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Max Weber e o átomo da sociologia: Um individualismo metodológico moderado?

Max Weber and the atom of Sociology: A moderate methodological individualism?

Resumo

Qual a natureza do individualismo metodológico de Max Weber? Para esclarecer essa questão o artigo revisa o debate entre holistas e individualistas, destacando as tentativas de aproximação entre essas posições. Em seguida, com base em Economia e sociedade, busca-se determinar, de maneira imanente, a compreensão weberiana sobre o individualismo como método. Na parte final discutem-se criticamente as tentativas de releitura da Sociologia de Max Weber à luz da controvérsia entre as perspectivas individualistas e holistas. O trabalho indaga em que medida o recurso a conceitos oriundos desse debate tem contribuído para esclarecer e justificar a natureza, os pressupostos e as consequências da versão de individualismo postulada por Max Weber.

Palavras-chave:
Max Weber; Individualismo metodológico; Holismo metodológico; Ação social; Estrutura social

Abstract

What is the nature of methodological individualism of Max Weber? To clarify this issue the article reviews the debate between holistics and individualistics paradigms, highlighting the rapprochement attempts between these positions. Based on Economy and society, we seek to determine, in an immanent way, Weber's understanding of individualism as a method. In the final part we discuss critically the attempts to read Max Weber's Sociology in light of the controversy between the individualistic and holistic perspectives. The article asks how the concepts resulting from this debate can help to clarify and justify the nature, premises and consequences of version of individualism postulated by Max Weber.

Keywords:
Max Weber; Methodological individualism; Methodological holism; Social action; Social structure

Introdução

Atribuir a Max Weber o posto de “pai do individualismo metodológico” é discurso padrão em textos de Sociologia. Dificilmente as explanações sobre os méritos ou os limites dessa posição teórica não se iniciam com uma revisão desse seu suposto fundador, destacando, aliás, suas diferenças com aquele que seria seu antípoda por excelência: Durkheim (nesse caso, o pai do holismo metodológico). Das salas de aula aos mais sofisticados manuais esse contraste é um lugar comum, razão pela qual bem poderíamos concordar com Bourdieu (2009BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009., p. 43) quando este chama a atenção para os riscos envolvidos na fixação de oposições artificiais. Uma vez estabelecidas, rotulações acabam por obscurecer as nuances e as particularidades dos autores, bem como acabam encarcerando suas teorias em compartimentos antagônicos, pensados muito mais em função dos debates correntes ou das necessidades didáticas do que de uma leitura ponderada de seus textos. Mas, embora fuja dos lugares comuns e dos esquema fáceis, não será meu propósito defender uma leitura heterodoxa ou alternativa de Max Weber. Pessoalmente, inclino-me para posição que situa a sociologia weberiana no conjunto das teorias que, pelo menos se adotamos a terminologia atualmente em voga, designamos como “individualismo metodológico”. No entanto, essa interpretação precisa ser devidamente qualificada e aprofundada, o que significa que precisamos determinar apropriadamente sua natureza, pressupostos e implicações. Tratase de desnaturalizar o tema e, retirando dele sua aparente obviedade, colocar a questão nos seguintes termos: que individualismo metodológico é esse?

Ao propor-me a responder a essa questão, pretendo relacionar de maneira balanceada a dimensão histórica e a dimensão sistemática do método de Max Weber, evitando reduzir uma à outra, como sói acontecer. Como a expressão individualismo metodológico fixou-se apenas tardiamente no léxico sociológico, entendo que, primeiramente, cabe esclarecer como podemos entender este conceito. Essa tarefa será feita por meio da revisão do atual debate entre enfoques holistas e individualistas, embora evite uma abordagem dicotômica da controvérsia. Por essa razão, seleciono alguns autores que buscam aproximar essas perspectivas. Dado esse passo preliminar, volto-me, então, para os textos do próprio Max Weber e retrato o modo como ele concebeu - em perspectiva metodológica - o caráter individualista de sua Sociologia, bem como aponto a que desafios teóricos ela respondia em seu próprio contexto intelectual. Nesse sentido, examino as críticas de Weber ao organicismo (Albert Schaffle) e ao funcionalismo (Othmar Spann) e descrevo sua fundamentação do método individualista em Economia e sociedade. Resguardadas as dimensões sistemática e histórica do problema, na terceira parte do texto coloco em tela duas leituras alternativas do legado metodológico weberiano. Ao examinar criticamente as interpretações antagônicas de Gert Albert e Jens Greve, pergunto-me em que medida as tentativas de reler Max Weber, a partir do debate entre holismo e individualismo, têm contribuído para explicitar a natureza de sua posição no que tange à relação entre o plano “micro” e o plano “macro” de análise sociológica.

Individualismo e holismo: da oposição à aproximação

Acompanhando a amplitude e a envergadura que a discussão entre as dimensões macro e micro da análise sociológica adquiriu no debate contemporâneo, a definição do que é o individualismo (termo cunhado por Joseph Schumpeter em 1908) ou holismo metodológico tornou-se central, mas também bastante complexa. Tal discussão remete-nos a uma terminologia bastante elaborada, mas também incrivelmente árida e, em muitos casos, contraditória e confusa. Revisar as diferentes definições que individualistas e holistas (ou coletivistas) fornecem de suas próprias formulações e como concebem seus adversários teóricos já nos conduziria para um mar de literatura especializada que, nem de longe, poderia ser revisada neste espaço. Adotando um critério seletivo, abordo algumas definições dessas duas posições que, mais do que demarcar suas identidades por oposição, vêm-se esmerando em diferenciar em seu próprio campo modulações e variações. Procuro uma imagem menos dicotômica desse tema, evitando definições rígidas cujas demarcações peremptórias acabam escondendo os entrelaçamentos entre essas posições.

Antes de dar esse passo, um pequeno excurso para definir preliminarmente alguns termos centrais na discussão será inevitável. Como reconhece a maioria dos analistas, a definição dos enfoques individualistas, holistas e sintéticos (ou relacionais) é dificultada pela constante sobreposição e mistura de elementos ontológicos e epistemológicos. A dificuldade também é agravada pelo fato de que a plataforma utilizada por cada uma dessas mesmas correntes para posicionar-se em relação às demais também não é uniforme. Enquanto a atual literatura inglesa de teoria social (passando por Giddens, Baskhar e Archer) assume como marco a distinção entre “integração social” e “integração sistêmica”, de David Lockwoood (1992)LOCKWOOD, David. Social integration and system Integration. In: Richard Warner; S Tadeusz Zubka (orgs.). Solidarity and schism: “the problem of disorder” in Durkheimian and Marxist Sociology. Oxford: Oxford University, 1992., por exemplo,1 1 Uma acurada discussão sobre essa célebre dicotomia pode ser encontrada em Domingues (2004, p. 39-64). outros segmentos da literatura adotam como referência a distinção entre os planos micro e macro de análise social. De que ponto, então, devemos partir?

