Introdução
Neste artigo apresentamos algumas reflexões respeito do papel das teorias e da teorização nos debates e estudos sobre o regionalismo latinoamericano. Argumenta-se que a teorização que está enraizada num contexto regional é essencial para uma compreensão profunda e relevante do fenômeno. Ao mesmo tempo, propõe-se uma avaliação matizada da importação de teoria. Usar o conhecimento e a teorização específicos do contexto e do caso não é incompatível com o uso de quadros teóricos mais gerais que permitam o trabalho comparativo entre regiões e o fluxo de conhecimento inter-regional.
Este trabalho tem dois objetivos. Por um lado, explora-se a existência de vozes e ideias latino-americanas sobre a integração regional e, em particular, busca-se verificar se essas vozes contribuíram para a teorização do regionalismo/integração regional. Por outro lado, o artigo visa contribuir para a discussão sobre a exportabilidade ou transferência das teorias de integração regional. Em outras palavras, o artigo propõe-se a avaliar se as ferramentas teóricas desenvolvidas no estudo da integração regional na Europa (cada vez mais questionadas ou criticadas na região) são relevantes para explicar e compreender os processos que acontecem na América Latina e no Caribe, e além.
Na primeira seção do artigo se explora até que ponto a América Latina tem sido um gerador de ideias (propostas teóricas) sobre regionalismo/ regionalização/integração regional. Em seguida, se examina o tema da importação das teorias europeias na América Latina. Na terceira seção, distingue-se entre teorias como ferramentas analíticas e teorias como conjuntos normativos de ideias ou prescrições políticas. Na quarta seção, discute-se a importância da teoria europeia como uma caixa de ferramentas políticas. Finalmente, são tecidas algumas considerações finais.
A teorização latino-americana do regionalismo
Nesta parte avaliam-se as contribuições latino-americanas, muitas vezes ignoradas, para a construção de uma teoria da integração. Para tanto, adota-se uma compreensão não estrita de teorização. A América Latina tem, de fato, uma longa tradição de iniciativas de integração regional, que levou ao desenvolvimento de um pensamento integracionista. Desde os primeiros movimentos de independência, a ideia de unidade regional foi impulsionada por figuras fundadoras da história latino-americana como Simón Bolívar, José Cecilio del Valle ou Bernardo de Monteagudo. A ideia de unidade regional também esteve presente no século 19 e início do século 20 nas propostas de pensadores como Lucas Alamán, Juan Bautista Alberdi, Justo Arosemena, José María Samper Agudelo, Benjamín Vicuña Mackenna, José Martí, Eugenio María de Hostos, Manuel Ugarte, Fernando García Calderón ou Salvador Mendieta (Rivarola Puntigliano, 2012; Briceño Ruiz, 2012). No entanto, esses pensadores não desenvolveram teorias explicativas gerais, mas contribuíram com um “saber”. Além disso, a maioria de suas propostas estavam associadas a um contexto regional no qual existiam temores a respeito da perda da independência ou da autonomia política vis-à-vis forças externas. Em consequência, a integração regional foi percebida principalmente como um processo político baseado na ideia de que uma base cultural similar levaria os estados latino-americanos a unificar esforços para enfrentar ameaças externas. A integração econômica foi secundária, mesmo que algumas propostas de acordos de livre comércio e navegação fossem promovidas em congressos hispano-americanos ao longo do século 19. Essa falta de interesse pela integração econômica regional foi ainda aprofundada após 1870, quando começou o chamado período de desenvolvimento orientado para o exterior ou período primário exportador na história econômica latino-americana (Bulmer Thomas, 2003).
Depois da segunda década do século 20, a ideia de integração econômica como mecanismo para fomentar o desenvolvimento regional gradualmente ganhou proeminência sobre as ideias de unidade política. A figura de Alejandro Bunge simboliza esse processo. Este economista argentino propôs a criação de uma união aduaneira sul-americana em 1909. Esta proposta foi relançada em 1926 por Bunge, pelo chileno Eliodoro Yáñez e por Guillermo Subercaseux (Bunge, 1926; Yáñez, 1926; Subercaseux, 1926). Isso foi seguido, em 1940, pela proposta do economista argentino Federico Pinedo de criar uma união aduaneira entre a Argentina e o Brasil. Os ministros das Relações Exteriores dos dois países, Enrique Ruiz Guiñazú (Argentina) e Oswaldo Aranha (Brasil), apoiaram esta proposta e o Tratado de União Aduaneira foi assinado em novembro de 1940 (Sanjuan, 1998).
