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O Mediterrâneo enquanto metáfora da mestiçagem: Novas leituras sobre o modelo europeu na América Latina dos anos 1920

The Mediterranean as a metaphor of mestizaje: New readings on the European model in Latin America of the 1920s

Resumo:

Na década seguinte à Primeira Guerra Mundial, observa-se na realidade latino-americana uma forte transformação na percepção da Europa enquanto modelo de civilização. Novas leituras artísticas e literárias começam a repensar as identidades nacionais na América Latina e, em maneira transversal, nasce uma crítica à importação de conceitos europeus de civilidade. Este processo de mudança pode ser observado em profundidade na obra de Gabriela Mistral que mostra, na sua escritura, essa transformação continental, através da análise do mar Mediterrâneo, que vive uma passagem de um espaço de latinidade a outro, de mestiçagem. Nos textos de Mistral, percebe-se uma duplicidade de cruzamentos analíticos entre as relações Norte e Sul, quando a autora fala dos contrastes europeus, fala, também, daqueles do continente americano. Neste contexto, o velho mundo, ou a parte mais meridional do mesmo, empresta sua experiência histórica para justificar a positividade do novo homem latino-americano: multiétnico.

Palavras-chave:
Literatura latino-americana; Mestiçagem; Pensamento latino-americano; História e literatura; Identidade

Abstract:

After the First World War, we can observe in the Latin American society a strong transformation in the perception of the Europe as a civilization model. New movements in art and literature start to rethink the National Identities in Latin America Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs, Porto Alegre, RS), professor da Università Ca’ Foscari em Veneza, Itália, do PPG em Letras e do PPG em História da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), em Vitória, ES, Brasil, e membro da direção da Associação Internacional Areia e da Associação Italiana de Brasilianistas <luis. beneduzi@unive.it>. O presente artigo foi apresentado em uma versão reduzida, e com outra ênfase narrativa, no Seminário Internacional Comparative area and transregional studies: aframework for the Baltic and the Mediterranean, Veneza, novembro de 2014. and in the whole subcontinent born a criticism against the importation of European civility concepts. This process can be deeply analyzed in Mistral’s writings that shows us the continental transformation through the Mediterranean metaphor: between a Latin space and a space of miscegenation. In Mistral’s narratives, we can notice two kinds of analytical movements between North and South relations: when the writer talks about the European contrasts, she talks also about those of the American continent. In this context, the Old World, or its Southern part, shares its Historical experience with the New World to justify the positive perception of the New Latin American men: Multiethnic.

Keywords:
Latin American literature; Miscegenation; Latin American thought; History and literature; Identidade

As identidades nacionais latino-americanas construídas ao longo do século 19 e, especialmente ao interno do estado liberal-oligárquico, que consolidou a nação depois das lutas de independência, eram fundadas em um modelo europeu de cultura e civilização. Importavam-se trabalhadores europeus para modernizar a nação (Andrews, 1998ANDREWS, George Redi. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru: Edusc, 1998.), buscava-se branquear as “caras e modos” (Alencastro, Renaux, 1999ALENCASTRO, Luiz Felipe; RENAUX, Maria Luiza. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In: Luiz Felipe Alencastro (org.). História da vida privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.) das populações nacionais para construir um povo novo, coerente com uma oligarquia que se imaginava europeia (branca), porque consumia as modas do velho continente, porque tentava emular as suas normas de “bem-viver”, e que não queria se imaginar em uma nação mestiça (Wade, 2000WADE, Peter. Raza e etnicidad en Latinoamérica. Quito: Abya-Yala, 2000.).

Sob a perspectiva histórico-social, as transformações fomentadas pelo estado oligárquico, que produziram pouco a pouco a construção de uma sociedade de massa no subcontinente, constituíram-se no elemento-chave para pensar a própria crise daquele modelo de Estado e o nascimento de novas realidades políticas (Zanatta, 2010ZANATTA, Loris. Storia dell’America Latina contemporanea. Bari: Laterza, 2010.) . Dinâmicas como a pluralização do mundo do trabalho, com o nascimento de novos segmentos sociais, um relevante processo de urbanização e escolarização, e o advento da industria-lização – tendo presente as especificidades das diferentes realidades nacionais na América Latina – produziram um curto-circuito no modelo coercitivo do Estado, assentado no binômio positivista de ordem e progresso. A realidade social nascente solicitava novas relações políticas: o sufrágio universal e o voto secreto eram pontos-chave da agenda de protestos e manifestações populares, especialmente dos segmentos médios urbanos, junto às primeiras greves por melhores condições de trabalho que explodiam no subcontinente nas primeiras décadas do século 20.1 1 Certamente a realidade latino-americana é plural e o grau de urbanização e modernização está vinculado ao nível de industrialização e desenvolvimento das forças produtivas.

