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A prece de Frantz Fanon: Oh, meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!

Frantz Fanon's prayer: O my body, make of me always a man who questions!

Resumo:

Baseado nas contribuições de Frantz Fanon, este artigo demonstra que o colonialismo, mediante o racismo, produz uma divisão maniqueísta do mundo entre a zona do ser e a zona do não-ser. Argumenta que os sujeitos coloniais, em geral, e os negros, em particular, habitam a zona do não-ser e, por isso, são invisibilizados pelo olhar imperial. Diante disto, restará ao negro tornar visível sua existência por meio da afirmação de sua identidade e de seu corpo. Concluímos que a afirmação do corpo permite a elaboração do conhecimento a partir de uma localização particular, assim como permite reinventar um projeto político humanista.

Palavras-chave:
Frantz Fanon; Colonialismo; Zona do não-ser; Corpo; (In)visibilidade

Abstract:

Based on Frantz Fanon's contributions, this article shows that colonialism – through racism – creates a polarized division of the world into a zone of being and a zone of non-being. We argue that colonial subjects in general and black people in particular live in a zone of non-being and, therefore, have been invisibilized by the imperial eye. Considering that, black people should make their existence visible by affirming their identity and body. We conclude that the black body's affirmation allows one to elaborate knowledge from a particular standpoint as well as reinvent a humanistic political project.

Keywords:
Frantz Fanon; Colonialism; Zone of non-being; Body; (In)visibility

Introdução

Durante sua curta vida Frantz Fanon (1925-1961) escreveu três livros Peau noir, masques blancs (1952), L'an cinq de la Révolution Algérienne (1959) e Les damnés de la terre (1961). Em 1964, três anos após sua precoce morte aos 36 anos, sua esposa organizou e editou o livro Pour la révolution africaine (1964), composto de artigos publicados nas revistas L'Esprit, Présence Africaine e no jornal tunisiano El Moudjahid.

O compromisso político de Fanon com a luta pela descolonização da África e, em especial, seu envolvimento com a luta pela liberação da Argélia fizeram com que seu nome ficasse fortemente associado à defesa de processos revolucionários dos países do terceiro mundo. Não só o compromisso de Fanon com a luta pela liberação da Argélia, onde atuou entre 1953 e 1956 como médico-chefe do hospital psiquiátrico de Blida-Joinville, mas seu ativismo político em prol do pan-africanismo juntamente com outros líderes africanos, fizeram com que o seu nome estivesse fortemente associado à violência (Macey, 2000MACEY, David. Frantz Fanon: a biography. London: Verso, 2000.).

Entretanto, ao invés de associá-lo à violência, procuraremos neste artigo associá-lo a uma densa leitura crítica do colonialismo e seus efeitos, bem como à tentativa de reestruturação da sociedade, o que, por sua vez, está ligado à possibilidade de surgimento de um novo homem, novos processos de elaboração de conhecimento e novos caminhos políticos. Inspirados pelas interpretações de Gordon (1995GORDON, Lewis. Fanon and the crisis of European man. New York: Routledge, 1995., 1999GORDON, Lewis. Bad faith and antiblack racism. New York: Humanity Books, 1999.), Maldonado-Torres (2008)MALDONADO-TORRES, Nelson. Against war: views from the underside of modernity. Durhan: Duke University Press, 2008. e Grosfoguel (2012)GROSFOGUEL, Ramón. La descolonización del conocimiento: diálogo crítico entre la vision descolonial de Frantz Fanon y la sociologia descolonial de Boaventura de Sousa Santos. 2012 <http://www.iepala.es/IMG/pdf/Analisis-Ramon_Grosfoguel_sobre_Boaventura_y_Fanon.pdf> (23 set. 2016).
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, procuramos interpretar Fanon como um autor chave de um projeto decolonial, entendido como um projeto dedicado a superar as consequências da colonialidade.

Estruturada a partir da ideia de raça, a colonialidade do poder, conceito elaborado por Quijano (2005)QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Edgardo Lander (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 227-278., estabelece divisões raciais na organização do trabalho e estado, nas relações intersubjetivas e na produção do conhecimento. Se, por um lado, a colonialidade do poder estruturou uma divisão em que os sujeitos coloniais, salvo raras exceções, têm posições específicas no mercado de trabalho, nas estruturas de poder e, praticamente não participam da produção do conhecimento; o projeto decolonial, por outro lado, busca superar esta estrutura de poder por meio da decolonialidade do poder, do ser e do saber. É esta contribuição de Fanon a um projeto decolonial que exploraremos neste artigo.

Desenvolveremos algumas questões inicialmente trazidas no livro Pele negra, máscaras brancas e retomadas posteriormente em outros livros de Fanon. Este livro deveria ter sido sua tese de doutorado em psiquiatria pela Universidade de Lyon, todavia foi recusada pela comissão julgadora, sob o argumento de que a tese deveria ter uma abordagem mais positivista. Em seu lugar foi apresentada a tese Troubles mentaux et syndromes psychiatriques dans l'hérédo-dégénération-spino-cérebelleuse: un cas de maladie de Friedreich avec délire de possession (Gordon, 2008GORDON, Lewis. Prefácio. In: Frantz Fanon. Pele negra, máscaras, brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 13).

Embora Fanon tenha estado presente no norte da África durante a segunda guerra mundial, quando lutou contra as forças nazistas como soldado francês, neste livro estão presentes principalmente suas observações sobre o racismo na Martinica e na França. Observações sobre o colonialismo em solo africano aparecerão somente nas suas obras posteriores. Fanon, que até então tinha se pensado e se visto como francês, vivenciou o racismo anti-negro não somente no exército, mas nas ruas das cidades francesas quando, após a vitória sobre a Alemanha nazista, os soldados franceses negros1 1 Martinica, terra natal de Fanon, juntamente com Guadalupe e La Réunion, são remanescentes do império transatlântico estabelecido pela França do ancien régime. Desde 1946, os três territórios tornaram-se départments d'Outre-Mer franceses, sendo seus cidadãos plenos cidadãos franceses (Macey, 2000, p. 32-33). foram preteridos frente aos prisioneiros de guerra italianos pelas mulheres europeias (Bulhan, 1985BULHAN, Hussein Abdilahi. Frantz Fanon and the psychology of oppression. New York/London: Plenum Press, 1985.). Estas observações pessoais foram fundamentais para sua reflexão sobre o colonialismo e seus efeitos, bem como para repensar sua própria identidade.