Embora a distinção micro-macro seja oriunda da teoria da escolha racional, entendo que ela possui a vantagem de permitir-nos posicionar as diversas abordagens umas em relação às outras. Adotar tal distinção não implica importar inadvertidamente as premissas específicas da rational choice, pois essa dicotomia tem a vantagem de oferecer-nos uma plataforma pela qual podemos identificar as propriedades e as distinções de cada uma das posições em disputa. Nesse ponto acompanho aqueles autores (Greve et al., 2008GREVE, Jens; ALBERT, Gert; SCHÜTZEICHEL, Rainer. Das Mikro-Makro-Modell der soziologischen Erklarung: Zur Ontologie, Methodologie und Metatheorie eines Forschungsprogramms. Wiesbaden: VS, 2008.) que postulam que a díade macro-micro pode ser compreendida também como uma metateoria, dado que a partir desse esquema podemos localizar e visualizar as escalas e os momentos teóricos implicados nos polos duais da Sociologia e, adicionalmente, situar abordagens concorrentes ou rivais. Contribui particularmente para essa tarefa o chamado modelo de múltiplos níveis que, de David MacLelland, passando por James Coleman e chegando a Hartmut Esser (1999)ESSER, Harmut. Soziologie: Allgemeine Grundlagen. Frankfurt am Main: Campus, 1999., pode ser visualizado da seguinte forma:

Quadro 1
Modelo micro-macro de análise sociológica

Como enfatizaram Wipler e Siegwart (1987WIPPLER, Reinhard; SIEGWART, Lindenberg. The micro-macro link. In: Jeffrey C. Alexander; Bernhard Giesen; Richard Munch; Neil J. Smelser (orgs.). The micromacro link. Berkeley: University of California, 1987., p. 135), a díade micromacro também não deve ser concebida como se ela referisse-se a entidades ou a realidades determinadas (indivíduo vs. sociedade, agência vs. estrutura, ação vs. sistemas etc.), mas apenas como um esquema que nos aponta para escalas, âmbitos ou planos de análise. Independentemente de como cada plano for concretamente definido quanto a seu conteúdo, em cada teoria sociológica podemos reconhecer uma unidade mínima (micro) e uma unidade máxima (macro). Entre os extremos, diversos outros níveis intermediários (meso) também podem ser concebidos. Logo, deixando o conteúdo desse níveis em suspenso, resulta que é o modo como cada corrente sociológica concebe as formas de articulação entre os dois níveis extremos da escala que vai definir seu enquadramento bem como sua especificidade no campo do individualismo, do holismo ou ainda da incansável busca pelo caminho do meio, concebido como integração ou como transcendência em relação aos polos opostos (abordagem relacional).

Aceitos esses termos, temos que a distinção entre individualismo e holismo é prioritariamente uma questão metodológica que se define dependendo da prioridade explicativa conferida a uma ou outra das unidades de análise da Sociologia. Consequentemente, podemos compreender o individualismo metodológico como aquela abordagem que confere “prioridade explicativa” ao plano micro em relação ao macro e holismo metodológico como aquela que procede de maneira contrária. Abordagens relacionais esmeram-se em conferir igual peso analítico a ambos os níveis, buscando sua mútua determinação (Alexander, 1987bALEXANDER, Jeffrey C. O novo movimento teórico. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 4, n. 2, p. 5-28, 1987b.). Tais termos não devem ser confundidos com microssociologias e macrossociologias, cuja distinção reside no seu foco de interesse (“prioridade analítica”) que pode estar tanto na escala mínima quanto na escala máxima da análise sociológica.

Uma objeção que essa forma de definir a questão suscita é quanto ao papel e ao peso da dimensão ontológica nessa conceituação. De fato, pressupostos ontológicos sobre a natureza última do social estão intrinsecamente conexos com um determinado modelo de explicação sociológica. Por outro lado, posições ontológicas semelhantes não necessariamente levam às mesmas conclusões metodológicas ou, sob o ângulo inverso, na mesma posição metodológica podemos encontrar divergências quanto às propriedades essenciais da realidade social. O modo como esses dois âmbitos estão relacionados não é unívoco e, mesmo que fundamentos ontológicos possam ser mais ou menos determinantes para sustentar a razoabilidade de cada uma dessas posições, no que toca à sua definição, individualismo e holismo metodológicos devem ser entendidos, como aliás já diz o termo, como posturas metodológicas. Trata-se, prioritariamente, de uma distinção epistemológica que diz respeito ao tipo de relação postulada entre os níveis micro e macro de análise e não às suas propriedades intrínsecas.

Disso deriva que devemos prestar particular atenção em sua estratégicas explicativas ou, por outra, a questão central reside em perceber como cada uma dessas posições postula a relação entre o nível macro e o nível micro de análise sociológica. Em uma primeira aproximação, podemos afirmar que, no caso das Sociologias de tipo holista, o nível macrossociológico é considerado como autônomo e determinante em relação ao nível microssociológico, o que leva a maioria das suas vertentes a privilegiar a categoria da emergência. Já no âmbito das Sociologias individualistas é o nível macro que é colocado em dependência do nível micro e a preponderância deste último vem expressa pela ideia da redução. Qual é o significado desses conceitos e qual o papel analítico de cada um deles no discurso sociológico?

Embora as categorias acima elencadas estejam presentes em várias disciplinas, é no campo da Filosofia da Mente (Kim, 1994KIM, Jaegwon. The myth of nonreductive materialism. In: Richard Warner; Tadeusz Szubka (orgs.). The mind-body problem. Cambridge: Blackwell, 1994.) que elas têm encontrado seus desenvolvimentos analíticos mais consistentes. Greshoff (2011)GRESHOFF, Rainer. Emergenz und Reduktion ins sozialwissenchatlicher Perspketive. In: Jens Greve; Annete Schnabel (orgs.). Emergenz: Zur Analyse und Erklarung complexer Strukturen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2011., seguindo de perto os trabalhos de Hoyningen-Huene (2011)HOYNINGEN-HUENE, Paul. Emergenz: Postulate und Kandidaten. In: Jens Greve; Anette Schnabel (orgs.). Emergenz: zur Analyse und Erklarung komplexer Strukturen. Berlin: Surkamp, 2011., explica que a redução envolve sempre a relação entre dois níveis (A e B). A tese básica é que entidades complexas (B) são produzidas por entidades relativamente mais simples localizadas no plano A (o químico pelo físico, o psíquico pelo físico, o social pelo psicológico etc.). A redução consiste na dependência de um plano em relação a outro e na necessária remissão lógico-ontológica do consequente para o antecedente. A emergência realiza um movimento contrário e parte da premissa de que a reunião de um conjunto determinado de elementos (nível A) conduz ao surgimento de um novo sistema (nível B) cujas propriedades singulares não podem ser deduzidas e nem previstas pelo plano antecedente. O nível emergente representa uma nova configuração e, por isso, o plano A não determina o que ocorre no plano B. Por essa mesma razão, o sistema localizado no plano emergente B repercute retrospectivamente (ou causalmente) sobre o plano anterior A.

As definições acima, obviamente, não esgotam o léxico técnico mobilizado nessa discussão cuja densidade e complexidade, como já enfatizei, é cada vez maior. Mas ele já nos mune de um arsenal básico para que possamos movernos de maneira minimamente adequada nesse terreno. Podemos, portanto, voltar ao nosso tema-mor que consiste em discutir algumas das tentativas de distinguir variações internas no conjunto das posições individualistas e holistas.

No campo do individualismo metodológico, Lars Udehn (2001UDEHN, Lars. Methodological individualism: background, history and meaning. London: Routledge, 2001.; 2002UDEHN, Lars. The changing face of methodological individualism. Annual Review of Sociology, v. 28, p. 479-507, 2002 <10.1146/annurev.soc.28.110601.140938>.
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) destaca-se pelo amplo panorama histórico-evolutivo descrito na sua obra. De acordo com essa narrativa, podemos reconhecer pelo menos cinco grandes modelos de análise individual, a saber: (1) teoria do contrato social, (2) teoria do equilíbrio geral (Walras), (3) individualismo metodológico austríaco (no qual ele localiza Max Weber), (4) individualismo metodológico popperiano e (5) sua versão sociológica, representada por James Coleman. Não teremos tempo de explorar essa rica análise histórica neste espaço, mas vale registrar que Max Weber está classificado no conjunto da escola austríaca e, pelo menos na versão de Udhen, caracteriza-se por propor uma forma de individualismo nominalista, dado que sua teoria diria respeito apenas ao status dos conceitos sociológicos, aos quais se nega qualquer tipo de propriedade real. Deixemos, por ora, essa questão em suspenso, pois fundamental é que, aplicando um critério analítico a esse quadro histórico, Udehn distingue duas grandes versões do individualismo: uma versão substantiva (que vai do modelo 1 até o 3) e uma versão moderada (que recobre os modelos 4 e 5). Para chegar a essa divisão, ele utiliza-se de três elementos, como retratado abaixo:

Quadro 2
Tipos de individualismo

Ignoremos o fato de que a distinção entre epistemológico e metodológico de Udehn pode ser considerada redundante e que o seu esquema poderia, sem maiores prejuízos, ser reduzido apenas ao clássico par epistemológico-ontológico. Mais importante é concentramo-nos no modo como ele distingue as variações do individualismo, no interior do qual ele divisa uma versão forte e uma versão fraca. Na versão forte, os fenômenos sociais precisam ser explicados integralmente apenas em função dos indivíduos; já na versão fraca, essa explicação não é exclusiva, pois os fatores exógenos (externos ao indivíduo) são reconhecidos e também ocupam algum papel analítico. Ao propor essa divisão, Udehn rompe com a oposição mutuamente exclusiva entre holismo e individualismo, reconhece graus diferentes neste último e, não menos importante, abre caminho para considerar suas intersecções com a postura rival: tais fronteiras, de fato, são bem menos nítidas do que imaginamos. Outra contribuição fundamental é que, a partir de Udehn, aprendemos que o individualismo não pode ser simplesmente confundido com o atomismo, permitindo-nos ver esta perspectiva de maneira mais abrangente e complexa.

Voltemo-nos, então, para o campo do holismo e para suas próprias variações, conforme podemos registrá-lo nas proposições de R. Keith Sawyer (2003SAWYER, R. Keith. Nonreductive individualism. Part II: social causation. Philosophy of the Social Sciences, v. 33, n. 2, p. 203-224, 2003 <10.1177/0048393103033002003>.
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; 2005SAWYER, R. Keith. Social emergence: societies as complex systems. Cambridge: Cambridge University, 2005.). Esse autor ocupa uma posição bastante singular no debate, pois, mesmo adotando como pressuposto o individualismo ontológico, ele não abre mão do princípio explicativo da emergência, razão pela qual denomina sua posição de individualismo não reducionista. Dito de outra forma, Sawyer combina uma posição ontológica individualista com uma posição metodológica holista. O que significa essa estranha síntese? A maior parte do esforço desse autor consiste em enfrentar o que entende serem confusões e contradições no conceito de “emergência” - que ele propõe distinguir em duas grandes vertentes, forte e fraca. Com base nessa gradação, ele identifica três linhas de interpretação do conceito de emergência no campo da Sociologia (Sawyer, 2002aSAWYER, R. Keith. Durkheim's dilemma: toward a sociology of emergence. Sociological Theory, v. 20, n. 2, p. 227-247, 2002a <10.1111/1467-9558.00160>.
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; 2002bSAWYER, R. Keith. Nonreductive individualism. Part I: supervenience and wild disjunction. Philosophy of the Social Sciences, v. 32, n. 4, p. 537-559, 2002b <10.1177/004839302237836>.
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).

A primeira das linhas de interpretação está inserida na tradição clássica do individualismo metodológico e engloba autores que admitem a existência de um nível emergente, embora entendam que sua explicação requer, necessariamente, a redução. Nos termos de Udehn, trata-se de uma forma de individualismo moderado, embora Sawyer prefira designar essa posição como individualismo emergentista. Nessa linha, a emergência é considerada consistente com a redução porque se admite que existem determinadas propriedades que são específicas do nível coletivo, mas tanto a existência quanto a explicação dessas propriedades estão fundadas no nível individual. Sawyer discorda dessa posição por entender que o individualismo no plano ontológico não requer, necessariamente, a adoção do individualismo no plano metodológico: não há porque postular uma vinculação intrínseca entre os dois.

A segunda linha de interpretação é aquela adotada pelo holismo metodológico. A partir do exame das teses de Peter Blau, Roy Baskhar e Margaret Archer, ele mostra como em suas teorias assume-se exatamente a correlação contrária daquela pretendida pelos individualistas, ou seja, o nível societário é concebido como uma entidade sui generis dotada de propriedades intrínsecas. Como tais autores adotam uma posição ontológica realista em relação ao plano emergente, eles advogam que não existe nenhuma necessidade de que a análise sociológica utilize qualquer padrão de redução para explicar fenômenos macro. Daí sua opção por designar essa linha de análise como emergentismo realista.

Visando a superar essas posições antagónicas e a fundamentar uma concepção alternativa, Sawyer recorre a três conceitos da Filosofia da Mente. O primeiro deles é o de “superveniencia”, conceito que permite mostrar que o nível emergente B (coletivo) depende sempre do modo como estão agregados os elementos basilares do nível emergente A (individual). Citando a definição clássica de Davidson, Sawyer (2002aSAWYER, R. Keith. Durkheim's dilemma: toward a sociology of emergence. Sociological Theory, v. 20, n. 2, p. 227-247, 2002a <10.1111/1467-9558.00160>.
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, p. 543) dirá então que “superveniencia é uma relação entre dois níveis de análise na qual se dois eventos são idênticos no que diz respeito às suas descrições no nível inferior, eles não podem ser diferentes em seu nível superior”. Mas, se esse conceito permite mostrar que não existe diferença ontológica de substância entre os dois níveis, os dois conceitos seguintes servem ao autor para postular que, apesar disso, o nível coletivo não está desprovido de certa autonomia. Por meio do conceito de “realizabilidade múltipla” (multiple realizability), Sawyer sustenta que uma configuração coletiva determinada (como o estado mental de dor) não necessariamente é efetivada ou concretizada nos mesmos elementos neuronais. O conceito de “disjunção irrestrita” (wild disjunction), por fim, indica que a configuração coletiva também não se realiza em sua plenitude e nem de modo igual no mesmo conjunto de elementos basilares. A configuração coletiva “igreja”, por exemplo, que se caracteriza por um modo específico de articulação de indivíduos, permite variações, a depender de quais elementos (indivíduos) são mobilizados e como eles são, de fato, combinados.

Partindo desse arsenal de conceitos, Sawyer acredita poder sustentar a tese de que a realidade não passa, em última instância, de elementos individuais, mas nem por isso as configurações coletivas são explicadas apenas pelos elementos dos quais são compostos. É por essa razão que a redução não é um procedimento único nem absoluto. É essa tese que, afinal, ele denomina de individualismo (ontológico) não reducionista (no plano metodológico). Assumir tal premissa também implica que o nível emergente, ainda que seja igual ao nível anterior no que tange à sua substância, também atua causalmente sobre ele, quer dizer, podemos explicar o que acontece no plano micro a partir do plano macro.

Ainda que sigam caminhos distintos, Larhs Udehn e Keith Sawyer são ilustrativos de um movimento que podemos identificar tanto no campo dos autores individualistas quanto no dos holistas: a busca por uma visão menos esquemática e dicotómica da interrelação entre o plano macro e o plano micro de análise sociológica. Ambos realizam um esforço de refinamento dessas posições e aproximam-se na tentativa de encontrar graus distintos e identificar interfaces ou zonas de confluência entre enfoques individualistas e holistas. Para tanto, acabam recorrendo ao mesmo expediente e discriminam entre versões “fortes” e “fracas” em suas respectivas perspectivas de análise. Surpreendente, da parte desses autores, é a ausência da tentativa de justificar epistemologicamente uma terceira posição situada além tanto do holismo quanto do individualismo (Mouzelis, 2008MOUZELIS, Nicos. Modern and post-modern social theorizing. Cambridge: Cambridge University, 2008.). Apesar dessa restrição, a pergunta que nos cabe é: de que modo essas reflexões podem ajudar-nos a determinar qual é a concepção de Max Weber no que tange à relação entre os planos micro e macro de análise social? No próximo tópico trato desta questão apenas no plano metodológico, ainda que esteja consciente da necessidade de aprofundar a dimensão ontológica do problema, sem contar o fato de que a questão também merece ser examinada na sociologia substantiva de Weber, como é o caso de sua sociologia do direito, da política, da religião etc.