Quando chegamos a 1920, e dá-se início a um momento de grande efervescência cultural na América Latina e de profunda transformação no pensamento intelectual latino-americano, a estrutura sociopolítica reinante está vivendo uma fase de contestação e de mudança. Além das questões endógenas ao subcontinente, também um movimento importante em nível internacional irá colaborar com o processo de transformação em ato: a primeira guerra mundial. Este evento de grande relevância no contexto europeu transformou-se em um divisor de águas em nível internacional, pois não apenas rompeu com a experiência sociocultural da Belle Époque, mas se tornou uma expressão forte da decadência da sociedade europeia, produzindo consequências em vários setores, em todo o globo.

Como afirma Patrícia Funes, as “maiúsculas” do século 19 – Razão, Civilização, Progresso e Ciência – foram limadas, ou seja, sofreram um processo de transformação, de relativização, de releitura (Funes, 2006FUNES, Patricia. Salvar la nación: intelectuales, cultura y política en los años veinte latinoamericanos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006.). A própria Europa vivia um momento de repensar a si mesma e de ter que digerir a barbárie da guerra e compreender-se novamente dentro de uma nova realidade cultural. Neste contexto, a jovem América Latina, outrora “subjugada” intelectualmente pela velha e sábia Europa, começava a sentir-se apta para ativar um processo de reflexão sobre sua autorrepresentação a partir de novas bases. A realidade latino-americana da terceira década do século 20 apresenta-se como um período de construção, depois dos ventos do pós-guerra que trouxeram consigo uma sensação de liberdade com relação à dependência cultural do mundo de além-mar: um vivido em transição, de ideias nômades, estava em movimento.

Segundo muitos intelectuais da América Latina, o mundo que nasce no pós-primeira guerra mundial traz novas possibilidades criativas, posto que os conceitos clássicos podiam ser revisitados e a modernidade subcontinental podia ser julgada de uma maneira mais branda:

Si los “bárbaros” europeos se habían suicidado en una guerra, como proclamaba non sin desconsuelo, José Ingenieros, el carácter de “civilización” podía ser revisado, incluso, invertido. Para José Vasconcelos, por ejemplo, la barbarie en la historia se había demostrado más creativa como matriz de las civilizaciones. La modernidad latinoamericana, entonces, podía juzgarse con menos rigor y si no con autonomía, mucho más libremente (Funes, 2006FUNES, Patricia. Salvar la nación: intelectuales, cultura y política en los años veinte latinoamericanos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006., p. 13).

Em leituras diferentes, mas marcadas por uma ideia difusa de latino-americanismo, o mote revolucionário dos estudantes de Córdoba, na Argentina, que se dirigem aos “homens livres da América do Sul”, nas manifestações de 1918, transformam-se em um grito que atravessa o subcontinente e torna-se representativo de um novo espírito subcontinental. Um novo sentir latino-americano era parte do discurso em diferentes realidades locais, como a ideia de um novo homem pós-revolução mexicana (Vasconcellos, 1998VASCONCELLOS, José. Ulisses criollo. Prólogo de E. Carballo. México: Trillas, 1998.) ou de um marxismo indígena peruano (Quijano, 2007QUIJANO, Aníbal. Prólogo. In: José Carlos Mariátegui. 7 ensayos de interpretación de la realidad peruana. 3. ed. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2007.). Percebia-se uma liberdade para pensar o novo, aliás, palavra-chave daquele momento histórico e, portanto, a experiência criativa dos loucos anos 1920 tem início.

Ao interno desta realidade cultural em movimento, busca-se entender como a imagem/conceito do mestiço – do subcontinente mestiço – vai sendo trabalhada e reelaborada, partindo da leitura de Gabriela Mistral. O novo que está nascendo não acontece em um contexto estranho à realidade europeia, pois a intelectualidade subcontinental dos anos 20 viveu seu processo constitutivo em contato com o mundo europeu e com as vanguardas do velho mundo, vive-se aquela ideia antropofágica que fundou o modernismo, na leitura de Oswald de Andrade. A “deglutição” da cultura do “outro externo”, em contraste com o nacional, é a chave da construção de uma nova política sobre o híbrido, pois nas novas representações literárias também são construídas as novas imagens identitárias (Funes, 2006FUNES, Patricia. Salvar la nación: intelectuales, cultura y política en los años veinte latinoamericanos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006.).

É neste contexto de transformação que o mar Mediterrâneo, ou as leituras latino-americanas sobre ele, adquire grande relevância enquanto metáfora deste movimento de mudança. Nos anos 20, observa-se o princípio de um processo de transição, cuja nova perspectiva nascente é reforçada por Alejo Carpentier, nos anos 60, na percepção da área mediterrânica: de espaço da cultura latina àquele de uma experiência de mestiçagem bem-sucedida (Carpentier, 1980CARPENTIER, Alejo. El siglo de las luces. Barcelona: Editorial Bruguera, 1980.). Para melhor compreender tais dinâmicas imagéticas, buscar-se-á recuperar, ao interno do presente artigo, alguns escritos (junto à sua trajetória literária) da escritora chilena Gabriela Mistral – pseudônimo de Lucila Maria Godoy Alcayaga, primeira mulher latino-americana a receber o Prêmio Nobel de Literatura – que parecem ser emblemáticos enquanto representações dos movimentos intelectuais presentes em certas leituras do mundo latino-americano.

