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O tabu do parto: Dilemas e interdições de um campo ainda em construção

The taboo of childbirth: Dilemmas and interdictions of a field under construction

Resumo:

O artigo se debruça sobre a receptividade das pesquisas sobre parto e nascimento no âmbito das Ciências Sociais. Se, por um lado, percebe-se a paulatina consolidação de um campo de pesquisa, a partir de demandas sociais que emergiram em face do atual cenário obstétrico brasileiro, no qual diferentes discursos são articulados entre políticas públicas e movimentos sociais; por outro, há uma recorrente deslegitimização tanto das pesquisas e problemáticas trabalhadas quanto das pesquisadoras e suas motivações. Dito isto, e a partir de experiências vivenciadas pelas autoras no contexto acadêmico e/ou feminista, apresentamos uma reflexão crítica sobre alguns comentários ouvidos nesses ambientes, identificando-os com o discurso hegemônico que não problematiza o cenário obstétrico. Para ilustrar, optamos por analisar a episiotomia como intervenção emblemática na assistência ao parto no Brasil, que condensa expressões dos saberes e poderes formulados e reproduzidos sobre o corpo da mulher.

Palavras-chave:
Parto.; Pesquisa Social.; Feminismo.; Neutralidade.

Abstract:

This paper focuses on the receptivity of researches about childbirth within the Social Sciences. On one hand, we have acknowledged an increasing consolidation of this investigation field, from social demands that were raised due to the actual obstetric scenario in Brazil, in which different discourses are articulated, ranging from public policies to social movements. On the other hand, there is a recurrent delegitimization not only of researches and their addressed issues but also of researchers and their motivations. Therefore, due to the above consideration, and based on situations that were experienced by the authors in the academic and/or feminist context, we present a critical perspective of some recurrent comments that we have identified with the hegemonic discourse, which poses no critics about the Brazilian obstetric reality. As for instance, we also analyse episiotomy as an emblematic intervention that illustrates how the knowledge about woman’s body was shaped and controlled by prejudice and power.

Keywords:
Childbirth.; Social research.; Feminism.; Neutrality.

Introdução

Neste artigo pretendemos refletir sobre a abordagem dada ao tema do parto e nascimento no âmbito da Antropologia e da Sociologia. Nosso objetivo é fazer uma reflexão a partir de nossa inserção no campo antropológico e sociológico, notadamente num campo formado por pesquisadoras feministas que discutem o corpo da mulher, maternidade e movimentos de mulheres, apresentando trabalhos acadêmicos sobre parto e nascimento. Dito isto, consideramos oportuno ressaltar o nosso lugar de enunciação, qual seja, o de pesquisadoras acadêmicas nas áreas de Antropologia e Sociologia, em que problematizamos a realidade obstétrica brasileira, tomando como referência as recomendações da Organização Mundial de Saúde, a Medicina Baseada em Evidências e as boas práticas obstétricas. Para além dos aspectos relativos à saúde reprodutiva, também problematizamos os aspectos culturais envolvidos no parto e, nesse sentido, avaliamos como importante o diálogo com algumas das perspectivas do feminismo. Usaremos como partida para este artigo situações observadas nos ambientes acima referidos, que antes de serem tomadas como casos representativos, nos parecem colocar importantes dilemas relativos à recepção ao tema em questão.

É importante esclarecer que adotamos a noção de campo-tema discutida por Peter Spink (2003)SPINK, Peter. Pesquisa de campo em psicologia social: uma perspectiva pósconstrucionista. Psicologia e Sociedade. São Paulo: Abrapso, v. 15, n. 2, p. 18-42, 2003., de acordo com a qual não há uma diferença fundamental entre curiosidade e ciência. Para este autor, a aproximação com o campo também acontece por meio de vivências cotidianas da/o pesquisador/a com o tema, as leituras, conversas, situações planejadas ou inusitadas que podem remeter àquilo que se deseja pesquisar. É neste campo-tema que novas questões são formuladas, tendo em vista que “a pesquisa nasce da curiosidade e da experiência tomados como processos sociais e intersubjetivos” (Spink, 2003SPINK, Peter. Pesquisa de campo em psicologia social: uma perspectiva pósconstrucionista. Psicologia e Sociedade. São Paulo: Abrapso, v. 15, n. 2, p. 18-42, 2003., p. 22). Nesta direção, a realização de pesquisas é considerada um processo contínuo e multitemático, no qual pessoas e acontecimentos são mutáveis, o que dá origem a uma diversidade de versões, todas sempre em diálogo, mas nem sempre em harmonia. Sendo assim, o contato com o campo se constitui de relatos, conversas, leituras e situações planejadas ou não que possam remeter ao que se deseja pesquisar. Spink (2003)SPINK, Peter. Pesquisa de campo em psicologia social: uma perspectiva pósconstrucionista. Psicologia e Sociedade. São Paulo: Abrapso, v. 15, n. 2, p. 18-42, 2003. considera que a atenção voltada para estes aspectos é um importante guia para a escolha de abordagens e métodos, que devem ser experimentados e negociados na medida em que a/o pesquisador/a se insere no campo-tema.

Assim, a pesquisa deve ser analisada como um modo de relatar o mundo, bem como de produzi-lo. À luz de tal responsabilidade, a/o pesquisador/a deve ter especial atenção para o que, como e onde está fazendo, seus compromissos e suas implicações com o campo-tema e as possibilidades de contribuição. Ou seja, toda/o pesquisador/a precisa ter noção de que faz parte do campo-tema e de que se debruçou sobre uma determinada pesquisa porque acreditou que podia ser útil, logo, encontra-se vinculado ao campo-tema. Dito isto, fica explícito o motivo pelo qual avaliamos como pertinente analisar algumas das falas dirigidas ao campo de pesquisa sobre parto em diferentes contextos acadêmicos/científicos, acreditando que ao dirigir-se ao parto enquanto campo de pesquisa, está-se também referindo às questões socialmente partilhadas sobre o tema.

Como parece ser relevante em nossos estudos, acreditamos ser importante definir de qual mulher estamos falando. As questões relativas a maternidade não dizem respeito a todas as mulheres, embora indiretamente façam, já que sabemos que a mulher que decide não ter filhos é constantemente questionada e avaliada por sua escolha. Mas temos consciência que ao falar em parto, despertamos o imaginário relativo a uma suposta mulher universal, a mulhermãe, necessariamente heterossexual, o que aciona duas outras incômodas constatações: a de que muitas outras mulheres não são contempladas pelas preocupações que trazemos e a de que, consequentemente, estas questões não podem ser definidoras do que vem a ser uma identidade de mulher. Por isso, gostaríamos de frisar que falamos, a partir das preocupações acima expostas, de mulheres dotadas de um aparato biológico que as permite, em idade reprodutiva, engravidar, gestar e parir, e que optam por fazê-lo.

