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Hierarquia, contestação e igualdade: A produção da militância política para a população de rua no Brasil

Hierarchy, contestation and equality: The production of the political militancy of homeless people in Brazil

Jerarquía, contestación e igualdad: La producción de la militancia política para personas sin hogar en Brasil

Resumo:

O propósito deste texto é explorar, por meio de análise documental e método etnográfico, a dinâmica de debates entre militantes e apoiadores do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), em torno de atributos valorativos para a militância política. Ao avaliar as cartilhas nacionais de formação política, discuto o latente teor civilizatório presente nestes documentos e, pelo mergulho etnográfico no cotidiano da mobilização social em Porto Alegre, RS, analiso as formas como tais conteúdos são problematizados e contestados na prática militante. Tal cenário permite apreender uma arena na qual a normatividade é negociada por divergências que, mais do que produzirem cisão, conformam uma luta constante por espaços mais igualitários de fala e expressão política entre militantes e apoiadores do MNPR.

Palavras-chave:
Mobilização social; Capacitação política; Igualdade; Hierarquia

Abstract:

The purpose of this text is to explore, through documentary analysis and ethnographic method, the debates between militants of the Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), around value of political militancy. Starting from the analysis of national political formation booklets, I discuss the civilizing content present in these documents and, through the everyday social mobilization in Porto Alegre, RS, I analyze the ways in which such content is contested in militant practice. This scenario allows us to identify an arena in which normativity is negotiated by divergences that, rather than producing division, constitute a constant struggle for more egalitarian spaces of political expression between militants and supporters of the MNPR.

Keywords:
Social mobilization; Political empowerment; Equality; Hierarchy

Resumen:

El propósito de este texto es explorar, por medio de un análisis documental y el método etnográfico, la dinámica de debates que se dan entre militantes y partidarios del Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) en torno a atributos valorativos para la militancia política. Al evaluar las cartillas nacionales de formación política, discuto el contenido civilizatorio presente en estos documentos. Al mismo tiempo, por medio del buceo etnográfico, analizo como tales contenidos son contestados en la práctica militante cotidiana de la movilización en Porto Alegre. Este escenario permite ver como la normatividad es negociada por divergencias que, más que producir escisión, conforman una lucha constante por espacios más igualitarios de expresión política entre militantes y partidarios del MNPR.

Palabras clave:
Movilización social; Capacitación política; Igualdad; Jerarquía

Introdução

Vindo ao mundo há 13 anos, o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) nasceu do luto, das lágrimas e da comoção coletiva frente ao brutal assassinato de um grupo de pessoas que dormia na praça da Sé, coração de São Paulo, em idos de 2004. Noticiários nacionais e internacionais deram visibilidade aos assassinatos, comparando-os à chacina da Candelária. Lágrimas, flores, homenagens coletivas e um luto que se transforma em luta para grupos religiosos, militantes e entidades ligadas aos direitos humanos. Sobre as ruínas de um massacre, a insurgência do novo: um movimento social articulado por diferentes organizações sociais, instituições de acolhimento, “moradores de rua” e “ex-moradores de rua” (alguns sobreviventes do massacre da Sé). Da condição de vítimas, passaram a cultivar uma comunhão entre vítimas (De Lucca, 2016DE LUCCA, Daniel. Morte e vida nas ruas de São Paulo: a biopolítica vista do centro. In: Taniele Rui; Mariana Martinez; Gabriel Feltran (orgs.). Novas faces da vida nas ruas. São Carlos: Edufscar, 2016. p. 23-44.), reivindicando justiça, direitos e dignidade. Nascia, assim, o MNPR, espalhando-se, em pouco mais de 10 anos, por 14 estados da federação – incluindo o Rio Grande do Sul a partir de 2013, quando, na capital gaúcha, experiências anteriores de mobilizações coletivas em nome da “população em situação de rua” se desarticulavam.1 1 Um histórico pormenorizado da atuação destas mobilizações pretéritas consta em minha tese de doutorado (cujas reflexões integram parte deste artigo) sobre a mobilização social do MNPR em Porto Alegre, realizada entre 2013 e 2017, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação de Patrice Schuch e com financiamento em período integral por meio da Capes.