Outras propostas de integração regional surgiram nas décadas de 1940 e 1950. Um projeto para criar a Organização Econômica da Grande Colômbia foi aprovado pela “Carta de Quito” em 1948 (Briceño Ruiz, 2013). As iniciativas de integração política e econômica regional tiveram impulso na década de 1950. Do lado político, líderes como o argentino Juan Domingo Perón na Argentina, Getúlio Vargas no Brasil e Carlos Ibañez no Chile tentaram reativar o Tratado ABC (Reckziegel, 1996). A integração econômica regional foi um dos pilares da nova estratégia de desenvolvimento. A Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e Raúl Prebisch conceberam a integração regional como um mecanismo para implementar uma estratégia de industrialização regional.1
Assim, se se analisar a longue durée (Braudel, 1958) das ideias e propostas latino-americanas a respeito da integração regional, o início do processo com certeza se encontra bem antes da década de 1950. Em termos gerais, a maioria das iniciativas regionais é o resultado de um processo histórico de longo prazo que tem procurado, por um lado, atingir a autonomia política e, por outro lado, o desenvolvimento econômico e a industrialização regional (Briceño Ruiz, 2013). Isso levou à geração de um “saber” foucaultiano, ou seja, ideias e discursos que certamente não constituíam teorias formais, mas que proporcionavam uma estrutura na qual uma teoria poderia ser desenvolvida. Este “saber” latino-americano sobre a integração regional, desenvolvido principalmente antes de 1949, é uma fonte essencial para entender a lógica atual do regionalismo latino-americano.
Contudo, é justo reconhecer que o período moderno de integração regional na América Latina começou na década de 1950 com as propostas lançadas por Prebisch e pela Cepal para a negociação um Mercado Comum Latino-Americano e da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc), em 1960. Essas iniciativas foram acompanhadas por tentativas de desenvolver uma explicação formal do regionalismo latino-americano, inclusive com a construção de categorias teóricas. Na esfera econômica, o estruturalismo latino-americano proporcionou essa construção teórica. Na esfera política, esse papel foi desempenhado pela Escola da Autonomia, ligada a Helio Jaguaribe, no Brasil, e Juan Carlos Puig, na Argentina.
Embora seja acertado falar a respeito de uma “Escola estruturalista latino-americana”, também deve ser reconhecido que essas ideias não podem ser vistas desconectadas dos escritos de autores como Hirschman, Kaldor, Kuznets ou Myrdal e de ideias similares emergentes em outros países (Ranis, 2004; Moncayo et al., 2011, p. 361). Para os estruturalistas, a integração econômica foi um elemento de uma estratégia geral para promover o objetivo de alcançar níveis mais altos de desenvolvimento econômico através de um processo endógeno de industrialização. Este processo visava reduzir a vulnerabilidade externa dos países em desenvolvimento e considerava o problema da deterioração a longo prazo dos termos de troca conhecida como a tese de Prebisch-Singer (Prebisch, 1950; Singer, 1950; Toye e Toye, 2003). A industrialização permitiria a absorção dos excedentes de oferta de mão-de-obra no setor rural, levaria a mudanças tecnológicas e a uma maior produtividade e melhoraria a distribuição da renda (Fitzgerald, 1998). Os estruturalistas referiam-se, assim, a um conceito integrado de desenvolvimento (Rodríguez, 2006; Moncayo, 2012, p. 29) que ainda caracteriza o pensamento latinoamericano atual de centro-esquerda sobre a regionalização, regionalismo e integração regional.
Raúl Prebisch foi uma figura central neste processo ao argumentar que a integração econômica regional foi um dos pilares da nova estratégia de desenvolvimento que ele promoveu como Secretário Executivo da Cepal. Segundo ele, os padrões de comércio observados desde meados do século 19 até meados do século 20 não confirmavam a teoria da vantagem comparativa, uma vez que os ganhos do comércio tinham sido divididos de forma desigual entre os países industriais (centro) e os estados agrícolas (periferia). O progresso tecnológico que elevou a produtividade ocorreu principalmente no centro, enquanto fatores estruturais domésticos e a divisão internacional do trabalho inibiram a periferia de se beneficiar desse avanço. Essa distribuição desigual do progresso técnico foi uma das causas dos preços cíclicos das matériasprimas e influenciou a demanda relativa de produtos industriais e produtos primários, levando ao declínio constante nos termos de troca da periferia. Essa deterioração afetou a possibilidade de desenvolvimento econômico ao reduzir a capacidade da periferia de comprar bens e serviços do centro. Para superar esta situação, Prebisch recomendou promover a industrialização pela via da substituição de importações, da proteção tarifária e dos incentivos aos investimentos estrangeiros no setor das manufaturas (Prebisch, 1996 [1949], 1950; Cepal, 1994).