Com um campo de pesquisa em consolidação nas ciências sociais, parto e nascimento são temas de alguns espaços pontuais de discussão, como grupos de trabalho e mostras audiovisuais em eventos científicos, dossiês temáticos e publicação de artigos em revistas.1 1 Frisamos os Grupos de Trabalho: Partos e/ou maternidades e políticas do corpo: perspectivas antropológicas e expansão de fronteiras, na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2014; Partos, maternidade e políticas do corpo: saberes locais e experiências transnacionais, IV REA/XIII Abanne, 2013; Parto e Maternidade: profissionalização, assistência, políticas públicas, no Seminário Internacional Fazendo Gênero 7, 2006; Biotecnologias, Parto e Novas Tecnologias de Reprodução, Seminário Internacional Fazendo Gênero 4, 2000. No Seminário Fazendo Gênero 10, em 2013, dois documentários sobre parto foram apresentados na mostra audiovisual, sendo que “Violência obstétrica: a voz das brasileiras”, de Heloisa de Oliveira Salgado foi premiado em primeiro lugar. Como publicações relevantes, a Revista de Estudos Feministas, de julho de 2002, publicou o Dossiê Parto; e o espaço multidisciplinar da Revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação, com quinze artigos publicados desde 1999 até 2014, tem promovido algum diálogo entre ciências da saúde e humanas. Enquanto objeto de problematização feminista no campo da saúde, é relevante ressaltar o trabalho da Rede Nacional Feminista em Saúde, que publicou o Dossiê Humanização do Parto em 2002. Mas em muitos eventos científicos acaba-se por levar este tema para grupos de trabalho em áreas afins, como família, maternidade, saúde e direitos reprodutivos. Em nossos locais de trabalho e estudo, também circulamos em espaços de debate que são formados majoritariamente por pesquisadoras/es de outros temas. Neste sentido, pesquisar parto é como pesquisar qualquer outro assunto: tenta-se encontrar pontes para debates, por vezes parciais, fazendo-se recortes de uma temática mais abrangente de acordo com as/os interlocutoras/es.

O que queremos frisar, no entanto, diz respeito às resistências e tensões dirigidas ao campo-tema do parto e nascimento. Nos chama a atenção, e fica evidente quando comparamos a outras pesquisas que já fizemos em nossa trajetória, algumas reações destas/es interlocutoras/es que não pesquisam diretamente o mesmo assunto. De certa forma, há uma deslegitimização do campo, ora através do não reconhecimento daquelas que seriam nossas “nativas” – o que será melhor discutido mais a frente – ora através de táticas de silenciamento, segundo as quais as considerações feitas pelas pesquisadoras são vistas como problemáticas, não num sentido epistemológico e/ou metodológico, mas com uma conotação de desqualificação de seus posicionamentos enquanto pesquisadoras. Ou ainda, pode haver uma incredulidade com relação à relevância dos fenômenos expostos pelas pesquisas, como a contradição entre o percentual de mulheres que, no início da gravidez, desejam um parto normal e as altas taxas de cesáreas praticadas (Salgado, 2012SALGADO, Heloisa de Oliveira. A experiência da cesárea indesejada: perspectivas das mulheres sobre decisões e suas implicações no parto e nascimento. São Paulo, 2012. Dissertação de mestrado em Saúde Pública, Faculdade de Saúde Pública, USP.).

Essa reiterada resistência, por parte de alguns espaços acadêmicos das Ciências Sociais e Humanas, ao assunto do parto e do nascimento, nos faz refletir sobre o próprio lugar social que a parturição ocupa em nossa sociedade. Parece-nos interessante retomar, ainda que de forma breve, o conceito que dá título ao nosso texto, na medida em que os silenciamentos e rechaços à abordagem ao tema nos soa como uma espécie de tabu em relação ao parto. O tabu, discutido por autores como Sigmund Freud (2013)FREUD, Sigmund. Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e a dos neuróticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. e Claude Lévi-Strauss (2009)LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2009., nos informa sobre proibições e prescrições e atua como um importante elemento formativo e mantenedor da ordem social, possibilitando assim a simbolização dos interditos, do misterioso, do sagrado. Trata-se de uma conjunção entre natureza e cultura que coordena, com isto, dimensões universais e particulares. É exatamente nessa conjunção que parece residir uma das maiores tensões vivenciadas no ambiente acadêmico nas Ciências Sociais, qual seja, a relação difícil e conflitante entre natureza e cultura.

Segundo Freud, o termo tabu carrega, em si, uma ambivalência que pode nos dizer muito sobre como a sociedade atual parece lidar com o parto. Se, por um lado, o tabu relaciona-se com a noção de sagrado e de extraordinário, também liga-se ao misterioso, ao interdito, ao impuro, “é denominado tabu, enfim, conforme sentido literal, algo simultaneamente sagrado, acima do habitual, e perigoso, impuro, inquietante” (Freud, 2013FREUD, Sigmund. Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e a dos neuróticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2013., p. 17). Segundo o autor, o parto estaria inscrito na ordem dos tabus temporários, assim como o produto diretamente derivado dele – o recém-nascido, ideário construído com base na noção de fragilidade e de vulnerabilidade que tanto a parturiente quanto o bebê encontram-se compreendidos.

Em relação ao parto, poderíamos citar a universalidade de sua ocorrência, aquilo que o liga à natureza, assim como as interdições que sempre se ergueram em torno do evento e, por outro lado, as diversificadas maneiras como ele é vivido e significado nos diferentes grupos, sinalizando suas particularidades culturais. Tais particularidades apontam para os valores e crenças que envolvem o parto nas diferentes sociedades, estabelecendo os limites entre natural e cultural e como se dá essa passagem. A receptividade do tema nos meios em que circulamos indica-nos, então, elementos de nossa cultura e, de certa forma, uma tendência a não questionar e a reproduzir a perspectiva hegemônica.

É sobre impasses e tabus, ou seja, sobre algumas dificuldades/entraves/ debates que as pesquisas sobre parto suscitam, que refletimos, tendo como ponto de partida as nossas experiências neste campo, em convivência com outras/os pesquisadoras/es deste e de outros temas, nos principais espaços de produção acadêmica, sejam eles programas de pós-graduação e eventos científicos, além de outras circunstâncias de discussão como seminários internos, bancas de qualificação de projetos, organização de cursos e conversas informais.

Utilizamos tais comentários, menos com a intenção de torná-los representativos de uma realidade monolítica, mas antes, como gatilho para problematizar resistências ainda presentes neste campo de estudo. Dessa forma, os comentários figuram como marcadores de seções, a fim de demarcar certo tipo de discurso relativo ao parto. Contextualizamos estes comentários como fazendo parte do discurso hegemônico sobre parto e nascimento, no sentido atribuído por Foucault (2011)FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011. do discurso enquanto um sistema (de poderes) com formas de controle interno e externo e condições de funcionamento. Assim, as reações suscitadas nestas ocasiões por nosso tema de pesquisa nos parecem importantes indicadores de como nossa sociedade lida com o parto e com a mulher, mais especificamente com a parturiente, e, por conseguinte, como informações preciosas, dignas de serem analisadas e debatidas como forma também de tensionar o lugar ocupado pelas ciências sociais, pelas reivindicações e epistemologias feministas e pelo fazer acadêmico e militante.

A partir de falas que escutamos de nossos pares nos contextos acima referidos, discutiremos as ricas possibilidades de diálogo entre estudos sobre parto e feminismo, esmiuçando as resistências que teimam em considerar que estas duas dimensões possuem entre si uma distância intransponível. Em seguida, como modo de desmistificar a relação entre academia e militância, refletiremos sobre as (im)possibilidades de neutralidade, situando como sempre suscetível de parcialidades posicionamentos tomados sobre um assunto que perpassa a vida de todas/os, aflorando sentimentos e convicções.