Basicamente o argumento central desenvolvido nesta obra é a epidermização do racismo: ao se deparar com o racismo, o negro introjeta um complexo de inferioridade e inicia um processo de auto-ilusão, buscando falar, pensar e agir como branco, até o dia em que se depara novamente com o olhar fixador do branco. Neste momento, as máscaras brancas caem: “onde quer que vá, o preto permanece um preto”.2 2 Nessa e em outras passagens o uso do termo ‘preto’ tem uma conotação negativa, enquanto o uso do termo ‘negro’ refere-se à identidade (re)construída pelo próprio negro (Fanon, 2008, p. 149). Como psiquiatra, Fanon pretende liberar o homem negro do seu complexo de inferioridade e trazê-lo de volta à humanidade: “o que nós queremos é ajudar o negro a se libertar do seu arsenal de complexos germinados no seio da situação colonial” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 44).

A epidermização do racismo, ideia-chave apresentada no capítulo ‘a experiência vivida do negro’, remete à discussão sobre a percepção fenomenológica do corpo negro pelo outro imperial e racista. “Mamãe, olhe o preto, estou com medo!” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 105), é a frase que ecoa no mencionado capítulo. Todavia, este mesmo corpo, objetificado e visto, é o corpo que vê, age e reflete conscientemente sobre o mundo. Diferentemente da noção dominante no pensamento ocidental que supõe a separação entre corpo e alma (Quijano, 2005QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Edgardo Lander (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 227-278.), o corpo permite uma perspectiva situada no mundo. O corpo é visto pelo outro, vê o outro e permite-nos imaginar como o outro nos vê. Esta terceira dimensão é fundamental para o desenvolvimento dos nossos papéis sociais e do nosso posicionamento em cada situação.

É a partir desta percepção fenomenológica sobre o corpo que Fanon conclui seu livro: “Minha última prece: Oh, meu corpo, faça sempre de mim um homem que questione!” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 191). A força elocutiva desta frase conecta-se com três temas que desenvolverei neste artigo: a existência de uma zona do não-ser e suas implicações para o negro, o dilema entre visibilidade e invisibilidade e, finalmente, a possibilidade de afirmação do corpo negro e suas implicações políticas e epistemológicas.

A zona do não-ser e suas implicações

A partir das leituras de Fanon podemos afirmar que uma das principais, senão a principal, características de uma sociedade (pós)colonial é o racismo, entendido como um sistema hierárquico que divide a humanidade em superiores e inferiores mediante um sistema de marcas, de acordo com a histórica específica de cada país ou região. Esta linha divisória entre superiores e inferiores tem uma profunda repercussão sobre o que entendemos como humano e, consequentemente, sobre o discurso político sobre o humano: o humanismo.

Nas páginas iniciais de Pele negra, máscaras brancas, Fanon fala da existência de uma zona do não-ser, “uma região extraordinariamente estéril e árida”, habitada pelo negro. O olhar imperial do branco o fixou nesta zona. Em virtude deste olhar fixador, “mesmo me expondo ao ressentimento de meus irmão de cor”, Fanon afirma, “o negro não é um homem” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 26), portanto, não é um ser. Este tema perpassará toda a obra, em alguns momentos de forma explícita em outros de forma implícita.

Para apreender o desejo do homem negro, Fanon diferenciará o desejo deste do desejo do homem branco, que não precisa anunciar sua condição racial, uma vez que ele encarna a concepção universal de homem. Pergunta Fanon: “Que quer o homem? Que quer o homem negro?”. Sua resposta: “O negro quer ser branco” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 27), quer ascender à condição do ser. Para tanto, o não-ser buscará usar máscaras brancas como condição para se elevar à condição de ser. Uma das formas de usar máscaras brancas será por meio da linguagem. O negro antilhano “será tanto mais branco, isto é, se aproximará do homem verdadeiro, na medida em que adota a língua francesa” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 34).

Linguagem não se refere somente à língua enquanto mero instrumento de comunicação, senão a uma instituição social permeada pelos valores de uma cultura. No âmbito da linguagem, enquanto instrumento de comunicação, o antilhano evitará ao máximo falar petit-nègre. Se o francês responder em petit-nègre será o fim, será uma maneira de dizer ao primeiro para ficar no seu lugar, ou seja, sua tentativa de habitar a zona do ser foi frustrada, cabe a ele voltar à zona do não-ser. No âmbito da apreensão da linguagem enquanto uma instituição social permeada de valores, Fanon observará um processo de escravização cultural do antilhano ao assimilar a cultura francesa. Vejamos alguns exemplos: nas escolas, os jovens negros não paravam de repetir “nossos pais, os gauleses”; as crianças, quando liam histórias sobre os selvagens nas obras dos brancos, logo pensavam no preto que vivia na África; quando compunham redações sobre as férias escolares, adolescentes de dez a catorze anos escreviam: “gosto das férias, pois poderei correr nos campos, respirar ar puro e voltar com as faces rosadas” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 141). Da mesma maneira que aqueles que obtinham uma resposta em petit-nègre, aqueles que falavam dos pais gauleses, aqueles que consideravam que o preto era somente aquele que vivia na África ou aqueles que se imaginavam com faces rosadas, todos eram devolvidos a zona do não-ser no encontro com o branco.