Max Weber e o indivíduo como átomo da Sociologia

Seria uma tentação fácil aplicar diretamente os marcos e categorias acima às proposições de Max Weber. Não obstante, não gostaria reduzir a tarefa de determinação dos pressupostos epistemológicos weberianos a um mero exercício de aplicação de esquemas exógenos ao seu texto. Respeitando a dimensão exegética, pretendo tratar primeiramente das posições de Max Weber em função de seu próprio contexto intelectual e intento determinar sua posição metodológica de maneira imanente, quer dizer, a partir do modo como ela própria concebe-se e constitui-se.

É célebre a assertiva de Max Weber feita em Sobre algumas categorias da Sociologia Compreensiva, publicada na revista Logos, em 1913, de que “a Sociologia Compreensiva (em nosso sentido) trata o indivíduo e as suas ações como sua unidade de base, como seu átomo, se permitem-nos aqui uma questionável analogia” (Weber, 1922WEBER, Max. Über einige Kategorien der verstehenden Soziologie. Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre. Tübingen: Mohr Siebeck, 1922., p. 403). Logo a seguir, Weber diz ainda que conceitos sociológicos como “estado”, “corporação” e “feudalismo” são apenas “certas formas de ação humana conjunta e, por isso, cabe à Sociologia a tarefa de reduzir tais conceitos a uma ação ‘compreensível’” (Weber, 1922WEBER, Max. Über einige Kategorien der verstehenden Soziologie. Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre. Tübingen: Mohr Siebeck, 1922., p. 403; grifo CS). Estaria aí o fundamento textual para sustentar o inegável reducionismo de Weber? Esse trecho, isoladamente, é pouco para justificar essa conclusão. Antes, consideremos a importância desse texto na evolução teórica de Max Weber, pois trata-se do primeiro escrito no qual o autor emprega a palavra “Sociologia” como título de uma obra sua: trata-se da certidão de batismo da Sociologia “Compreensiva” de Max Weber, qualificativo com o qual ele designou sua metodologia de análise dos fenômenos sociais. Esse dado, por sinal, deixa-nos ainda com os problemas de determinar em que momento Weber de fato assume a identidade disciplinar do campo da Sociologia e, principalmente, se existe continuidade ou ruptura entre a concepção sociológica formulada em 1913 e aquela outra apresentada em Conceitos sociológicos fundamentais, título do capítulo primeiro do escrito póstumo que veio a ser mundialmente conhecido como Economia e sociedade. Tais questões dividem profundamente os analistas e há quem pretenda localizar em Max Weber até mesmo três diferentes concepções de Sociologia (Lichtblau, 2011LICHTBLAU, Klaus. Die beiden Soziologien Max Webers. In: Richard Warner; Tadeusz Szubka (orgs.). Die Eigenart der kultur- und sozialwissenschaftlichen Begriffsbildung. Wiesbaden: VS, 2011.), já que o texto das Categorias é composto por duas partes, escritas em momentos diferentes. Contudo, revisar essa polêmica nos deixaria presos nos labirintos da especializada exegese weberiana, razão pela qual entendo que será mais útil assumir a posição do próprio Weber que, no escrito de 1920, explica que, em relação ao escrito de 1913, “a terminologia foi oportunamente simplificada e, portanto, modificada em vários pontos para ser mais compreensível” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. 1, nota preliminar).

Admitindo-se que a linha de raciocínio de Weber é a mesma entre 1913 e 1920, estamos livres, então, para concentrar-nos em Economia e sociedade.2 2 Na análise desse escrito utilizei a versão em português (Weber, 1994), cotejando-a e modificando-a, quando me pareceu necessário, com seu original (Weber, 1980). Por sinal, na mesma época em que esse escrito estava sendo finalizado, Weber já nos dá as principais pistas de quem eram seus alvos teóricos quando - como atesta a carta escrita para Robert Liefmann -, ainda 1920, ele advertiu: “se agora sou sociólogo, então, é essencialmente para pôr um fim nesse negócio de trabalhar com conceitos coletivos” (Weber, 2012WEBER, Max. Briefe 1918-1920. In: Gerd Krumeich; M. Rainer Lepsius; Uta Hinz; Sybille Oßwald-Bargende; Manfred Schon (orgs.). Max Weber-Gesamtausgabe: Band II/10. Tübingen: Mohr Siebeck, 2012., p. 946). A tentação seria imaginar que, em função dessa observação, seu oponente teórico fosse a Sociologia de Durkheim, mas não existe qualquer referência de Weber ao seu colega francês (Hirschhorn e Coenen-Huter, 1994HIRSCHHORN, Monique; COENEN-HUTER, Jacques (orgs.). Durkheim et Weber. Vers la fin des malentendus? Paris: L'Harmattan, 1994.). Podemos supor, então, que seu alvo seja Karl Marx - outro representante clássico de um análise fundada na ideia de totalidade. Este último autor é central na interlocução intelectual de Weber, sem dúvida, mas não no tocante a esse aspecto propriamente dito. Sua reprovação ao materialismo histórico dirige-se, em regra, à sua unilateralidade (economicismo) e à sua elevação a visão de mundo (Mommsen, 1974MOMMSEN, Wolfgang. Max Weber als Kritiker des Marxismus. Zeitschrift für Soziologie, v. 3, n. 3, p. 256-278, 1974 <10.1515/zfsoz-1974-0304>.
https://doi.org/10.1515/zfsoz-1974-0304...
). Nem Durkheim, nem Marx; os adversários que Weber elege para situar sua nascente proposta de Sociologia Compreensiva não são aqueles gigantes do pensamento social, mas apenas Othmar Spann (1878-1950) e Albert Schaffle (1831-1903), nomes que, atualmente, estão jogados na total obscuridade, mas que nem por isso, e ainda que apenas enquanto adversários fáceis, foram menos importantes no jogo argumentativo de Weber. Para voltarmos a essa polêmica esquecida na história do pensamento sociológico podemos identificar seus rastros nas entrelinhas de Economia e sociedade, em particular na extensa nota de número 9, ainda no parágrafo primeiro dos Conceitos sociológicos fundamentais. Essa nota, só aparentemente secundária, fornece-nos uma verdadeira súmula do individualismo metodológico de Max Weber, ainda que o faça a partir de um ângulo bastante determinado, a saber, a partir do problema da relação entre o conceito e seu referente. Não por acaso, essa nota inicia-se com a seguinte passagem: “a ação como orientação compreensível pelo sentido do próprio comportamento sempre existe para nós unicamente na forma de comportamento de uma ou várias pessoas individuais [einzelnen Personen]” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9).

A menção ao “engenhoso livro” de Schaffle (Estrutura e vida do corpo social) permite a Weber delimitar sua abordagem em relação à “Sociologia organicista”, caracterizada por ele a partir de dois elementos. O primeiro é ontológico e diz respeito à equiparação de natureza entre sociedade e organismo. O segundo desses elementos - mais importante - é metodológico e remete à relação entre o todo e suas partes constituintes. Como explica Weber, “o método da chamada Sociologia ‘organicista’ procura explicar a ação social conjunta partindo de um ‘todo’ […] dentro do qual o indivíduo e seu comportamento são interpretados da mesma maneira que, por exemplo, a fisiologia trata da situação de um ‘órgão’ dentro da ‘economia’ do organismo” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9). Weber reconhece que esse modo de exprimirse pode servir para fins de ilustração e pode até ser utilizado em determinadas circunstâncias, “mas é somente nesse ponto que começa o trabalho da Sociologia” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9). Até aqui o leitor poderia imaginar que estamos lidando com uma passagem sem qualquer importância, mas é exatamente nesse momento do texto que ele desenvolve uma de sua distinções mais importantes: a diferenciação entre explicação observadora e explicação interpretativa. Para Weber, o limite da analogia orgânica reside no fato de que não podemos compreender o comportamento das células, mas apenas registrá-las funcionalmente e, dessa forma, submetê-las ao mecanismo das leis causais. Nas ciências sociais, ao contrário, faz-se uso da explicação interpretativa, pois, “este constitui precisamente o ponto específico do conhecimento sociológico” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9). Isso significa dizer que é a diferença ontológica entre células e ação humana que explica a impossibilidade de aplicação do método organicista na Sociologia: tal método não permite a compreensão significativa, mas apenas a correlação causal. É nesse elemento que reside sua limitação metodológica.