“Vocês incomodam porque trazem a natureza de volta para a Antropologia”

Concomitante ao desenvolvimento e consolidação do movimento de humanização do parto e do nascimento, foi-se construindo e aumentando o interesse acadêmico sobre o tema. Se, como situa Carmen Suzana Tornquist (2002)TORNQUIST, Carmen Suzana. Armadilhas da nova era: natureza e maternidade no ideário da humanização do parto. Estudos Feministas, v. 10, n. 2, p. 483-492, 2002., o movimento social pela humanização do parto e do nascimento no Brasil foi iniciado no final da década de 1980, é a partir dos anos de 1990 que as produções acadêmicas no campo das Ciências sociais e Humanas sobre o tema começaram, timidamente, a surgir. Apesar de ser um campo de pesquisa relativamente novo, ele tem se consolidado e conquistado interesse de pesquisadoras que se destacam no cenário acadêmico e científico nacional e também no cenário político de luta pelos direitos das mulheres.2 2 Para exemplificar, podemos citar Daphne Rattner e Ester Vilela. Sem levar em consideração as propostas com enfoque mais psicológico, que caminham entre as Ciências Humanas e da Saúde, as primeiras produções apresentaram uma leitura mais voltada para o trabalho de parteiras tradicionais que, localizadas em regiões afastadas de centros urbanos ou, simplesmente, do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, fomentavam uma reflexão mais ligada às práticas destas mulheres e à cultura local, demonstrando outras possibilidades de atenção ao parto e de construção de saberes sobre o evento distintas do padrão hegemônico, como trabalhado por Soraya Fleischer (2007)FLEISCHER, Soraya Resende. Parteiras, buchudas e aperreios: uma etnografia do atendimento obstétrico não oficial na cidade de Melgaço, Pará. Porto Alegre, 2007. Tese de doutorado em Antropologia Social, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Ufrgs..

Uma das pioneiras foi Daphne Rattner que, em 1991RATTNER, Daphne. Subsídios para a avaliação da qualidade do processo de assistência ao parto. São Paulo, 1991. Dissertação de mestrado em Epidemiologia, Universidade de São Paulo, USP., defendeu a dissertação intitulada Subsídios para a avaliação da qualidade do processo de assistência ao parto, num mestrado em Epidemiologia. Em 1997, destaca-se a de Simone Diniz como importante marco para a reflexão de questões que problematizam a atenção corriqueira dada ao parto em nossa sociedade, desestabilizando os lugares de médicos e parturientes a partir de um enfoque de gênero. Esta dissertação, bem como a tese da mesma autora, defendida em 2001, são importantes referências para o campo, na medida em que põem em xeque o modelo lido como tecnocrático e medicalizado de assistência ao parto no Brasil. Apesar de situadas na área da saúde, essas produções trazem um forte recorte sociológico e tensionam o uso da técnica como estratégia de poder e manutenção da dominação sobre os corpos das mulheres.

Foi então, a partir do campo da saúde, especialmente da saúde pública, que surgiram os primeiros trabalhos acadêmicos abordando, com enfoque sociológico ou antropológico o tema, numa tentativa de criticar o modelo de atenção ao parto vigente em nosso país.3 3 Neste ínterim, vale mencionar também a dissertação de Sonia Hotimski, de 2001. Já no âmbito das ciências sociais, esta abordagem foi um pouco mais tardia, e nela destacam-se a tese de Carmen Suzana Tornquist, de 2004TORNQUIST, Carmen Suzana. Parto e poder: análise do movimento pela humanização do parto no Brasil. Florianópolis, 2004. Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC., e, mais recentemente, a de Rosamaria Giatti Carneiro, de 2011CARNEIRO, Rosamaria G. Cenas de parto e políticas do corpo: uma etnografia de práticas femininas de parto humanizado. Campinas, 2011. Tese de doutorado em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Unicamp.. Esta última apresenta o elemento distintivo de assumir como principais interlocutoras as mulheres que, como a autora denomina, buscam novas formas de parir na contemporaneidade.

Essa seria uma agenda, a princípio, alinhada às reivindicações feministas. No entanto, parece-nos que certos espaços feministas de debates não acolhem de forma tranquila as elaborações críticas tão importantes, e já apontadas acima, entre natureza e cultura, subscritas no debate acadêmico sobre o parto. Como exemplo do exposto, podemos citar a problemática do uso exacerbado da tecnologia que, no caso do parto, corroborou a ideia de que a natureza (leiase, a fisiologia do trabalho de parto) precisa ser dominada, reforçando assim o papel da mulher na sociedade patriarcal – sentida na hierarquia estabelecida entre médicos obstetras e pacientes. A leitura crítica desse fenômeno chamado de medicalização ou cirurgificação do parto e do nascimento, trazido pelo Movimento de Humanização, realiza um contraponto importante, porém tenso, de que a natureza (o aparato biológico) também possibilita a liberação de forças – o empoderamento – sem, contudo, essencializar a mulher na condição materna.

Já é demasiadamente consistente a discussão que demonstra a insuficiência do dualismo entre natureza e cultura para compreender as sociocosmologias ameríndias e outras. Para tanto, foram desenvolvidas noções como a do perspectivismo de Eduardo Viveiros e Castro e Tânia Stolze Lima, do animismo de Philippe Descola, dentre outras (Sztutman, 2009SZTUTMAN, Renato. Natureza e cultura, versão americanista – um sobrevoo. Ponto Urbe – Revista do Núcleo de Antropologia Urbana da USP, São Paulo, v. 3, n. 4, p. 1-23, 2009.). O que nos parece soar como estranho e inconcebível nos ambientes acadêmicos, científicos e/ou feministas que circulamos é que esta abordagem binária seja insuficiente também para analisar alguns grupos ocidentais, como parece acontecer com o desconforto trazido pela pesquisa sobre parto com base nas diretrizes da humanização do parto e do nascimento, que tencionam esta dualidade e apontam para uma liminaridade bastante movediça entre natureza e cultura.

“Vamos falar sobre outros assuntos além de parto que é para lembrar que este seminário é feminista”

Vemos no feminismo um lócus privilegiado para interlocução, tanto em seus aspectos epistemológicos quanto no que diz respeito ao movimento social. Entretanto, esta parceria nem sempre foi compreendida como possível por algumas representantes do movimento feminista, que tendem a manifestar uma série de insatisfações que resvalavam, quase sempre, na ideia de um retorno da mulher a uma função puramente reprodutiva, atrelada à naturalização da maternidade, da família nuclear e da heteronormatividade. Vale ressaltar que as ressalvas de algumas feministas se espelham numa falta de elaboração crítica do próprio movimento de humanização – que é distinto da produção acadêmica. O nó desta questão seria, em nosso entendimento, um debate ainda pouco profícuo neste campo entre natureza e cultura.

Especialmente com base nos argumentos do feminismo marxista, que discutia a opressão das mulheres, a maternidade foi, durante muito tempo, considerada o fator central de criação e manutenção desta situação. No entanto, ainda hoje estas ideias encontram-se bastante presentes nos círculos de lutas e discussões feministas. A maternidade ainda é vista como aquilo que determina o lugar que a mulher ocupa na família e na sociedade e sua recusa consciente é vista como uma maneira de conquistar a emancipação. Seguindo esta linha, o acesso à contracepção e o direito ao aborto passam a ser considerados formas das mulheres se apropriarem do controle sobre seu potencial reprodutor. Já o parto parece não ser avaliado como também possível propulsor para este controle. Se aborto e contracepção servem de alternativa para as mulheres negarem uma suposta fatalidade biológica, o parto parece ser visto como uma reafirmação desta fatalidade.4 4 Lembrando que o Dossiê de Humanização do Parto, elaborado pela Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, defende que a maternidade deveria ser voluntária, prazerosa, segura e socialmente amparada (Dossiê, 2002).

