Acessibilidade / Reportar erro

Da maternidade como invenção de novas possibilidades de vida Análise das experiências de jovens “egressas” de serviços de acolhimento institucional

Maternity as invention of new possibilities of life Analysis of experiences of “care leavers”

Resumo:

No presente artigo procuro analisar como as experiências de maternidade e as práticas de cuidado com os filhos constituem um dos modos pelos quais jovens “egressas” de serviços de acolhimento institucional (abrigos, casas-lares) inventam/ criam novas possibilidades de vida, a partir de condições que a princípio reforçariam sua vulnerabilidade e falta de potência. A análise tem como base o material etnográfico obtido através da pesquisa de doutorado sobre desinstitucionalização realizada junto a jovens de Santa Catarina (Palhoça e Florianópolis) e Rio Grande do Sul (Porto Alegre), entre 2010 e 2013. Na abordagem adotada, busco analisar como as configurações de maternidade e as práticas de cuidado com os filhos experienciadas pelas jovens se tornam objeto da sua invenção, tendo em vista toda uma série de mudanças nos padrões de maternidade contemporâneos.

Palavras-chave:
Maternidade; Invenção; Jovens; Serviços de Acolhimento Institucional; Cuidado

Abstract:

In this paper, I examine how the experiences of motherhood and practices of child care is one of the ways in which “care leavers” invent/create new life possibilities which, ate first could reinforce their vulnerability and lack of potency. The analysis is based on ethnographic material obtained through doctoral research on deinstitutionalization conducted with the youth of Santa Catarina (Florianópolis and Palhoça) and Rio Grande do Sul (Porto Alegre), between 2010 and 2013. At the approach taken, I try to analyze how the motherhood configurations and the practices of child care experienced by young women become objects of their invention, in view of a series of changes in the patterns of contemporary motherhood.

Keywords:
Motherhood; Invention; Youth; Foster Care Services; Care

No presente artigo, procuro analisar como as experiências de maternidade e as práticas de cuidado com os filhos constituem um dos modos pelos quais jovens “egressas”1 1 A categoria “egresso” implica em uma série de problemas de ordem teórico-metodológica, uma vez que remete aos jovens como produto da institucionalização e também como grupo social. A problematização da categoria é realizada na minha tese de doutorado (Cruz, 2014). A palavra “egresso” também está próxima da expressão em inglês “care leavers”, a qual ao contrário de caracterizar os jovens a partir de um limite etário fixo, permite se interessar mais amplamente pelo período que se segue a partida do jovem da última estrutura na qual foi acolhido no âmbito da proteção da infância (Oned, 2014). de serviços de acolhimento institucional (abrigos, casas-lares) inventam/criam novas possibilidades de vida, a partir de condições que a princípio reforçariam sua vulnerabilidade e falta de potência. A análise tem como base o material etnográfico obtido através da pesquisa de doutorado sobre desinstitucionalização realizada junto a oito jovens de Santa Catarina (Palhoça e Florianópolis) e Rio Grande do Sul (Porto Alegre), entre 2010 e 2013 (Cruz, 2014CRUZ, Fernanda. Jovens em devir: invenção de novas possibilidades de vida para além da institucionalização. Florianópolis, 2014. Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.). Para essas jovens, a maternidade e as práticas de cuidado com os filhos funcionam como ponto de convergência entre as suas experiências, ainda que estas sejam revestidas de particularidades. E estas, como pretendo demonstrar, são reveladas na maneira como elas se relacionam com as políticas públicas, as novas tecnologias reprodutivas, os seus companheiros, o trabalho, etc. Ao contrário do que se poderia imaginar, essa trama complexa de relações não funciona como contexto do qual simplesmente advêm valores e limites a serem incorporados, mas sim como diferentes zonas de intensidade e potência constitutivas de um devir-mãe (Deleuze e Guatarri, 1997DE SÁ, Érica Cristina. De volta ao fogão: a (re)valorização da maternidade intensiva e do trabalho doméstico feminino. Florianópolis, SC, 2010. Trabalho apresentado no Seminário Internacional Fazendo Gênero 9. Disponível em: <www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1277348275_ARQUIVO_Trabalhocompleto.pdf>.
www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/an...
).

Tendo em vista o lugar que a experiência da maternidade ocupa na vida dessas jovens, procuro refletir sobre como este participa e se relaciona com toda uma série de mudanças nos padrões de maternidade contemporânea. Ao fazer tal movimento, instiga-me refletir sobre como elas estão “inventando” materni-dade e como esse fazer inventivo nos informa sobre o lugar que a maternidade ocupa em seus modos de vida. Este fazer inventivo, ou melhor a invenção, ao longo deste artigo, será tomada nos termos de Roy Wagner (2010)WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.. Em linhas gerais, a invenção, em Roy Wagner, não está associada às descobertas aciden-tais, mas sim a um componente positivo e esperado da vida humana. Logo, os sujeitos são inventivos não porque elaboram táticas criativas ou atos e ideias originais, mas sim em função da maneira como representam e mesmo subver-tem os dois “domínios universalmente conhecidos reconhecidos da experiência” (inato e do controle humano), em diferentes contextos e de forma contingencial.2 2 Seguindo tal perspectiva, toda a invenção dotada de significado precisa envolver tanto um “contexto convencional” quanto um “contexto não convencionalizado”, um dos quais controla o outro. Cada contexto remete a um modo de simbolização (convencional ou diferenciante) sobre o qual o simbolizador, dependendo da situação ou cultura concentrará forçosamente sua atenção. É justamente pela dialética (sem síntese) entre os dois modos de simbolização e, sobretudo, pela “obviação” de um destes que se produz a invenção (Wagner, 2010).

Mudanças nos padrões de maternidade contemporâneos: situando os discursos

As experiências de desinstitucionalização das jovens que participaram da pesquisa são fortemente marcadas pela presença das crianças. Tal presença parece dizer muito sobre essas jovens e seus modos de conduzir a vida após as experiências de institucionalização. Tanto que, para algumas, a experiência da maternidade acabou por precipitar a saída da casa-lar e também o início de uma nova vida junto com um companheiro. A maternidade é, desse ponto de vista, um lugar importante para a constituição dessas jovens enquanto sujeitos. Dessa forma, parece-me produtivo refletir sobre como as experiências de maternidade dessas jovens participam e se relacionam com toda uma série de mudanças nos padrões da maternidade contemporânea.