Assim como o confronto com Schaffle permitiu a Weber distanciar-se do organicismo, sua crítica a Othmar Spann permite que ele se distancie do funcionalismo. Ele chega a dizer que considera o trabalho desse autor “rico de ideias aceitáveis” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9) e reconhece a importância da colocação prévia do problema da funcionalidade - podemos também dizer, do método funcionalista - na sociologia. Weber até reconhece que o método funcional pode ajudar a determinar a “importância” de determinada ação social, ou seja, ele pode ajudar a entender sua “conservação” ou sua “peculiaridade cultural” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9). De fato, a vigência de certas ações sociais pode ser explicada por razões funcionais, o que implica, segundo ele, perguntar “qual é a origem dessas ações” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9). Apesar disso, trata-se de um método limitado: ele não passa de uma análise prévia dos motivos da ação, que é considerada por Weber como o centro da análise sociológica.

O confronto com Schäffle e Spann foi o instrumento pela qual Weber buscou traçar suas diferenças em relação às abordagem coletivistas, sejam elas organicistas ou funcionalistas. No entanto, essa delimitação negativa restaria limitada se não fosse complementada pela tarefa positiva de explicitação de seus próprios pressupostos. Aliás, é a essa tarefa que é dedicado praticamente o maior espaço da preciosa nota 9 do capítulo primeiro de Economia e sociedade que continuaremos a explorar em suas minúcias. O ponto de partida de sua reflexão é que, para a Sociologia, formações sociais (Gebilde) (como “estado”, “cooperativa”, “sociedade por ações”, “fundação” etc.) “nada mais são do que sequências e cadeias de ações específicas de pessoas individuais, pois só estas são portadoras compreensíveis para nós de ações orientadas por um sentido” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9). Essa premissa reducionista já nos é conhecida, pois Weber foi sempre insistente quanto ao cuidado “para evitar a ‘substancialização’ dos conceitos” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 3, nota 2). Apesar desse fato, Weber explica que para fins de conhecimento ou mesmo tendo em vista finalidades práticas, “a Sociologia não pode ignorar, mesmo para os próprios fins, aquelas representações conceituais de natureza coletiva [kollektive Gedankenbilde] próprias a outra concepções” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9). O que temos aí é um problema da maior envergadura, centro de sua postura metodológica: como relacionar “formações coletivas” (Gebilde) e suas “representações” (Gedankenbilde): o dado e o representado? Se este último não pode ser ignorado, o que ele de fato significa e qual seu conteúdo? Qual seu papel na análise sociológica? Portanto, como Weber não se permite dispensá-los, ele necessita esclarecer qual seu estatuto, o que ele faz discriminando dois modos de relação entre a interpretação da ação e os conceitos coletivos.

Designarei o primeiro desses modos de instrumental-terminológico, que reconhece que a Sociologia vê-se obrigada a trabalhar com conceitos de tipo coletivo por questões de inteligibilidade, ou seja, “se quiser chegar a alguma terminologia inteligível” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9; itálico no original). Exemplo dessa situação é a palavra “Estado”, que, diferentemente do que ocorre no Direito, não implica na Sociologia “que existe para ela uma personalidade coletiva ‘em ação’” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9). Para o olhar sociológico, Estado “refere-se meramente a determinado curso de ação social de indivíduos” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9; itálico no original). Para Weber, os conceitos coletivos presentes no linguajar comum ou mesmo em áreas especializadas do saber podem ser empregados, mas a Sociologia deve conferir-lhe um “sentido inteiramente distinto” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9). Admitindo-se esse procedimento, teríamos que concluir que, na visão weberiana, conceitos coletivos são desprovidos de qualquer conteúdo e só podem ser empregados mediante sua redução ao nível individual. Dito de outro modo, se eles são adotados em virtude do critério da comunicação, o fato é que eles são referentes vazios que não apontam para nenhuma realidade existente em nível coletivo. Aceita essa premissa, a conclusão última é a de que Weber não passa, ao fim e ao cabo, de um atomista no plano ontológico (só existem realmente indivíduos) e um nominalista no plano metodológico (conceitos coletivos são ficções terminológicas úteis), como, por sinal, já sustentava Lars Udehn.

No entanto, as observações de Weber não param por aí e a questão apresenta-se de maneira distinta quando nos deparamos como o segundo modo de relação entre conceitos coletivos e a interpretação da ação. Distintamente do anterior, designo esse modo de substantivo, pois nele enfrenta-se a questão do conteúdo ao qual nos remetem os conceitos de natureza coletiva. Ocorre que, na interpretação da ação, Weber admite que as formações coletivas que fazem parte do pensamento cotidiano “são representações de algo que em parte existe e em parte pretende vigência” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9; itálico no original). Os termos empregados por Weber são bastante enfáticos: os conceitos coletivos não só “existem” efetivamente (Seiendem) como também se apresentam como um “dever ser” (Gelltendensolendem). Mas com um importante qualificativo: “em parte”. Que estranha realidade é essa que existe apenas parcialmente, ou melhor, na dupla condição do ser e do dever ser? Parte da resposta vem logo a seguir: “eles encontram-se na mente de pessoais reais […] e pelas quais [elas] orientam suas ações” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9; itálico no original). Ao afirmar que entidades sociais coletivas existem na mente das pessoas enquanto representações de algo existente, Weber não deixa de atribuir-lhes substância, mas isso não significa que elas existem, à la Durkheim, enquanto realidades sui generis (que subsistem em si e por si). Trata-se de realidades derivadas ou, expresso em outra fórmula, de uma realidade de segunda ordem que toma corpo apenas a partir da crença dos indivíduos (realidade de primeira ordem): “sobretudo como representações de algo que deve ser [etwas Gelten]” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9). A formulação weberiana deixa evidente que essa realidade ideal (pois mental e representacional) depende de um substrato anterior. Dando sequência a essa linha de análise, ele afirma ainda que os indivíduos orientam suas ações por essa representação e, nessa medida, ela “tem importância causal enorme, muitas vezes até dominante para o desenrolar das ações das pessoas reais” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9). Novamente, o que o temos aqui é uma afirmação prenhe de consequências, pois ela atribui poder causal à ordem coletiva no desenrolar das ações.

A argumentação de Weber é assaz densa e as consequências das suas teses são decisivas para o modo como podemos e devemos ler sua concepção individualista de Sociologia. Por isso, uma breve retomada do que foi dito até agora se impõe. No plano ontológico, Weber admite que (1) “pessoas reais”, (2) “representam” em suas “mentes” determinadas formações coletivas, (3) a partir das quais elas “orientam” suas ações, (4) razão pela qual essas realidades incidem “causalmente” (e muitas vezes de modo determinante) sobre o plano da ação. É justamente essa a razão pela qual Weber conclui que uma terminologia técnica exclusiva para a Sociologia seria até possível, mas “esse procedimento seria impossível diante desse fato tão importante” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 1, nota 9).