No entanto, Prebisch criticou as políticas autárquicas de industrialização impulsionadas por vários países latino-americanos desde a década de 1920, no âmbito de mercados nacionais nos quais as economias de escala não foram necessariamente atingidas e a elevada proteção tarifária favoreceu o estabelecimento de fábricas ineficientes. Neste contexto, a integração econômica regional foi pensada como um dos pilares da estratégia de desenvolvimento econômico. A Cepal e Prebisch propuseram o desenvolvimento de um plano de industrialização regional, baseado na especialização no quadro de um mercado comum, para criar fábricas capazes de produzir bens de capital em condições competitivas e gerar economias de escala e sublinharam que o processo de integração regional não deveria ser autárquico nem hostil aos fluxos de investimento estrangeiro direto (IED); o objetivo a longo prazo era criar melhores condições para a integração da América Latina na economia mundial (Ecla, 1959; Tavares, 1998).
Essas ideias tiveram um papel importante na concepção e aplicação das políticas de integração na América Latina nas décadas de 1950, 1960 e 1970. Os Tratados de Manágua (1960) que estabeleceu o Mercado Comum Centro-Americano (MCCA) e de Cartagena (1969) que criou o Grupo Andino, por exemplo, mostraram claramente a influência das propostas da Cepal (Moncayo et al., 2011, p. 363-364).2 A integração foi concebida como um mecanismo para promover o desenvolvimento econômico regional, mas também como um processo para superar as restrições estruturais endógenas e exógenas que impediam o desenvolvimento econômico.3
No âmbito político, uma “teoria da autonomia”, estreitamente ligada à integração regional, foi desenvolvida pelo brasileiro Helio Jaguaribe e pelo argentino Juan Carlos Puig nas décadas de 1970 e 1980. Jaguaribe descreveu o sistema internacional como uma ordem hierárquica, no qual alguns países são mais “autônomos” do que outros. Assim, Jaguaribe percebia o sistema internacional como um espaço diferenciado em quatro níveis, nos quais existiam várias hierarquias de poder (primazia geral, primazia regional, autonomia e dependência), todos caracterizados por patamares distintos de integridade territorial e autodeterminação (Jaguaribe, 1980). Para Jaguaribe, a autonomia depende de condições estruturais, que identificou como “viabilidade nacional” e “permissibilidade internacional”. Jaguaribe também argumentou que dois fatores adicionais eram necessários para a existência de autonomia nos países periféricos: autonomia tecnológica e empresarial e relações favoráveis com o centro. Puig também criticou a teoria tradicional das relações internacionais, especificamente a abordagem realista. Para ele, o sistema internacional não era anárquico, mas sim hierárquico e organizado em torno de três tipos de atores: “distribuidores supremos” que são autônomos no seu processo de tomada de decisões, “distribuidores inferiores” que executam as instruções dos distribuidores supremos e os “destinatários”, atores “que basicamente obedecem às decisões dos distribuidores supremos” (Puig, 1980). Para Puig, a integração regional devia basear-se na solidariedade e devia promover mecanismos para melhorar a viabilidade nacional e, consequentemente, o posicionamento político da América Latina na ordem internacional estratificada (Puig, 1987).
Assim, uma explicação precisa do processo complexo do regionalismo latino-americano contemporâneo deve considerar esse acervo composto tanto pelo “saber” pré-1949 quanto pelas teorias formais acima referidas, em particular para entender a busca persistente de desenvolvimento econômico e de autonomia política que tem marcado a história dos países e da integração latino-americanos. O trabalho de vários especialistas em regionalismo latino-americano hoje, incluindo os trabalhos respeito do “regionalismo pós-hegemônico”, também podem estar situados nesta tradição intelectual estruturalista/autonomista (Tussie e Riggirozzi, 2012; Briceño Ruiz e Morales, 2017).