Em diálogo com Scavone (2001a, 2001b)SCAVONE, Lucila. A maternidade e o feminismo: diálogo com as ciências sociais. Cadernos Pagu, n. 16, p. 137-150, 2001a., é possível pensar a maternidade como um fenômeno social, que tem sido largamente marcado por desigualdades (sociais, raciais, étnicas e pela questão de gênero), as quais certamente não atingem da mesma forma todas as mulheres. Além disso, cabe ressaltar que a maternidade sempre foi um dos grandes objetos da reflexão feminista, em especial, da luta libertária das mulheres.3 3 Para Lucila Scavone (2001a) haveria três momentos nas discussões em torno da relação maternidade e feminismo no século 20: num primeiro momento, a maternidade foi reconhecida como um handicap (defeito natural), o qual confinaria as mulheres numa “bio-classe” e, nesse sentido, a recusa da maternidade seria o caminho para reverter a dominação masculina e reconhecer as potencialidades das mulheres. Em um segundo momento, as mulheres começaram a se questionar sobre a sua vontade de serem definidas sem a maternidade (negação do handicap), de maneira que a maternidade passa a ser considerada como um poder insubstituível. Em um terceiro momento, denominado “desconstrução do handicap natural”, verifica-se um reconhecimento de que não é a reprodução que determina a posição social das mulheres, mas “as relações de dominação que atribuem um significado social à maternidade”. E neste contexto, também precisam ser considerados os impactos da expansão das Novas Tecnologias Contraceptivas, as quais permitem avançar de uma “recusa circunstancial da maternidade” à “possibilidade de escolha” em relação a esta.

A possibilidade de escolha a respeito da maternidade acabou abrindo espaço para a criação daquilo que Scavone (2001b)SCAVONE, Lucila. Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 5, n. 8, p. 47-69, 2001b <www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832001000100004>.
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artt...
chama de “dilema de ser ou não ser mãe”. A maternidade como escolha é um fenômeno contemporâneo e como tal foi sendo consolidado ao longo de todo o século 20. Trata-se de um longo processo de desconstrução da associação incontornável entre sexualidade e reprodução e, consequentemente, da “equação mulher-mãe”, que abre espaço para uma “equação ainda mais complexa” da qual participam a classe médica e as tecnologias reprodutivas (Scavone, 2001bSCAVONE, Lucila. Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 5, n. 8, p. 47-69, 2001b <www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832001000100004>.
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artt...
). A “escolha reflexiva” constitui, segundo Scavone (2001b)SCAVONE, Lucila. Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 5, n. 8, p. 47-69, 2001b <www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832001000100004>.
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artt...
, um dos elementos desse período de transição em direção à consolidação de um novo modelo de maternidade e permite que as mulheres possam decidir se desejam ou não serem mães, o melhor momento para tal experiência, o número de filhos que desejam ter e também a possibilidade de “decisão ou adequação entre vida profissional e familiar” etc.

Paralelamente a tais mudanças, é importante destacar também o que Dagmar Meyer (2005)MEYER, Dagmar E. Estermann. A politização contemporânea da maternidade: construindo um argumento. Gênero, v. 6, n. 1, p. 81-104, 2005 <www.revistagenero.uff.br/index.php/revistagenero/article/view/198>.
www.revistagenero.uff.br/index.php/revis...
, inspirada por Marilyn Yalom, tem chamado de “politização do feminino e da maternidade” e que corresponde aos processos de gestão da vida de mulheres-mães. A autora observa que não há exatamente uma novidade nesse processo, (já observado durante os séculos 19 e 20), acontece que, na contemporaneidade, essa politização “é incorporada e difundida pelas políticas de estado”, as quais, em geral, assumem um forte caráter normativo do “exercício de uma determinada forma de maternidade” e dos “tipos de relação mãe-filho”. Os discursos que permeiam tais políticas acabam, segundo Meyer, contrapondo um dos mais importantes esforços das teorizações feministas: o de que “mulher e mãe são posições de sujeitos distintas” e “socialmente construídas”. Portanto, uma não se configura necessariamente como sendo a extensão da outra.

O ideal de uma “maternidade intensiva” como algo esperado da mulher também foi objeto da pesquisa realizada por Érica Cristina De Sá (2010), junto a mulheres de camadas médias no Recife. Para a autora, esse problema vai ainda mais além, porque as mulheres apontaram a “coexistência de seus diversos papéis como um fardo”, uma vez que ainda se sentem como as principais responsáveis pelo cuidado dos filhos. Essa situação se coloca como um “dilema” para essas mulheres que encontram dificuldades para conciliar suas diferentes atividades e também aponta para um movimento de “retorno” das mães para dentro de casa. Essa valorização de uma maternidade intensiva por parte dessas mulheres, além de suscitar uma série de discussões a respeito do que seria “uma regressão a um tempo de valores patriarcais”, configura o que a autora denominou de “um tabu às avessas”. Ou seja, essas mulheres “estão trocando suas profissões e suas atividades profissionais por um papel que parece ter perdido o seu ‘valor’”.

Dessa forma, ao longo do texto, gostaria de me deter sobre algumas questões importantes destacadas por Scavone, Meyer e De Sá: a desconstrução da maternidade como um destino inevitável das mulheres, a possibilidade de escolha (dimensão reflexiva) no contexto das tecnologias reprodutivas, a volta ao lar (tabu às avessas) e o processo de gestão da vida de mulheres-mães (normatização da maternidade). Tais pontos me permitem iluminar, em termos analíticos, o material etnográfico que apresento na sequência. Ao fazer tal movimento, não procuro dizer que as jovens estão alheias a todas essas dificuldades e mudanças e tampouco que estão na “contramão” do que outras mulheres estão fazendo. Instiga-me muito mais ter em vista que sim, elas estão “inventando maternidade”, e nisso não há nada de extraordinário ou de exclusivo. O desafio está em pensar de quais maneiras fazem isso e como esse fazer inventivo nos informa sobre o lugar que a maternidade ocupa em seus modos de vida.