De lá para cá, foi se constituindo um emergente e cada vez mais complexo campo de intervenção, reflexão, proposição e mobilização social: políticas públicas específicas, espaços nacionais e regionais de participação (conferências, conselhos, comitês), monitoramento e avaliação das políticas; programas voltados ao recebimento e registro de denúncias de violação de direitos; campanhas nacionais contra remoções e internamentos forçados; pesquisas censitárias encomendadas por diferentes esferas de governo; projetos de pesquisa e extensão universitária, monografias, teses e dissertações acadêmicas; reportagens e documentários, encontros, seminários, audiências públicas, reuniões e muito, mas muito debate entre atores extremamente diversos em suas motivações e pertencimentos institucionais, que passaram a integrar o contingente de apoiadores e de militantes em “situação de rua” engajados no MNPR. Hoje, a formulação de todos esses instrumentos governamentais de garantia de direitos e de combate às violações são comemorados por integrantes do MNPR como conquistas históricas, que possibilitaram o reconhecimento de uma população antes invisível aos órgãos governamentais e à sociedade.

É no seio deste cenário de visibilidade política e de construção de um campo específico de intervenção social, que localizo o foco deste artigo, cuja proposição central é explorar, por meio de análise documental e do método etnográfico, a dinâmica de debates e tensões produzidas por militantes e apoiadores do MNPR, em sua base regional em Porto Alegre, em torno de certos atributos valorativos e formativos para a militância. Para tal, inspiro-me tanto em Aihwa Ong (2005), para quem os esquemas de sobredeterminação com pretensões totalizantes nunca se mantêm por muito tempo, quanto em Judith Butler (2017)BUTLER, Judith. Quadros de guerra: qando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. que destitui o caráter definitivo das práticas normativas, uma vez que quaisquer enquadramentos de poder estão fadados a movimentos de reversão, rompimento de contextos, vazamentos e contaminações diversas. Movido por estas inferências, perseguirei neste texto justamente aquilo que vaza e escapa nas discussões em torno da capacitação política: a criatividade, a ação que transforma, que se apropria, que enfrenta e inventa formas de fazer e refazer o jogo das correlações de forças que perpassam as normativas da linguagem governamental e as arenas de interlocução política.

Desde uma análise inicial dos conteúdos inscritos em cartilhas nacionais de formação política para população em situação de rua, coproduzidas por órgãos jurídicos, governamentais e movimento social, analiso as formas como esses conteúdos são problematizados e contestados na prática, ressaltando como os militantes constroem um estatuto político para a vida nas ruas, que tanto se opõe aos aconselhamentos registrados em cartilhas oficiais, quanto os complementam, dependendo das situações e interações em jogo. Com isso, pretendo mostrar que se a formalização de orientações, inscritas na oficialidade dos órgãos públicos articulados com setores da mobilização social, orienta e produz condutas civilizadas, informadas, responsáveis e capacitadas para a cidadania; se essa lógica civilizatória, de alguma forma, circunda e embasa a concepção de capacitação para a militância organizada, é finalmente no debate e no embate cotidianos que essas concepções normativas ganham vida e sentido aberto, negociado e reapropriado no cerne das divergências que, mais do que produzirem cisão, concedem “movimento ao movimento”.

As cartilhas e as condicionalidades no acesso aos direitos

A difusão de formas ideais de militância –especificamente voltadas às relações internas entre os militantes e às relações destes com os demais agentes e instituições estatais– nunca foi um traço restrito à experiência de mobilização conduzida em solo porto-alegrense pelo MNPR. Como já assinalei anteriormente (Lemões, 2014LEMÕES, Tiago. População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões sobre um campo de disputas políticas, definições de sentidos e práticas de intervenção. In: Anais. Natal: 29a Reunião Brasileira de Antropologia, 2014.), entendo que a tônica nas políticas inspiradas nos direitos humanos é conduzida por uma pedagogia informativa dos direitos das pessoas em situação de rua, elaborada na articulação entre entidades promotoras desses direitos (incluindo Unicef e Unesco), instituições socioassistenciais e movimentos sociais que, de um lado, otimizam mecanismos para garantir direitos, de outro produzem condicionalidades no acesso a esses direitos – algo intimamente relacionado a uma concepção moral do “morador de rua politizado”, informado, engajado e detentor de uma gramática específica de interação.