Fanon, como homem antilhano, também sofreu esta imposição cultural, até ser devolvido à zona do não-ser após sua participação na segunda guerra mundial e quando foi estudar psiquiatria na França. Diz ele:

Que história é essa de povo negro, de nacionalidade negra? Sou francês. Interesso-me pela cultura francesa, pela civilização francesa, pelo povo francês. Recusamos considerar-nos como algo ‘à margem’, estamos bem no centro do drama francês. Quando homens, não fundamentalmente maus, mas mistificados, invadiram a França para escravizá-la, meu ofício de francês me indicou que meu lugar não era à margem mas no coração do problema. Interesso-me pessoalmente pelo destino da França, pelos valores franceses, pela nação francesa. Que é que eu tenho a ver com um Império Negro? (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 170).

Zona do ser e zona do não-ser é uma divisão maniqueísta imposta pelo colonialismo. Embora o olhar imperial queira produzir cada uma dessas zonas como homogêneas, para Fanon nenhuma delas é homogênea. Entre os não-seres, inferiorizados pela cultura imperial, há uma outra divisão: entre sub-humanos e não-humanos. O antilhano é um sub-humano, que luta por ser reconhecido pelo ser superior, habitante da zona do ser. Mas o antilhano também produz um não-ser inferior a ele, o africano. O primeiro ficará envergonhado quando confundido com senegaleses, por exemplo.

O antilhano (martinicano) é superior ao africano, é de uma espécie diferente, assimilado à metrópole. Mas, na medida em que externamente o antilhano é um pouco africano, pois, diga o que quiser ele é negro, ele é obrigado – como uma reação normal em sua psicologia econômica – a definir nitidamente as fronteiras para se defender de qualquer mau entendido. Podemos dizer que o antilhano não satisfeito em ser superior ao africano, humilha-o. Enquanto o homem branco pode permitir certas liberdades com o africano, o antilhano absolutamente não pode. Isto porque entre brancos e africanos não é preciso nenhuma lembrança: a diferença estampa-se na cara. Mas que catástrofe se o antilhano fosse subitamente tomado por africano! (Fanon, 1967FANON, Frantz. Toward the African revolution. New York: Grove Press, 1967., p. 20).

A constatação de divisões no interior da zona do não-ser permite uma conexão entre as contribuições de Fanon e as recentes discussões em torno do conceito de interseccionalidade. Em outras palavras, as reflexões de Fanon nos permitem pensar como, entre aqueles que habitam esta zona, o desprivilégio racial é vivido de acordo com as dimensões de classe, gênero, sexualidade, cor da pele, nacionalidade etc. Da mesma forma, suas contribuições nos permitem pensar na zona do ser como uma zona heterogênea, em que o privilégio racial é entrecortado por diversos outros eixos de poder: classe, gênero, religiosidade, idioma, sexualidade, nacionalidade etc. (Grosfoguel, 2012GROSFOGUEL, Ramón. La descolonización del conocimiento: diálogo crítico entre la vision descolonial de Frantz Fanon y la sociologia descolonial de Boaventura de Sousa Santos. 2012 <http://www.iepala.es/IMG/pdf/Analisis-Ramon_Grosfoguel_sobre_Boaventura_y_Fanon.pdf> (23 set. 2016).
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).

Fanon é marcadamente crítico ao maniqueísmo colonial e rejeita a “sobredeterminação pelo exterior” do negro. Se na lógica colonial o mundo é visto a partir de uma partição maniqueísta, esta não é a maneira que Fanon o enxerga. Da mesma forma que podemos ver minimamente uma subdivisão na zona do não-ser entre o antilhano e o africano, podemos ver também o esforço de Fanon em não reduzir a zona do ser a uma zona monolítica. Por exemplo, o capítulo sobre minorias europeias no livro A dying colonialism (1965) é dedicado a explicar que nem todos europeus (franceses) e judeus tinham um posicionamento monolítico em relação a guerra de independência da Argélia. Muitos franceses deram apoio aos revolucionários argelinos, sendo inclusive presos e ameaçados de tortura. Em plena ‘cumplicidade com o inimigo’, se engajaram na luta pela liberação. Da mesma forma, muitos judeus apoiaram a guerra de independência, compartilharam o destino de milhões de argelinos e atestaram a realidade multirracial da nação argelina (Fanon, 1965FANON, Frantz. A dying colonialism. New York: Grove Press, 1965.).

Embora Fanon envide esforços para não reduzir a realidade social a uma realidade maniqueísta, o olhar imperial insiste em construir um mundo baseado na divisão entre zona do ser e zona do não-ser. Em outros dois momentos, encontramos esta clara divisão maniqueísta: na descrição da cidade colonial e no uso da medicina também no contexto colonial. Em Os condenados da terra (1968), escrito no último ano de sua vida, após ter exercido a posição de médico-chefe no hospital psiquiátrico de Blida-Joinville e ter viajado por diversos países africanos, Fanon descreve a cidade colonial da seguinte forma:

O mundo colonial é um mundo dividido em compartimentos. Sem dúvida é supérfluo, no plano da descrição, lembrar a existência de cidades indígenas e cidades europeias, de escola para indígena e escolas para europeus […] A linha divisória, a fronteira, é indicada pelos quartéis e delegacias de polícia. Nas colônias, o interlocutor legal e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o gendarme ou o soldado […] Vê-se que o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência […] O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado […] Não basta ao colono afirmar que os valores desertaram, ou melhor, jamais habitaram o mundo colonizado. O indígena é declarado impermeável à ética, ausência de valores, como também negação de valores […] Por vezes este maniqueísmo vai até o fim de sua lógica e desumaniza o colonizado. A rigor, animaliza-o (Fanon, 1968FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968., p. 27-31).

A cisão do mundo colonial, como demonstra esta passagem, não se expressa somente na organização espacial, mas permeia o mundo dos valores. O ciclo se fecha com a desumanização do colonizado e a sua coisificação ou animalização. Neste mundo maniqueísta, espera-se dos condenados da terra o cumprimento de determinados papéis sociais e a circulação restrita a determinados espaços sociais. Quando o colonizado sai do seu lugar, o olhar imperial tentará restituí-lo à sua posição “natural”, à zona do não-ser, por meio da violência simbólica ou física.