Diva Muniz (2007)MUNIZ, Diva. Apresentação. In: Cristina Stevens (Org.). Maternidade e feminismo: diálogos interdisciplinares. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2007. p. 9-15. refere a negatividade atribuída aos corpos das mulheres que não cederam aos imperativos da reprodução e da maternidade e esclarece que, escapando da lógica patriarcal, estes são os corpos que podem ser vistos como livres, na medida em que se safaram do destino de toda mulher que seria render-se àquilo que é “natural”, ao ventre. Para a autora, questionar, recusar e romper com o caráter implacável da maternidade se constitui numa forma das mulheres retomarem seus corpos enquanto seres humanos. No entanto, diante da forte presença da maternidade na vida de maioria das mulheres, Muniz (2007)MUNIZ, Diva. Apresentação. In: Cristina Stevens (Org.). Maternidade e feminismo: diálogos interdisciplinares. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2007. p. 9-15. salienta que um dos desafios do feminismo na atualidade é criticar a função procriadora como essência do feminino, desnaturalizando o amor materno e provocando tensões e resistências que alimentem uma revisão no conceito de maternidade.

Neste processo, autoras como Lucila Scavone (2004)SCAVONE, Lucila. Dar e cuidar da vida: feminismo e ciências sociais. São Paulo: Editora Unesp, 2004. e Cristina Stevens (2007)STEVENS, Cristina. Maternidade e feminismo: diálogos na literatura contemporânea. In: Cristina STEVENS (Org.). Maternidade e feminismo: diálogos interdisciplinares. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2007. p. 17-78. recuperam algumas contribuições teóricas do feminismo para situar em três momentos os posicionamentos feministas frente à maternidade. O primeiro deles, caracterizado como um feminismo pós-guerra e com forte influência de Simone de Beauvoir, tendeu a reprimir a experiência e a discussão da maternidade, demonstrando um desconforto em relação à vulnerabilidade e falta de controle que lhe eram atribuídos. A tentativa, então, era de eliminar a associação entre mulher e corpo, presentes naquela que era compreendida como a lógica patriarcal. A maternidade era, então, reconhecida como um handicap, devendo, portanto, ser recusada.

Num segundo momento, iniciado na década de 1970, as mulheres deveriam tomar pé das perversas distorções patriarcais formuladas sobre a maternidade, para, então, despertar para o enorme potencial positivo desta condição. A intenção era resgatar, reinterpretar e revalorizar a diferença, colocando a mulher como portadora de um poder insubstituível conferido pela maternidade.

Por último, o terceiro momento, que estaria ainda em curso, com influências pós-modernas e pós-estruturalistas, traz a maternidade como contingência de poder e opressão, autorrealização e sacrifício, reverência e desvalorização. Estas supostas contradições revelariam uma necessidade de redefinições, negociações, críticas e defesas com o intento de problematizar e também integrar e reinterpretar os pensamentos anteriores, sem perder de vista que as relações sociais de dominação, para além do patriarcado, atribuem significados à maternidade.

No encalço destes momentos de diferentes abordagens à maternidade, acreditamos que encontra-se a abordagem (ou falta dela) ao parto. A partir de nossas experiências no campo-tema do parto, consideramos que as três fases citadas acima convivem na atualidade em um ambiente de disputas que estabelece não apenas o modo como a maternidade e o parto são conceituados, mas como são abordados nos diferentes espaços de discussão, estabelecendo as prioridades e direções das políticas públicas e produções científicas/ acadêmicas.

Para fazer um paralelo podemos citar como a violência contra as mulheres foi (e continua a ser) um tema que fomentou grande parte do debate nacional de gênero nos espaços acadêmicos e nas lutas sociais. Legislações e políticas públicas em saúde foram (e ainda estão sendo) construídas em diálogo com as pesquisas e as reivindicações de movimentos que buscam denunciar e transformar o cenário que engendra tal tipo de violência. Para tanto, são questionadas as hierarquias e jogos de poder envolvidos na construção de relações desiguais e de uma sociedade permissiva quanto à violência de gênero.

Em se tratando do atual debate sobre violência obstétrica, pouca adesão da academia e dos movimentos feministas tem sido percebida. O debate sobre este tipo de violência, que conjuga problematizações quanto às questões de gênero e o poder médico, encontra resistências que demonstram desde um desconhecimento em relação ao cenário obstétrico nacional até um retorno da antiga desconfiança em relação à interface entre academia e militância.

A despeito do desenvolvimento do debate sobre saúde reprodutiva, iniciado na década de 1980, que inaugurou a politização do corpo e do privado, pouca atenção foi dada ao parto como importante fonte de reprodução de desigualdades, poder e dominação sobre o corpo das mulheres – inclusive pelo uso exacerbado da tecnologia, que corrobora e reforça o estereótipo da domesticação da “natureza caótica” das mulheres. Ou seja, a noção da mulher ligada à natureza, a ideia da natureza como elemento a ser dominado e a marca do lugar doméstico feminino. Se a ideia era recusar a definição do corpo da mulher pautada pela medicina e introduzir questões subjetivas que incluíssem a sexualidade, o amor e os saberes da mulher sobre o seu ciclo reprodutivo para que assim pudessem alcançar um autodomínio e uma autonomia, parece que isto passava exclusivamente pela negação da maternidade, através da contracepção e do aborto.

No entanto, de acordo com Diniz (1997)DINIZ, Carmen Simone Grilo. Assistência ao parto e relações de gênero: elementos para uma releitura médico-social. São Paulo, 1997. Dissertação de mestrado em Medicina, Universidade de São Paulo, USP., desde a década de 1960, o movimento de mulheres elege as relações de poder e lutas políticas no campo da reprodução como um de seus focos, tendo como principal reivindicação a autodeterminação sobre o corpo e a sexualidade. Assim, o modelo médico centrado numa condição patológica/defeituosa do corpo feminino passou a ser alvo de fortes críticas: percebeu-se que a visão do parto como potencialmente arriscado, abria caminho para a utilização de uma tecnologia agressiva, invasiva e quiçá perigosa, que comprometia a autonomia e autoridade da mulher sobre o processo de gestar e parir. O caráter desumano desta tecnologia desconsiderava dimensões sociais, culturais, sexuais e espirituais do parto e do nascimento. Entretanto, desde o início destes questionamentos até o presente, pouca coisa mudou.

“Agora não se faz mais pesquisa, só ativismo”

Pela universalidade do evento nascimento, quem é nascido parece guardar uma leitura específica sobre a primeira transição da vida humana. Este aspecto é interessante de se frisar: não há lugar neutro, politicamente falando, quando se debate o parto – vale lembrar da tese de Tornquist (2004)TORNQUIST, Carmen Suzana. Parto e poder: análise do movimento pela humanização do parto no Brasil. Florianópolis, 2004. Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC. que aponta a relação entre parto e poder. Neste sentido, até que ponto comentários que se colocam como conselhos metodológicos, observações teóricas ou críticas ao ativismo da humanização do parto e nascimento carregam como viés as experiências pessoais, da mesma forma como antropólogas e sociólogas podem se interessar pelo estudo do parto após terem filhos?5 5 O que não é a realidade para todas as pesquisadoras sobre parto, embora seja difícil pensar que o olhar acadêmico sobre este campo não irá repercutir na reflexividade destas mulheres quanto a suas experiências de parturição (se e quando estas ocorrerem).

Para retomar a noção de campo-tema, segundo a qual sempre há algum tipo de vínculo da/o pesquisador/a com o assunto pesquisado como pano de fundo, talvez possamos pensar que o tema não possui a neutralidade como um ponto de vista possível. Este não tem sido, também, necessariamente, um projeto das ciências sociais, em especial na antropologia, disciplina em que é frequente e esperada a defesa de direitos de informantes que fazem parte de minorias, como indígenas, negros, refugiados, mulheres etc. A expectativa, por parte das/os chamadas/os nativas/os, de que o trabalho antropológico lhes traga algum benefício, inclusive, já foi apontada por Geertz como um elemento importante na relação de reciprocidade que investigadoras/es estabelecem com interlocutoras/es, relação esta que seria uma espécie de ficção, na qual, “em geral, é possível manter a sensação de que eles são membros, ainda que temporariamente, de modo incompleto e inseguro, de uma só comunidade moral” (Geertz, 2001GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001., p. 43).

