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Segurança pública e reforma das polícias na América Latina

Public security and police reform in Latin America

Os processos de democratização dos países da América Latina, ocorridos a partir dos anos 80, de maneira geral não foram capazes de gerar processos de transformação consistentes das forças de segurança pública, dificultando, em alguns casos, o enfrentamento da criminalidade violenta, e não equacionando problemas estruturais da relação entre as polícias, os poderes de estado e a sociedade civil em democracia.

Por outro lado, desde o final dos anos 90 se desenvolveram em países da América do Sul processos de mudança política extraordinariamente significativos, ligados ao ascenso de alianças e programas políticos com caráter “pós-neoliberal” e “pós-conservador”, que ganharam eleições gerais e construíram governos nacionais que buscaram colocar em marcha estratégias e iniciativas governamentais que recorreram, para sua formulação e legitimação, a vocabulários provenientes de uma rica e complexa tradição política de esquerda, com importantes variações entre si vinculadas aos contextos nacionais.

Estas experiências buscaram superar os efeitos econômicos, sociais e culturais de difusão do neoliberalismo e do neoconservadorismo no continente, desde a década de 70, mobilizados nos marcos de regimes políticos marcados por uma cidadania de “baixa intensidade”. Como as experiências dos governos nacionais, alimentados pela tradição da esquerda na América do Sul, reagiram no terreno das políticas de segurança frente ao delito? Que reformas foram encaminhadas, que mudanças e que continuidades tem ocorrido frente ao período anterior? Quais os avanços e dificuldades enfrentados?

O presente dossiê reúne contribuições de pesquisadores latino-americanos que vêm refletindo sobre temas relacionados com o debate sobre os modelos de polícia, a formação policial, a cultura e o habitus institucional das polícias, as taxas de letalidade policial e de esclarecimento de delitos, bem como as iniciativas legislativas e administrativas que vêm sendo implementadas nos países da região para a reforma das instituições policiais. São discutidas as experiências chilena, argentina, venezuelana e brasileira.

Do amplo painel aqui apresentado, com diferentes perspectivas teóricas, mas centrado na realidade empírica de cada um dos países analisados, desde uma perspectiva histórica e sociológica, não há como deixar de concluir que o desafio de reforma das polícias no continente não é simples, pois as barreiras para a mudança são de diversos âmbitos, desde a história institucional, passando pela matriz autoritária e sua atualização, as divisões internas das polícias, o corporativismo e as disputas de poder em torno das funções policiais, a cultura de baixa eficiência na gestão pública e de descontinuidade administrativa, o senso comum punitivista e a pouca propensão do sistema político dos diversos países para atuar de forma contundente para o aperfeiçoamento das instituições policiais.

Se é possível identificar uma constante nos processos de transição à democracia, é justamente a de que não se efetivaram reformas profundas das instituições policiais, em que pese suas deficiências evidentes para o controle do delito e suas práticas marcadas pelo legado autoritário. Este é sem dúvida o caso da Argentina, do Chile e do Brasil, abordados no dossiê, mas se poderia dizer o mesmo do Uruguai e da Bolívia. Importante registrar o fato de que na Venezuela não houve ditaduras militares desde o final dos anos 50, graças ao chamado “Pacto de Punto Fijo”, acordo político firmado em 1958 entre os três grandes partidos venezuelanos para assegurar a governabilidade democrática.

De outro lado, há diferenças importantes nos níveis e tipos de criminalidade nos diferentes países abordados. Enquanto os anos 80 e 90 marcam um crescimento significativo do delito violento no Brasil e também na Argentina, os níveis não são os mesmos. No Chile, o mesmo fenômeno não ocorreu, assim como na Venezuela, em que o crescimento dos homicídios tem um importante incremento somente nos anos 2000. De qualquer modo, de maneira geral as tentativas de reformas policiais surgem menos em virtude do crescimento das estatísticas criminais, e mais da construção social e política de uma “crise de insegurança”, interpretada também como uma crise das instituições policiais, especialmente relacionada com escândalos de abuso de violência e corrupção policial, marcadamente no caso argentino.

A publicação do dossiê ocorre no contexto de uma crescente compreensão de que a área da segurança pública no Brasil necessita de reformas urgentes e importantes para dar conta de deficiências históricas. A situação da segurança pública no país é dramática, as estatísticas criminais seguem desafiando os formuladores de políticas públicas de segurança, e a arquitetura institucional que vincula os três entes federativos e as instituições policiais segue defasada e pouco efetiva na divisão de responsabilidades. As estruturas policiais estaduais, embora similares na divisão do ciclo de policiamento, têm histórias e culturas institucionais que guardam especificidades importantes, assim como homologias significativas, e padecem de vícios derivados da militarização e do bacharelismo burocrático. De todos os casos apresentados, o Brasil é claramente aquele que menos avançou ao menos na tentativa de reformas.

Buscando contribuir para impulsionar e qualificar o debate, o presente dossiê inicia com o artigo de Máximo Sozzo, refletindo sobre os legados ditatoriais sobre as polícias da América do Sul. Sozzo identifica na militarização das forças policiais e na baixa efetividade das garantias legais para o controle das polícias os problemas cruciais, e aponta como têm sido enfrentados em diferentes contextos de transição democrática na região, e que resultados têm sido alcançados. O artigo discute o passado remoto da tradição autoritária na formação das polícias, sua atualização no período ditatorial e as mudanças e continuidades nas práticas policiais contemporâneas, apresentando exemplos do caso argentino.