Como demonstraremos a frente, o negro será lembrado que é um negro, muitas vezes de maneira sutil. Fanon relata uma experiência pessoal em que numa conferência traçou um paralelo entre a poesia negra e a poesia francesa. Um amigo francês calorosamente elogiando-o, diz: ‘no fundo você é um branco’ (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 50). Este relato evidencia que os negros não podem participar do mundo ordinário dos brancos. Quando coisas ordinárias são feitas por negros, elas parecem extraordinárias para estes não-seres. Portanto, estes são lembrados que não participam do mundo dos seres. Por outro lado, a violência física se manifesta de maneira obvia por meio da força policial no mundo (pós) colonial. Os conflitos são administrados de maneira costumeiramente violenta.

O maniqueísmo espalha seus tentáculos por todo o mundo colonial, ramifica-se, totaliza-se. Além da ética, abrange também o conhecimento. Não são poucas as reflexões de Fanon sobre medicina e colonialismo. A medicina será vista pelo colonizado como parte do sistema opressor: “ciência despolitizada, ciência a serviço do homem, é às vezes inexistente nas colônias” (Fanon, 1965FANON, Frantz. A dying colonialism. New York: Grove Press, 1965., p. 135). Embora o código deontológico médico francês, por exemplo, prescrevesse a privacidade na relação médico e paciente, no contexto da guerra de libertação da Argélia, muitos médicos atuavam com agentes colonialistas não adotando as decisões das autoridades francesas na Argélia, agindo como delatores. Este maniqueísmo também interferirá na relação médico-paciente, quando o primeiro, movido por preconceitos e estereótipos, acreditará que o norte africano inventa doenças, pois este é em essência, segundo os estereótipos imperiais, um falso e não digno de confiança.

A zona do ser e a zona do não-ser podem ter uma conotação geográfica, como podemos ver na descrição da cidade colonial, todavia, esta divisão maniqueísta do mundo tem a ver sobretudo com “uma posicionalidade nas relações raciais de poder que ocorrem em escala global entre centro e periferia, porém que ocorre também em escala nacional e local contra diversos raciais inferiorizados” (Grosfoguel, 2012GROSFOGUEL, Ramón. La descolonización del conocimiento: diálogo crítico entre la vision descolonial de Frantz Fanon y la sociologia descolonial de Boaventura de Sousa Santos. 2012 <http://www.iepala.es/IMG/pdf/Analisis-Ramon_Grosfoguel_sobre_Boaventura_y_Fanon.pdf> (23 set. 2016).
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, p. 99). Neste sentido, a constatação de Fanon ‘onde quer que vá, o preto permanece um preto’ continua tão atual quanto no tempo em que foi escrita. Ao circular pela zona do ser, sua posição na relação de poder sempre será lembrada. Ao afirmar que o negro habita a zona do não-ser, isto implica que estes não poderão ser apreendidos pela ontologia, senão a partir de uma abordagem existencial:

A ontologia, quando se admitir de uma vez por toda que ela deixa de lado a existência, não nos permite compreender o negro. Pois o negro não tem mais de ser negro, mas sê-lo diante do branco […]. Aos olhos do branco o negro não tem resistência ontológica (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 104).

A existência do negro será estudada com intensidade no capítulo ‘a experiência vivida do negro’ de Pele negra, máscaras brancas. Neste capítulo, destaque será dado à percepção fenomenológica do corpo negro e a sua sobre determinação pelo exterior.

O corpo negro: dilemas entre visibilidade e invisibilidade

Se o negro aos olhos do branco não tem resistência ontológica, precisamos ir além do estudo dos seres em si e nos engajarmos no estudo da relação entre seres e não-seres a fim de entendermos como este último experiencia sua vida. Esta é a constatação de Fanon. A experiência vivida do negro será sobretudo dada pelo olhar do branco: “É o racista que cria o inferiorizado” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 90), ou “é o colono que fez e continua a fazer o colonizado” (Fanon, 1968FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968., p. 26) são frases que ecoam na obra de Fanon. Em outras palavras, a racialização e maniqueísmo do mundo são um produto do colonialismo. São um produto do olhar imperial. Não é à toa que metáforas ligadas à visibilidade e à invisibilidade estão intensamente presentes na obra de Fanon (Goldberg, 1996GOLDBERG, Theo David. In/visibility and super/vision: Fanon on race, veils, and discourses of resistance. In: Lewis Gordon, T. Denean Sharpley-Whiting and Renée T. White (eds.). Fanon: a critical reader. Oxford/Cambridge: Blackwell Publisher, 1996. p. 179-200.). O corpo negro é objeto de observação no encontro entre o eu imperial e o outro. Paradoxalmente ao ver o corpo negro, este se torna invisível:

Mamãe, olhe o preto, estou com medo! Medo! Medo! […] Lancei sobre mim um olhar objetivo, descobri minha negridão, minhas características étnicas – e então detonaram meu tímpano com a antropofagia, com o atraso mental, o fetichismo, as taras raciais, os negreiros, e sobretudo com ‘y'a bon banania (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 105-106).3 3 Y'a bon banania refere-se a cartazes publicitários de uma farinha de banana açucarada comercializada na França. Neste rótulo aparecia um soldado de infantaria senegalês com um sorriso abobalhado e estereotipado.

Basta o olhar de uma criança para fixar e objetificar o negro, inclusive o próprio Fanon. A corporalidade marca o negro. Estereótipos são ligados ao negro. Do ponto de vista racista, o corpo negro está preso à natureza, aos instintos selvagens, à sexualidade. Um negro é uma ameaça em potencial, daí o medo da criança. A invenção do negro como um ser inferior o reduz ao silêncio, à não-existência, a nada. O paradoxo da invisibilidade do negro está no fato de ele ser visto. Todavia, ele é visto somente na sua exterioridade a partir de uma sobredeterminação exterior, que o fixou no passado e no atraso. Neste caso, mesmo quando presente o negro está ausente. Não possui individualidade e nem interioridade. Todos os negros são iguais! A pessoa não é vista porque os outros já a conhecem em virtude de concepções pré-formadas em relação ao seu grupo. O diferente é reduzido ao mesmo. Basta conhecer um negro para conhecer todos os demais. Daí a generalização: todos são uma ameaça em potencial.

