepetela, citado em Mata, 2012MATA, I. Ficção e história na literatura angolana: o caso de Pepetela. Lisboa: Edições Colibri, 2012., p. 181).

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    Esta frase abriu o comentário de Heraldo Pessoa Souto Maior à exposição da doutoranda Paula Manuella Silva de Santana a respeito dos aspectos metodológicos de sua pesquisa doutoral intitulada Marcas do grotesco na prosa-poética de Washington Cucurto, Ondjaki e Marcelino Freire: alegorias de uma modernidade periférica. Por esta razão o título do artigo deve ser lido com as aspas.
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    Segundo Fátima Mendonça “Convém lembrar que o então Secretário-Geral, poeta Rui Nogar, funcionava como garantia de uma certa ‘pureza ideológica’ em que convictamente acreditava, mas o Presidente da Assembléia Geral, José Craveirinha, dotado de uma personalidade rebelde e, por vezes, provocatória acabava por estabelecer com ele uma tensão que estimulava a emergência de uma diversidade de pontos de vista nem sempre conciliáveis. Ainda assim, estes pontos de vista tinham um denominador comum: a definição da literatura moçambicana a partir de valores intrínsecos. A contribuição para esta definição já não provinha do Estado, mas sim dos próprios implicados escritores ou críticos. (…) Assiste-se então à defesa de uma autenticidade fosse ela temática ou discursiva, alargando-se o leque de opiniões, ainda que prevalecesse a tendência para incluir ou excluir quem não coubesse no figurino julgado mais certo” (Mendonça, 2008MENDONÇA, F. Literaturas emergentes, identidades e cânone. In: M. C. Ribeiro; M. P. Meneses (Orgs.). Moçambique das palavras escritas. Porto: Afrontamento, 2008., p. 28).
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    Ainda segundo Fátima Mendonça: “Em janeiro de 1987, o semanário Domingo publicava um texto de autoria de Mbhome Seneia Cuinica, com o título ‘Para uma tentativa de leitura do conto A fogueira”. O autor criticava em Mia Couto a falta de vivência da realidade que descrevia, exigindo um paralelismo entre a ficção e essa mesma realidade. Rematava com uma generalização/recomendação dirigida a todos os escritores no sentido de que deveriam sentir de perto as vivências do povo” (Mendonça, 2008MENDONÇA, F. Literaturas emergentes, identidades e cânone. In: M. C. Ribeiro; M. P. Meneses (Orgs.). Moçambique das palavras escritas. Porto: Afrontamento, 2008., p. 29).

Referências

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  • MATA, I. A condição pós-colonial das literaturas africanas de língua portuguesa: algumas diferenças e convergências e muitos lugares-comuns. In: A. V. Leão (Org.). Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte: Editora PUCMimas. 2003.
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  • NOA, F. Entrevista concedida a Eliane Veras Soares e Remo Mutzenberg em Maputo, 13 de julho de 2011.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2014

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2013
  • Aceito
    25 Nov 2013
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