Introdução
Há quarenta anos, sobretudo a partir do surgimento da obra revolucionária de Peter Berger e Thomas Luckmann A construção social da realidade (1966), os sociólogos começaram a compreender que o que fazem os membros de uma sociedade, não apenas coletivamente, mas individualmente, sua ação, não somente instantânea (seu comportamento), mas na durée, contribui fortemente para orientar o destino desta sociedade, para construir seu devenir histórico.
Mas se a concepção construtivista continua a se difundir na sociologia, ela encontra uma forte resistência da parte do cientificismo1 que reina desde o início da nossa disciplina, notadamente na França e no mundo anglo-saxão; e assim a hegemonia persiste –notadamente em razão de interesses corporativistas– a despeito de críticas recorrentes. Aqui quero acentuar uma de suas consequências nefastas: a total ausência de interesse da sociologia dominante pelos cursos de ação (individual) na durée, que permanece no âmbito do impensável e sobretudo, do não-observado; ou mesmo do não-observável. De fato, esta sociologia não somente nunca desenvolveu uma técnica de observação empírica para observá-los; mas mais que isso, quando uma técnica foi proposta –sob a forma de entrevista narrativa, que compreende a narrativa biográfica– ela a rejeitou como ilegítima com o maior vigor, como se os cientistas quisessem negar sua própria existência, pois o reconhecimento viria a fragilizar consideravelmente a influência da ilusão cientificista.
A ilusão cientificista
Segundo Wolf Lepenies (1996), que detalhou a emergência da sociologia como uma nova disciplina na França, na Alemanha e na Grã-Bretanha, trata-se de três aventuras bastante diferentes. Em torno do fim de um século 19, dominado pelo progresso espetacular das ciências da natureza e suas inúmeras aplicações técnicas, a ideia mesma de conhecimento não poderia deixar de ser profundamente influenciada por seu sucesso retumbante e o progresso que ela prometia. Para que a sociologia se tornasse científica parecia evidente que ela deveria se desvincular da filosofia, e sobretudo da literatura e das artes, e fingir esquecer que o mundo natural estudado pela ciência consiste de “coisas” inanimadas impulsionadas por forças eternas e onipresentes, enquanto o mundo humano é composto principalmente de seres vivos ativos, reflexivos e singulares, que por suas ações se tornam o que ele é e o que se tornará…
Na França, a afirmação –tipicamente cientificista– de que a sociologia se construiu sobre o modelo das ciências da natureza ajudou consideravelmente os fundadores da sociologia, notadamente Auguste Comte e Emile Durkheim, a consolidar seu estatuto “científico” (e dos fundadores na mesma ocasião). E é este estatuto, conquistado ao preço de um trabalho intenso e de lutas amargas, que os sucessores de Durkheim –notadamente Bourdieu–2 defenderam com vigor.
Certamente que o pensamento de Bourdieu ainda não conseguiu, apesar de seus esforços e dos inúmeros sociólogos que ele formou, conquistar a hegemonia absoluta na sociologia francesa. Contudo, é fraca a influência de outros espíritos criativos tais como Edgar Morin ou Cornelius Castoriadis. Do ponto de vista que nos interessa aqui, aquele das concepções sociológicas da ação individual, é Raymond Boudon quem, a partir dos anos 1970, virando as costas deliberadamente para toda a tradição sociológica de focalização no poder do coletivo, procurou reconstruir toda a sociologia a partir da ação individual e “das boas razões” –que ele não reduz ao interesse individual– que os indivíduos agem de tal ou tal maneira. Sua forma de pensar é relativamente bem estabelecida, mas claramente minoritária.
Na Grã-Bretanha, emergindo diante das “duas culturas” (C. P. Snow) do humanismo e das ciências, culturas já fortemente consolidadas mas mutualmente hostis, a sociologia escolheu o lado das ciências.
Nos Estados Unidos, pátria do pragmatismo, foi de outra maneira. E efetivamente, o caminho em direção ao cientificismo foi bastante diferente. Penso que ele passou pela etapa bastante marcante da invenção do survey research, imediatamente seguida por sua difusão relâmpago a partir dos anos 1940. A utilidade prática do survey, sua utilização intensa para objetivos não apenas sociográficos, mas também eleitorais ou comerciais foi acompanhada de um discurso apresentando-o como o método científico, que transformou a sociologia em uma verdadeira ciência. Ora, se o survey, método extensivo, constitui uma técnica excepcionalmente rentável para descrever a distribuição estatística de algumas “variáveis” individuais em uma população muito numerosa, vincular as associações estatísticas entre variáveis a “relações causais” é um exercício delicado. E afirmar que essas relações causais são o equivalente, para a sociedade, às leis físicas para o mundo inanimado é uma fraude. Mas que foi repetida tão frequentemente e ensinada nas universidades, e tão bem empacotada, encoberta e mascarada por roupagens matemáticas enganosas, que quase todos acreditaram… Ora, esta crença serviu a todo mundo (salvo àqueles que procuravam verdadeiramente compreender as lógicas encobertas da vida social); de fato, não apenas os sociólogos, mas os meios de comunicação, as instituições financeiras e os partidos políticos encontraram seus interesses. Então a crença inchou, inchou, inchou…ao ponto de se tornar too big to fail. O estatuto (usurpado) de “ciência como as outras” é nosso patrimônio comum: e compreendemos as imensas reticências a tocá-la… 3
A ação individual na durée: os cursos de ação localizada
Há muito tempo que os historiadores –alguns dos quais são melhores conhecedores da sociedade que eles estudam que muitos sociólogos– abandonaram a ideia de destino histórico predeteminado (pela geografia, pelo modelo cultural, pelo progresso tecnológico…). Eles estão conscientes do lugar que ocupam, na orientação do curso histórico de um estado-nação, as ações de uma variedade de atores individuais cuja eficácia é multiplicada pelos recursos de poder que dispõe cada um deles em função de sua posição nas instituições e/ou nas redes de interconhecimento e de convivência.