Por trás desta discussão sobre visibilidade e invisibilidade há a discussão hegeliana sobre reconhecimento. O homem somente se torna humano no momento que é reconhecido pelo outro.

O homem só é humano na medida em que ele quer se impor a outro homem, a fim de ser reconhecido. Enquanto ele não é efetivamente reconhecido pelo outro, é este outro que permanece o tema da sua ação. É deste outro, do reconhecimento por este outro que depende seu valor e sua realidade humana […] ‘A operação unilateral seria inútil, porque o que deve acontecer só pode se efetivar pela ação dos dois’ (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 180-181).

Reconhecimento supõe reciprocidade. No contexto marcado pelo maniqueísmo colonial esta reciprocidade se mostra inviável, a não ser pela reinvenção de um novo mundo. Em Hegel, diz Fanon, há reciprocidade entre o senhor e escravo. Já no mundo marcado pelo maniqueísmo colonial o senhor despreza a consciência do escravo. Por outro lado, se em Hegel o escravo se afasta do senhor e se volta para sua realização no objeto por meio do seu trabalho, no mundo colonial o escravo se volta para o senhor e abandona o objeto. Demanda um reconhecimento que não acontece porque, em última instância, ele não possui resistência ontológica perante o olhar do branco. É considerado mais um objeto no reino das coisas. Não possui humanidade. Em regra, invisibilidade significa ausência, incapacidade, falta de poder. Todavia, as coisas não são tão simples assim. Invisibilidade pode ser estrategicamente utilizada como uma posição de poder.

Goldberg (1996)GOLDBERG, Theo David. In/visibility and super/vision: Fanon on race, veils, and discourses of resistance. In: Lewis Gordon, T. Denean Sharpley-Whiting and Renée T. White (eds.). Fanon: a critical reader. Oxford/Cambridge: Blackwell Publisher, 1996. p. 179-200., inspirado nas contribuições de Lewis Gordon (1999)GORDON, Lewis. Bad faith and antiblack racism. New York: Humanity Books, 1999., discute o dilema entre visibilidade e invisibilidade nos seguintes termos. O racista é antes de tudo um sadista. É aquele perante o qual todos os outros são objetos. Ele define os termos da relação, invocando sua invisibilidade, tratando as coisas como naturalmente determinadas. Ora, se ele tem a capacidade de definir os termos da relação e ao mesmo tempo não se apresenta como racialmente determinado, a situação (pós)colonial parecerá natural e inevitável. Não somente as relações de poder parecerão naturais, mas a própria representação estereotipada do sujeito colonial se apresentará como a ordem natural das coisas. É neste sentido que Fanon afirma em alguns lugares de sua obra que é o colono que cria o colonizado ou o racista é que cria o inferiorizado. Esta criação é tão mais eficiente quanto mais estas representações forem vistas como naturais e universais, interiorizadas inclusive pelo negro que, por isso, deseja imitar o senhor por meio do uso de máscaras brancas.

Reconhecimento, ou a falta do mesmo, poderá ocorrer de acordo com as noções de raça. Brancos são reconhecidos em virtude da branquidade, usualmente não pensada em termos raciais. Este reconhecimento poderá ser estendido àqueles negros de pele clara: os pardos. Isto significa que dentro desta lógica construída pelos brancos haverá “uma alternativa para o progresso e elevação de status para as pessoas negras: a autonegação da sua negritude […]. Em outras palavras, a internalização – epidermização – da inferioridade envolve o reconhecimento da pessoa como branca” (Goldberg, 1996GOLDBERG, Theo David. In/visibility and super/vision: Fanon on race, veils, and discourses of resistance. In: Lewis Gordon, T. Denean Sharpley-Whiting and Renée T. White (eds.). Fanon: a critical reader. Oxford/Cambridge: Blackwell Publisher, 1996. p. 179-200., p. 185). Esta é a lógica da assimilação, um processo que rejeita a diferença e elimina o outro enquanto outro. É este o drama que Fanon observa em Pele negra, máscaras brancas, um mundo dominado econômica e politicamente pelos brancos, em que os negros, destituídos de resistência ontológica, não conseguem estabelecer um sistema de representação capaz de gerar resistência ao sistema de representação dominante. Ao contrário, o negro epidermiza o sistema de representação do branco, procurando imitá-lo. Diante disto, Fanon visualiza somente uma saída: afirmar-se como negro, vestir a máscara negra: “Desde que era impossível livrar-me de um complexo inato, decidi me afirmar como negro. Uma vez que o outro hesitava em me reconhecer, só havia uma solução: fazer-me conhecer” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 108). Se o homem negro era invisibilizado pelos estereótipos e reduzido ao silêncio e à não-existência, principalmente porque internalizava estes estereótipos, cabia ao negro se afirmar. Esta afirmação, como um ato político, consistirá em tornar o invisível visível. Significa a afirmação do corpo negro como uma agência de intervenção política e intelectual.

Um corpo que questiona: um novo humanismo

O corpo é visto, vê e é reconhecido corretamente ou não. O corpo é o objeto do olhar estereotipado. É pelo olhar branco que o corpo negro é esvaziado de resistência ontológica e remetido à zona do não-ser. Pelo processo de epidermização da inferioridade, o negro procura embranquecer. Por outro lado, este mesmo corpo pode ser uma agência de resistência e elaboração do conhecimento ao assumir sua visibilidade. Diferentemente da lógica da branquidade que não assume sua marca racial e, portanto, apresenta-se como universal, o corpo negro, como parte de um projeto de liberação, assume a sua localização dentro do mundo colonial. Diante disso, a luta política consistirá numa luta pela afirmação da visibilidade do invisível. Diferentemente de um projeto de autonegação da negritude a fim de ser assimilado ou aceito pelo olhar branco, a estratégia política passará pela afirmação da negritude. As considerações de Fanon sobre a Negritude,4 4 Ao falarmos de Negritude com a inicial maiúscula estamos nos referindo ao movimento poético fundado por Césaire, Damas e Senghor. Por falta de um termo mais apropriado, quando utilizamos o termo negritude, com a inicial minúscula, estamos utilizando como o sentido do termo em inglês blackness. o movimento poético criado por Aimé Césaire, León Damas e Léopold Sédar-Senghor, estão longe de serem simples. Fanon critica a obra Orfeu Negro, escrito por Sartre como prefácio à Antologia da poesia negra e malgaxe editada por Senghor. Neste prefácio, Sartre defende que a Negritude é o polo negativo da dialética, portanto, uma fase transitória:

De fato, Negritude aparece como um momento otimista do progresso dialético: a afirmação prática e teórica da supremacia branca é a tese; a posição da Negritude como um valor antitético é o momento de negatividade. Mas este momento de negatividade não é suficiente em si mesmo e esses homens negros, que usam isso perfeitamente bem, sabem que eles estão preparando a síntese ou a realização do ser humano numa sociedade sem raças. Assim, a Negritude é para destruir a si própria, é um ponto a ser cruzado e não um ponto de partida, um meio e não um fim (Sartre, 1988SARTRE, Jean Paul. What is literature? And other essays. Cambridge: Havard University Press, 1988., p. 327).

Para Fanon, o erro de Sartre foi destruir o entusiasmo negro. Quando leu estas passagens de Orfeu Negro, sentiu que sua última chance de retirar o negro da zona do não-ser e da invisibilidade tinha sido roubada. Diz ele: “Jean-Paul Sartre, neste estudo, destruiu o entusiasmo negro. Contra o devir histórico, deveríamos opor a imprevisibilidade” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 122).

Ao afirmar que os negros tenham um papel transitório no processo histórico, Sartre negou a possibilidade dos negros de terem um papel ativo na história: “Nada mais desagradável do que esta frase: ‘você mudará, menino, quando eu era jovem eu também… você verá, tudo passa…” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 122). Por isso, Fanon opõe à dialética a noção de imprevisibilidade, que não antecipar o fim da história, mas, ao contrário, ao supor o devir histórico aberto, garante um papel ativo aos sujeitos coloniais no processo sem garantias de reestruturação do mundo.

Mesmo sabendo que Fanon critica a Negritude em Os condenados da terra – no capítulo intitulado Sobre a cultura nacional, previamente apresentado no Segundo Congresso dos Escritores Negros e Artistas Negros, realizado em Roma, em 1959 –, sua posição será fundamentada no fato da Negritude não ter levado em consideração a diversidade das culturas negras. Em outras palavras, Fanon, diferentemente de Sartre, entende que a subjetividade negra não se baseia numa ideia de black soul ou em certas qualidades de pensamento e conduta dos negros. Ao contrário, a subjetividade negra é vista como um construto histórico-social, por isso, marcada por heterogeneidades. Os negros americanos, diz Fanon, percebiam que seus problemas existenciais eram diferentes dos problemas que se colocavam para os negros nigerianos: “Os negros de Chicago só se pareciam com os da Nigéria e Tanganica (atual Tanzânia) na exata medida em que todos eles se definiam em relação aos brancos […] os problemas objetivos eram fundamentalmente heterogêneos” (Fanon, 1968FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968., p. 179). Neste sentido, Negritude não pode ser pensada como uma comunidade de origem, senão de destino: “O homem colonizado que escreve para seu povo deve, quando utiliza o passado, fazê-lo com o propósito de abrir o futuro, convidar à ação, fundar a esperança” (Fanon, 1968FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968., p. 193). Esta luta para abrir o futuro e fundar a esperança será uma luta de autoafirmação dos corpos negros, será uma luta para recuperar a visibilidade dos corpos negros. Ao tornar os corpos negros visíveis, já não operaremos a partir da fixação e estereotipia, mas a partir de um correto entendimento da diferença em que múltiplas e heterogêneas máscaras brancas e múltiplas e heterogêneas máscaras negras possam se afirmar e coexistir.

Viver a diferença é um destino aberto e imprevisível. Não se trata de supor uma ingênua superação das relações de poder, mas de lutar por sua reconfiguração e reestruturação. Neste sentido, nos alinhamos com a indagação de Homi Bhabha:

Chegou a hora de voltar a Fanon; como sempre, acredito, com uma pergunta: de que forma o mundo humano pode viver sua diferença; de que forma um ser humano pode viver Outra-mente (Other-wise) (Bhabha, 2001BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: EdUFMG, 2001., p. 103).

Neste futuro imprevisível e em aberto, não há uma oposição entre corpo e alma. Não há a utilização estratégica da invisibilidade a fim de que as relações desiguais de poder possam parecer como a ordem natural das coisas. Ao contrário desta suposta invisibilidade, Fanon afirmará o corpo negro não somente como um projeto político de construir um novo humanismo, mas também como um projeto político que estabelece uma nova forma de conhecer. Seguimos aqui as originais contribuições de Lewis Gordon sobre o corpo na obra de Fanon. Diz ele:

Tire a perspectiva dos meus olhos e eu perco a visão; tire a perspectiva dos meus ouvidos, e eu não escuto nada; minha língua, e não sinto o paladar de nada; meu nariz, e não cheiro nada; minha pele, e não sinto nada. Meu corpo não pode ser retirado de mim (Gordon, 1999GORDON, Lewis. Bad faith and antiblack racism. New York: Humanity Books, 1999., p. 33).

Segundo Gordon, a concepção fanoniana do corpo não supõe a moderna separação entre corpo e mente, ao invés disso, corpo e mente estão intensamente entrelaçados de tal forma que não faz sentido falar nesta dualidade. Somente a partir do corpo é que podemos nos posicionar no mundo: ouvir, falar, sentir o gosto do alimento, cheirar, sentir o tato das coisas, nos relacionar com os outros e, principalmente, pensar. O corpo, portanto, como parte de um projeto político, precisa ser afirmado, precisa tornar-se visível, precisa recuperar sua resistência ontológica.