Crise da civilização e ruptura do modelo eurocêntrico de matriz anglo-saxã

Em 1930, na obra Despedida del Mediterráneo, Mistral produz uma imagem literária que distingue dois tipos de mares, pensados em sua relação com a civilização: o Mediterrâneo (mar) e o Atlântico (oceano) (Mistral, 1978MISTRAL, Gabriela. Gabriela anda por el mundo. (organização e prólogo de Roque Esteban Scarpa). Santiago do Chile: Editorial Andres Bello, 1978.). O primeiro, espaço civil e humano, constitui-se no mar batizado,lugar de construção das culturas clássica e cristã, rompendo com a aridez do mundo marítimo, quando contraposto àquele terrestre, de cultivo e cultura. Diferentemente, o segundo tipo é entendido como a “agua bárbara”, selvagem, porque um espaço aberto que se lança para além do estreito de Gibraltar e que não aceita nem limites nem domesticação. Na percepção da escritora, as costas, que marcam as fronteiras terrestres dos dois lados do Oceano, permanecem como territórios que não dialogam, que não conseguem produzir uma identificação complementar que as englobe. Não obstante o trânsito histórico da colonização ibérica e da imigração europeia, a realidade oceânica não foi capaz de construir aquela unidade cultural que Mistral observa no antigo Mare Nostrum.

O tempo da escritura de Gabriela Mistral é um momento de transição muito sentido na literatura latino-americana, que mescla uma sensação de pertencimento à cultura europeia – especialmente na sua latinidade (Nuzzo, 2010NUZZO, Giulia. Percorsi identitari nella letteratura di viaggio ispanoamericana: Ricardo Rojas e Gabriela Mistral. Salerno, 2010 (Tese de Doutorado, Universidade do Salento).) –, mesmo que em uma perspectiva de extremo ocidente (Carmagnani, 2003CARMAGNANI, Marcello. L’altro occidente: L’America Latina dall’invasione europea al nuovo millenio. Turim: Einaudi, 2003.), e uma necessidade de digerir a barbárie da guerra europeia (mesmo que mundial) e da crise de civilização que ela encarnou. De qualquer forma, é clara a imagem produzida acerca do Mediterrâneo, enquanto espaço embrional da cultura e da sociedade latino-americana, embora esta representação sofra – e ver-se-á no transcorrer do presente artigo – uma mudança de coloração entre as décadas de 1920 e 1930.

Na verdade, nesta leitura que aproxima os mundos latinos, deve-se salientar uma questão importante para a discussão intelectual do período, na América Latina: a relação conflitual entre o norte e o sul do continente americano. Constrói-se um paralelismo sobre os embates vividos entre os mundos anglo-saxão e latino do velho continente e aqueles do novo mundo. Enquanto o primeiro constitui-se na representação da racionalidade pragmática, associada à tecnologia, mas, também, ao mau gosto, o segundo é apresentado como o reflexo da cultura, da beleza e da estética. Neste conflito contra a competência anglo-saxã, a Europa mediterrânica – e particularmente a Itália – não perdiam sua força histórica, pois conseguiam representar em uma maneira mais equilibrada a “boa civilização”.

As interpretações produzidas pelos intelectuais latino-americanos sobre a Europa, e especificamente sobre a bacia do Mediterrâneo europeu, é atravessada por duas dinâmicas: a relação histórica com o “velho ocidente” e o conflito contemporâneo com os “irmãos” do Norte. Por um lado, a cultura e a civilização europeias foram largamente aceitas enquanto modelo durante todo o século 19 e princípio do século 20, tendo sido difundidas pelos oligarcas que construíram os estados nacionais na América Latina. Por outro, o sul do subcontinente – especialmente os países centrais como a Argentina, o Brasil e o Chile – sempre temeu e repudiou a ação do “Tio Sam”, especialmente aquela marcada pelo chamado big stick, na América Central (Zanatta, 2010ZANATTA, Loris. Storia dell’America Latina contemporanea. Bari: Laterza, 2010.). A ingerência americana, mesmo que em uma parte distante geograficamente, era vista como um atentado à liberdade continental.

Como enunciado anteriormente, o projeto de estado liberal que foi patrocinado pelas oligarquias latino-americanas tinha como um dos obje-tivos centrais a construção de uma civilização moderna, branca, e culturalmente conectada com a Europa, constituindo uma das principais características do nation-building subcontinental, iniciado no período pós-independência. Em contraste com a barbárie mestiça e caudilla, impunham-se as instituições representativas liberais, os partidos, uma espécie de liberalismo em veste latino-americana. As sociabilidades, as artes e a litera-tura eram parte do processo de construção da nação, mas vinham à tona em uma leitura europeizante, na transposição de um modelo cultural de civilização que podia eliminar da realidade social e cultural do subcontinente os personagens subalternos, como os indígenas, porque não suficientemente evoluídos.