Mas muitos sociólogos –e a maioria dos economistas– ainda se apegam à ilusão cientificista. Para que esta ilusão seja plausível é preciso antes retirar a ideia que no interior da sociedade há quantidades importantes de ação individual não-predeterminada, de ação livre, autodeterminada ou pelo menos relativamente autônoma. É com este alvo que se construiu a figura, o tipo ideal do homo economicus movido exclusivamente por seu interesse de curto prazo: pode-se assim deduzir todas suas ações dos seus interesses e reduzi-los assim ao predeterminado.
Na sociologia temos a escolha entre vários tipos de redução. A ação individual pode ser ditada pela conformidade às normas (Durkheim); pela busca do interesse individual (rational choice, “boas razões” de Boudon); ou surgidas mecanicamente do habitus, estrutura estruturada pelas experiências da infância que funciona depois como estrutura estruturante da conduta na idade adulta (Bourdieu). Evidente que a negação da autonomia relativa da ação seria mais eficaz se todos os sociólogos concordassem com a mesma redução… mas o importante não é finalmente se livrar desta autonomia que torna a ação imprevisível, que torna a realidade sócio-histórica não predeterminada e que ameaça a cientificidade da sociologia e da economia política.
Além disso, todas as formas de ação não ameaçam a ilusão cientificista: a ação constrangida, a ação comandada a partir do exterior em função de relações hierárquicas –o trabalho de um operário semi-qualificado, por exemplo– não a coloca em questão. Ela se faz porque o indivíduo-agente é constrangido por sua posição inferior em um sistema de relações de poder (incluindo as relações de propriedade); ela é, portanto, previsível.
É a ação livre, aquela que compõe a iniciativa do ator, que é problemática: quando este operário da fábrica passa seus fins-de-semana construindo sua própria casa, ele não trabalha mais para um outro; ele realiza seu próprio projeto.4 Não se trata de uma simples conduta, menos ainda de um comportamento instantâneo; trata-se, ao contrário, de um curso de ação (relativamente autônomo) se inscrevendo na durée.
O que se entende por “curso de ação”?
Os textos dos pais fundadores da sociologia tratam com muito mais frequência de “estruturas” e de constrangimentos que de ação; e quando falam de ação é frequentemente em termos de ação coletiva. Eles parecem considerar que, do ponto de vista da sociologia, a ação individual não é importante. Max Weber foi o único a considerar seriamente a ação individual “livre”, ou pelo menos relativamente autônoma. Ele nos legou –tardiamente– uma tipologia notavelmente precisa de lógicas de ação. Mas ele deixou aos nossos cuidados desenvolvê-la.
O que importa aqui é antes de tudo livrar a ação da prisão behaviorista onde a survey research a aprisionou durante muito tempo. Pois a ação humana não se reduz, longe disso, a comportamentos instantâneos, sem densidade temporal, sem durée, tal como comportamentos eleitorais (votos) ou comportamentos econômicos (compras)… Ela se desenrola na durée, talvez ao longo de anos; antes mesmo de se traduzir em atos, ela nasce de um projeto, projeção em direção ao futuro; ela foi pensada, refletida, antecipada, traduzida em estratégia(s). Enquanto ela se desenvolve ela encontra obstáculos imprevistos que modificam seu curso; ela é sempre uma aventura de alguma maneira. E quando termina ela continua a viver de suas consequências: nossos atos marcantes nos seguem até a nossa morte.
O conceito que melhor traduz essas propriedades da ação na durée é o conceito de curso de ação. É o momento de introduzi-lo na sociologia. Ele se refere à sequência ordenada de ações que uma mesma pessoa executa na durée para, por exemplo, tentar realizar um de seus projetos (ação racional orientada a fins, zweckrationale Handlung, segundo Weber); ou para defender energicamente uma convicção profunda (wertrationale Handlung).
A ação é sempre ação localizada: pois o ator individual não age no vazio, mas ao contrário, no desenrolar de uma sociedade já constituída e habitada por diversos outros atores, distintamente providos de recursos e que podem estar organizados em instituições, em redes…5
Esses cursos de ação na durée são o que fazem, por elas e pelo que trazem, o sentido de sua vida como vida ativa. Mas num nível mais macro, ou mais “agregado” (Boudon), eles participam também na construção incessante do devenir sócio-histórico.