Embora Weber nem sequer utilize o conceito de sociedade (Gesellschaft) em seu esquema conceitual e esteja convicto da necessidade de lutar contra conceitos substancializados, ele também reconhece os efeitos do nível macro sobre o nível micro. Dessa forma, determinar a exata natureza da Sociologia individualista de Weber, o modo como ele concebia o conteúdo de cada um desses níveis e, especialmente, a relação entre cada um deles constitui um notável desafio teórico. Resta, pois, a inevitável pergunta: que individualismo metodológico é esse? Como vamos verificar, a reposta a essa questão está longe de ser consensual.

Max Weber hoje: emergência ou redução?

Determinar a natureza e a especificidade do individualismo metodológico de Max Weber, bem como avaliar sua pertinência, não é apenas um desafio histórico-exegético, mas, fundamentalmente, uma necessidade teórica. Tal necessidade decorre do esforço que, nos marcos do chamado paradigma weberiano, vem sendo feito por um movimento cujo epicentro é a Universidade de Heidelberg e que se propõe a renovar essa corrente sociológica (Albert, 2003ALBERT, Gert; BIENFAIT, Agathe; SIGMUND, Steffen; WENDT, Claus (orgs.). Das Weber-Paradigma: Studien zur Fortentwicklung von Max Webers Forschungsprogramm. Tübingen: Mohr Siebeck, 2003.; 2006ALBERT, Gert; BIENFAIT, Agathe; SIGMUND, Steffen; STACHURA, Mateusz (orgs.). Aspekte des Weber-Paradigmas. Festschrift für Wolfgang Schluchter: Wiesbaden: Verlag für Sozialwissenschaften, 2006.). Esse movimento busca transcender a condição histórica atribuída a Max Weber enquanto mero fundador e clássico do pensamento sociológico. Com base nesse norte, problematizam-se os esquemas reducionistas de interpretação de sua obra, exploram-se as potencialidades analíticas de sua abordagem e enfrentam-se os desafios e os limites com os quais a proposta de Weber está hoje confrontada. A pergunta que está posta é: Weber ainda é um parceiro defensável no intenso debate que travam as concepções individualistas, holistas e sintéticas de teoria sociológica? Admitindo-se que sim, em que termos? Para examinar essa questão, vou reportar-me ao debate travado por dois autores que desenvolvem leituras antagônicas a respeito da natureza do individualismo metodológico em Max Weber.

Comecemos pela leitura revisionista e heterodoxa de Gert Albert (2005ALBERT, Gert. Moderater metodologischer Holismus: eine weberianische Interpretation des Makro-Mikro-Makro Modells. Kolner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie, n. 57, v. 3, p. 387-413, 2005 <10.1007/s11577-005-0182-9>.
https://doi.org/10.1007/s11577-005-0182-...
; 2009ALBERT, Gert. Weber-Paradigma. In: Georg Kneer; Markus Schroer (orgs.). Handbuch Soziologische Theorien. Wiesbaden: Verlag für Sozialwissenschaften, 2009.), que parte da premissa de que podemos encontrar na Sociologia global de Max Weber uma tendência claramente antirreducionista. Ele sustenta essa hipótese conjugando procedimentos sistemáticos e exegéticos. Pela via sistemática ele identifica quatro vertentes metodológicas no debate entre abordagens micro e macro na Sociologia, que se diferenciam a partir de três fatores, a saber, suas concepções quanto a: (1) emergência, (2) causalidade e (3) explicação. O primeiro desses itens diz respeito à natureza ontológica do nível macro (ou emergente), enquanto os outros dois dizem respeito aos procedimentos metodológicos pelos quais o plano macro e o plano micro são postos em relação: a causalidade indica a direção da relação (se ela vai do macro para o micro ou o contrário) e a explicação diz respeito à natureza lógica da relação causal (se ela é forte ou fraca, quer dizer, se a redução é necessária ou não). Dados esses fatores, temos a seguinte configuração metodológica:

  1. Individualismo metodológico moderado: adota uma concepção fraca do nível emergente e, por essa razão, admite apenas causalidade do plano individual sobre o plano social (direção micro-macro). Essa posição requer uma explicação de tipo forte para apontar como o macro é dependente do micro. Nessa vertente a redução é sempre um passo necessário.

  2. Individualismo metodológico radical: na sua versão radical, a realidade do plano emergente é negada e, por esse motivo, a causalidade ocorre apenas no plano da relação entre os próprios atores sociais (direção micro-micro). Também aqui se requer que a correlação causal (explicação) seja de tipo forte, mas o procedimento da redução não se coloca.

  3. Holismo metodológico radical: na versão radical do holismo, o nível emergente é considerado forte, o que implica assumir que a causalidade ocorre apenas no nível das estruturas sociais (direção macro-macro). O holismo não implica negar a existência de um nível micro, mas ele exclui a necessidade da redução, já que o nível coletivo é considerado autossubsistente.

  4. Holismo metodológico moderado: esta posição admite que o nível emergente é simultaneamente forte e fraco. Isso modifica o estatuto da causalidade, pois agora se admitem duas cadeias de correlação causal: tanto aquela que vai do macro para o micro, quanto aquela que faz o movimento do micro para o macro. Também o modo como concebemos essa relação é dual, já que ela é forte (necessária) no que diz respeito à passagem do micro para o macro, mas ela é fraca no que diz respeito à dependência da esfera micro em relação à esfera macro.

Partindo dessa grade, Gert Albert surpreende-nos com uma posição bastante inusitada, pois situa a Sociologia weberiana no campo da holismo metodológico moderado e não no do individualismo, como apregoa a leitura dominante. De que modo ele chega a essa conclusão? Para sustentar sua perspectiva no plano exegético, Albert abre mão do exame dos textos intrinsecamente metodológicos de Weber, preferindo buscar apoio nas suas pesquisas factuais. A tese é que em suas investigações histórico-empíricas Weber teria adotado uma solução pragmática para contemplar a influência do plano estrutural (macro) sobre a conduta dos atores sociais (micro), elemento não previsto em sua metodologia sociológica. Haveria, portanto, uma contradição entre a formulação lógica (explícita) do método weberiano e sua aplicação no processo de pesquisa (implícita). É na sua metodologia de fato e não na sua formulação abstrata que Albert identifica os traços antirreducionistas de Weber, o que nos permite lê-lo na chave do holismo moderado.

Dois conjuntos de pesquisas são arrolados por Albert como evidências de sua leitura. O primeiro são os escritos weberianos dedicados a explicar a gênese do ethos profissional que está na base do espírito do capitalismo. Nesse caso, Albert demonstra que a análise weberiana descreve como os valores religiosos inscritos na órbita das crenças coletivas impregnam a conduta dos atores sociais, conferindo-lhes uma conotação prático-moral. Dessa feita, antes de explicar como esse modo de condução de vida engendrou as condições para a gênese de um espírito capitalista (passagem do micro para o macro), a análise weberiana dedica-se a entender os estímulos psicológicos das crenças, quer dizer, como os valores religiosos institucionalizados no plano cultural são internalizados pelos sujeitos sociais. Aceita essa premissa, somos forçados a concluir que, na pesquisa histórica, Weber não exclui a determinação do plano macro sobre o plano micro.

O segundo grupo de pesquisas retomado por Albert diz respeito à Sociologia da Dominação. Nesse segundo caso argumenta-se que Weber concede forte grau de autonomia ao plano das instituições políticas, pois ele reconhece suas propriedades emergentes fortes, fenômeno derivado do fato de que as formas de dominação supõem formas específicas de legitimidade. Na leitura de Albert, é a correlação entre estruturas de poder e tipos necessariamente correspondentes de legitimidade (legal, tradicional e carismática) que funda os modelos de dominação e isso ocorre independentemente da configuração dos atores sociais envolvidos nessas relações. Portanto, se o tipo de legitimidade depende de um fator estrutural, teríamos que admitir que a dominação é um fenômeno emergente de tipo forte.