Mas, antes, talvez seja possível pensar, a partir da proposta wagneriana, que a maternidade (assim como a cultura) encontra-se atada a um “arcabouço relacional de contextos convencionais” e que, portanto, as discussões suscitadas pelas autoras contribuem/participam, de alguma maneira, deste delineamento. No entanto, e isso imagino que aparece claramente nas experiências das jovens, esses contextos, como bem lembra Wagner (2010)WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010., nunca são “absolutamente convencionalizados (no sentido de serem idênticos para todos aqueles que os compartilham) e, por isso mesmo, sempre apresentam “pontas soltas” e estão em “processo de mudança”. Isso significa que sempre haverá um espaço para os sujeitos “criarem” a partir dessas “pontas”; uni-las, talvez, a seu próprio modo. Ou seja, esses contextos “podem ou não ser aprendidos conscientemente, no sentido de “regras” (Wagner, 2010WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010., p. 81), mas independentemente disso, implícita ou explicitamente, eles estarão sempre presentes nas ações das jovens que foram objeto da pesquisa. Para o presente artigo selecionei as experiências de quatro jovens: Virgínia, Clarissa, Estella e Isabelle.4 4 Por uma questão ética, os nomes das jovens foram trocados.

Maternidades: questões de reconhecimento, escolha e honra

A gestação da sétima filha da Virgínia foi, segundo os médicos, de alto risco, pois ela tem uma cardiopatia congênita que nunca havia sido tratada. No entanto, ela não fez acompanhamento no hospital, só esteve internada uma única vez antes do parto porque havia passado mal em casa. No hospital, os médicos, segundo a jovem conta, ficaram surpresos pelo fato de ela já ter seis filhos e nunca ter tomado conhecimento do problema cardíaco. Na verdade, ela nem deveria ter mais filhos, conforme foi alertada na ocasião da internação. Mas ela não sabia, justamente porque nunca havia feito nenhum tipo de acompanhamento das gestações anteriores. Na única vez em que ficou internada, logo acabou voltando para casa por ter recebido alta, talvez dos médicos ou talvez dela mesma, pois, afinal, tinha que “cuidar dos outros filhos”. A “equação mulher-mãe” é algo incontornável para a Virgínia, a maternidade lhe fornece elementos importantes para aquilo que ela pode “vir a ser”, em especial sobre seu devir-mulher (Deleuze e Guatarri, 1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir Imperceptível. In: Gilles Deleuze; Félix Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997. p.11-113.). E quando a jovem diz que deve deixar o hospital porque precisa cuidar dos outros filhos, ela procura sinalizar não uma sobreposição (ou mesmo uma hierarquização) de posições de sujeito (a mãe em relação à mulher): em termos de cuidado, os filhos estão em primeiro lugar, antes mesmo dela própria. Ao falar sobre essa preocupação com os filhos (que ficaram em casa sem os seus cuidados), talvez seja possível pensar que a realização intensiva da primeira posição de sujeito (mãe), acaba por realizar, na mesma intensidade, a segunda (mulher).

Em relação à experiência da Virgínia, é possível pensar que sua postura e suas ações no que diz respeito à maternidade diferem em alguns aspectos das convenções “correspondentes às expectativas sociais”. A motivação para as ações da jovem não está na preocupação em conhecer e tampouco em controlar os processos, no sentido de prever eventos futuros e tão logo buscar uma solução para eles. Ela não faz projetos, sobretudo porque não pretende controlar, racionalizar os eventos cotidianos. O que dizer de sete gestações sem acompanhamento pré-natal, sem ultrassom e todas as técnicas que mais comumente são colocadas à disposição das mulheres, para controlar e prever os aspectos da natureza, para antecipar e prever possíveis problemas no decorrer da gestação? Desprezar ou fugir desse tipo de controle certamente, em se tratando das sociedades ocidentais, soará como negligência com o bem-estar da mãe e do filho. Agir dessa forma acarreta riscos, os quais, de alguma maneira, a Virgínia reconhece, em especial quando diz que o “problema é a hora do parto”, já que criar os filhos é tarefa fácil. A própria descoberta da gestação se dá por outro lugar que também não é o das técnicas e do exame, mas sim de um conhecimento sobre o próprio corpo. “Eu sei que eu tô grávida, quando eu fico doente. Antes de saber que eu tava grávida, fiquei de cama, doente, com febre e, logo depois, descobri que eu tava grávida”.

Depois da breve internação hospitalar, a Virgínia só retornou ao hospital para o parto. A filha, ao contrário da mãe, não nasceu com nenhum problema cardíaco e para isso a mãe orgulhosa tinha uma explicação: “filho de pobre não tem problema para nascer”. A sétima filha da Virgínia nasceu de parto normal e mais uma vez ela acabou adiando a oportunidade de fazer a cirurgia de laqueadura. Deve-se pontuar que a preocupação com a “dimensão reflexiva” ou com a possibilidade de escolha no que diz respeito à maternidade só emerge na vida da Virgínia a partir da conversa que ela tem com a Clarissa5 5 A Virgínia e a Clarissa são “egressas” da mesma casa-lar, e a realização da minha pesquisa proporcionou uma reaproximação das duas jovens. (a postura desta, por vezes, se constitui como “motivação” para a ação da Virgínia), depois da gestação da sua sétima filha. Mas isso porque a maternidade para a Virgínia não é uma questão de escolha, trata-se de algo inato, que lhe confere um “poder insubstituível” e “um sentido” para a sua vida. Foi justamente pensando em não ter mais filhos (e em poder escolher sobre o número de filhos que deseja e pode ter), uma vez que a terceira gestação não fora esperada, que a Clarissa “foi atrás” da possibilidade de fazer uma cesariana seguida da cirurgia de laqueadura.