Para alimentar o conceito de cursos de ação com exemplos, consideremos primeiro aqueles que estão orientados à realização de um projeto preciso. Esse projeto pode ser do tipo educativo (obter tal diploma, passar em tal ou tal exame ou concurso); do tipo entrar no mundo do trabalho (procurar um primeiro emprego; encontrar um emprego no qual se sente bem); do tipo profissional (obter uma promoção específica; se estabelecer por conta própria, criando uma empresa); do tipo residencial (passar da condição de inquilino àquela de proprietário de sua moradia; tomar a iniciativa de migrar, isto é, de mudar de cidade, de região, de pais…); do tipo interpessoal (se fazer amar por uma pessoa específica); do tipo gerador (colocar no mundo uma criança; educá-la6); de um tipo vinculado à saúde (curar-se de uma doença grave; livrar-se de um vício); do tipo transformação pessoal (treinamento físico, ou psíquico; nova aprendizagem na idade adulta); ou ainda de outros tipos.
Apesar de sua grande variedade, esses cursos de ação possuem alguns pontos em comum. Eles são conduzidos por indivíduos, que tomaram a iniciativa de colocá-las em prática. Eles se inscrevem na durée. Em vista de sua realização recursos são mobilizados: recursos pessoais, aqueles que Bourdieu chama de “capitais”, mas também recursos subjetivos (Delcroix, 2004); e recursos de poder ou “de posição”, pois vinculados à posição socioprofissional do ator. Seu sucesso não é garantido. Eles pressupõem um grau importante de planejamento e de antecipação, mas encontram obstáculos imprevistos, ou oposições inicialmente subestimadas. Eles podem ser abandonados no percurso porque muito custosos, muito difíceis, ou perderam seu sentido inicial. Enfim, a questão do “sentido visado” pelo autor do curso de ação aqui é primordial, como Weber já havia assinalado com razão.
A título de hipótese eu acrescentaria um último ponto comum que, de maneira inesperada, parece emergir dessa lista de exemplos: todos esses cursos de ação têm por objetivo último uma mudança de condição (social) de seu autor. Por exemplo, de fazer passar da condição de estudante à de graduado. Da condição de jovem sem emprego, ou de desempregado, àquela de assalariado(a). Da condição de solteiro àquela de esposo ou esposa, e/ou à condição de mãe e pai. Da condição de empregado àquela de dirigente. Da condição de inquilino à de proprietário. Da condição de assalariado à de empresário. Da condição de simples militante de um partido político àquela de candidato às eleições locais; e da condição de candidato àquela de eleito(a)… É compreensível portanto que esses cursos de ação mobilizem quantidades consideráveis de vontade, de inteligência e de energias individuais de ordem mental, física e moral (daí também a importância do suporte moral – dado pelos próximos).
Como não reconhecer que as quantidades consideráveis de energias individuais investidas, multiplicadas pelo número de pessoas que tomam a iniciativa de se engajar em tal ou tal curso de ação, possuem de fato poder sobre o futuro das sociedades?7 A soma acumulada de cursos de ação individuais só pode contribuir na mudança social “a partir de baixo”.
É o exemplo de migrações do campo para a cidade: as ciências sociais estão habituadas, pelo cientificismo, a ver nisso fluxos coletivos, mas esses fluxos são distintos de agregação acumulada de centenas de milhares de aventuras individuais (certamente influenciadas umas pelas outras)? Da mesma forma, o aumento do nível de educação, especialmente de mulheres jovens, não resulta de uma decisão central e é apenas parcialmente previsível; no entanto, suas consequências sobre a demografia, o desenvolvimento econômico, o desenvolvimento “antropônico”,8 a participação das mulheres nas atividades políticas, enfim, na mudança da sociedade, são consideráveis.
Considere agora os cursos de ação orientadas a valores, por convicções profundas: políticas, religiosas, morais, humanitárias… Eles certamente estão presentes nas sociedades mais desenvolvidas (e onde predomina o individualismo sob diferentes formas – ver Bellah et al., 1985), bem menos numerosos que aqueles que estão orientados a objetivos individuas; contudo, contrariamente ao que faz acreditar a teoria da rational choice, eles são todas também racionais. Mas trata-se de uma outra racionalidade, que não é instrumental, mas por convicção (wertrationale Handlung); trata-se aqui de razões do coração, em vez de razões ditadas pelo interesse material.9 Esses cursos de ação também participam na construção do futuro coletivo; mas de uma maneira distinta, frequentemente inovadora, arriscada, anticonformista e, às vezes, radical.
É surpreendente que a sociologia, apesar da abundância de suas especulações teóricas, mostrou tão pouco interesse em tentar pensar os cursos de ação. E que ela nunca procurou –com exceção de W. I. Thomas– imaginar como, através de qual método empírico, se poderia observá-los para melhor conhecê-los, analisá-los, compreendê-lo.10
Um exemplo de curso de ação na durée: a passagem de assalariado a autônomo
Diversos processos sociais centrais precisaram, para serem pensados, do conceito de curso de ação. Por exemplo, a figura do self-made man nos Estados Unidos. No imaginário dos estadunidenses, sua sociedade é “the land of opportunity”. Os exemplos de conquista social individual são celebrados por todos os meios de comunicação. Quando o presidente Lincoln dizia que ele queria uma sociedade estadunidense na qual qualquer um começaria sua vida como assalariado, depois se tornaria autônomo e finalmente se tornaria ele próprio empregador, ele fazia os estadunidenses sonhar.