Pode-se argumentar ainda que o regionalismo comercial nas Américas pode ser entendido também a partir alguns novos conceitos, como modelo de “hub and spoke” (centro e raio) e “spaguetti bowl” (prato de espaguete), desenvolvidos no contexto da proliferação de acordos comerciais nas Américas desde a década de 1990, mais ou menos hierarquicamente centrados nos Estados Unidos, que caracterizou o chamado “novo regionalismo” de inspiração neoliberal (IDB, 2002; De Lombaerde e Garay, 2008). Este foi o resultado combinado, por um lado, da reorientação da política comercial dos Estados Unidos na década de 1990, e por outro lado, do papel ativo desempenhado por países como o México e o Chile na negociação desses acordos. Depois da criação do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Tlcan ou Nafta em inglês) em 1992, o México assinou acordos similares com Costa Rica, Colômbia e Venezuela no âmbito do chamado Grupo dos Três (G-3) e com El Salvador, Guatemala e Honduras no quadro do chamado “Triângulo do Norte”, além de uma série de acordos extra-regionais. Do mesmo modo, o Chile assinou acordos comerciais com os Estados Unidos, Canadá, México, Colômbia, Venezuela, Bolívia, Peru, Equador, Panamá, Costa Rica e o Mercado Comum Centro-americano. O resultado é conhecido como um “spaguetti bowl” (Bhagwati, 1995), o que se refere à coexistência complexa de acordos de comércio bilaterais (intra ou extra) ou regionais parcialmente justapostos, que causam custos de transação não negligenciáveis para os agentes econômicos (Wonnacott, 1975; 1982; 1996). O modelo de “hub and spoke” contribui para a compreensão analítica dos efeitos econômicos (e até certo ponto políticos) de uma rede de acordos comerciais centrada em uma economia central ou “hub” (os Estados Unidos neste caso) e que inclui “sub-hubs” (como Chile e México) e “raios” (Wonnacott e Wonnacott, 1996).
Finalmente, pode-se argumentar que a tese inter-presidencialista sobre a dinâmica do regionalismo no Mercosul e, mais amplamente, na América do Sul também é uma contribuição de estudiosos latino-americanos para a teorização enraizada no contexto regional (Malamud, 2005).
Importância da teoria europeia: caixa de ferramentas analítica
Na seção anterior, avaliou-se em que medida América Latina foi uma plataforma para a geração de “saber” e teorias respeito do regionalismo. Contudo, como se articula isso com o predomínio das teorias europeias, como referido anteriormente? Isto é considerado nas seções a seguir. A este respeito, geralmente não se faz distinção entre duas questões distintas: a primeira é se as teorias europeias (ou seja, teorias originalmente desenvolvidas para explicar o processo de integração europeia) podem ser exportadas como ferramentas analíticas, em vez de teorias normativas, para investigar o regionalismo latino-americano. A segunda é em que medida os quadros e modelos teóricos e normativos europeus têm influenciado de fato na formulação de políticas regionais na América Latina. Quando se diz que as teorias não podem ser exportadas, os autores muitas vezes misturam as duas questões ou, pelo menos, não explicitam a que se referem. Nesta seção, analisa-se a primeira questão; a segunda será analisada na próxima.
Se as teorias europeias podem ser exportadas como ferramentas analíticas para outras regiões, depende de duas condições: a primeira condição é que os vários casos de regionalismo (latino-americano, europeu e outros) ou seus aspectos sejam exemplos de uma categoria comum. A segunda condição é que as teorias sejam suficientemente abstratas.
Os regionalismos latino-americanos e europeus pertencem a uma categoria comum? Esta condição refere-se à dimensão ontológica na construção da teoria e está relacionada a uma questão fundamental (existencial) no regionalismo comparativo, também conhecido como o “problema n = 1” (De Lombaerde et al., 2010). A questão é saber se o caso da integração europeia e, por extensão, todos os outros casos, é um caso único, sui generis, ou se é apenas uma expressão concreta, específica de um contexto, de um fenômeno mais geral (integração regional, regionalismo e/ou regionalização) que é observada em várias regiões do mundo (Caporaso, 1997). Esta não é uma discussão nova no campo; já nas primeiras pesquisas sobre regionalismo havia uma consciência de que a comparabilidade era uma questão que merecia ser considera. Os autores que aderiram à abordagem dos subsistemas regionais eram geralmente favoráveis à comparação entre regiões. Thompson (1973, p. 91), por exemplo, argumentou que
[…] existe uma excelente oportunidade para obter mais informações através da análise comparativa. De que outra forma vamos apreender quais formas de comportamento são ‘universalmente’ regionais e quais são particulares de tipos específicos de região? Deste modo, deveria ser possível evitar os área-centrismos ou, pelo menos, saber onde eles são apropriados.
Para Deutsch et al. (1957, p. 15-19) a comparação nunca é perfeita, contextos geográficos e históricos específicos devem ser levados em consideração, mas a comparação não deve ser abandonada. No entanto, outros autores, como Nye (1968, p. 880), referiram-se ao caráter ambíguo e complexo da União Europeia e ao problema da comparabilidade dos processos de integração regional em diferentes regiões do mundo. Esta ideia da UE como uma política ad hoc ganhou gradualmente terreno quando as instituições europeias foram desenvolvidas (Keohane e Hoffmann, 1991; Hix, 1994, 1998; Caporaso, 1996; Kohler-Koch e Eising, 1999; Hooghe e Marks, 2001). Em consequência, alguns sugeriram que os sistemas políticos nacionais, especialmente os estados federalistas, poderiam ser melhores casos de comparação do que outros esquemas regionais menos avançados (Krislov, Ehlermann e Weiler, 1986; Sbragia, 1992; Hix, 1994). Os estudos da UE tornaram-se, em geral, um campo de estudo próprio, desenvolvido em grande medida independentemente do estudo de outros regionalismos.