O intervencionismo dos Estados Unidos na América Central, segundo eixo para uma interpretação do pano de fundo da dupla leitura sobre o Mediterrâneo – latino e mestiço – que é parte do presente artigo, fundado em uma “política social” de promoção da democracia – através do “rugido” das armas e do desembarque de marines em defesa da United Fruits Co. e dos interesses norte-americanos, sempre criaram indignação nos países abaixo da linha do Equador. Ao mesmo tempo, a percepção grotesca sobre a sociedade centro-americana, o estereótipo das “Banana Republics”, não colaborava para uma relação intercontinental menos conflituosa. Neste sentido, é relevante lembrar que na interpretação dos estados meridionais e, especialmente na leitura argentina, naquele momento uma das mais importantes economias em nível mundial, os Estados Unidos não eram um superpoder, mas somente um competidor continental no mercado internacional: sob a perspectiva econômica e, sobretudo com relação aos valores culturais.

Se por um lado observa-se a ação de uma forte política de controle da parte dos Estados Unidos na região centro-americana, através da imposição de homens políticos leais a Washington e da política pedagógica wilsoniana de difusão da civilização americana, por outro lado, e como consequência, tem-se uma reação igualmente importante da parte das “nações latinas” do continente. A atitude do sul – enquanto rejeição a este tipo de política – foi o constante crescimento de movimentos nacionalistas, os quais não somentedesaprovavam a ação militar dos Estados Unidos na América Central, mas também fundavam suas identidades na negação desta cultura exógena proposta pelo “irmão” do norte. Esta oposição – que servirá sucessivamente de base para a leitura das relações com o norte e o sul da Europa – será ampliada a todas as representações do poder norte-americano: o capitalismo, o liberalismo, o materialismo, o individualismo, a democracia representativa, a civilização protestante.

A exportação da sociedade individualista promovida pelo norte era abertamente combatida pelo sul, que acreditava na ideia de uma sociedade mais coletiva (Ramos, 2008RAMOS, Julio. Desencontros da modernidade na América Latina: literatura e política no século XIX. Belo Horizonte: UFMG, 2008.). A ideia do progressivismo social italiano, o novo papel do estado, a abordagem diferente em relação às massas, todos elementos das políticas fascistas, representavam um olhar compartilhado, considerando o seu contraste com os pressupostos da civilização anglo-saxã. Neste contexto histórico – a saber, as décadas de 1920 e 1930 – a literatura latino-americana era marcada pela crítica contra o abismo social criado pela tecnologia que colocava em margens diferentes e distantes o utilitarismo e a beleza: características respectivamente do norte e do sul (Funes, 2006FUNES, Patricia. Salvar la nación: intelectuales, cultura y política en los años veinte latinoamericanos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006.).

Para Mistral, em um primeiro momento, a Itália mussoliniana é o lugar principal deste mediterrâneo entendido como o lugar das origens, também míticas, da versão latina da identidade americana (Nuzzo, 2010NUZZO, Giulia. Percorsi identitari nella letteratura di viaggio ispanoamericana: Ricardo Rojas e Gabriela Mistral. Salerno, 2010 (Tese de Doutorado, Universidade do Salento).) . Nas narrativas sobre sua viagem através da península itálica, é vibrante o relato sobre Roma e a grandiosidade da cultura clássica que nela é representada, a espiritualidade e o catolicismo que nela se encontram, e a imagem de lugar de origem do Renascimento que nela transparece. A civilização construída no contexto do Mediterrâneo é mais avançada porque não foi reduzida à técnica, pelo contrário, aspira experimentar uma sensibilidade superior, como aquela no sul do continente americano.

Certamente isto alude – nos textos de Mistral e particularmente em Juan Montalvo y el classicismo – a um inusual modo produtivo nascido entre as costas do Mediterrâneo, um modelo fundado em míticas referências literárias dos prósperos campos geórgicos e na dinamicidade harmoniosa do mundo rural provençal (Nuzzo, 2010NUZZO, Giulia. Percorsi identitari nella letteratura di viaggio ispanoamericana: Ricardo Rojas e Gabriela Mistral. Salerno, 2010 (Tese de Doutorado, Universidade do Salento)., p. 349), que se constitui em uma conexão entre as duas realidades meridionais (americana e europeia). A autora reitera a sua leitura do subcontinente como parte da essência de Castela, da inspiração da Língua Latina e da ação polinizadora da “Santa Grécia”:

No pierdas, hija mía, las esencias de Castilla; no arrojes el latín, padre de tu razón, y empínate por coger la inspiración, de la santa Grecia, poliinizadora de todo viento sobre la Tierra (Mistral, 1978MISTRAL, Gabriela. Gabriela anda por el mundo. (organização e prólogo de Roque Esteban Scarpa). Santiago do Chile: Editorial Andres Bello, 1978., p. 200).