Poder-se-ia esperar então que a sociologia norte-americana, com a força de seus 15.000 profissionais e seu interesse pela mobilidade social desde os anos 1950, teria multiplicado as pesquisas empíricas sobre os self-employed, sobre o self-employment; e sobretudo sobre a passagem sempre delicada do assalariado ao self-employment. No entanto, praticamente não se encontra, ainda hoje, pesquisa sociológica sobre esse fenômeno!
Como isso é possível? Para mim, esta é apenas uma das múltiplas consequências da recusa obstinada, pelo cientificismo hegemônico, de métodos de observação narrativa como o relato de vida.
Fiz parte, nos anos 1970, da rede internacional que estudou a mobilidade social por meio de grandes estudos estatísticos nacionais. Nós utilizamos instrumentos matemáticos sofisticados para analisar os dados quantitativos; e nós nos reuníamos regularmente, estadunidenses e europeus ocidentais, para comparar nossos resultados.
Mas nenhum de nós, nem mesmo os estadunidenses Robert Hauser e David Featherman, disse qualquer coisa precisa sobre as trajetórias da passagem do assalariado ao empreendedorismo através do self-employment em seu próprio país. Eu era o único que se interessava por essa questão; talvez porque eu era também o único marxista do grupo. Meus colegas estadunidenses me explicaram pacientemente que esse fenômeno dizia respeito somente a 10% da população: não faríamos portanto um survey nacional somente para esses 10%…
De fato, o único método empregado para estudar a mobilidade social, o survey, não convém de maneira alguma para observar esse fenômeno. Pois tornar-se autônomo é uma aventura de múltiplas facetas; e tentar em seguida desenvolver sua própria empresa é também uma aventura. É um curso de ação; e um curso de ação não se pode descrever com respostas a algumas questões pré-padronizadas.
Como descrever um curso de ação?
Um curso de ação não se descreve: narra-se. Isso é o que Paul Ricoeur (2011) lembrou em sua obra fundamental, Tempo e narrativa. Desde que uma ação se inscreve na durée, deve-se necessariamente empregar a forma narrativa para descrevê-la (e se é o próprio ator que fala ou que escreve o que ele fez, ou, quando, como, com que meios, com que objetivo, com quem, contra quem etc. ele o fez, a história de vida –ou autobiografia– é a mais adequada).
Sim, eu o afirmo aqui: a lógica obriga a reconhecer o que o senso comum sempre soube, a saber, que para dizer o que foi um curso de ação, para descrever sua história e suas vicissitudes, tem-se que empregar a forma narrativa.
Para um espírito cientificista é uma conclusão profundamente chocante. De fato, nem os astrônomos, nem os físicos, nem os químicos, nem os geólogos jamais iriam pedir aos astros, às montanhas, aos oceanos ou às massas em movimento para lhes contar por que eles se movem como o fazem. Como eles sabem de antemão que eles não obteriam resposta, eles ficam satisfeitos em observar seus movimentos da maneira a mais precisa possível, inclusive –quando podem– fazendo variar de maneira experimental os parâmetros (Galileu). Para o sociólogo cientificista nós devíamos fazer o mesmo: observemos, meçamos com precisão, mas não esperemos nada dos “objetos humanos” que estudamos. Comportemo-nos como verdadeiros cientistas.11
Mas por que não? Observar a conduta dos indivíduos membros das sociedades humanas como fazem os especialistas em formigas, abelhas ou cupins levou e levará ainda a algumas descobertas. Este é, parece, o programa positivista no sentido não caricatural do termo. De uma certa forma, o programa do interacionismo simbólico, baseado na observação direta, se aproxima dele nesse ponto.
Mas isso levanta pelo menos dois problemas. Primeiro, em todo caso em que se pode observar diretamente as condutas, há a alternativa da abordagem weberiana: ela considera que os indivíduos sabem, ou ao menos pensam saber porque eles fazem o que fazem, e que sem dúvida seria bom de lhes perguntar; sem com isso aderir a todas as suas racionalizações que, de qualquer maneira, não estão elas próprias livres de interesses. Não é que em certos casos particulares, naqueles nos quais os indivíduos não podem comunicar o sentido de suas ações com o sociólogo, seja porque ele não fala sua língua, seja porque eles não podem falar (como os bebés em uma creche, mesmo bastante interativos), que o método positivista é o único aplicável.