Apesar deste desenvolvimento, destacados especialistas defenderam a tese da comparabilidade e enfatizaram o potencial da análise comparativa incluindo a UE (Marks, 1997; Pollack, 1997, Caporaso, 1997). Em essência, eles argumentam que a UE é uma polity, um sistema político híbrido, com certas características que justificam a comparação com outras regiões ou organizações regionais, mesmo que seja aceito que outras características, especialmente as relacionadas ao seu caráter supranacional, também permitam uma comparação relevante com os estados federais. Se a comparação faz sentido ou não, depende da pergunta de pesquisa específica que está sendo feita. Esta é também a nossa posição.
Dois comentários adicionais devem ser feitos respeito deste ponto. Primeiro, a admissão do recurso à experiência europeia na análise comparativa não implica que ela deva ser considerada como referência ou norma (voltaremos sobre este assunto na próxima seção). Em segundo lugar, na medida em que o contexto seja relevante/importante para entender o desenvolvimento do regionalismo em uma determinada região, esse contexto, ou seus aspectos mais importantes, pode ser incorporado na análise comparativa. Isto é o que é chamado de “comparação contextualizada”. Mais recentemente, vários autores também argumentaram a favor da pesquisa comparativa sobre o regionalismo incluindo a UE (Ebbinghaus, 1998; Clarkson, 2000; Checkel, 2007; Postel-Vinay, 2007; De Lombaerde et al., 2009a; Warleigh-Lack e Rosamond, 2010; Söderbaum e Sbragia, 2010; Van Langenhove, 2012). De acordo com Warleigh-Lack e Van Langenhove (2010, p. 548-549), na discussão sobre a comparabilidade da UE, há muitas vezes uma confusão entre as abordagens nomotéticas e idiográficas. Eles sugerem “desempacotar” as regiões de acordo com a dimensão de sua “statehood” para que elas se tornem mais comparáveis (Warleigh-Lack e Van Langenhove, 2010, p. 549-553).
A segunda condição para a importação bem-sucedida de teorias europeias como teorias analiticamente relevantes é que elas sejam suficientemente abstratas.4 Para alguns analistas isso é evidente. Para Malamud (2010, p. 650), por exemplo, “falar de teorias da integração europeia é tão inadequado quanto falar de teorias da política alemã ou de partidos políticos estadunidenses: teorias não são estudos de caso, mas explicações sistemáticas de fenômenos gerais”. No entanto, este entendimento não é consensual. A questão é saber se as “teorias europeias” são suficientemente abstratas. A resposta imediata é “sim”; é preciso lembrar que a teoria da integração regional dominante na primeira fase do pósguerra, ou seja, o neofuncionalismo, já tinha uma aspiração clara e explícita à teoria geral. Foi, no entanto, na década de 1960 que projetos de pesquisa em larga escala foram desenvolvidos para “testar” essa teoria em outras regiões do mundo (Haas; Schmitter, 1964; Haas, 1967).
Isso não significa que não houvesse consciência da possível natureza problemática de tal exercício, ou seja, o de construir uma teoria inspirada na observação de um caso e logo aplicá-la a outros casos aparentemente semelhantes. Em outros trabalhos, por exemplo, Haas manifestou algumas dúvidas e cautela a respeito da relevância e da aplicabilidade de sua abordagem em outras regiões do mundo e argumentou que não podia haver uma “lei de integração” universal “deduzida do exemplo europeu” (Haas, 1961, p. 289, 1976). Para Haas, é provável achar diferentes configurações de fatores explicativos em diferentes regiões que explicam os respectivos processos de integração regional, e atores e fatores extrarregionais que desempenham papéis distintos em tais experiências (Haas, 1961). Haas (1970, p. 628) afirmou mesmo que
a limitação [do neofuncionalismo] está inserida na fonte de sua abordagem – a política democrática pluralista-industrial moderna. Essa fonte oferece um raciocínio para vincular as diferentes variáveis que existem no modelo neofuncionalista na Europa Ocidental; mas sua aplicação ao Terceiro Mundo até agora só tem servido para prever com precisão as dificuldades e falhas na integração regional, enquanto no caso europeu uma bem-sucedida previsão positiva foi alcançada.