O Mare Nostrum como base simbólica da uma latino-americanidade

Diferentemente, a escritora chilena ergue sua voz contra a abertura de fronteiras de alguns estados da América do Sul para a formação de colônias alemãs, porque tal tipo de decisão vai promover a destruição da identidade natural do subcontinente: “Somos latinos aunque seamos indios; Roma llegó hasta nosotros bajo la figura de España” (Mistral, 1978bMISTRAL, Gabriela. Gabriela piensa en ... (organização e prólogo de Roque Esteban Scarpa). Santiago do Chile: Andrés Bello, 1978b., p. 348). Uma política latina é necessária para contrastar um processo de ocupação cultural germânica nas zonas industrializadas das nações latino-americanas, fato que iria conduzir a uma perda das características mais positivas das culturas históricas daquelas populações. A Europa mediterrânica, a terra da matriz latina, deve ajudar e sustentar a base produtiva, política e social do subcontinente, que continua tendo a necessidade de ser encaminhado pelo “bom caminho” em direção à conquista de um método ao mesmo tempo rigoroso e estético.

O modelo meridional do mundo europeu não é importante somente porque funciona como um instrumento para a emancipação do subcontinente com relação à nefasta influência cultural do norte (América e Europa), mas, também, pela sua colaboração na construção de uma sociedade moderna. Nos escritos de Mistral e em um setor da literatura latino-americana daquele período, o elemento indígena não pode ser elevado a um modelo pleno das identidades nacionais. A imagem do índio inocente, em suas narrativas, não é um ponto de chegada, mas de partida; em seu indigenismo é necessária uma emancipação pedagógica que crie espaço à assimilação da industriosidade da vida moderna (na versão da Europa mediterrânica), cujo modelo é o ocidente assentado no velho mundo.

O Mediterrâneo e a antiguidade clássica, que devem constituir o ponto de partida para o processo de reelaboração da identidade latino-americana, não são associados à representação da Roma imperial ou à grandiosidade da capacidade de dominação das forças militares da grande civilização antiga, pelo contrário, essas imagens que refletem a magnificência do poder são rejeitadas por Mistral, assim como por seu interlocutor mexicano, José Vasconcelos Calderón, o autor de La raza cósmica. O elemento que produz a ligação entre Europa e América é o mundo rural meridional e o respeito quase religioso pela terra, aquele coletivismo que combina os mundos campesino e indígena: as margens verdejantes do mar Romano e o verde luxurioso da América Latina.

As terras de além-mar, na percepção mistraliana, devem ser cantadas seguindo as estratégias narrativas dos oradores clássicos, que darão força às experiências locais latino-americanas através de sua arte oratória. Dos escritos de Virgílio pode ser extraído o modelo epopeico para contar o novo mundo, assim como a Odisseia deve constituir o ponto de partida para cantar as novas aventuras para além do estreito de Gibraltar. Para a autora são dois mundos que devem ser sobrepostos, sendo que o “velho” oferece o caminho a seguir para elaborar a experiência poético-literária do “novo”, em uma geografia diferente, mas sempre luxuriosa:

mirando a Virgilio, pero contando la caña, el algodón y el banano, donde él cortaba el trigo y vareaba el olivo. Yo les pediría cantar a nuestro Pacífico, vacante aún de alabanza, cuando salgan embriagados de la Odisea (Mistral, 1978bMISTRAL, Gabriela. Gabriela piensa en ... (organização e prólogo de Roque Esteban Scarpa). Santiago do Chile: Andrés Bello, 1978b., p. 199).

Em busca do latino-americano enquanto homem universal: cruzamento de civilizações, entre o Oriente e o Ocidente

Neste contexto, a escritora chilena representa de certa maneira aquela experiência de reelaboração necessária, própria da década de 1920, posto que o novo mundo não desaparece na relação com o “velho”, sendo decantado em suas especificidades, embora seguindo um modelo ocidental clássico. Também aqui se observa a necessidade de deglutir o modelo europeu, pois ele vai contar – mesmo que partindo de estratégias narrativas consagradas “novos céus e novas terras”. Ainda, este ponto de partida não é o contexto central da modernidade europeia (anglo-saxã), mas a periferia, que apresenta a permanência de uma antiga civilização, deturpada, como aquela latino-americana, pela modernidade dos povos do norte. Portanto, na leitura de Mistral, o Mediterrâneo é transformado em espaço cultural de contestação do predomínio da cultura pragmática sobre aquela estética, dos valores advindos da ascensão anglo-americana que se contrapõem àqueles da civilização latina.

Prosseguindo sua análise, no texto Juan Montalvo y el clacisismo, Mistral aprofunda sua leitura sobre o encontro entre ciência e épica, que permite produzir novas representações acerca do mundo latino-americano (Mistral, 1978bMISTRAL, Gabriela. Gabriela piensa en ... (organização e prólogo de Roque Esteban Scarpa). Santiago do Chile: Andrés Bello, 1978b.). Em sua nova concepção das questões relacionadas às identidades nacionais, aos elementos que foram compondo as autorrepresentações latino-americanas e que foram parte dos projetos de fundação da nação, dentro do quadro descrito no parágrafo anterior, a literatura dá início a um processo de redescoberta do indígena, ainda que em uma chave de leitura que o insere em um conjunto de representações que o europeíza enquanto sujeito histórico. Observa-se uma dinâmica de recuperação do índio “branqueado” pelo estado oligárquico, mesmo que esteja inserido em estruturas narrativas cujo ponto de partida é a experiência literária europeia.