No conjunto, o que Albert faz é dar uma outra roupagem para o que Keith Sawyer denominou de individualismo não reducionista, pois, dessa forma, pode-se preservar da Sociologia weberiana seu individualismo ontológico (apenas indivíduos existem em última instância - são “pessoas reais”), mas sem limitar o método de Weber ao procedimento da redução do macro ao micro. É por essa razão que no modelo quádruplo de Albert a categoria “emergência” fica dividida em uma versão fraca e outra forte. Para ele, o holismo moderado seria a única posição na qual as duas formas de emergência são complementares. É esse privilégio analítico que justifica sua escolha em situar Weber nessa posição, apresentando-o como um holista moderado. O que esse intérprete deseja, em última instância, é demonstrar que em Weber encontramos tanto o método reducionista quanto o emergentista, sendo que nenhum deles possui a primazia analítica. Não é de admirar que em textos posteriores Albert (2011)ALBERT, Gert. Moderater Holismus: emergentische Methodologie einer dritten Soziologie. In: Jens Greve; Annete Schnabel (orgs.). Emergenz: Zur Analyse und Erklarung komplexer Strukturen. Berlin: Suhrkamp, 2011. permita-se também classificar Weber como representante de uma “terceira Sociologia”, situada além da oposição entre individualismo (redução) e holismo (emergência).

Essa posição revisionista é diretamente contestada por Jens Greve (2015)GREVE, Jens. Reduktiver Individualismus: zum Programm und zur Rechtfertigung einer sozialtheoretischen Grundposition. Opladen: Springer VS, 2015., que não abre mão da clássica interpretação de Weber como exemplar do individualismo metodológico. Para sustentar seu ponto de vista, Jens Greve também segue as vias sistemática e exegética. Sob o ângulo sistemático, sua preocupação é antes de tudo crítica e ele esmera-se em demonstrar as contradições lógicas em que estariam envolvidos os partidários da visão emergentista. Essa posição assume três premissas equivocadas. A primeira delas afirma que o social efetiva-se sempre nos indivíduos (monismo ontológico), enquanto a segunda premissa afirma que o nível social é irredutível ao nível individual (emergência forte). Segue-se daí - é a terceira premissa - que o plano macro exerce poder causal sobre o nível individual (macrodeterminação). Irredutibilidade e determinação causal macro são, portanto, os pilares do modelo. Por que essas três teses seriam insustentáveis? Greve entende que as duas premissas finais acima descritas estão em contradição com a primeira, ou seja, não há como afirmar que (1) o social pode realizar-se apenas nos indivíduos e, logo em seguida, sustentar que (2) o social possui poder causal sobre os atores sociais. Se esse fosse o caso, a redução do nível macro ao nível micro seria, de fato, dispensável. Ao contrário disso, admitir que o social realiza-se apenas nos indivíduos é justamente o fator que fundamenta a necessidade incontornável do reducionismo (passagem do micro ao macro) como método de explicação. A tese da superveniência só consegue demonstrar que um formato coletivo (macro) depende da configuração dos seus elementos (micro), mas não oferece qualquer sustentação para demonstrar o poder causal da esfera estrutural sobre a individual. Invertendo esse argumento, o estudioso sustenta que, admitindo-se que apenas o plano micro é uma realidade ontológica, temos que aceitar de maneira correlata que explicar o nível macro requer invariavelmente o reducionismo como método sociológico.

Na perspectiva exegética, Greve entende que para determinar o posicionamento de Weber nos termos do debate macro-micro é necessário que centremos nossa atenção no modo como a Sociologia weberiana lida com o plano coletivo. Ao contrário de Albert, ele não vê nenhuma contradição entre as formulações metodológicas e as pesquisas realizadas por Weber, razão pela qual ele vai buscar nos próprios textos weberianos os parâmetros de sua interpretação. Para refutar o holismo pragmático que Albert identifica em Weber, ele explica que os exemplos da ética protestante e dos tipos de dominação não significam que se aceitem ali formas de macrodeterminação ou de emergência de tipo forte. Teria escapado a Albert atentar para o fato de que a redução do plano macro ao plano micro é uma possibilidade que deve estar, em princípio, sempre à disposição do analista e que, portanto, ao analisar as instituições, Weber não afirma que elas são independentes e autônomas. Mesmo que a redução do plano macro ao micro seja sempre seu fundamento lógico, isso não significa que a análise weberiana não possa concentrar-se teoricamente no plano coletivo em si mesmo: trata-se de não confundir o plano descritivo com o plano explicativo.

Ainda no plano exegético, Greve argumenta que a posição weberiana pode ser elucidada a partir das categorias de “relação social” e “ordem social”, como elaboradas em Economia e sociedade. Ambas deixam muito claro que Weber não concebe o plano coletivo e estrutural como autônomo em relação ao plano micro. Por meio do conceito de relação social Weber coloca em tela o problema da coordenação da ação. O decisivo em relação ao conceito de ação social é que ele é pensado de modo unilateral, enquanto na relação social é a mutualidade que entra em jogo. Por isso, a passagem do conceito de ação social para o conceito de relação social já representa a transição do nível micro para o nível macro de análise. Na relação social, dois atores sociais precisam resolver o problema da dupla contingência e determinar seus planos de ação levando em consideração a escolha alheia. Nos termos de Weber: “por ‘relação social’ entendemos o comportamento reciprocamente referido quanto a seu conteúdo de sentido por uma pluralidade de agentes e que se orienta por essa referência” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 3; itálico no original). Os termos que Weber usa deixam claro que em relação ao conceito de relação social não estamos lidando com uma realidade substancialmente independente e autónoma em relação aos indivíduos, mas de uma realidade relacional: é a mútua determinação dos planos de ação que lhe confere seu significado específico. Ao determinar o significado do conceito de relação social, Weber adota a redução, pois ele decompõe a relação social nos seus elementos constituintes, dados no plano básico da ação social.

A redução repete-se quando Weber passa ao plano posterior da ordem social, conceito com o qual tratou da dimensão macro em seu sentido mais amplo e que, modernamente, costuma ser expresso pelos termos “estrutura” ou “instituição”. Esse conceito é apresentado da seguinte forma: “toda ação social e, por sua vez, particularmente a relação social, pode ser orientada, pelo lado dos participantes, pela representação da existência de uma ordem legítima. À probabilidade de que isso ocorra de fato chamamos de vigência da ordem em questão” (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994., cap. I, § 5). Na definição de Weber destaca-se claramente que ele define a ordem social “pelo lado dos participantes”, quer dizer, a partir do plano micro. Mais uma vez, o que temos é uma redução do consequente ao antecedente: assim como a relação social funda-se na ação social, a ordem social pode ser decomposta em relações sociais.

Resulta como saldo desse debate duas concepções bastante divergentes sobre a relação entre a dimensão micro e a dimensão macro na Sociologia de Weber. Para Albert, é possível encontrar na metodologia weberiana uma concepção forte de emergência que atribui ao plano coletivo relativa independência do plano dos atores. Dessa forma também se torna possível demonstrar como o plano coletivo possui efeitos causais diretos sobre os planos das ações. Já para Jens Greve, a ontologia individualista de Weber é incompatível com uma concepção substantiva do plano emergente e sua metodologia é inequivocamente reducionista, o que implica que a explicação não pode desvincular o plano coletivo de seus fundamentos individuais. Traduzido nos termos do debate contemporâneo, a primeira posição advoga em favor de uma revisão da interpretação de Weber defendendo que, em seu conjunto, sua perspectiva estaria muito mais próxima do holismo moderado ou de uma terceira Sociologia (relacional) do que da clássica posição do individualismo.3 3 Albert não é único a defender esse ponto de vista. Também para Alexander (1987a, p. 15-19) a Sociologia weberiana (assim como a de Parsons) já buscava uma síntese entre as dimensões micro e macro. No mesmo sentido argumenta Schwinn (1993a; 1993b). Já a segunda posição sustenta a tradicional leitura de Weber enquanto individualista metodológico, ainda que defenda seu caráter essencialmente moderado.