O secundo problema é diferente: trata-se da ação na durée, que acabamos de ver que é bastante mais frequente, importante, significante e estruturante do que dizem. Ora, a ação na durée –um curso de ação– é difícil e bastante custoso de observar continuamente: basta retomar um a um os exemplos de cursos de ação citados mais acima para se convencer. É plausível pedir ao indivíduo sujeito da ação para apontar por escrito as principais características de sua ação, mas com isso perde-se enormemente em informação: não somente quase tudo que diz respeito aos significados, mas também bastante de informações factuais sobre, por exemplo, as características precisas dos contextos e obstáculos encontrados. Pode-se então imaginar estudar por meio de um questionário padrão um tipo específico de curso de ação realizado em paralelo por vários indivíduos? É possível, mas o resultado seria tão pobre em conteúdo… Sem dúvida, é o motivo pelo qual há tão poucos surveys sobre a passagem de assalariado ao trabalho autônomo (self-employment).
Um curso de ação, isso se narra. E aquele que pode contá-lo melhor é, evidentemente, aquele ou aquela que a conduziu do início ao fim. Mesmo se ele modificar a história um pouco, por razões diferentes, o resultado será bastante mais rico em informação factual e em percepção sobre os significados subjetivos que qualquer questionário ou uma hipotética, mas impossível, observação direta. Sobretudo se a entrevista foi relativamente bem conduzida, deixando ao entrevistado (ao “sujeito”) uma grande liberdade, mas trazendo-o na medida do possível ao tema da entrevista. Esse resultado é o que chamamos de uma história de vida.12
Da rejeição “objetivista” da história de vida ao narrativismo, sua cópia “subjetivista”
Eu direi um pouco mais adiante como, ainda jovem engenheiro, descobri graças às obras de Oscar Lewis as formidáveis potencialidades informativas e expressivas da história de vida. Como, tendo obtido um emprego de sociólogo mas para fazer pesquisa quantitativa sobre a mobilidade social, eu concebi e conduzi em paralelo, quase clandestinamente, uma pesquisa usando histórias de vida sobre a panificação artesanal na França, um setor que empregava 1% da população ativa. E como, graças à coleta de cerca de 80 histórias de vida a partir de categorias diferentes, operários, artesãos, padeiros, aprendizes… eu consegui, pelo menos creio, adentrar no âmbito íntimo, escondido, os inner workings do funcionamento desse ramo artesanal; e as razões de sua improvável sobrevivência até o dia de hoje.
Mas antes quero chamar a atenção do leitor para um paradoxo. Durante muito tempo o cientificismo que dominou a sociologia na França e no mundo anglo-saxão considerou com grande desprezo a história de vida, este “método do senso comum”, como o qualificou Bourdieu com grande veemência13 (e sem se dar ao trabalho de se informar minimamente antes de julgar e condenar). Mas a “virada narrativa”, o narrative turn, que conduziu ao sucesso do narrativismo nos Estados Unidos, no fundo não mudou nada, contrariamente às aparências. O positivismo cientificista e o narrativismo convergem de fato à ideia (falsa) que a história de vida é demasiadamente subjetiva para trazer à sociologia informações objetivas sobre a realidade exterior ao sujeito.
Esse é seu erro comum. Se é verdade que a história de vida é “inteiramente subjetiva de parte a parte” –como negá-lo?– isso não significa de forma alguma que ele não contenha qualquer informação factualmente exata, objetiva, portanto, no sentido positivista do termo. Toda a questão para o sociólogo que a coleta é poder determinar, para cada descrição que é feita, seu grau de verdade objetiva; que esta descrição lida com realidades sócio-históricas exteriores ao sujeito (as únicas que interessam aos positivistas), ou sobre aspectos de sua própria interioridade da época (as únicas passíveis de interessar aos narrativistas). “Poder determinar…”: para os narrativistas, esta ambição é tipicamente positivista, e sem sentido; para os positivistas, ao contrário, ela é simpática mas completamente irrealista.
Ora, basta multiplicar as histórias de vida em um mesmo “mundo social” para que se sobreponham entre eles, cada um encarnando assim diante dos outros a função crucial de “determinação do grau de verdade objetiva”.
O próprio Ricoeur, promovendo o método hermenêutico (que visa descobrir significados escondidos contidos em um texto), afirmou com frequência que o que o interessava de fato, não era o texto, mas a ação. Ele permaneceu, contudo, um filósofo, à vontade no mundo das ideias e palavras. Mas a quase totalidade dos scholars que se engajaram na virada narrativa, apaixonados pelos textos e as formas narrativas, decididamente viraram as costas às realidades out there, sobre as quais falam os textos.
Não se pode evidentemente censurar esta atitude nos psicólogos, nos especialistas em estudos literários, aos filósofos, aos linguistas, que não se interessam pelo “refere-se…”. Ao contrário, entre os sociólogos, que se espera estudar e compreender o mundo lá fora, esta atitude é mais surpreendente; e mais decepcionante.
O exemplo típico de um estudo narrativista se apresenta assim: um universitário estadunidense passa algum tempo a ler e reler a transcrição de uma entrevista do tipo história de vida (life story) afim de extrair os significados escondidos. Como ele ou ela não pode ir verificar qualquer dos fatos que são citados pelo narrador, nem qualquer das ações que ele/ela afirma ter feito, como lhe parece, portanto, de fato impossível e, além disso, meaningless (sem sentido) estabelecer a verdade de cada ponto da história, ele conclui que tudo que ele ou ela pode fazer dessa história é estudá-la como texto. Resta a ele encontrar o que o autor desse “texto” procurava dizer, conscientemente ou não. Em termos operacionais, não teremos aprendido nada sobre o mundo exterior. Mas teremos compreendido melhor o interior de uma pessoa particular.