A pesquisa e a catalogação das tradições nativas do subcontinente, assim como aquelas do folclore europeu de finais do século 19 e princípios do 20, permite a elaboração de uma espécie de taxionomia da população local, trazendo à luz elementos que foram sendo postos “embaixo do tapete” pela política cultural dos Estados Liberais “branqueados”. O húmus indígena que tinha sido escondido em uma zona de aridez e infertilidade, agora retorna, reemerge da prisão do esquecimento a qual tinha sido relegado, retorna ao seu espaço mítico para participar do processo de reconstrução do novo mundo. Um vasto território americano fecundado pela fértil Europa meridional e controlado pela população indígena é uma das características mais forte deste filão das narrativas de Mistral.

A primeira mulher prêmio Nobel da América Latina não estava sozinha em suas reelaborações sobre o elemento indígena no subcontinente, porque na década de 1930 o processo de recuperação de uma nova imagem do nativo latino-americano era uma das expressões mais características da discussão intelectual do período. Entre José Vasconcelos e José Mariátegui, novas formas de identidade indígena e latino-americana começavam a nascer. Por um lado, tem-se a continuidade da relação com a Europa, mesmo que sempre menos representativa das novas leituras produzidas na América Latina, por outro, observa-se o renascimento da discussão sobre a questão da mestiçagem, agora a partir de uma perspectiva positiva. Se, em um primeiro momento, o mestiço teve que ser domesticado pela cultura europeia e este processo começou a se estabelecer nos primeiros anos do processo de colonização, o segundo ato é marcado por um novo nascimento com relação à percepção do mestiço, agora enquanto elemento constituinte de uma nova raça, mais forte. Mais uma vez, nesta nova interpretação que será aprofundada em seguida, nos textos de Mistral, o Mediterrâneo se transforma em metáfora e referência, porque espaço de uma experiência primordial de mestiçagem física e cultural.

No pós-guerra – e está-se falando da primeira guerra mundial – a América Latina é atravessada por uma série de protestos contra todas as coisas que representam o “velho mundo”. Existe uma forte relação entre as transformações sociais vividas pela população latino-americana no período em que se insere o grande conflito e as novas interpretações e dinâmicas culturais que marcaram o subcontinente. O modelo europeu passou a ser associado à velha oligarquia que os novos segmentos queriam destituir e à estrutura não representativa do estado liberal (Funes, 2006FUNES, Patricia. Salvar la nación: intelectuales, cultura y política en los años veinte latinoamericanos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006.). O novo era buscado nas manifestações endógenas da cultura indígena latino-americana, que adquiria um novo valor e uma nova representatividade. Buscando criar um processo de maior participação na vida política dos estados nacionais, uma democratização mais efetiva, os intelectuais do pós-guerra conclamavam os trabalhadores, as populações indígenas, as massas em defesa da nação, para erguer a bandeira da intervenção social. Como afirma Loris Zanatta, cosmopolitismo e individualismo representavam o passado oligárquico marcado pelo desejo de “macaquear” os valores europeus; enquanto que o novo era caracterizado pelo comunitarismo e pela valorização do local (Zanatta, 2010ZANATTA, Loris. Storia dell’America Latina contemporanea. Bari: Laterza, 2010.).

A preocupação com a realidade subcontinental e com as direções que a América Latina podia tomar, em âmbito cultural, mas, sobretudo político, era uma das principais inquietudes do momento. Na mesa de discussão eram apresentados novos elementos necessários para compreender o mundo latino-americano: o socialismo, o comunismo, a revolução, o anti-imperialismo, o corporativismo e a democracia. O papel do intelectual era o pano de fundo discursivo que estava gerando discussões e profundas controvérsias entre a intelectualidade na América Latina, criando contrastes, como aquele entre Vasconcelos-Lugones e Mariátegui-Haya de la Torre. Qual era o espaço político de onde pensar o subcontinente? Seria necessário pegar em armas para defender “lo bueno, lo justo y lo bello?” (Funes, 2014FUNES, Patricia. Historia mínima de las ideas políticas en América Latina. México D.F.: El Colegio de México, 2014.).

Mesmo que o social fosse um campo de disputa para a intelectualidade, aquele de nação era um conceito ainda mais forte que encaminhava os exercícios de reflexão. O debate sobre a construção da nação na América Latina tinha se tornado central na discussão intelectual das décadas de 1920 e 1930. Este não era um tema novo na realidade local e muito menos original, considerando que no século anterior já se procurava estabelecer novos estados e novas nações. Especificamente, este momento de reinterpretação da História Nacional significava um retorno ao passado, às experiências que buscavam restaurar a resistência do local: Ayllu, Astecas, Quetzacóatl, Gaucho. A densidade social da constituição nacional é reforçada, em uma tentativa de desconstruir o aparato discursivo das “comunidades imaginadas” que tinham se constituído o pano de fundo “na nação precedente”. Os negros, os índios, os campesinos, começavam a fazer parte da nova imagem de nação, em uma ruptura com a ideia de nação branca que havia marcado o “mundo anterior”. Além disso, nos contextos histórico e social, novas interpretações sobre a Europa estão sendo construídas e novas relações entre os mundos Mediterrâneo e latino-americano estão sendo imaginadas.