Isto não quer supor que quem pesquise parto e o ativismo social em torno dele deva se colocar como ativista. Nós mesmas nos colocamos de maneiras variadas quanto a isto. Quem, além de pesquisar, trabalha no atendimento a parturientes, como parteira ou doula, pode ter acesso a informações que não são acessadas através de entrevistas, tendo uma perspectiva bastante diferenciada deste campo. Quem passou a ser identificada como ativista pelo próprio movimento, que acompanha ou pelo envolvimento com grupos de apoio ao parto normal durante suas gestações, pode ter a sensação de que teve uma identidade atribuída antes mesmo de construí-la em seus processos de subjetivação. Aliás, é válido notar que mesmo um grupo de pesquisas como o que formamos pode ser reconhecido e acionado por grupos de apoio ao parto humanizado, como sendo mais um destes grupos, ou, simplesmente, como parceria com a qual pode dialogar, se revisar e fortalecer argumentos. Nos parece que este é um aspecto relevante para pensar a relação de reciprocidade que se estabelece entre cientistas sociais e suas/seus nativas/os.

Mas tratamos aqui do fato da pesquisadora do parto e do nascimento ser chamada de ativista por outros pesquisadores (e o fato disto não significar propriamente um elogio). Esta acusação de ativismo fica bastante evidente com a realização de projetos de extensão universitária. Faz parte da carreira docente a elaboração de projetos que façam pontes com a sociedade, levando a um público mais amplo o trabalho acadêmico. Neste campo do parto e do nascimento, muitas ações bastante relevantes podem ser realizadas levando-se informação – sobre o evento fisiológico do parto, sobre o cenário obstétrico, sobre as políticas públicas e as relações políticas em torno da parturição e dos direitos reprodutivos. Nada de muito diferente de ações de extensão sobre outros direitos à cidadania, como os referentes as relações étnico-raciais ou a outras lutas feministas.

Pensemos no cenário obstétrico como um sistema – nem tanto porque sociologicamente é assim que o campo se apresenta, mas porque é como sistema que o ativismo em torno dele vem tentando de alguma forma o desestabilizar (sugerindo, simultaneamente, um novo sistema). Ou como um discurso, no sentido atribuído por Foucault (2011)FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011.. O que podemos perceber (e as ativistas não deixam esquecer isto) é que faz parte deste sistema obstétrico a desinformação, na forma da alienação da mulher quanto ao processo fisiológico do parto e na crença de que este evento é um procedimento médico. Crescemos, assim, mulheres e homens, compartilhando uma espécie de mito da cegonha, através do qual somos separados da animalidade do nascer.

No currículo escolar contemporâneo, pouco aprendemos sobre o desenvolvimento gestacional e o parto (os hormônios produzidos, as fases, a diversidade cultural do evento). Quando a mulher de hoje, em nossa sociedade, engravida, ela é submetida a um acompanhamento médico composto da solicitação e leitura de exames, a aferição da pressão arterial, a pesagem e a medição da altura de fundo uterino. A conexão estabelecida entre a mãe e o bebê é fortemente mediada pelas imagens das ultrassonografias. Os aspectos emocionais, religiosos e as diferenças culturais que circundam as mulheres é completamente negligenciado. A maior parte destas mulheres, na atualidade, acaba sendo submetida a uma cesárea, muitas delas acreditando ser necessária pelo bem de seus bebês, e na qual têm, dentro da perspectiva do movimento de humanização, o seu protagonismo abdicado em favor do médico obstetra. Não seria exagero dizer que grande parte dos procedimentos recomendados e repetidos são vistos como que repousando numa base científica, quando na verdade eles se sustentam apenas discursivamente, não guardando grandes diferenças com sistemas obstétricos considerados ultrapassados.

Qual seria, então, a neutralidade de ideias hegemônicas sobre o parto e o nascimento? Qual a neutralidade da alienação e a crença na tecnologia? Ou, simplesmente, como se buscaria alguma forma de neutralidade, abstendo-se de qualquer ativismo, privando-se de compreender os processos fisiológicos e sua manipulação política? E uma vez deixando claro o seu posicionamento político, isto impediria esta pesquisadora de ter um olhar crítico sobre os discursos e poderes envolvidos no parto? Este ponto é importante, pois, fazendo par com a preocupação de que pesquisadoras do parto e do nascimento estejam fazendo ativismo ao invés de pesquisa, há a preocupação com o enviesamento dos dados coletados, preocupação justa e válida em qualquer pesquisa científica. No entanto, pesquisadoras ativistas (ou assim rotuladas) parecem ser vistas como não sendo capazes de um olhar analítico sobre os fenômenos que estudam, por exemplo, as críticas dirigidas ao movimento de humanização do parto no Brasil. Uma destas críticas é a de que o movimento de humanização, pautando-se na medicina baseada em evidências, reforçaria um discurso de cientificidade muito forte. Nesta perspectiva, propaga-se o atendimento hands off como sendo o que se sustenta cientificamente.6 6 Desde os primeiros esforços da Organização Mundial de Saúde na promoção da maternidade segura defende-se que as intervenções no parto só devem ser feitas quando houver evidência científica de que elas são necessárias.

As políticas públicas nacionais neste campo têm seguido estes preceitos, elaborando cartilhas, recomendações e legislação para que as mulheres sejam acompanhadas por quem elas desejarem, e que os bebês fiquem em contato pele a pele com a mãe, assim que nascem, sendo amamentados na primeira hora de vida. Tanto o movimento de humanização quanto as políticas públicas em saúde parecem ser carentes de uma perspectiva que dê conta da diversidade cultural. As parteiras tradicionais seguem sendo culturais demais para as políticas da saúde e muito próximas da área de saúde para serem contempladas pelas políticas culturais, permanecendo, assim, num limiar de invisibilidade (Melo; Muller; Gayoso, 2013MELO, Júlia Morim; MULLER, Elaine; GAYOSO, Daniella Bittencourt. Parteiras tradicionais de Pernambuco: saberes, práticas e políticas. Florianópolis, 2013. Anais do Seminário Internacional Fazendo Gênero 10.). Aspectos religiosos e/ou filosóficos da identidade das mulheres seguem sendo muito pouco observados, o que reflete em coisas “simples” como a dificuldade de uma mulher vegetariana conseguir se alimentar durante uma internação hospitalar, mas que abrangem aspectos muito mais profundos sobre os significados do nascimento enquanto rito de passagem (Davis-Floyd, 1984DAVIS-FLOYD, Roobie. Birth as an American rite of passage. Berkeley: University of California Press, 1984.; Gepshtein, 2010GEPSHTEIN, Yana. Happiness as an outcome of childbirth: the perspective of traditional Japanese midwives and their patients. In: Anna Mäkinen; Paul Hájek (Orgs.). Psychology of Happiness. New York: Nova Science Publishers Inc., 2010. p. 157-167.). Assim, temos pensado que, antes do problema residir em ser ou não ativista enquanto se faz pesquisa, o problema reside em não deixar claro este posicionamento político, ou não dar visibilidade para o aspecto político inerente a nossas experiências com o nascer e como pesquisadoras.

“Por que a episiotomia é uma violência obstétrica, se é feita para ajudar a mulher?”