So what? A virada narrativa chega a um impasse. E atrás de seus muros altos, a ilusão cientificista se satisfaz de ter sido capaz de desviar as hordas de narrativistas em direção a outros horizontes. Pena…
Há coisa melhor a fazer. Ao invés de se deter à análise hermenêutica de uma única história de vida, aquela de uma pessoa que viveu em um contexto que ignoramos tudo, deve-se multiplicar as históricas de vida no interior, por exemplo, de um mesmo mundo social: depois tudo muda, e o conhecimento sociológico pode avançar. Estou em condições de afirmá-lo, pois eu o experimentei.
Um estudo sobre a panificação artesanal
Bem antes de me tornar sociólogo, na época em que ainda era engenheiro, me debrucei sobre a tradução francesa do livro Os filhos de Sanches, de Oscar Lewis. Esse livro mudou minha vida: após tê-lo lido, decidi que o que eu gostaria de fazer era isso. Paralelamente ao meu trabalho de engenheiro, eu comecei os estudos de sociologia (eu poderia ter podido escolher antropologia; mas eu estava muito mal informado). E quando consegui entrar no CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Social) –enquanto pesquisador da sociologia dedicado a estudar a mobilidade social por métodos quantitativos…– eu rapidamente decidi conduzir, em paralelo ao meu trabalho oficial, um estudo por meio de histórias de vida. Os acontecimentos extraordinários de maio-junho de 1968 haviam acabado de revelar, como quando a névoa é rompida, que a sociedade francesa ainda estava estruturada por implacáveis relações de classe. Mas a névoa rapidamente se refez. Eu então pensei que um estudo empírico sobre a produção de um objeto bastante cotidiano revelaria a centralidade escondida das relações de produção e de classe. Eu então decidi estudar a produção de pão.
Inicialmente, eu não conhecia nada. Sabia apenas que, segundo as estatísticas nacionais, 95% do pão vendido na França vinha de 35.000 padarias artesanais (e apenas 5% de panificadoras industriais). O setor de panificação empregava em torno de 110.000 operários e aprendizes, e 20.000 vendedores. No total eram 200.000 pessoas, se juntar os padeiros e suas esposas, ou seja, 1% da população ativa.
Após ter falhado em entrevistar padeiros (devo dizer que ingenuamente eu me apresentava a eles como um sociólogo –o termo não lhes dizia nada– realizando um “estudo”: esta palavra os deixou de orelha em pé, eles me perguntavam imediatamente quem me pagava, e quando eu respondia orgulhosamente que era o CNRS, uma instituição do estado, eles faziam uma careta, pois eu percebi muito tempo depois o significado (estado=fiscalização) e subitamente descobriam que estavam ocupados demais para me ceder um momento…), comecei então um estudo com velhos padeiros encontrados na sede do sindicato, que, por sua vez, me acolheram calorosamente e, de bom grado, me contaram suas vidas. Após apenas umas quinze histórias de vida eu já tinha compreendido muitas coisas sobre o funcionamento deste setor artesanal.
Faltava entrevistar padeiros e padeiras artesanais; pedi à minha esposa Isabelle Bertaux-Wiame, que tinha uma formação de historiadora e cujo pai era artesão, para me ajudar.
Os velhos sindicalistas tinham deixado claro que todos os padeiros (comerciantes artesãos autônomos) eram, eles próprios, filhos ou genros de padeiros. Era de fato o caso até 1914, como o indicava os raros arquivos que tratavam desse setor artesanal de produção-venda e que Isabelle havia lido. Foram as histórias de vida que nos fizeram compreender pouco a pouco que não era mais assim. Pouco a pouco descobrimos que com a modernização, os filhos de padeiros tendiam cada vez mais (a partir dos conselhos sussurrados por suas mães) a estudar e procurar uma profissão menos dura. É por isso que os casais de padeiros que desejavam se aposentar, não encontravam um único filho de padeiro-artesão para continuar seu negócio. Apenas operários-padeiros se apresentavam a eles; mas estes não tinham o dinheiro da entrada para comprar…14
Após esta longa pesquisa eu estava em condições de dizer alguma coisa sensata sobre a passagem do assalariado ao trabalho autônomo na panificação artesanal. Mas somente nesse setor artesanal. O que eu poderia dizer era específico a esse setor. Eu não acreditei um instante que os mecanismos e processos que nós descobrimos e que foram abundantemente “verificados”, isto é, confirmados pela recorrência, fossem os mesmos do açougue, um comércio-artesanal de casal em que os artesãos subsistem ainda; nos cafés que os turistas consideram como característico de Paris e das grandes cidades francesas, mas que são todos mantidos por homens e mulheres originários de pequenas cidades para as quais eles pensam dia e noite voltar na sua aposentadoria; nos restaurantes, uma “indústria” que sem dúvida alguma possui suas próprias regras de funcionamento; nos salões de beleza, frequentemente mantidos por mulheres; no conserto de automóveis (oficinas); apenas para mencionar alguns dos setores de comércio artesanal urbano.