Os corpos negros foram produzidos como invisíveis, sem peso ontológico, habitantes da zona do não-ser, estereotipados pelo olhar imperial. Esta invisibilidade é diferente da invisibilidade sadista que institui um sistema de dominação como a ordem natural das coisas para o seu próprio proveito. A invisibilidade estrategicamente utilizada pelo eu-imperial é aquela em que ele define os termos da relação, porém não anuncia sua posicionalidade, fazendo com que a realidade pareça natural e inevitável. Tanto as relações de poder quanto a representação do sujeito colonial serão apresentadas como normais. Na esteira dessa invisibilidade estratégica será construído o mito da universalidade do conhecimento, como um conhecimento sem ponto de vista, desinteressado. Dentro desta lógica, os estereótipos que estouraram os tímpanos de Fanon, que o devolveram ao atraso e à antropofagia não seriam um conhecimento a partir de um ponto de vista particular, senão a ordem natural das coisas. O contingente é tomado como eterno.

Ao defender uma concepção que entrelaça corpo e mente, corpo e consciência, evidencia-se a posição nas relações de poder daquele que vê, fala, escuta, cheira, tateia e pensa. Sem uma corporificação, seríamos semelhantes a deuses. Com a corporificação temos vidas particulares.

Um corpo nunca é um corpo por si mesmo, mas um corpo vivo, um corpo que age entre coisas e outros corpos, um corpo visto pelos outros. Isto poderia parecer que um corpo visto pelos outros seria visto como um objeto, como uma coisa, mas este não é o caso. Um corpo como uma coisa, como pura corporalidade, é sem vida; é um cadáver no mundo (Gordon, 1999GORDON, Lewis. Bad faith and antiblack racism. New York: Humanity Books, 1999., p. 35).

Um corpo que age entre outras coisas e outros corpos é um corpo que tem resistência ontológica, que está presente no mundo, que ocupa a zona do ser. Se para o olhar imperial será possível objetificar o outro, pois este habita a zona do não-ser, Fanon, quando estudante de medicina em Lyon, terá dificuldades de efetuar esta separação:

A análise do real é delicada. Um pesquisador pode adotar duas atitudes diante de seu tema. Na primeira ele se contenta em descrever – à maneira do anatomista que se surpreende quando, ao descrever a tíbia, alguém lhe pergunta o número de depressões antiperoneais que ele possui. É que, nas suas pesquisas, os anatomistas nunca tratam de si próprios, mas dos outros; no início dos nossos estudos médicos, após algumas sessões nauseabundas de dissecação, pedimos a um calejado para nos dizer como evitar o mal-estar. Ele nos respondeu simplesmente: ‘meu caro, faça como se você estivesse dissecando um gato, e tudo irá bem’. Na segunda atitude, após ter descrito a realidade, o pesquisador se propõe a modificá-la (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 145).

Agir como se estivesse dissecando um gato é o artifício mental para evitar qualquer envolvimento, empatia com o objeto de estudo, pois este foi remetido à zona do não-ser. Mais ainda: é uma atitude de resignação ao mundo, é o ato de conceber o transitório como definitivo. Portanto, a única atitude possível e desejável será descrever o mundo. Diferentemente, a segunda atitude envolve um compromisso político-afetivo com os sujeitos. Fanon na conclusão de Pele negra, máscaras brancas afirma que no estudo empreendido não foi possível ser objetivo, ou melhor, a objetividade foi proibida porque o alienado, o neurótico, o complexado era seu pai, sua irmã, seu irmão, em última instância, era ele mesmo, vítima do olhar imperial fixador.

Mas o corpo fixado na zona do não-ser, invisibilizado mesmo quando presente, é também o corpo que vê, que devolve um olhar ao outro imperial e hegemônico. Ao diagnosticar a psicopatologia do negro na sociedade (pós) colonial, Fanon automaticamente diagnostica a psicopatologia que recaía sobre o outro imperial. Em outras palavras, o fenômeno psicológico está imbricado nas relações sociais vividas pelo negro: “A desgraça do homem de cor é ter sido escravizado. A desgraça e a desumanidade do branco consiste em ter matado o homem em algum lugar” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 190).

Por um lado, ao reconhecer a desumanidade do branco, reconhece-se que o rei está nu. O corpo branco já não se esconde atrás do véu do universalismo, da objetividade, mas se apresenta também como um corpo particular, que constrói um mundo e o interpreta a partir de uma visão particularista e interessada. Por outro lado, ao privilegiar o olhar daqueles que habitam a zona do não-ser, Fanon positiva esta localidade não como uma posicionalidade na qual devamos permanecer nela, mas como uma posicionalidade capaz de fazer uma crítica radical ao projeto moderno e sua definição limitada do humano. Abre-se a possibilidade de se construir o conhecimento a partir da diferença, não sendo mais necessária a mímica da representação, das categorias e das interpretações dos senhores.

Afirmar a visibilidade do corpo que até então estava invisibilizado é por si só um ato que propõe a modificar a realidade descrita. Ao mesmo tempo em que aponta o limite do ‘humanismo racista’ (Sartre, 1968SARTRE, Jean Paul. Prefácio. In: Frantz Fanon. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 3-21., p. 17) – entendido como aquele que somente pode produzir homens ao fabricar escravos e monstros –, a visibilidade do corpo negro aponta para a possibilidade de recuperar a condição do ser accional. O homem é um não, mas também é um sim: “Sim à vida. Sim ao amor. Sim à generosidade. Mas o homem também é um não. Não ao desprezo do homem. Não à indignidade do homem. À exploração do homem. Ao assassinato daquilo que há de mais humano no homem: a liberdade” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 184).