A respeito deste assunto, pode-se argumentar que, seguindo sua lógica, a aplicabilidade do modelo pode ser uma questão de tempo. Em um artigo posterior, ele apresentou uma visão mais matizada (Haas, 1976), argumentando que, embora fosse bem possível que a teoria da integração regional (neofuncionalista) não fosse mais aplicável a certas dimensões do processo de integração europeia, ainda era muito útil para avaliar os processos de integração regional na América Latina ou na Ásia. Ele destacou ainda que a continuidade da relevância dessas teorias dependia da existência de processos de tomada de decisão incrementais, por um lado, e de um sistema regional relativamente autônomo, por outro. Na década de 1970, o conceito neofuncionalista de spill over foi complementado com conceitos relacionados, tais como spill-back, spill-around e encapsulation (Schmitter, 1970a, 1970b). Isso tornou a teoria neofuncionalista mais geral e compatível com uma variedade de cenários no mundo real. Mais recentemente, Mattli (2005), Malamud e Schmitter (2007) e Jørgenson e Valbjørn (2012, p. 18-19), entre outros, argumentaram em favor da aplicabilidade do modelo neofuncionalista como ferramenta analítica fora da Europa. No entanto, nem todos os especialistas compartilham desta opinião. Para Acharya, por exemplo, “nenhuma dessas teorias funcionou bem quando foram aplicadas em áreas não-ocidentais” (Acharya, 2012, p. 7). Somos de opinião de que a teoria neofuncionalista possui certas características abstratas que, à primeira vista, pareceriam torná-la aplicável ou, pelo menos, testável além da UE. Isso não significa, no entanto, que esta teoria captura os processos dinâmicos em outras regiões. Porém, mesmo que sirva apenas para explicar por que certos mecanismos (como o “spill over” ou a “politização”, que são, como tais, também conceitos suficientemente gerais) não são observados em outros contextos, já demonstra sua utilidade.
As teorias econômicas da integração regional (não somente as teorias comerciais, mas também as teorias sobre os bens públicos regionais e as áreas monetárias ótimas) parecem ainda menos problemáticas desde a perspectiva da sua abstração. Um bom exemplo da aplicação do quadro explicativo dos bens públicos regionais a um contexto latino-americano pode-se observar em Estevadeordal, Frantz e Nguyen (2002). Também existem vários, embora não sejam muitos, exemplos de aplicação da teoria das áreas monetárias ótimas e seus desenvolvimentos para a cooperação e integração monetária nas Américas e no Caribe.5 A abordagem eclética de Mattli (1999) também foi aplicada no caso latino-americano (Hummel; Lohaus, 2012).
Algumas considerações finais são apropriadas neste ponto: a primeira é a existência de diferentes níveis de teorização, a que aludimos. Também na teoria da integração europeia, se tem produzido uma série de desenvolvimentos teóricos com diferentes profundidades, passando de modelos teóricos específicos sofisticados para tipificações ontológicas básicas. Outra consideração é que a teorização em torno da integração europeia é muitas vezes simplesmente uma aplicação de teorias mais gerais das ciências sociais (construtivismo social, economia política etc.). Portanto, se a teoria da integração europeia é aplicável ou não em outros contextos regionais requer uma resposta matizada e em níveis múltiplos. Não faz muito sentido descartar categorias ontológicas relativamente abstratas e simples, apenas porque foram inicialmente usadas para descrever aspectos do processo de integração europeia. Também não faz muito sentido descartar as teorias da integração europeia se elas são essencialmente aplicações de teorias ou abordagens mais gerais das ciências sociais.
A influência dos modelos teóricos e normativos europeus sobre a formulação de políticas regionais na América Latina
Tem sido repetido que o processo de integração europeia não deve necessariamente ser um modelo para a integração regional ou para projetos de cooperação em outras regiões. Esta é uma declaração política e normativa a qual subscrevemos. Gradualmente se tornou “politicamente correto” questionar o uso da UE como um “modelo”, não só na América Latina (Breslin e Higgott, 2003; Breslin et al., 2002; Hurrell, 2007; Warleigh-Lack; Rosamond, 2010; Warleigh-Lack e Van Langenhove, 2010; Söderbaum e Sbragia, 2010). Higgott (2006, p. 23), por exemplo, critica o “status paradigmático [do projeto de integração europeia] […] contra o qual todos os outros projetos são julgados”. Contudo, é possível que a percepção de que o uso inadequado da experiência europeia como um “modelo” seja mais um problema ao nível dos discursos políticos do que da pesquisa acadêmica, embora isso não seja consenso.