O que isso significa é que não há caminho milagroso em direção ao conhecimento: primeiro sociográfico, depois somente sociológico (isto é, sócio-histórico) de uma dada sociedade. Nada de atalho: nem pela empiria (o estudo estatístico), nem pela teoria (a teorização de gabinete). Se queremos conhecer, realmente conhecer como se faz a passagem de assalariado ao self-employment em uma dada sociedade –ou seja: no Brasil, nos Estados Unidos…– não há outra solução senão multiplicar os estudos, setor por setor. E em cada setor, multiplicar as entrevistas narrativas com pessoas que efetivamente vivenciaram e agiram nessa passagem, por meio de cursos de ação específicos, mas que apresentam certamente pontos em comum, que é exatamente o que procura o ou a sociólogo(a).15
Generalizar: na sociologia, quais são as condições de possibilidade?
Sustento, portanto, que não é porque pensamos ter compreendido as lógicas internas (inner workings) do funcionamento de um dos setores artesanais (ou industriais, ou comerciais, ou de serviços…) de uma sociedade desenvolvida que estamos em condições de generalizar para outros setores a presença ativa dessas lógicas. Crer que se estaria em posição de generalizar faria colocar um postulado, que proponho denominá-lo aqui postulado da homogeneidade. Estamos de tal maneira habituados, nós, sociólogos, a fazer esse postulado, que se tornou para nós uma segunda natureza, um reflexo espontâneo que fazemos sem pensar. De uma certa maneira nós precisamos desse postulado; se não o fizermos nós nos sentiremos incapazes de generalizar. Ora, nós nos pensamos como sociólogos, não como sociógrafos; acreditamos que nossa tarefa é de explicar, ou ao menos de propor generalizações plausíveis, e não apenas descrições monográficas.16 E para poder generalizar estamos de alguma maneira obrigados a acreditar na homogeneidade de nossa sociedade. Sustento aqui que é uma deformação profissional específica de determinadas ciências sociais, a sociologia mas também, parece-me, a economia.
Nós, sociólogos, estudamos como profissionais uma sociedade que na maior parte do tempo é a mesma que aquela na qual nós crescemos, e que, portanto, também conhecemos (e sobretudo?) por experiência direta. Na realidade, nós crescemos apenas em um de seus microambientes socioespaciais particulares, e em uma época particular. No entanto, temos a tendência de esquecer disso; e a pensar que em outros microambientes, em outras subculturas de classe, em outras épocas e sobretudo na época atual, até que se prove explicitamente o contrário, as coisas se passam como vimos por experiência pessoal que ocorreram. Não é completamente falso; mas isso tampouco é inteiramente verdadeiro, longe disso!
Admitamos que nós tenhamos algumas desculpas. Nossa corporação defende a ideia que nós exercemos um trabalho científico. Quando uma instituição pública ou privada propõe a um de nós financiar uma pesquisa, é em função da ideia de que ele é um cientista que possui a capacidade (específica de nossa profissão) de produzir, com base em um estudo empírico, generalizações cientificamente verdadeiras em toda a extensão de nossa sociedade; para dizer a verdade, em cada um de seus pontos.
E, claro, se nosso colega começa lembrando-os que a verdadeira atitude científica é de que não se tem certeza de nada; que o verdadeiro espírito científico é a dúvida, então as autoridades se dirigem imediatamente a qualquer um outro: elas não querem lidar com alguém que tem dúvida, mas com alguém que sabe.
Ou ao menos que dá a impressão tranquilizadora de saber.
Nós mesmos, se queremos construir uma casa ou uma ponte preferimos nos dirigir a um arquiteto ou um engenheiro que dá a impressão de conhecer perfeitamente seu trabalho. Mas seus conhecimentos técnicos e práticos se sustentam sobre as bases sólidas de conhecimentos universais –válidos em todos os lugares e todos os tempos– demonstrados pelo cálculo e repetidamente verificados; conhecimentos científicos que eles aplicam cotidianamente em seu trabalho. Podemos dizer o mesmo da sociologia aplicada?
Não importa a disciplina científica, toda generalização repousa sobre o postulado da homogeneidade: sobre a ideia que as leis físicas –as reações químicas– são universais, são apresentadas e ativadas em todos os lugares e em todo tempo (pelo menos em nossa escala). E que elas são apresentadas e ativadas permanentemente não como “leis” ou mesmo como regularidades estatísticas, mas sempre com a mesma precisão absoluta. É por isso que realmente seria total falta de cultura científica, e ignorar tudo do verdadeiro espírito científico, ousar afirmar que a sociologia é ou se tornará “uma ciência como as outras ciências”. Citou-se Durkheim abundantemente a esse respeito: “Deve-se tratar os fatos sociais como coisas”, mas ele não diz que os fatos sociais são coisas; ele quer dizer que se queremos descobrir suas lógicas de produção e de funcionamento deve-se habituar a encará-los como se eles fossem regidos por forças impessoais, supraindividuais, “coletivas”. Ele também escreveu que a vida social gera permanentemente situações quase-experimentais, porque ele é perfeitamente consciente da maneira como a pesquisa científica avança: pelo método experimental. Mas evidente, uma situação quase-experimental produzida pela vida sócio-histórica é ainda muito distante –e qualitativamente diferente– de uma situação verdadeiramente experimental, produzida (designed) artificialmente em função de uma hipótese a ser verificada pelo método experimental. Durkheim certamente abriu o canal ao cientificismo; mas ele foi inteligente e cultivado demais para sucumbir.