A frase acima, proferida por uma pesquisadora que se coloca como não sendo ativista do parto, expressa um certo desconhecimento de um importante ritual do parto hospitalar: a episiotomia, o corte no períneo para alargar o canal vaginal e “facilitar” a passagem do bebê. Este procedimento é condenado por estudos bem conduzidos desde a década de 1970 e pelos manuais de atenção ao parto formulados pelo Ministério da Saúde, que se renovam constantemente. Além de nenhuma comprovação de sua eficácia, foram encontradas evidências de que a realização rotineira de episiotomia está associada a maiores riscos à saúde da mulher.7 7 Para mais informações, consultar <http://estudamelania.blogspot.com.br/2012/08/estudando-episiotomia.html>.

Contudo, em nosso cenário obstétrico, durante o pré-natal, não se fala sobre a importância de fortalecer o períneo para o parto – existem exercícios, aparelhos e massagens recomendados para isto.8 8 Não se quer afirmar com isto que o fortalecimento do períneo por meio de exercícios é algo imprescindível para o parto, mas dizer que a possibilidade da mulher exercitar o controle e domínio sobre esta área de seu corpo é pouco estimulada. Nem se permite que a mulher em trabalho de parto se movimente livremente para a escolha da posição mais confortável (a maioria dos partos e também trabalhos de parto acontece em posição de litotomia, dificultando a saída do bebê). E, para completar o quadro de risco à integridade do períneo, orienta-se os puxos, dizendo à mulher a hora de fazer força. Em geral, o motivo para a realização de um corte que irá atingir um número bem maior de tecidos (nervosos, musculares, epitelial) que uma laceração espontânea, é o perigo de uma ruptura extrema ocasionada pela passagem do bebê. A justificativa inicial formulada por De Lee, em 1915, é a de que o parto é um evento horrendo para a mulher, que deve ser abreviado o quanto for possível, com a episiotomia de rotina em todas as primíparas.9 9 Atualmente, a episiotomia é considerada uma mutilação genital feminina, recomendada pelas organizações de obstetrícia e o Ministério da Saúde apenas em situações pontuais, e por profissionais adeptas/os da Medicina Baseada em Evidências em nenhuma situação. No entanto, desde meados de 1980 existe evidência científica comprovando os males do corte vaginal, desde maiores riscos de infecção, até o dilaceramento genital, passando, inclusive, por dificuldades de retorno à vida sexual (Diniz, 2001DINIZ, Carmen Simone Grilo. Entre a técnica e os direitos humanos: limites e possibilidades das propostas de humanização do parto. São Paulo, 2001. Tese de doutorado em Medicina, Universidade de São Paulo, USP.).

No que diz respeito ao argumento da ordem do saber médico, sabe-se então que a episiotomia já não se configura mais como necessária. No entanto, essa é uma das intervenções mais praticadas na assistência obstétrica brasileira (Diniz e Chacham, 2004DINIZ, Simone; CHACHAM, Alessandra. The cut above and the cut below: the abuse of caesareans and episiotomy in São Paulo, Brazil. Reproductive Health Matters, v. 12, p. 100-110, 2004.). Assim, aventamos a possibilidade de que essa seja uma prática culturalmente enraizada, associada inclusive a uma visão machista do corpo feminino. Uma das crenças mais difundidas sobre o parto e o seu legado no corpo da mulher é o alargamento da vagina após a passagem de um bebê. Como seria de se esperar, há uma preocupação com a capacidade da mulher “dar prazer ao homem” depois de parir. Daí a expressão ponto do marido para o último ponto dado pelo médico ao suturar o corte na vagina. Acredita-se que com a episiotomia a mulher ficará “como nova”, quase como se fosse novamente virgem, e, consequentemente, especialmente atrativa para o homem.

A literatura sobre o tema mostra exatamente o contrário: que uma consequência comum é a ocorrência de disfunções sexuais, com o desconforto, dor e até impossibilidade da penetração da vagina. Marcas emocionais podem repercutir na autopercepção e na sexualidade da mulher, como alguns projetos de denúncia da violência obstétrica tem pontuado. No Brasil, essa prática ainda é perpassada pela interseccionalidade de raça e classe (Diniz e Chacham, 2004DINIZ, Simone; CHACHAM, Alessandra. The cut above and the cut below: the abuse of caesareans and episiotomy in São Paulo, Brazil. Reproductive Health Matters, v. 12, p. 100-110, 2004.), em alguns casos, sendo inclusive feita sem anestesia. A episiotomia também é uma forma de afirmação do poder do médico como protagonista principal na condução do parto. Ética e legalmente, sua realização implicaria na assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em que a mulher expresse sua concordância com o procedimento após ser informada sobre sua necessidade e riscos. Não se tem conhecimento de que isto seja feito em alguma instituição ou por algum/a obstetra. Ela é chamada de “a assinatura do médico”, e pode ser realizada proferindo-se comentários de cunho machista, irônicos (como em homenagem a determinada obstetra humanizada) ou de autoafirmação de quem faz um procedimento porque pode fazê-lo.

Em suma, a episiotomia é um procedimento doloroso, não apoiado pelas atuais evidências científicas e, sob uma perspectiva bioética e feminista, também configura-se como uma violação dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos (Diniz, 2001DINIZ, Carmen Simone Grilo. Entre a técnica e os direitos humanos: limites e possibilidades das propostas de humanização do parto. São Paulo, 2001. Tese de doutorado em Medicina, Universidade de São Paulo, USP.; Progianti; Araújo; Mouta, 2008PROGIANTI, Jane Márcia; ARAÚJO, Luciene; MOUTA, Ricardo José. Repercussões da episiotomia sobre a sexualidade. Escola Anna Nery - Revista de Enfermagem, v. 12, n. 1, p. 45-49, 2008.). Seu uso rotineiro e injustificado deixa marcas físicas e emocionais, sem indicações clínicas sólidas, feita por motivações machistas, afirmando o poder do médico obstetra como protagonista do parto. Ela é o corolário de um sistema que retira a centralidade da mulher em sua experiência de parto. Dessa forma, a pergunta feita pela pesquisadora torna-se relevante para deslindar os sentidos dados por cada um dos atores envolvidos na cena de parto no que tange, por exemplo, à violência obstétrica. No entanto, julgamos que tal questionamento pode ser problemático quando assume-se a perspectiva do saber médico hegemônico, desconsiderando as nuances presentes na discussão sobre violência, especialmente de gênero, deixando de problematizar que nem sempre as agressões não percebidas, ou não significadas como tal, deixam de existir ou ser menos danosas ou portadoras de mensagens de manutenção de hierarquias e jogos de poder.

“A mulher de classe popular vai lá e pare e volta pra casa, e nem dá bola se cortaram ou não cortaram”

A pergunta que anuncia a seção anterior foi colocada por uma pesquisadora num GT de um congresso feminista em que se discutiram três trabalhos sobre parto. A frase acima foi dita durante a discussão neste GT, fazendo uma relação entre a condição de classe da mulher e suas expectativas de parto. Seguindo este comentário, questionar a realização da episiotomia e defini-la como uma violência obstétrica seria uma reivindicação de mulheres de classe média. As mulheres de camadas populares, que experienciam partos vaginais, as que conseguem parir,10 10 Quando cruzamos as estatísticas de partos normais e cesarianas realizadas em Pernambuco, percebemos que mais de 90% dos nascidos por via vaginal foram atendidos pelo SUS. O cenário nacional não difere muito. não se importariam em ser ou não cortadas.