De qualquer forma, naquela época, mesmo a Europa se encontrava em um momento de efervescência e não era mais aquele espaço imaginado que costumava ser antes da guerra. No contexto europeu, estavam nascendo diferentes experiências de vanguardas artísticas e políticas, e, em muitos casos, os intelectuais latino-americanos, que estavam começando a repensaro subcontinente, o faziam a partir de suas estadias na Europa. Se Paris ainda era uma festa nos anos 20, ela era também o lugar privilegiado para a exportação do bom gosto e para a disseminação positiva da cultura: a nova Espanha que se opunha à marcha da modernidade brutal representada pela Inglaterra (Nuzzo, 2010).

Neste processo de reinterpretação da identidade latino-americana, a partir dos novos problemas presentes no debate da intelectualidade subcontinental, poder-se perceber aquela dinâmica de construção da chamada teoria dos dois Mediterrâneos, à qual se fez alusão no início do texto, parte da obra El Siglo de las Luces, de Alejo Carpentier (1980)CARPENTIER, Alejo. El siglo de las luces. Barcelona: Editorial Bruguera, 1980.. Em sua obra, são salientadas as similaridades entre um Mediterrâneo europeu e outro latino-americano, o mundo caribenho. O elemento comum que une estas duas realidades geograficamente distantes é um conceito chave na literatura de Carpentier: o espaço mestiço e o processo de mestiçagem. Na mesma medida em que o Mare Nostrum não é somente a expressão da civilização greco-romana, mas uma hibridização de diferentes realidades étnico-culturais que povoavam as suas duas margens, o espaço caribenho, que pode ser lido também como uma metáfora latino-americana, é um lugar de encontro entre o oriente e o ocidente, entre diferentes culturas e civilizações. Esta perspectiva interpretativa já começa a ser desenvolvida nas décadas de 1920 e 1930, quando a matriz europeia não apresentava mais a relevância política que possuía no período da elite oligárquica.

O conflito entre um Mediterrâneo puramente europeizado (ou romanizado) e o outro, enquanto espaço híbrido, já era um elemento de reflexão nas histórias da viagem italiana de Mistral, em 1924, mas adquiriu força maior, assim como o processo de transformação da intelectualidade latino-americana, a partir dos anos 30, como em seu texto de 1932, Waldo Frank y nosotros (Mistral, 1978bMISTRAL, Gabriela. Gabriela piensa en ... (organização e prólogo de Roque Esteban Scarpa). Santiago do Chile: Andrés Bello, 1978b.). Neste seu escrito, a outra margem do mar começa a ser analisada e destacada também como parte da constituição cultural do “mar civil”, em outras palavras, o Mediterrâneo não podia ser lido apenas enquanto expressão de sua margem ocidental, mas devia ser observado no encontro desta com o outro lado, aquele Oriental. O “orientalismo” de Mistral deve ser entendido nas suas entrelinhas, porque não fala apenas do reconhecimento da cultura semita na construção do “povo mediterrânico”, mas também sobre o lugar do oriente na conformação cultural da América hispânica:

La sua rivendicazione “orientalistica” in effetti non riguarda soltanto il riscatto delle ricche culture semitiche nel cuore dell’Occidente europeo, ma coinvolge una stessa cifra orientale dell’identità ispanoamericana (Nuzzo, 2010, p. 349).

No entanto, no contexto latino-americano, ela fala de um duplo oriente: por um lado, o híbrido oriental presente na constituição da área europeia, esta herança semita, e por outro, o legado mais antigo, resultado das primeiras migrações desde o continente asiático até aquele americano. Em sua construção identitária, a América Latina devia olhar tanto para o ocidente quanto para o oriente, porque não estava inserida entre estes dois mundos somente a partir de uma perspectiva geográfica, mas também a partir de uma dimensão cultural e genética.

Em sua narrativa, Mistral faz uma interpretação geográfica do processo de construção da identidade hispano-americana: a combinação que é parte da rosa dos ventos – leste-oeste – é também o dístico que forja os dois antípodas do encontro cultural latino-americano. A relação geográfica que ela constrói atribui um valor político – não necessariamente presente na língua espanhola – aos pontos cardeais, sobrepondo as direções “leste e oeste” às construções conceituais de oriente e ocidente: simbolicamente duas direções e duas civilizações.

Nesta interpretação da escritora chilena pode-se observar alguns passos em direção à percepção das características mestiças da constituição latino-americana e sobre a dimensão universalista desta identidade, que nasce do encontro entre oriente e ocidente. Este universalismo sincrético que exalta o interculturalismo presente na América Latina é também um resultado de suas discussões e contatos com José Vasconcelos, além de sua experiência política vivida no México, consequência desta relação intelectual.