Quando a Clarissa diz que “foi atrás” é porque a conquista desse direito situou-a diante da tensão permanente (e indissolúvel) entre as demandas dos sujeitos e aquelas próprias das políticas públicas. O nascimento do terceiro filho da Clarissa coloca em evidência tal tensão, sobretudo a partir da perspectiva das diferentes temporalidades que são acionadas nessa relação. Se, por um lado, o uso das tecnologias reprodutivas (neste caso, a laqueadura) lhe possibilita escolher quantos filhos deseja ter, por outro, a sua experiência evidencia a complexidade da equação contemporânea mãe-mulher-médico (e/ou tecnologias reprodutivas). Há certa ilusão na “escolha”, sobretudo no que diz respeito a quem de fato esta cabe. A sua escolha por ter três filhos e por “interromper definitivamente a opção da maternidade” (Scavone, 2001aSCAVONE, Lucila. A maternidade e o feminismo: diálogo com as ciências sociais. Cadernos Pagu, n. 16, p. 137-150, 2001a., p. 144) é posta em xeque pela prática médica.

O terceiro filho da Clarissa nasceu na manhã do dia 09 de abril de 2013, na Maternidade Carmela Dutra, em Florianópolis. Na verdade, a jovem já tinha ido para o Hospital Regional da Palhoça no dia 03, mas, como ela mesma disse tinha “levado azar”: “tinha sete cesarianas, daí me entupiram de remédio e tive que voltar para casa”. Desde o princípio da gestação, a Clarissa já havia decidido, juntamente com o seu companheiro, fazer a laqueadura. Acontece que no dia em que ela foi até o Hospital Regional, já com muitas contrações, ela foi medicada e mandada de volta para casa, pois foi informada de que os médicos de plantão já haviam feito a “cota de cesarianas do dia”. Além da medicação, no Regional, ela também ouviu a seguinte explicação: “Não, mãe, não está na hora, ainda não chegou o tempo. Só na outra semana”. O médico que acompanhou sua gestação dizia justamente o contrário: sim, ela já estava no tempo e eles já poderiam ter feito a cesariana.

Mesmo diante da primeira negativa do hospital, a Clarissa resolveu tentar mais uma vez. Novamente, ao buscar ajuda no Regional, recebeu a mesma resposta de que não estava na hora e que ficaria para a próxima semana. Os médicos pretendiam medicá-la novamente e encaminhá-la para casa, mas, dessa vez, ela se negou e foi buscar ajuda na Maternidade Carmela Dutra, em Florianópolis. Neste hospital, distante da sua casa, ela finalmente conseguiu realizar a cesariana. No fim desta, novamente foi questionada sobre sua decisão de fazer a laqueadura ainda tão jovem. Nisso, ela respondeu que estava certa da sua decisão pois, para ela, três filhos já era mais do que o esperado. Mesmo diante de tudo o que ela havia passado para conseguir a cirurgia, o seu investimento tinha “valido a pena”, sobretudo quando tal reflexão é feita pela própria jovem em relação à experiência da Virgínia. “Viu, quando a gente vai atrás, tem como fazer, sim”.

Para a Virgínia, o cuidado com os filhos e a maternidade passam por outro lugar que não é exatamente o do conhecimento das políticas públicas e da consequente vigilância em relação à execução destas. Trata-se de outra maneira de lidar com essas questões que, no entanto, não pode ser desconsiderada e tampouco diminuída, sobretudo quando equiparada com a experiência da Clarissa e seu modo de conduzir o cuidado com os filhos. Mas é importante ter em vista que esse cuidado com os filhos passa também pela compreensão que a Virgínia tem acerca da sua própria condição. Ou, mais exatamente, onde parece haver apenas vulnerabilidade e pobreza, para ela haveria possibilidade – em especial quando posta em relação com outras pessoas que, segundo ela, estariam em “pior” situação. Isso é possível observar no seu relato sobre o período em que esteve no hospital para ganhar sua sétima filha. A primeira noite no hospital, a jovem passou sentada em uma cadeira, por falta de leito. Somente na segunda noite é que a passaram para uma poltrona mais confortável. Embora estivesse grávida e com problema cardíaco, ela sentiu vergonha de reclamar daquela situação, como ela mesma reflete. “Eu vi tanta gente em situação pior que a minha. Eu estava na parte onde só tinha gente com problema no coração”. O fato de estar grávida da sétima filha a colocava numa situação privilegiada em relação àqueles que estavam ali hospitalizados apenas por motivo de doença. Enquanto relata essa situação, ela retira uma maçã de dentro da bolsa e lembra-se de ter ganhado esta também no hospital. “Eu não sei o que pensam, só porque a gente tem sete filhos, que sei lá, que a gente passa fome.”, lembra sorrindo da situação de desconforto vivenciada durante a hospitalização. “Todo mundo ficava me dando comida, mesmo os outros pacientes e, como eu não comia, eu acabei colocando dentro da bolsa para trazer para as crianças”. Tendo em vista a compreensão que a jovem tem da maternidade, como uma experiência que merece reconhecimento e é algo esperado em relação às mulheres, a postura crítica dos médicos sobre sua condição lhe causa estranhamento. Ter sete filhos não era, para ela, motivo de vergonha ou preocupação, era sinal de que ela estava fazendo o seu melhor, como mãe e mulher.

A relação entre as experiências da Virgínia e da Clarissa de cuidado com os filhos é interessante não pela oposição que, a princípio, parece revelar, mas sim porque elas nos informam os lugares (valores, condições, afetos) por onde passa tal cuidado e o acento que cada uma lhe confere em cada situação. O mais importante é como cada jovem se vê nas situações em que os filhos lhes demandam o seu cuidado e a sua proteção. O cuidado, para a Virgínia, não passa pela garantia dos direitos; no entanto, este não é passível de comparação, de substituição: ele é exclusivo, só ela sabe ser mãe daquele jeito, ninguém cuida melhor do que ela. Quando fui visitar a jovem depois de um mês do nascimento da filha, logo que entrei na casa, perguntei pela recém-nascida. Ela explicou que a filha estava na vizinha da casa em frente à sua. A vizinha passa, segundo os relatos da Virgínia, praticamente todos os dias com a menina: ela alimenta, dá roupas e leva para passear. Num primeiro momento, parece que a situação havia se tornado confortável para a jovem que tinha ainda outros três filhos pequenos que ficavam com ela em casa o dia inteiro. No entanto, ela revela que não gosta que a filha vá para a casa da vizinha, prefere mesmo que a recém-nascida fique em casa sob os seus cuidados. Sorrindo, ela confessa que “filho, ninguém cuida como a gente”.