Apesar dos diversos problemas que não ficam resolvidos e de diversas outras questões que se abrem, essa controvérsia tem o mérito de colocar em tela que é o modo de articulação entre os planos macro e micro de análise que nos fornece a chave da resposta sobre o caráter da Sociologia weberiana. O problema de fundo consiste em determinar qual a natureza ontológica do plano coletivo e, em função disso, quando e de que modo ele deve ser remetido ao plano fundamental da ação social e explicado por esse plano. O ponto determinante é o grau de autonomia substantiva (ontológica) e explicativa (epistemológica) do plano macro em relação ao plano micro; dependendo de como eles forem articulados resultam leituras distintas de Weber.

Apesar de discordarem quanto ao campo metateórico no qual devemos situar a Sociologia de Weber, chama a atenção o fato de que, para ambos os intérpretes, ele não representa uma versão extrema: seja como holista, seja como individualista, trata-se sempre de um autor moderado. Não se trata de postular diferenças abissais. De todo modo, são frágeis os elementos que nos permitem sustentar que Weber concebia, mesmo que de maneira apenas pragmática, o plano coletivo-estrutural como independente do plano da conduta individual, razão pela qual me parece muito mais pertinente entender a Sociologia weberiana como uma forma de individualismo metodológico moderado. Como assevera Wolfgang Schluchter (2014SCHLUCHTER, Wolfgang. O desencantamento do mundo: seis estudos sobre Max Weber. Rio de Janeiro: UFRJ, 2014., p. 215), na passagem do nível micro para o nível macro, quer dizer, ao longo da transição do nível básico da ação social para os níveis posteriores da relação e da ordem social, o que temos não é a emergência de substâncias, mas apenas de propriedades distintas cuja explicação, em última instância, encontra-se sempre nos portadores significativos da ação social. Como conclusão desse debate parece resultar relativamente claro que, em Weber, o nível macro possui propriedades emergentes fracas e a explicação de suas propriedades requer como passo necessário o procedimento da redução, base última de seu método sociológico.

Considerações finais

Weber definiu sua Sociologia em direta oposição às abordagens organicistas e holistas e repudiou repetidas vezes a substancialização de conceitos. Ainda que não tenha feito uso da expressão “individualismo metodológico”, ele descreveu sua Sociologia como individualista quanto ao método e explicou que o indivíduo deveria ser considerado como o ponto de partida - o átomo - da investigação. Mesmo que seus textos autorizem-nos a inseri-lo na tradição do individualismo metodológico, eles não esclarecem completamente a exata natureza e as implicações ontológicas e epistemológicas de sua abordagem. Segue-se que esse ponto de vista imanente pode vir complementado com uma plataforma teórica transcendente que nos forneça subsídios analíticos para reler e problematizar sua posição em chave contemporânea. O debate metateórico entre individualistas e holistas metodológicos sobre a articulação entre os planos macro e micro na análise sociológica tem-se apresentado como um valioso aliado nessa tarefa.

A partir desse marco analítico vem se consolidando a leitura de que, no plano ontológico, a sociologia weberiana possui um fundamento individualista que rejeita peremptoriamente a substancialização de entes coletivos, quer seja a sociedade concebida como totalidade sui generis, quer sejam as estruturas ou esferas sociais simplesmente desconectadas dos indivíduos. Por outro lado, há relativo consenso de que tal postura não deve ser lida como se ela implicasse premissas atomistas que negam qualquer tipo de efetividade ao nível trans-individual: se a sociedade não existe, nem por isso a dimensão social é constituída apenas por entidades singulares. Mas, se podemos afirmar que esses são os dois limites extremos entre os quais se move a metodologia weberiana, várias questões ainda permanecem em aberto, em particular de que modo ele concebia a natureza ontológica do nível coletivo e, especialmente, qual o vínculo metodológico entre a dimensão estrutural e a dimensão individual da realidade social. É exatamente essa zona indeterminada que os conceitos de emergência e de redução, oriundos do debate holismo vs. individualismo, ajudam-nos, em diversos aspectos, a iluminar.

O ponto nodal da questão consiste em determinar se, na concepção weberiana, o nível emergente deve ser concebido como forte ou fraco, ou seja, se ele possui propriedades ontológicas autónomas ou se ele deve ser considerado como superveniente ou subsidiário em relação ao nível individual. Do debate em curso resulta assentado que, à luz de seus próprios textos, temos boas razões para sustentar que Weber professava e praticava uma forma moderada de individualismo que atribuía propriedades ontológicas fracas e subordinadas ao plano emergente já que, em última instância, este deriva da natureza e da configuração dos seus elementos constituintes: os indivíduos. Em seu modelo a teorização da relação de influência do plano macro sobre o plano micro não está excluída da análise, mas não é postulada em termos de determinação estrutural e sim a partir do plano dos atores. Ela implica, como corolário, que o plano emergente necessita, em princípio, ser remetido ao plano fundante da ação social: o reducionismo é o princípio essencial dessa forma de individualismo. Mas é fato que esta posição não é consensual e que a indagação sobre a unidade metodológica da obra weberiana também pode ser colocada em questionamento.

Apesar de tender para a posição clássica (que lê Weber como um individualista moderado), reconheço que existem outras possibilidades de interpretação de seu método sociológico e mesmo de sua obra em seu conjunto. Portanto, se entendemos que existe uma contradição entre as formulações metodológicas de Weber e sua pesquisa de fato (sociologia da religião, do direito, da política, etc.) e, mais ainda, que em sua teoria está posta uma lacuna no que tange ao modo de conceber e explicar o nível estrutural, isso não impede que a partir dos elementos potenciais nela contidos possamos corrigir e complementar sua análise. Desembocaremos então no relacionismo sociológico. Caso julguemos que ela ainda é válida nos seus próprios termos, quer dizer, enquanto individualismo metodológico moderado, cabe-nos, adicionalmente, defender a plausibilidade intrínseca dessa postura metodológica para lidar com os problemas da análise sociológica. De qualquer forma, de modo heterodoxo ou ortodoxo, continuísta ou revisionista, são muitas as vias que se abrem para uma Sociologia de inspiração weberiana. Uma fórmula pluralista que, possivelmente, Weber aprovaria.

  • 1
    Uma acurada discussão sobre essa célebre dicotomia pode ser encontrada em Domingues (2004DOMINGUES, José M. Ensaios de Sociologia: teoria e pesquisa. Belo Horizonte: UFMG, 2004., p. 39-64).
  • 2
    Na análise desse escrito utilizei a versão em português (Weber, 1994WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1994.), cotejando-a e modificando-a, quando me pareceu necessário, com seu original (Weber, 1980WEBER, Max. Wirtschaft und Gesellschaft. 5. ed. Tübingen: Mohr Siebeck, 1980.).
  • 3
    Albert não é único a defender esse ponto de vista. Também para Alexander (1987aALEXANDER, Jeffrey C. From reduction to linkage: the long view of the micromacro link. In: Jeffrey C. Alexander; Bernhard Giesen; Richard Munch; Neil J. Smelser (orgs.). The micro-macro link. Berkeley: University of California, 1987a., p. 15-19) a Sociologia weberiana (assim como a de Parsons) já buscava uma síntese entre as dimensões micro e macro. No mesmo sentido argumenta Schwinn (1993aSCHWINN, Thomas. Jenseits von Subjektivismus und Objektivismus: Max Weber, Alfred Schütz und Talcott Parsons. Berlin: Duncker & Humboldt, 1993a.; 1993bSCHWINN, Thomas. Max Webers Konzeption des Mikro-Makro Problems. Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie, v. 45, p. 220-237, 1993b.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2015
  • Aceito
    20 Jun 2016
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