Em seguida Lucía Dammert discute o tema da confiança na polícia, tomando por base os Carabineros de Chile, uma das polícias melhor avaliadas pelo público em toda a região. Para Dammert, se por um lado a confiança é um elemento positivo, por outro limitou a possibilidade de intervenção política, inibindo reformas importantes. O artigo reflete sobre a experiência chilena desde os anos 90, com níveis estáveis de criminalidade e aumento da preocupação social com o delito, e propõe que se dê atenção aos grupos que mostram maior desconfiança e insatisfação com o trabalho policial (jovens e pobres), para identificar os problemas e avançar nas reformas.

Ainda discutindo o caso chileno, Paul Hathazy propõe um amplo exercício de análise sobre as principais mudanças organizacionais das polícias chilenas desde os anos 90, com a redemocratização. Seguindo a teoria dos campos de Bourdieu, Hathazy discute o campo policial no Chile, a partir de um novo consenso gestado sobre as funções policiais que estabeleceu novas doutrinas e modos de atuação dos Carabineros e da Policía de Investigaciones, e identifica as lutas no interior do campo, onde cada uma das duas polícias são afetadas pelas relações de maior ou menor autonomia frente ao Poder Executivo e também frente ao que denomina uma nova ortodoxia democrática.

Em seguida Andrés Antillano discute a reforma policial iniciada na Venezuela a partir de 2006, entendida como um regime de mudanças que incluem maior visibilidade, protagonismo de atores externos, transversalização de temas políticos em contraste com o tradicional “apoliticismo”, e inserção em redes globalizadas. Antillano discute as condições de possibilidade para o processo de reformas, bem como explora as razões para seu possível fracasso.

Refletindo sobre o mesmo contexto, Luis Gerardo Gabaldón discute as tendências de funcionamento do controle policial frente à violência delitiva na Venezuela chavista. Frente ao desafio de enfrentar altas taxas de homicídio, que aumentam de forma sustentada desde a década de 90, o governo venezuelano procurou atacar as desigualdades sociais e reformar a polícia no sentido de um melhor desempenho técnico e racionalização do uso da força. Gabaldón identifica na não conclusão das reformas policiais, na ineficácia do controle de armas de fogo e na crescente militarização da segurança, os fatores que contribuíram ao incremento situacional da violência, apesar da redução da desigualdade social.

Sobre o caso brasileiro, o dossiê traz três artigos. Rodrigo Azevedo e Andréa Ana Nascimento iniciam discutindo a permanência autoritária e as perspectivas de mudanças das Polícias no Brasil, trazendo um breve histórico das origens das forças policiais e do legado autoritário sobre suas estruturas institucionais. Em seguida, são apresentadas e discutidas algumas tentativas de reforma nas polícias, com enfoque especialmente na implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e das Delegacias Legais (PDL) no estado do Rio de Janeiro. Em seguida são apresentadas e discutidas as propostas de reforma inseridas na Proposta de Emenda Constitucional 51, assim como no relatório da Comissão Nacional da Verdade, que sugeriu uma série de reformas das estruturas policiais para realizar a transição democrática no âmbito da segurança pública.

Em seguida, André Zanetic, Bruno Paes Manso, Ariadne Natal e Thiago Oliveira propõem discutir as políticas de segurança pública no Brasil levando em conta o fato de que tem predominado entre os seus proponentes a teoria da dissuasão, baseada na crença em medidas como a ampliação do patrulhamento ostensivo, o aumento das redes de vigilância e das prisões em flagrante. O trabalho propõe substituir a teoria da dissuasão pela teoria da legitimidade, vinculando a maior eficácia da ação policial na justeza procedimental, para a definição de uma agenda de pesquisa sobre as reformas das polícias no Brasil e na América Latina.

Ainda sobre o caso brasileiro, Claudio Beato e Ludmila Ribeiro apresentam uma reflexão sobre os limites e possibilidades da reforma das polícias, partindo das evidências sobre a pouca eficácia dos mecanismos de controle da atividade policial e das próprias polícias no controle do crime. Os autores analisam as diferentes propostas em pauta, desde mudanças pontuais até transformações estruturais, apontando as dificuldades que necessariamente teriam que ser enfrentadas, sejam quais forem as opções adotadas.

Esperamos que o presente dossiê estimule o debate e o diálogo sobre as experiências de reforma das polícias em nossa região, tanto pela qualidade dos aportes teóricos aqui apresentados, como pela descrição de contextos e processos políticos que guardam grande similitude, seja pela tradição autoritária que subjaz ao funcionamento das polícias nos vários países, seja pelos desafios de submeter as cúpulas policiais ao poder civil, que por sua vez necessita orientar os processos de reforma na direção de um maior controle público, maior transparência e maior eficiência no controle do crime, viabilizando a tão necessária redução da violência. Enfrentar o desafio da reforma das polícias parece ser questão cada vez mais premente para a consolidação democrática. A incapacidade política de levar à frente esta reforma nos coloca diante da possibilidade do eterno retorno do autoritarismo, tanto pela desconfiança popular com a efetividade da democracia para a garantia dos direitos individuais para grande parte da população, seja pela espiral de violência criminal que reforça a tentação autoritária.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016
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