O México pós-revolucionário, e especialmente aquele dos anos 20, viveu em maneira profunda a ideia da criação de um novo homem, fruto da revolução. A intelectualidade mexicana participou deste processo político e cultural do “novo” nation-building e Vasconcelos era um deste “pais” envolvido na gestação deste novo México pós-revolucionário. Neste sentido, no âmbito educacional, como ministro da educação, Vasconcelos convidou Gabriela Mistral para um cargo junto ao Ministério, e ela conduziu, entre 1922 e 1924, um projeto muito importante, a construção do sistema educacional mexicano. A realidade do México aproximou intelectualmente Mistral e Vasconcelos, e permitiu à escritora chilena novos contatos com um segmento significativo do mundo intelectual de língua espanhola. Suas leituras sobre a identidade latino-americana, assim como se pode notar, foram afetadas fortemente por esta experiência e pelo universalismo vasconceliano.

Ainda que a ideia de “orientalismo” não esteja muito clara, por causa das imagens díspares que são representadas – do norte da África ao chamado extremo oriente, sem considerar a crítica da intelectualidade latino-americana á ideia imperialista do “orientalismo” europeu – na narrativa de Mistral, a América Latina é crescentemente oriental. O próprio adjetivo “latina” é questionado enquanto representativo da realidade subcontinental, ao ponto que em Waldo Frank y nosotros, Mistral afirma que, apesar da força do componente espanhol, 75% da América “Latina” é pré-colombiana (Mistral, 1978b). Neste sentido, o elemento oriental por si mesmo já era importante na composição dos invasores espanhóis (os muçulmanos), por sua força na constituição da identidade daquele grupo, tendo sido ainda mais reforçado através da sua associação com o componente asiático, que caracterizou os primeiros habitantes do subcontinente. Por um lado, os portos da margem asiático-africana do Mediterrâneo deram sangue ao homem universal da América, que vive abaixo do rio Bravo, por outro, a “teoria do Estreito de Bering”, extremamente discutida e aceita naquela época, colaborava para a percepção de uma maior paternidade da parte do Pacífico que do Atlântico, com relação ao novo mundo.

Em direção a uma leitura positivada do mestiço: indicações conclusivas

Nas décadas de 1920 e 1930, a partir das reflexões da intelectualidade latino-americana, da qual um dos exponentes principais, utilizado neste artigo, foi Gabriela Mistral, observa-se uma perda de força da imagem do Mediterrâneo europeu enquanto lugar das origens e do nascimento das nações do subcontinente. Diferentemente, ao mesmo tempo, percebe-se o aumento da representação daquele espaço geográfico como modelo de mestiçagem e evidência concreta da expectativa de um grande futuro para o novo mundo. A cultura híbrida produzida no encontro entre as duas margens do Mare Nostrum, e a poderosa difusão que nasceu desta combinação, torna-se sinal da importância de pensar a realidade latino-americana como híbrida. Esta perspectiva pode emancipar a valência positiva do termo mestiço do lugar negativo (ou do não-lugar) em que foi colocado pelo estado oligárquico: entre a invisibilidade e o sinônimo de degeneração.

As duas décadas que separaram as duas guerras mundiais foram um momento de grande efervescência no meio intelectual latino-americano. Alguns conceitos – como os de nação e de identidade na América Latina – foram muito enfatizados e discutidos em diferentes perspectivas. No período anterior à guerra – historicamente caracterizado por um processo de europeização da sociedade latino-americana – a intelectualidade subcontinental preocupava-se com a face mestiça das realidades nacionais e ocupava-se da criação de nações não-indígenas. Diferentemente, o pós-guerra foi caracterizado por uma profunda transformação neste processo interpretativo dos estados nacionais na América Latina.

A experiência da barbárie vivida na guerra, na Europa, e o conflito identitário com os vizinhos da América do Norte produziram diferentes pontos de vista na parte meridional do continente americano. Por um lado, ser latino-americano significava não ser norte-americano, ou seja, pensar-se enquanto portador de outros valores (não individualistas, capitalistas e assim por diante) e, neste sentido, o mundo latino (a civilização mediterrânica) tinham que ser enfatizadas: como se observou na literatura de Mistral, a Europa meridional tinha conseguido juntar tecnologia e estética. Por outro lado, no olhar de Gabriela Mistral, a civilização mediterrânica podia ser um modelo também para o novo homem, o homem universal concebido pela intelectualidade latino-americana dos anos 30. Enquanto um espaço híbrido, o Mare Nostrum podia representar a melhor parte do processo de produção de uma sociedade híbrida, iluminando uma perspectiva futura positiva para aqueles mestiços que construíram as sociedades latino-americanas. O mundo mediterrânico representava para a América Latina o berço da cultura local e o modelo de construção da nova sociedade, marcada pelo cruzamento de culturas, na qual ser mestiço era bonito.

  • O presente artigo foi apresentado em uma versão reduzida, e com outra ênfase narrativa, no Seminário Internacional Comparative area and transregional studies: a framework for the Baltic and the Mediterranean, Veneza, novembro de 2014.
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    Certamente a realidade latino-americana é plural e o grau de urbanização e modernização está vinculado ao nível de industrialização e desenvolvimento das forças produtivas.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2015
  • Aceito
    30 Set 2015
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