Se ninguém cuida da sua filha como ela mesma, no seu ponto de vista, a dedicação às crianças precisa ser em tempo integral. O cuidado com os filhos não parece combinar com o trabalho fora de casa. Tanto que ela se preocupa em marcar a diferença entre o seu cuidado para com os filhos e o das vizinhas. Por isso, ao menos na minha presença e na da Clarissa, a Virgínia faz questão de enfatizar a falta de cuidado de algumas mães da vizinhança que trabalham fora. “A mãe desse aí não tá nem aí, ela vai trabalhar e deixa o filho com a cunhada eu acho, nem sei se tem alguém com ele hoje”. No entanto, embora demarque essa diferença, é importante pontuar que os filhos da Virgínia também têm o hábito de brincar na rua, mas, de alguma maneira, para ela existia uma diferença, e essa está, ao que me parece, no fato de ela não sair de dentro de casa. Situação esta que, para a jovem, nunca foi tomada como um “tabu”, visto que tal escolha é central na constituição daquilo que ela pode vir a ser enquanto mãe.

Os filhos da Clarissa, ao contrário, conforme ela observa, não foram criados acostumados com aquela realidade do bairro. Para ficar com os filhos, a Clarissa não abriu mão do seu trabalho nem de ganhar o seu dinheiro para poder sustentar os filhos, como fez desde os seus 15 anos. No entanto, para conciliar trabalho e cuidado com os filhos, a Clarissa também deseja, assim como a Virgínia, que os filhos estejam sempre por perto. Ao contrário da amiga, porém, a Clarissa não deixa os filhos brincarem na rua: quando não estão na escola, os dois passam boa parte do dia e também da noite no bar da família, ajudando os pais nas rotinas de trabalho do estabelecimento. Mesmo o terceiro filho da Clarissa, ainda bebê, passa boa parte do tempo no bar, ainda que com a mãe. Aos poucos, ele vai se acostumando com os horários de funcionamento do estabelecimento, com a música alta e a circulação de pessoas. Para a Clarissa, essa foi a maneira de conciliar o trabalho com o cuidado dos filhos e também de poder protegê-los de experiências semelhantes às vivenciadas pela jovem durante sua vida. “Eu conheci muita coisa ruim da vida, mas eu evito ao máximo os meus filhos de conhecer essa realidade”.

Para a Estella, contrariamente ao que sucedeu com as outras jovens, a experiência da maternidade implicou o retorno para a casa da mãe. Antes da gestação, ela estava morando sozinha e trabalhando, mas, com a chegada do bebê, além de não poder trabalhar, ela não tinha quem a ajudasse com o filho. A jovem guarda até hoje a pulseirinha colocada no braço do bebê na maternidade, ali estava a prova de que ele era grande e que a jovem, como disseram as enfermeiras, foi uma “mãe corajosa”. Segundo a mãe da Estella, “não quiseram fazer cesárea nela, então ela teve que encarar o parto normal”. Devo lembrar, ainda que brevemente, que o parto (nas diferentes modalidades que esse pode assumir), para estas jovens, ao contrário do que vem sendo observado junto às mulheres de classe média e alta, ainda não se constitui propriamente como uma escolha. Tendo em vista todo um movimento a fim de pensar a humanização do parto, para essas jovens, o parto normal permanece como a única possibilidade. Para além da experiência da Estella, essa questão também aparece claramente nas dificuldades enfrentadas pela Clarissa para conseguir realizar uma cesariana (seguida de laqueadura) na rede pública de saúde e o medo da Virgínia para ganhar seu bebê, mesmo em se tratando da sétima gestação. Seria possível pensar que nesse momento das políticas públicas (de redescoberta do parto em casa etc.), as jovens estariam fazendo um movimento contrário, de busca pela intervenção cirúrgica (cesárea)? A invenção ou reinvenção do parto, para elas, passa pelas técnicas, por uma concepção de um parto sem dor?

No celular da Estella estão as fotos do bebê desde as suas primeiras horas de vida até os dias mais recentes. No aparelho, também havia fotos do pai do bebê, com o qual ela esperava constituir sua família. Ao longo dos relatos da jovem, é possível perceber certa frustração pelo fato de este não desejar assumir mãe e filho. Tanto que a falta de comprometimento por parte do pai motivou a Estella a entrar na justiça para garantir não só o pagamento da pensão, mas, sobretudo, os direitos do seu filho. Para a jovem, a explicação para a posição que o pai do seu filho assume não se justifica pelo fato de ele ainda não ter amadurecido a ideia da paternidade. Trata-se de ter responsabilidade, em especial aquela produzida pelas relações de sangue. O filho era dele, afirma a Estella. Se fosse preciso, provaria, a partir de um teste de DNA, à família dojovem a “verdade biológica” que eles não queriam aceitar (Fonseca, 2002FONSECA, Claudia. A vingança de Capitu: DNA, escolha e destino na família brasileira contemporânea. In: Cristina Bruschini; Sandra Unbehaum (Orgs.). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 267-294.). Como mulher, teria coragem suficiente para dizer e provar que o filho é dele. O teste de DNA, para a jovem, não estava relacionado a uma questão financeira, mas sim à sua “honra feminina”, uma vez que este só viria a confirmar aquilo que ela, enquanto mulher, já havia sentenciado (Fonseca, 2002FONSECA, Claudia. A vingança de Capitu: DNA, escolha e destino na família brasileira contemporânea. In: Cristina Bruschini; Sandra Unbehaum (Orgs.). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 267-294.): “A questão é a seguinte: ele sabe que tem um filho. Ele sabe que é sangue dele, ele sabe que foi ele que fez. Estavam falando de DNA, eu cheguei e falei: eu não vou correr de um exame de sangue. Eu sou bem mulher para bater no peito e dizer: o filho é teu!”