Nossa experiência com o Narrativas do Nascer, que se iniciou com um projeto de extensão com rodas de relatos de parto e trocas de informações com profissionais do atendimento obstétrico, nos faz acreditar que toda mulher pode refletir de forma crítica sobre suas experiências. O fato é que se uma mulher passa por um determinado tipo de atendimento e não toma conhecimento da possibilidade de ser atendida de forma diferente, ela poderá nutrir sentimentos de maior ou menor satisfação, mas não necessariamente articulará um discurso de reivindicação de um novo modelo obstétrico. Nas rodas de relatos realizadas na pesquisa do grupo Narrativas do Nascer e nos lugares em que fomos apresentar a ideia do projeto, percebemos que, embora este não fosse o objetivo inicial do grupo (pensávamos na troca de informações e em tentar perceber quais intervenções vinham sendo mais comuns e que impactos estas intervenções tinham nas percepções femininas sobre o parto) as mulheres que ouviam outros relatos repensavam suas próprias experiências.11 11 Isto tem ocorrido tanto em projetos de extensão, quanto em alguns espaços de discussão acadêmica, em que o debate acaba circulando as experiências pessoais das participantes, denotando uma grande vontade de narrar o parto.

Um curso de capacitação em Parteria Urbana12 12 O Parteria Urbana é um curso de capacitação em atendimento ao parto domiciliar, voltado para os chamados “atendentes qualificados” para atendimento obstétrico, segundo a OMS (enfermeiras/os obstetras, obstetrizes, médicas/os da família ou médicas/os obstetras). O curso idealizado por uma enfermeira obstetra/parteira conta com aulas ministradas por profissionais reconhecidas/os por sua atuação no cenário da humanização do parto e do nascimento, se alinha aos preceitos da saúde baseada em evidências e leva atendimento gratuito para mulheres de uma comunidade de baixa renda do Recife (grupo de gestantes e atendimento ao parto domiciliar para as mulheres do grupo com gestações de baixo risco que optarem por este tipo de parto). realizado em Recife também pode ser um bom exemplo para pensarmos se as reivindicações de um parto sem violência dizem respeito apenas às mulheres de camadas médias, e se parir com ou sem episiotomia não faz diferença para as mulheres de camadas populares. O curso é voltado para profissionais que já são habilitados para a assistência ao parto, nos moldes defendidos pela OMS (enfermeiras/ os obstetras, obstetrizes, médicas/os obstetras e de saúde da família) e foca o atendimento domiciliar. Para a conclusão do curso, como atividade prática, cada aluno atende cinco partos domiciliares, numa comunidade carente. As mulheres que desejam ser atendidas participam de um grupo de apoio ao parto normal, outra atividade desenvolvida pelas/os alunas/os do Parteria Urbana, este voltado para mulheres que desejam parto hospitalar ou domiciliar.

Pudemos acompanhar alguns relatos de parto feitos por mulheres que foram atendidas pelo Parteria Urbana, algumas delas tendo parido anteriormente no hospital. Um aspecto bastante enfatizado por estas mulheres é o quanto “é diferente” parir em casa. É diferente pela possibilidade da família se envolver e participar do parto (nos hospitais públicos de Recife, a Lei do Acompanhante ainda não está sendo plenamente atendida), pelo contato contínuo com o bebê e pela atenção especial recebida da equipe do atendimento (que está toda voltada para uma única mulher). Estas mulheres de camadas populares podem não ter uma articulação clara em defesa de seu direito de ter um acompanhante de sua escolha durante o trabalho de parto, parto e pós-parto. Mas ao terem esta possibilidade, elas percebem o quanto isto faz diferença para suas experiências. O mesmo com as intervenções: elas podem não saber o que é uma episiotomia, mas elas sabem a diferença de sua recuperação quando elas levam pontos ou não. A mulher de camada popular não exige um atendimento diferente até que tenha conhecimento do que é este atendimento diferente. A partir daí, o que podemos dizer, pela experiência deste projeto, vista como parte de novo campo-tema, é que a informação se propaga, de boca a boca, e outras mulheres passam a visualizar um parto humanizado como uma possibilidade para si.

Mas o que está por trás de uma colocação que situa tão bem uma reivindicação (episiotomia é mutilação genital, é violência obstétrica e não permitiremos em nossos corpos) em uma classe social (as mulheres de camadas médias) tem a ver com outros comentários recorrentes: “Esta é uma pesquisa sobre (e/ou para) camadas médias” e “O movimento de humanização é um movimento de e para camadas médias”?

É certo que temos no Brasil, majoritariamente, dois tipos bem distintos de nascer, ambos embasados pelo paradigma tecnocrático: um lado, as mulheres atendidas pelo SUS, com experiências de parto normal repletos de intervenções, quase sempre desnecessárias e violentas; de outro lado, as mulheres atendidas pela rede suplementar, com as cesarianas agendadas. A maior parte das mulheres, tanto as do parto normal traumático, quanto as das cesáreas sem indicação clínica, não questionam o atendimento recebido. Isto está na base do atendimento médico: o obstetra é quem sabe, se “ele diz que eu vou ter normal, eu vou parir”; se “ele diz que eu preciso de uma cesárea, é porque eu tenho que fazer a cirurgia”. Quem tem questionado a manipulação política dos aspectos fisiológicos do parto, denunciando a tecnocracia que tem permeado os atendimentos obstétricos na contemporaneidade, não é um grupo tão homogêneo socialmente falando, embora seja evidente que em sua maioria sejam mulheres de camadas médias. Mas não é o pertencimento a uma determinada classe social que tem sido condicionante para uma mulher se envolver num ativismo pelo parto humanizado. Antes, questões relativas a um capital cultural (Carneiro, 2011CARNEIRO, Rosamaria G. Cenas de parto e políticas do corpo: uma etnografia de práticas femininas de parto humanizado. Campinas, 2011. Tese de doutorado em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Unicamp.): mulheres escolarizadas e/ou com acesso à informação pela internet tendem a ter mais condições de se apropriarem de discurso da humanização do parto, em especial o que diz respeito a uma medicina baseada em evidências.

De qualquer forma, sendo um movimento de mulheres de camadas médias, isto tiraria a credibilidade de seus pleitos? Esta pergunta nos parece interessante de ser feita, talvez mais do que a tentativa de enquadramento social das ativistas, pois parece haver um ranço marxista bastante forte no olhar que deslegitima o ativismo das camadas médias: movimento social legítimo precisa surgir do “proletariado”? E ainda mais, sendo reivindicações que partem da classe média, estão circunscritas apenas às mesmas? Os avanços e conquistas se traduzem numa melhoria para a saúde de maneira geral, vide a adesão do Ministério da Saúde e a elaboração de planos, políticas e cartilhas que deveriam ser implementadas no SUS. Nesse sentido, o questionamento sobre ser classista ou não, se volta novamente, ao nosso ver, para o cunho moral: o tabu em que o parto está envolto.

Considerações finais

Procuramos, ao longo do artigo, demonstrar que, apesar de já existir uma grande produção acadêmica referente às transformações do cenário obstétrico brasileiro, parece-nos que esse processo se dá, em grande medida, mais amplamente nas áreas de saúde e políticas públicas. No transcurso do texto demonstramos como ainda é comum e recorrente as resistências e desvalorizações dentro do ambiente acadêmico e/ou feminista quando se trata de abordar, com o olhar das humanidades, os aspectos socioculturais relativos ao evento da parturição, trazendo exemplos observados pelas próprias pesquisadoras.

Foi assim que, numa tentativa de compreensão desses repetidos entraves que relacionamos algumas experiências resistentes/críticas ao tema com a possibilidade de, ainda hoje, a sociedade entender a vivência do parto como algo ao mesmo tempo sagrado e impuro, ao qual não se deve tocar, transformar, questionar, ou seja, da ordem do tabu. Por isso, talvez, grande parte das resistências e inflexões relatadas ao longo do texto aconteceram, como o elemento de recalque do que nunca pode ser esquecido – o duplo que tanto afasta como remete ao que se quer esquecer.