A afirmação do corpo negro, até então relegada à zona do não-ser, envolve a reestruturação do mundo. Esta, por sua vez, envolve a destruição do maniqueísmo colonial, envolve a negação da clivagem entre zona do ser e zona do não-ser, envolve a restauração de uma autêntica comunicação, envolve, enfim, um novo humanismo. Fanon apresenta este novo humanismo, que supõe uma comunicação autêntica, de maneira magistral no artigo A síndrome do norte africano. Este artigo é direcionado aos médicos franceses que, em virtude da clivagem entre zona do ser e zona do não-ser, consideram o paciente norte-africano falso, impreciso, indisciplinado, quase sempre portador de uma doença imaginária. Diante deste posicionamento dos médicos franceses, questiona Fanon:

Este homem que você coisifica chamando-o sistematicamente de Mohammed, que você reconstrói, ou melhor, que você dissolve com base numa ideia que você considera repulsiva (você sabe perfeita- mente que você rouba dele alguma coisa, uma coisa para a qual não muito tempo atrás você estava pronto para dar inclusive sua vida). Bem, você não tem a impressão que você o está esvaziando desta substância? […] Qual sua solução, senhor? Não me pressione. Não me force a dizer o que você deveria saber. Se você não recupera o homem que está diante de ti, como posso supor que você recupera o homem que está em você? Se você não quer o homem que está diante de ti, como posso acreditar que este homem talvez esteja em você? Se você não reivindica o homem, se você não sacrifica o homem que está em você […] por qual tipo de raciocínio mágico eu irei adquirir a certeza de que você também é digno de meu amor? (Fanon, 1967FANON, Frantz. Toward the African revolution. New York: Grove Press, 1967., p. 14-16).

Afirmar a visibilidade do invisível talvez seja um dos principais objetivos da luta política nos dias atuais. Este é um ato de afirmação não somente daqueles relegados à zona do não-ser, mas também, paradoxalmente, a afirmação daqueles que estão na zona do ser. A criação de um mundo humano por meio de um processo de mútuo reconhecimento ou autêntica comunicação é o que alimenta e continua alimentando as esperanças e ações políticas daqueles corpos que sempre questionam.

Conclusão

A prece de Fanon, “Oh, meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!”, é o fio condutor de uma reflexão sobre o colonialismo e seus efeitos, bem como é a manifestação do desejo de elevar os sujeitos coloniais ao pleno reconhecimento humano. Entretanto, o alcance deste reconhecimento não é uma outorga, senão uma conquista mediante uma luta. Se nos anos 1950 e 1960 essa luta significava um enfrentamento político e armado contra colonialismo – como no caso da luta pela descolonização da Argélia, observada de perto por Fanon –, hoje esta luta passa pela afirmação da visibilidade do invisível. Em outras palavras, hoje esta luta significa substituir as máscaras brancas pelas máscaras negras como um passo fundamental para o desenvolvimento do projeto de um novo humanismo, um humanismo que não esteja limitado à experiência histórica e cultural apenas das populações europeias e seus descendentes espalhados pelo mundo, mas que inclua os sujeitos coloniais, até então, habitantes da zona do não-ser.

Na esteira do que afirma Fanon, precisamos de um processo de reestruturação do mundo. Além da frente propriamente ética, muitas outras frentes de atuação se colocam nesta luta por um novo humanismo: econômica, política, epistemológica, por exemplo. Do ponto de vista econômico, precisamos urgentemente retomar a discussão sobre a realização humana via trabalho, o que envolve o combate às desigualdades econômicas de um modo geral e às desigualdades herdadas do colonialismo, que se manifestam numa perversa divisão racial e de gênero do trabalho. Do ponto de vista político, precisamos também repensar o sistema de representação política. A exemplo de experiências positivas que ocorrem em diversos países é preciso o desenho de um sistema político que garanta a representatividade da população, com respeito à sua diversidade. Do ponto de vista epistemológico, especialmente no campo das humanidades, precisamos afirmar a visibilidade do corpo que questiona e que fala.

Os desafios para a reestruturação do mundo não se encerraram com a onda de descolonização dos países latino-americanos no início do século 19 e dos países africanos e asiáticos em meados do século 20. Inquestionavelmente importantes, estes processos atingiram apenas a parte mais superficial do longo processo de descolonização, a dimensão político-administrativa. Outra descolonização mais ampla e radical ainda está por ser realizada, uma descolonização que permita recuperar o homem para além da supremacia branca e da inferioridade negra. Todavia, como assinala Fanon, esta descolonização não tem resultados garantidos, sendo marcada pela imprevisibilidade. Ao nos comprometermos politica e afetivamente com este processo, podemos recuperar o homem que está em nós mediante o processo de reconhecer o homem que está diante de nós. Por isso, repetimos a prece de Fanon, “Oh, meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!”. A partir deste questionamento, podemos reconhecer que o homem também é um sim: sim à vida, sim ao amor, sim à generosidade.

  • Este artigo foi produzido no âmbito do projeto de pós-doutorado (processo BEX-1688/14-6), financiado pela Capes, a quem o autor agradece
  • 1
    Martinica, terra natal de Fanon, juntamente com Guadalupe e La Réunion, são remanescentes do império transatlântico estabelecido pela França do ancien régime. Desde 1946, os três territórios tornaram-se départments d'Outre-Mer franceses, sendo seus cidadãos plenos cidadãos franceses (Macey, 2000MACEY, David. Frantz Fanon: a biography. London: Verso, 2000., p. 32-33).
  • 2
    Nessa e em outras passagens o uso do termo ‘preto’ tem uma conotação negativa, enquanto o uso do termo ‘negro’ refere-se à identidade (re)construída pelo próprio negro (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008., p. 149).
  • 3
    Y'a bon banania refere-se a cartazes publicitários de uma farinha de banana açucarada comercializada na França. Neste rótulo aparecia um soldado de infantaria senegalês com um sorriso abobalhado e estereotipado.
  • 4
    Ao falarmos de Negritude com a inicial maiúscula estamos nos referindo ao movimento poético fundado por Césaire, Damas e Senghor. Por falta de um termo mais apropriado, quando utilizamos o termo negritude, com a inicial minúscula, estamos utilizando como o sentido do termo em inglês blackness.

Referências

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    » http://www.iepala.es/IMG/pdf/Analisis-Ramon_Grosfoguel_sobre_Boaventura_y_Fanon.pdf
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  • SARTRE, Jean Paul. What is literature? And other essays. Cambridge: Havard University Press, 1988.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2016
  • Aceito
    09 Set 2016
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