A construção de diferentes concepções de cuidado

Quando as jovens se veem ocupando o lugar de “mãe”, da figura materna, procuram reinventar este papel, sobretudo ao se diferenciarem das experiências de “cuidado” materno experimentado na infância, marcada pela intervenção do Estado e, consequentemente, pela institucionalização. Tanto que, como é possível observar nos relatos das jovens, o Conselho Tutelar, que anteriormente havia marcado as suas experiências de infância e adolescência, num contexto de desinstitucionalização, volta a se presentificar, não só como forma de garantir os direitos das suas crianças, como também, especialmente, como uma espécie de entidade que, ao exercer vigilância sobre as famílias, se torna uma referência de cuidados e de normatização, especialmente sobre o que seria “uma boa mãe”. É como se as jovens (não todas) estivessem familiarizadas com a linguagem das políticas de proteção – principalmente com a forma de atuação dos Conselhos Tutelares – e por isso pudessem subverter o papel deste agente, buscando maneiras de proteger seus filhos da intervenção Estatal.

A figura do Conselho Tutelar é invocada, por vezes, pela mãe da Estella para chamar atenção da filha para uma possível intervenção de conselheiros, devido às brigas travadas entre a jovem e o pai do seu filho. “Vocês ficam de briga, qualquer hora dessas o conselho tutelar vai te tirar o menino”. E a jovem respondeu de maneira muito positiva: “Meu filho é meu, ninguém vai tirar ele de mim nunca. Eu quero ser uma boa mãe para o meu filho, quero ser a melhor amiga dele, ele vai poder contar tudo e perguntar tudo para mim”. Nisso a mãe da jovem argumentou: “Mas vocês também sempre puderam conversar tudo comigo”. “Eu sei, mãe”, disse a Estella, “não estou falando isso, estou dizendo que eu quero ser a melhor amiga do meu filho”. Ao dizer isso, talvez seja possível pensar que a Estella está procurando romper com um pretenso “ciclo” de intervenção do Estado sobre sua família. Além disso, é interessante observar que, se, por um lado, o Conselho Tutelar pode se configurar como um lugar de ameaça e de vigilância na relação das mães com seus filhos, sobretudo em termos de vínculo, por outro, a jovem pode tomar a experiência de ser mãe como “invenção” e, portanto, como possibilidade de desmarcar aquilo que é assumido pela mãe como “convenção” (intervenção do Conselho Tutelar).

Importante observar é que se, nas experiências prévias ao acolhimento institucional, o Conselho Tutelar figurava, por vezes, no ponto de vista das jovens, como o próprio dispositivo de proteção à infância e à adolescência, sobretudo por sua atividade de demarcar o início da institucionalização.6 6 Conforme o levantamento realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome executado em parceria com a Fiocruz, 52,9% dos encaminhamentos aos serviços de acolhimento, no país, são feitos pelo Conselho Tutelar. Esse dado ajuda a compreender o lugar do Conselho nas experiências de institucionalização e desinstitucionalização das jovens. Em especial, o fato de este, por vezes, assumir essa centralidade, funcionando como uma espécie de entidade que encarna o conjunto das políticas de proteção. Num contexto de desinstitucionalização, essa espécie de entidade, o Conselho Tutelar, permanece sendo acionada em diferentes situações, mas, sobretudo, na relação de cuidado com os seus filhos. Em certa ocasião, a Clarissa foi em busca de vaga na escola para o filho. E entre as instituições procuradas para conseguir ajuda estava o Conselho Tutelar. Diante da resistência por parte da Secretaria de Educação e da própria escola, a jovem faz uso do poder de vigilância do Conselho Tutelar para negociar com as outras instituições estatais. O Conselho, que, até então, fazia a vigilância das famílias, como bem sabia a jovem, poderia ser também o lugar de denúncia dessas instituições que entravariam o seu compromisso de manter os filhos na escola, pelo qual ela mesma poderia ser responsabilizada (inclusive pelo próprio Conselho Tutelar). Era uma questão de direitos:

Eu quero que o meu filho estude lá, eu tenho direito. Se vocês não me arrumar uma vaga, eu vou no Conselho Tutelar e vou arrumar vaga. Eu fui no Conselho Tutelar e quando eu cheguei lá eu disse para eles: se vocês realmente não arrumarem a vaga, eu vou para a imprensa. E eles me disseram que não, que por conta da lei, tinha um limite de vagas e este estava estourando. Eu disse: não, infelizmente, eu digo para vocês, eu preciso trabalhar e meu filho precisa estudar.

Na experiência da Isabelle, assim como para a Clarissa, é o papel de vigilância e de “lugar fundado no restabelecimento das convenções” do Conselho Tutelar que é acionado nos relatos da jovem, quando o assunto é o cuidado com os filhos. O fato de ter de cuidar de seis crianças coloca algumas dificuldades à Isabelle, quando esta precisa sair de casa, sobretudo pelo fato de não ter com quem deixá-los durante sua ausência. Quando precisa sair de casa, ela pede para o seu filho maior ficar “reparando os irmãos”. Em uma dessas situações, ela recebeu inesperadamente a visita do avô paterno das crianças que a repreendeu por tal atitude, e fez uso do nome do Conselho Tutelar para reforçar sua ameaça, como lembra a jovem: “Ele disse: ‘ah, porque tu deixou as crianças sozinhas, eu já estava levando elas para o Conselho Tutelar’”. A jovem acabou discutindo com o ex-sogro, argumentando que havia se afastado de casa por necessidade. “Mas é uma coisa assim rápida, não é assim de chegar e demorar. Porque eu sei que eles são crianças, que eles são pequenos ainda, precisam de assistência”. A resposta que a jovem dá, a princípio somente ao avô dos seus filhos, pode ser pensada, na verdade, de maneira mais ampla, tendo em vista as políticas de proteção na figura do Conselho Tutelar. O seu argumento é construído a partir do reconhecimento de que deixar os filhos sozinhos em casa pode parecer falta de responsabilidade, mas se ela precisa fazer isso, não o faz de maneira negligente, é por necessidade. Talvez seja interessante pensar que essa argumentação está relacionada a um receio, por parte da jovem, de algum tipo de intervenção do Estado na sua família e no cuidado com os filhos. Ela pretende agir conforme as convenções próprias das políticas públicas, inclusive nos termos que usa para falar sobre a maneira de cuidar dos filhos, tais como dar assistência.