Dentro da lógica de funcionamento do tabu, o elemento empoderador que o movimento de humanização pretende ensejar e difundir seria, então, compreendido como um comportamento transgressor da ordem social, fundamentada na concepção de vulnerabilidade da parturiente/puérpera. Assim, ainda relembrando Freud, podemos compreender que as pesquisas acadêmicas e suas implicações transformadoras, apontando para uma nova forma de lidar com o parto e o nascimento parece aproximá-lo mais do termo polinésio oposto ao tabu – o noa – entendido como “habitual, acessível a todos” (Freud, 2013FREUD, Sigmund. Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e a dos neuróticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2013., p. 12) e, por conseguinte, menos hierarquizado. Neste sentido, há um forte esforço de reestabelecimento da ordem pretensamente perdida por parte do discurso hegemônico da biomedicina, que corrobora a medicalização como parte importante desse rito de passagem, fazendo emergir, assim, novas zonas de conflitos e renegociações socioculturais, como é o caso mais recente do debate sobre a violência obstétrica.

Foucault menciona que “a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terrível materialidade” (Foucault, 2011FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011., p. 8-9). Sendo assim, podemos situar, no âmbito de um mesmo sistema discursivo, tanto as práticas obstétricas hegemônicas, as críticas a essas práticas, a reflexão sobre este campo e a recepção desta reflexão pela academia e pelo feminismo. As verdades construídas sobre o tema são sempre passíveis de um viés e, trazem, em si, elementos do discurso hegemônico – aquilo que Foucault chamaria “o texto primeiro”.

Consideramos, portanto, que há um discurso hegemônico sobre o parto pautado na alienação da mulher sobre o corpo e na crença na tecnologia, ambos como requisitos para se esquivar do parto como evento que comporta descontrole e imprevisibilidade. Nesta direção, se para certas abordagens feministas o aborto representa uma ruptura radical com a natureza, oportunidade das mulheres afirmarem suas autonomias, controle sobre seus corpos e autodeterminação, o parto parece ser lido como o seu oposto, como uma permissividade quanto à ação da natureza, uma reafirmação da mulher quanto àquilo que a essencializa e a coloca numa escala inferior nas relações de gênero. Nestes termos, podemos nos questionar se situar a dominação sobre a mulher no seu próprio corpo não seria uma forma de essen-cialismo.

Para além de situar o parto como evento meramente fisiológico, amparado pelos desígnios da natureza, como parece fazer esta corrente de críticas, propomos uma leitura culturalizada do evento que abarque desde os significados da mulher, do corpo, da família, do nascimento e, lógico, do parto em si, até dimensões circunscritas na produção de saberes e verdades sobre ele. Com isto, a criação de paradigmas e o uso de técnicas podem ser situados como datados e servindo a interesses específicos, capazes de retroalimentar o discurso hegemônico e deixar margens de manobra para a articulação de discursos contra-hegemônicos.

Ademais, se faz necessário o redimensionamento da relação entre natureza e cultura para que o evento do parto possa ser visto como uma possibilidade de autodeterminação da mulher sobre seu corpo, de questionamento de padrões sociais estabelecidos e de prática de liberdade. A negação desta possibilidade ao parto e à maternidade se constitui numa forma de limitar as alternativas de parturição e de exercício da maternidade de forma politizada, invisibilizando movimentos e vivências que remam contra a corrente e buscam modos de escape à dominação. Nesta linha, parto e maternidade também podem ser experienciados como libertários e como possibilidade de assunção de uma nova escrita feminina.

  • 1
    Frisamos os Grupos de Trabalho: Partos e/ou maternidades e políticas do corpo: perspectivas antropológicas e expansão de fronteiras, na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2014; Partos, maternidade e políticas do corpo: saberes locais e experiências transnacionais, IV REA/XIII Abanne, 2013; Parto e Maternidade: profissionalização, assistência, políticas públicas, no Seminário Internacional Fazendo Gênero 7, 2006; Biotecnologias, Parto e Novas Tecnologias de Reprodução, Seminário Internacional Fazendo Gênero 4, 2000. No Seminário Fazendo Gênero 10, em 2013, dois documentários sobre parto foram apresentados na mostra audiovisual, sendo que “Violência obstétrica: a voz das brasileiras”, de Heloisa de Oliveira Salgado foi premiado em primeiro lugar. Como publicações relevantes, a Revista de Estudos Feministas, de julho de 2002, publicou o Dossiê Parto; e o espaço multidisciplinar da Revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação, com quinze artigos publicados desde 1999 até 2014, tem promovido algum diálogo entre ciências da saúde e humanas. Enquanto objeto de problematização feminista no campo da saúde, é relevante ressaltar o trabalho da Rede Nacional Feminista em Saúde, que publicou o Dossiê Humanização do Parto em 2002.
  • 2
    Para exemplificar, podemos citar Daphne Rattner e Ester Vilela.
  • 3
    Neste ínterim, vale mencionar também a dissertação de Sonia Hotimski, de 2001HOTIMSKI, Sonia. Parto e nascimento no ambulatório e na casa de partos da Associação comunitária Monte Azul: uma abordagem antropológica. São Paulo, 2001. Dissertação de mestrado em Saúde Pública, Universidade de São Paulo, USP..
  • 4
    Lembrando que o Dossiê de Humanização do Parto, elaborado pela Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, defende que a maternidade deveria ser voluntária, prazerosa, segura e socialmente amparada (Dossiê, 2002DOSSIÊ Humanização do Parto. São Paulo: Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, 2002.).
  • 5
    O que não é a realidade para todas as pesquisadoras sobre parto, embora seja difícil pensar que o olhar acadêmico sobre este campo não irá repercutir na reflexividade destas mulheres quanto a suas experiências de parturição (se e quando estas ocorrerem).
  • 6
    Desde os primeiros esforços da Organização Mundial de Saúde na promoção da maternidade segura defende-se que as intervenções no parto só devem ser feitas quando houver evidência científica de que elas são necessárias.
  • 7
  • 8
    Não se quer afirmar com isto que o fortalecimento do períneo por meio de exercícios é algo imprescindível para o parto, mas dizer que a possibilidade da mulher exercitar o controle e domínio sobre esta área de seu corpo é pouco estimulada.
  • 9
    Atualmente, a episiotomia é considerada uma mutilação genital feminina, recomendada pelas organizações de obstetrícia e o Ministério da Saúde apenas em situações pontuais, e por profissionais adeptas/os da Medicina Baseada em Evidências em nenhuma situação.
  • 10
    Quando cruzamos as estatísticas de partos normais e cesarianas realizadas em Pernambuco, percebemos que mais de 90% dos nascidos por via vaginal foram atendidos pelo SUS. O cenário nacional não difere muito.
  • 11
    Isto tem ocorrido tanto em projetos de extensão, quanto em alguns espaços de discussão acadêmica, em que o debate acaba circulando as experiências pessoais das participantes, denotando uma grande vontade de narrar o parto.
  • 12
    O Parteria Urbana é um curso de capacitação em atendimento ao parto domiciliar, voltado para os chamados “atendentes qualificados” para atendimento obstétrico, segundo a OMS (enfermeiras/os obstetras, obstetrizes, médicas/os da família ou médicas/os obstetras). O curso idealizado por uma enfermeira obstetra/parteira conta com aulas ministradas por profissionais reconhecidas/os por sua atuação no cenário da humanização do parto e do nascimento, se alinha aos preceitos da saúde baseada em evidências e leva atendimento gratuito para mulheres de uma comunidade de baixa renda do Recife (grupo de gestantes e atendimento ao parto domiciliar para as mulheres do grupo com gestações de baixo risco que optarem por este tipo de parto).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2014
  • Aceito
    12 Jan 2015
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