Uma questão distinta é saber se o projeto de integração europeia influenciou de fato a criação e institucionalização de projetos regionais em outros lugares, como na América Latina. Sobre isso, há extensa produção. (De Lombaerde e Schultz, 2009a; Botto, 2009; Briceño Ruiz; Rivarola Puntigliano, 2009; Caballero, 2009; Bustamante e Giacalone, 2009; De Lombaerde, Pietrangeli e Schulz, 2009). A influência pode ser direta ou indireta. A influência direta pode ser “suave” (soft) ou “dura” (hard). A primeira refere-se aos fluxos de ideias, a última, à promoção explícita pelas instituições europeias da integração regional em outras partes do mundo, geralmente ligada à disponibilidade de fundos específicos de cooperação para o desenvolvimento ao nível regional. A influência indireta pode adotar a forma de regionalismo estratégico e de efeitos dominó. Vale ressaltar que influência não precisa necessariamente ser “positiva” no sentido de emular, seguir, adaptar; ela pode ser “negativa” ou reativa, como podem ser as consequências da recente crise europeia (Acharya, 2012).
Pode ser bem documentado que a influência europeia é tão antiga quanto a integração regional da pós-guerra na América Latina. Nas propostas da Cepal, por exemplo, pode-se argumentar que se vê uma confluência de influências do quadro teórico estruturalista – por sua vez, ligado à teorização pós-colonial do desenvolvimento em outros lugares, por um lado, e do caso europeu em desenvolvimento e da teorização relacionada a ele, por outro. O modelo de integração proposto pela Cepal teve as seguintes características:
(i) um mercado comum aberto a todos os países latino-americanos, com uma tarifa externa comum e uma cobertura universal de produtos, a serem estabelecidos por etapas; (ii) a harmonização das políticas industriais e dos acordos industriais, 6 a fim de incentivar uma fase avançada de substituição de importações; (iii) o tratamento especial para países relativamente menos desenvolvidos e para o setor agrícola tradicional; (iv) cláusulas de salvaguarda para produtos sensíveis e mecanismos de compensação para assegurar uma distribuição equitativa de benefícios; (v) um acordo multilateral de pagamentos; e (vi) uma integração estatal com um papel ativo para o setor privado” (Moncayo et al., 2011, p. 362-363).
Argumentou-se que Prebisch se inspirou na literatura neofuncionalista sobre a integração europeia (Moncayo et al., 2011, p. 364-365) para sua avaliação inicial e positiva da institucionalização do Grupo Andino, incluindo o estabelecimento de uma Secretaria Executiva (Prebisch, 1973, p. 34-35). Contudo, Prebisch não foi particularmente entusiasta com a ideia de supranacionalidade presente na experiência europeia. Para Prebisch,
Nem nas ideias originais que surgiram da Cepal nem na concretização dessas ideias em Montevidéu, qualquer referência à supranacionalidade é feita […]. Tanto na marcha progressiva em direção ao mercado comum quanto na organização final da mesma, não é possível pensar que as decisões que afetam o desenvolvimento econômico e social de cada país membro devem ser subordinadas à regra da maioria, em detrimento da soberania de país algum (Prebisch, 1969, p. 2).
Os quadros conceituais e as teorias europeias influenciaram os debates, como o relacionado ao quadro institucional mais conveniente para o regionalismo latino-americano. Isso ocorreu nos Andes, onde a Comunidade Andina copiou o desenho institucional da União Europeia, estabelecendo uma Comissão, um Parlamento e um Tribunal de Justiça supranacional. Este quadro institucional foi rejeitado por alguns setores políticos que preferiam um modelo intergovernamental. O debate europeu entre o intergovernamentalismo e o supranacionalismo tem sido replicado no Mercosul, onde a ausência de instituições supranacionais é considerada, por alguns especialistas, como uma das razões da crise que este esquema regional tem experimentado nos últimos anos.
Na esfera econômica, o processo de integração europeia também tem sido, em alguns aspectos, um modelo para a América Latina desde a década de 1960. A lógica da integração econômica que se desloca de uma área de livre comércio para um mercado comum como apresentada por Balassa (1961) para explicar a experiência europeia foi imitada em esquemas regionais como o Pacto Andino, na década de 1970, ou o Mercosul, na década de 1990. Do mesmo modo, algumas iniciativas, como o Pacto Andino, compartilham com a experiência europeia um modelo econômico de integração regional em que o desenvolvimento industrial e a justiça social têm um papel a desempenhar. Esta é uma questão crucial: tanto na Europa como na América Latina, a integração regional não foi considerada como sinônimo de liberalização do comércio, visto apenas como um aspecto de um processo complexo mais amplo. Finalmente, a escola estruturalista francesa também foi influente na década de 1970 na América Latina, especialmente no que diz respeito às suas propostas para criar polos de integração econômica.