Num contexto de desinstitucionalização, também é importante pensar que a intervenção por parte do Estado, experienciada pela Isabelle durante a infância, permitiu-lhe adquirir uma espécie de competência para agir conforme o registro da “convenção”, um “saber fazer” aquilo que é esperado pela “sociedade”. Tanto que, para a jovem, a mãe que não “sabe fazer”, “não sabe educar”, acaba por perder os filhos. O parâmetro do cuidado vem da sua experiência de infância atravessada pelas políticas de proteção e seus intoleráveis. Nesse sentido, o Conselho Tutelar novamente encarna o conjunto das políticas de proteção e se torna, para a jovem, a própria política, fornecendo os marcadores em termos do que é tolerável: “dar uma chineladinha” e não maltratar e/ou espancar; não deixar os filhos sozinhos, é preciso lhes dar assistência, como explica a Isabelle, tendo em vista sua própria experiência: “De espancar e essas coisas assim, eu já passei por isso e parei muito em Conselho Tutelar, então, eu não quero isso para os meus filhos. Então, se eles estiverem errados, uma chinelada assim leve não vai matar. Não é coisa que tu vai parar no Conselho Tutelar”.

Considerações finais

A análise dos relatos das experiências das jovens evidenciou que o cuidado com os filhos e também as maneiras pelas quais elas vivenciam a maternidade se constituem como objeto da sua invenção/criação de novas possibilidades de vida. Esta como procurei mostrar, se faz presente na maneira como as jovens se relacionam com as políticas assistenciais e de saúde, ora buscando os direitos dos filhos, ora subvertendo as tentativas de controles biopolíticos. Tendo isso em vista, busquei pensar as experiências de maternidade das jovens em relação às mudanças nos padrões de maternidade contemporâneos. Nesse movimento, pude perceber que a maternidade, para a Virgínia e a Isabelle, se constitui como um “poder insubstituível”, como o “ideal da realização feminina”. Para as jovens, as posições de sujeito (mulher) se realiza em plenitude em função de outra posição (mãe). E nesse sentido, as duas jovens correspondem às expectativas sociais (em termos de políticas públicas) de que as duas posições de sujeito (mulher-mãe) sejam a mesma. Do ponto de vista das políticas, elas estariam seguindo as convenções, mas imediatamente, as contrainventam, sobretudo a Virgínia, quando, ao tentar escapar dos controles biopolíticos impostos por estas, acaba deixando de acessar os serviços assistenciais e da rede de saúde.

Por outro lado, ao buscar pelos seus direitos (somente depois da gestação do seu terceiro filho), no que diz respeito à possibilidade de escolha posta pelas novas tecnologias reprodutivas (laqueadura), a Clarissa pôde inventar a mater-nidade, na medida em que subverteu a “equação mulher-mãe” que as políticas públicas pretendem prescrever como convenção. Ao encontrar dificuldades para a realização da cirurgia de laqueadura, ela faz emergirem os paradoxos inerentes a tais tecnologias. Se, por um lado, estas se constituem como uma possibilidade, no sentido de que as mulheres podem através destas decidir de forma mais reflexiva sobre a maternidade (número de filhos que desejam ter, por exemplo), por outro, elas podem mesmo se constituir como uma impos-sibilidade, na medida em que se tornam inacessíveis para algumas mulheres. É também no sentido de problematizar a “equação mulher-mãe”, que se pode pensar a experiência de maternidade da Estella. Ao buscar o reconhecimento da paternidade do seu filho através do teste de DNA, a jovem não queria apenas garantir uma condição financeira mais favorável, mas sim reforçar sua honra feminina. Além de ser mãe, ela desejava ser reconhecida como mulher.

Como foi possível observar, as jovens também criam novas possibilidades de vida, a partir da relação entre maternidade e trabalho. Para além do dilema entre trabalhar fora e/ou ficar em casa cuidando dos filhos, na experiência da Clarissa é possível perceber a criação de outros arranjos que acaba por tornar complexa a equação trabalho-maternidade. Para ela, o bar é o lugar para realizar aquilo que ela sabe e gosta de fazer (trabalhar com alimentação). Por outro lado, o bar é também o lugar de cuidado para com os filhos. Para a Virgínia, a Isabelle e, em alguma medida, a Estella, o exercício intensivo da maternidade passa pela decisão de não trabalhar fora e também de se ocupar integralmente com o cuidado dos filhos. Mas o que essa postura significa, no momento em que estão se redefinindo os padrões femininos contemporâneos e, cada vez mais as mulheres assumem dupla ou tripla jornada para ocupar um espaço no mercado de trabalho? O que essa escolha por parte dessas jovens nos informa sobre as maneiras pelas quais constroem seus modos de vida? Parece claro que não se trata do movimento romantizado de “volta ao lar” observado entre as mulheres de classe média. O que elas estão fazendo tampouco é uma “volta” (para elas, ficar em casa não é um “tabu às avessas”). Tal escolha é baseada numa concepção de feminino tradicional (associada ao ser mãe), que lhes permite se diferenciar de outra, que tem se tornado uma convenção (ao menos do ponto de vista dos debates feministas): as mulheres devem buscar sua independência e liberdade.