Esse não foi o caso de sociólogos das gerações seguintes, aqueles de que somos mais ou menos obrigados a assumir a herança.
Por exemplo, a ideia de utilizar a história de vida como instrumento de conhecimento empírico de cursos de ação individuais foi combatida muito violentamente; principalmente, mas não apenas, por Bourdieu. Afinal, por que essa violência? Porque sob uma aparência inocente, etnográfica, humanista, esta simples ideia ameaçava estourar a enorme bolha cientificista que mantinha viva toda profissão, e particularmente seus líderes.
Ao multiplicar as histórias de vida, não de forma aleatória de encontros, mas no âmbito de ambientes socioprofissionais –de “mundos sociais”– ou de categorias de situações dadas (ver Bertaux, 2009), teríamos de fato chegado a colocar em questão não apenas um único, mas vários postulados sobre os quais baseava a bolha cientificista:
Segue a ideia de que tudo se passa como se as sociedades humanas fossem transformadas por leis imanentes, coletivas, que escapam à consciência dos indivíduos17 e de grupos (apenas os melhores sociólogos podem percebê-las…), e que agem sobre as costas dos indivíduos, retirando-lhes assim todo grau de liberdade e tornando suas condutas previsíveis, senão ao nível das condutas individuais, pelo menos ao nível dos grupos. Quanto mais avançamos no conhecimento, se sedimentam nos cursos de ação individuais estratégias colocadas em prática com paciência e fúria, e da presença ativa, em paralelo às forças poderosas de interesses pessoais, aquelas menos poderosas (mas cheias de convicções morais e de espírito de solidariedade), mais duvidamos do postulado naturalista, mais iríamos nos aproximar da concepção esboçada por Max Weber, afirmada por Sartre (embora eu duvide que ele tenha se interessado por Weber, mas que conhecia bem a filosofia alemã, de Kant e Hegel a Husserl via Heidegger), e fortemente representado na sociologia francesa por Raymond Boudon e seu “individualismo metodológico.18
Trata-se aqui de uma ideia mais original que a anterior. Não tenho o espaço para desenvolvê-la aqui. Penso que se se afirma que o postulado da homogeneidade não se verifica, se, antes, é a heterogeneidade que predomina na maioria das “sociedades” das quais falam os sociólogos –de fato, nos Estados Unidos modernos– isso muda bastante as coisas para nós sociólogos. O Brasil constitui evidentemente um caso extremo de heterogeneidade. Mas a maioria dos países são heterogêneos em um certo grau, mesmo os países pequenos (a Suíça ou a Bélgica, por exemplo; e, evidentemente, as ex-colônias tornadas países independentes, cujas fronteiras foram traçadas arbitrariamente…).19 Isso todo mundo sabe; entretanto, quase todo mundo, e em particular os sociólogos, continuam a considerar as médias estatísticas nacionais como resultados científicos, enquanto essas médias não apenas excluem as diferenças, mas descrevem uma situação que não existe em nenhum lugar (pensemos, por exemplo, na Itália dividida entre um norte e um centro muito desenvolvidos e ricos, e um sul subdesenvolvido). Evidente que os métodos extensivos, estatísticas sociais e surveys são os únicos que permitem descrever com alguma precisão essas diferenças. Mas eles não estão de maneira alguma em condição de descrever os processos que engendraram essas diferenças. Por isso, deve-se recorrer a outros métodos de observação, a métodos ditos “intensivos”, centrando o estudo sobre um território particular; o que põe em seguida a questão da generalização dos resultados do estudo a outros territórios. É evidente que esta generalização só é possível no interior do espaço regional em que estão apresentadas e ativadas as mesmas lógicas da situação e as mesmas lógicas de ação daquelas que foram observadas e incluídas em um pequeno território… É aqui que encontramos seus limites as ideias de recorrência das observações e de saturação que propus como permitindo a generalização a partir de observações “qualitativas” ou, antes, “intensivas”; como, de alguma maneira, o equivalente metodológico da amostra representativa para os métodos extensivos (Bertaux e Bertaux-Wiame, 1981).
Frequentemente, quando evoco diante de colegas a necessidade de multiplicar os estudos sócio-antropológicos, uma consequência lógica do meu postulado da heterogeneidade, eles respondem que demandaria demasiada energia, dinheiro e tempo. Mas não estou convencido: a soma total do que atualmente é alocado por milhares de sociólogos profissionais é bastante considerável, mas não vejo se esboçar perspectivas de acumulação razoável. Parece-me que andamos em círculo há muito tempo, talvez porque ninguém ousa estourar a bolha…