Considerações finais
O objetivo deste trabalho foi refletir sobre o papel da teoria na compreensão dos regionalismos latino-americanos. Argumenta-se que existe um acervo latino-americano a respeito do regionalismo. Também se avalia a possibilidade de um diálogo das teorias europeias com as propostas originadas na América Latina. Em particular, se discute se alguns aspectos das teorias europeias podem viajar para a América Latina. Mesmo que se considere que a integração europeia e latino-americana tem suas particularidades, compartilham também motivos comuns que permitem uma comparação. Argumenta-se que nos debates sobre o caráter geral das teorias de integração regional, é necessário distinguir entre sua capacidade analítica, por um lado, e suas características normativas e uso político, por outro. As conclusões deste trabalho podem ser resumidas da seguinte forma:
Em primeiro lugar, reconhecemos a especificidade do regionalismo latino-americano, bem como as características próprias do desenvolvimento das ideias sobre ele. Assim, argumentamos que, a partir de uma perspectiva histórica de longo prazo, pode-se observar a existência de uma antiga tradição de “saber” sobre a integração regional que remonta ao início do século 19. No entanto, foi apenas na década de 1950 que esse “saber” foi transformado em explicações teóricas (normativas) formais de integração regional na América Latina. Este foi o caso das ideias de Prebisch e da Cepal sobre a relação entre desenvolvimento econômico, industrialização e integração regional e as propostas de uma integração regional baseada na solidariedade formuladas pela Escola de Autonomia nos anos 1970 e 1980. Alguns aspectos da recente lógica “pós-hegemônica” da integração regional na América Latina respondem a esta tradição.
Em segundo lugar, se argumenta que, a despeito de seu próprio acervo sobre regionalismo, a América Latina também tem sido influenciada por experiências externas de integração econômica e política. Em particular, a experiência de integração europeia influenciou o regionalismo latino-americano em aspectos específicos, como a lógica da integração comercial, o quadro institucional e a preocupação com a equidade. Por consequência, argumentase que os debates teóricos europeus sobre o regionalismo influenciaram os debates latino-americanos e que as teorias europeias não são necessariamente irrelevantes para explicar aspectos da lógica da integração regional na América Latina. Contudo, leituras europeias a respeito da integração regional precisam ser contextualizadas, considerando a história e a geografia, quando sejam aplicadas ao caso latino-americano.
Isso nos leva à nossa terceira conclusão, a saber, que os quadros ontológicos e as abordagens teóricas europeias contêm uma parte importante do conteúdo suficientemente abstrato para serem potencialmente úteis e relevantes para o trabalho comparativo. Isso é verdade para categorias ontológicas básicas, mas também para abordagens como as do intergovernamentalismo, do intergovernamentalismo liberal ou do construtivismo, que se baseiam em premissas gerais que potencialmente poderiam ter poder explicativo em diferentes casos e contextos. Mesmo abordagens como o neofuncionalismo podem ser úteis para explicar por que outras regiões têm ou não tem seguido caminhos semelhantes aos da integração europeia.
No entanto, considerar que as teorias europeias podem explicar alguns aspectos da lógica da integração regional na América Latina e em outras partes do mundo, não implica aceitar a premissa ontológica que assimila a integração regional com a integração regional com supranacionalidade ao estilo europeu. Preferimos utilizar a categoria regionalismo como um conceito que apreende um processo complexo em que alguns espaços regionais geográficos promovem instituições nas quais o intergovernamentalismo e a supranacionalidade podem existir ou, mesmo, coexistir e que podem assumir diferentes formas e abranger diversas áreas políticas.
A questão de saber se as teorias podem viajar de uma região para outra é uma questão sobre a abstração das teorias. As teorias também têm níveis diversos; o desafio é extrair conceitos e mecanismos abstratos das teorias relacionadas ao contexto. Este conteúdo abstrato pode ser formulado de forma útil como hipóteses de pesquisa em projetos de pesquisa comparativa contextualizados.
Em suma, uma abordagem matizada e multifacetada é necessária para que exista possibilidade de uma pesquisa comparativa sobre o regionalismo e a possibilidade de construir quadros ontológicos e teóricos que tenham uma relevância para além de uma região específica, seja Europa ou América Latina. Isto não é incompatível com o reconhecimento da importância e do valor do contexto e da teorização local, ou regional; não é incompatível com o fato de evitar ficar preso em “gaiolas conceituais” ao pensar no futuro do regionalismo latino-americano.