As jovens, em suas práticas de cuidado, também procuram se distanciar das experiências de maternidade das suas mães, as quais foram marcadas pela intervenção do Estado e pelo acolhimento institucional. Ao conduzirem suas experiências de cuidado dessa forma, elas desmarcam aquilo que tem sido tomado como convenção, no que concerne às classes populares: o ciclo da intervenção estatal. Essa possibilidade de desmarcar aquilo que é tomado como “convenção”, quanto às políticas de proteção, emerge, num contexto de desinstitucionalização, na presença do Conselho Tutelar, o qual permanece funcionando como uma espécie de entidade, sendo percebido pelas jovens como a representação máxima do campo de proteção e de seus operadores. O Conselho permanecerá se presentificando no cuidado que as jovens procuram ter para com os seus filhos, em especial por marcar certas expectativas sociais em termos daquilo que seria uma competência para exercer a maternidade. Mas as jovens também acabam por subverter os usos mais convencionais do Conselho, fazendo dele um meio para aumentarem sua própria potência no que diz respeito à vigilância/controle de outras instituições que deveriam zelar pelos direitos dos seus filhos.

  • 1
    A categoria “egresso” implica em uma série de problemas de ordem teórico-metodológica, uma vez que remete aos jovens como produto da institucionalização e também como grupo social. A problematização da categoria é realizada na minha tese de doutorado (Cruz, 2014CRUZ, Fernanda. Jovens em devir: invenção de novas possibilidades de vida para além da institucionalização. Florianópolis, 2014. Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.). A palavra “egresso” também está próxima da expressão em inglês “care leavers”, a qual ao contrário de caracterizar os jovens a partir de um limite etário fixo, permite se interessar mais amplamente pelo período que se segue a partida do jovem da última estrutura na qual foi acolhido no âmbito da proteção da infância (Oned, 2014ONED. L’accompagnement vers l’autonomie des jeunes sortant du dispositif de protection de l’enfance. Paris: Oned, 2014 <http://www.laurent-mucchielli.org/>.
    http://www.laurent-mucchielli.org/...
    ).
  • 2
    Seguindo tal perspectiva, toda a invenção dotada de significado precisa envolver tanto um “contexto convencional” quanto um “contexto não convencionalizado”, um dos quais controla o outro. Cada contexto remete a um modo de simbolização (convencional ou diferenciante) sobre o qual o simbolizador, dependendo da situação ou cultura concentrará forçosamente sua atenção. É justamente pela dialética (sem síntese) entre os dois modos de simbolização e, sobretudo, pela “obviação” de um destes que se produz a invenção (Wagner, 2010WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.).
  • 3
    Para Lucila Scavone (2001a)SCAVONE, Lucila. A maternidade e o feminismo: diálogo com as ciências sociais. Cadernos Pagu, n. 16, p. 137-150, 2001a. haveria três momentos nas discussões em torno da relação maternidade e feminismo no século 20: num primeiro momento, a maternidade foi reconhecida como um handicap (defeito natural), o qual confinaria as mulheres numa “bio-classe” e, nesse sentido, a recusa da maternidade seria o caminho para reverter a dominação masculina e reconhecer as potencialidades das mulheres. Em um segundo momento, as mulheres começaram a se questionar sobre a sua vontade de serem definidas sem a maternidade (negação do handicap), de maneira que a maternidade passa a ser considerada como um poder insubstituível. Em um terceiro momento, denominado “desconstrução do handicap natural”, verifica-se um reconhecimento de que não é a reprodução que determina a posição social das mulheres, mas “as relações de dominação que atribuem um significado social à maternidade”.
  • 4
    Por uma questão ética, os nomes das jovens foram trocados.
  • 5
    A Virgínia e a Clarissa são “egressas” da mesma casa-lar, e a realização da minha pesquisa proporcionou uma reaproximação das duas jovens.
  • 6
    Conforme o levantamento realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome executado em parceria com a Fiocruz, 52,9% dos encaminhamentos aos serviços de acolhimento, no país, são feitos pelo Conselho Tutelar. Esse dado ajuda a compreender o lugar do Conselho nas experiências de institucionalização e desinstitucionalização das jovens. Em especial, o fato de este, por vezes, assumir essa centralidade, funcionando como uma espécie de entidade que encarna o conjunto das políticas de proteção.

Referências

  • CRUZ, Fernanda. Jovens em devir: invenção de novas possibilidades de vida para além da institucionalização. Florianópolis, 2014. Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.
  • DE SÁ, Érica Cristina. De volta ao fogão: a (re)valorização da maternidade intensiva e do trabalho doméstico feminino. Florianópolis, SC, 2010. Trabalho apresentado no Seminário Internacional Fazendo Gênero 9. Disponível em: <www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1277348275_ARQUIVO_Trabalhocompleto.pdf>.
    » www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1277348275_ARQUIVO_Trabalhocompleto.pdf
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir Imperceptível. In: Gilles Deleuze; Félix Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997. p.11-113.
  • FONSECA, Claudia. A vingança de Capitu: DNA, escolha e destino na família brasileira contemporânea. In: Cristina Bruschini; Sandra Unbehaum (Orgs.). Gênero, democracia e sociedade brasileira São Paulo: Editora 34, 2002. p. 267-294.
  • MEYER, Dagmar E. Estermann. A politização contemporânea da maternidade: construindo um argumento. Gênero, v. 6, n. 1, p. 81-104, 2005 <www.revistagenero.uff.br/index.php/revistagenero/article/view/198>.
    » www.revistagenero.uff.br/index.php/revistagenero/article/view/198
  • ONED. L’accompagnement vers l’autonomie des jeunes sortant du dispositif de protection de l’enfance Paris: Oned, 2014 <http://www.laurent-mucchielli.org/>.
    » http://www.laurent-mucchielli.org/
  • SCAVONE, Lucila. A maternidade e o feminismo: diálogo com as ciências sociais. Cadernos Pagu, n. 16, p. 137-150, 2001a.
  • SCAVONE, Lucila. Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 5, n. 8, p. 47-69, 2001b <www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832001000100004>.
    » www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832001000100004
  • WAGNER, Roy. A invenção da cultura São Paulo: Cosac Naify, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2014
  • Aceito
    15 Jan 2015
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Av. Ipiranga, 6681 - Partenon, Cep: 90619-900, Tel: +55 51 3320 3681 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: civitas@pucrs.br