Da mesma forma, para Schuch (2015)SCHUCH, Patrice. A legibilidade como gestão e inscrição política de populações: notas etnográficas sobre a política para pessoas em situação de rua no Brasil. In: Cláudia Fonseca; Helena Machado (orgs.). Ciência, identificação e tecnologias de governo. Porto Alegre: Editora da Ufrgs, 2015. p. 121-145., a proliferação nacional de cartilhas e manuais (governamentais e não-governamentais) sobre o universo de intervenção, proteção e mobilização por direitos, também pode ser compreendida como parte de um processo pedagógico singular, conduzido pela coprodução simultânea das formas de gestão, legibilidade e inscrição política da população em situação de rua. De fato, se nos detivermos com maior atenção a essas cartilhas de direitos e de formação política (o que farei a seguir), é possível identificar as prerrogativas de formação que, a um só tempo, definem direitos, apresentam serviços de acesso aos mesmos e estimulam os sujeitos à organização individual e coletiva como forma de potencializar a garantia de direitos fundamentais.

Alguns exemplos são elucidativos. Em 2013, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em parceria com sua comissão especial de população em situação de rua, com o Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado, lançou a Cartilha de direitos do cidadão em situação de rua, destinada a todos os “homens, mulheres e famílias que se encontram na insegurança, sem domicílio, enfrentando todos os desafios que a vida nas ruas provoca” (Defensoria…, 2013DEFENSORIA Pública do Rio de Janeiro. Núcleo de defesa dos direitos humanos. Cartilha de direitos do cidadão em situação de rua. Rio de Janeiro: Nudedh, 2013., p. 5).

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Capa da Cartilha de direitos do cidadão em situação de rua – Rio de Janeiro, 2013DEFENSORIA Pública do Rio de Janeiro. Núcleo de defesa dos direitos humanos. Cartilha de direitos do cidadão em situação de rua. Rio de Janeiro: Nudedh, 2013.

Os direitos fundamentais são apresentados logo nas primeiras páginas, começando pela garantia constitucional do direito de ir e vir, ocupar e permanecer no espaço público, dentro do cumprimento de todas as regras da boa convivência. Em seguida, entra em cena o direito à identificação, definindo a certidão de nascimento como pressuposto da cidadania, que permite acesso ao voto, ao trabalho, ao matrimônio, às viagens e aos programas sociais. Na sequência, uma série de orientações específicas e detalhadas sobre como e onde obter cada documento civil. Em relação aos direitos sociais, manifesta-se a mesma estrutura: definição e orientação sobre o acesso aos programas, ações e serviços de assistência social.

Por fim, o direito ao trabalho, cujas condições para o seu exercício pleno são atribuídas ao poder público, vem acompanhado pela citação do artigo 23 da Declaração universal dos direitos humanos, que reitera o trabalho como um direito garantido a todos, sem distinção. No entanto, na mesma cartilha, um passo-a-passo sobre confecção de currículo profissional sugere que esse direito não é tão universal como imaginamos, pois, depende de certas aquisições a serem apresentadas ao empregador, “que seleciona os candidatos mais qualificados e indicados para determinada vaga” (Defensoria…, 2013DEFENSORIA Pública do Rio de Janeiro. Núcleo de defesa dos direitos humanos. Cartilha de direitos do cidadão em situação de rua. Rio de Janeiro: Nudedh, 2013., p. 38). Por fim, elenca-se os itens primordiais a serem declarados em um currículo: experiência, formação escolar, idiomas e cursos de aperfeiçoamento.

A tônica dessa primeira cartilha é interessante pelos efeitos de significação e pela ambiguidade que instaura. Não há apenas a definição e orientação sobre como acessar direitos fundamentais. Por entre as informações concedidas, vemos que, aos poucos, a formação de sujeitos capazes de desenvolver ou potencializar seus atributos individuais manifesta-se na garantia do direito de ir e vir desde que observadas os códigos de civilidade e no direito universal à remuneração digna que depende, novamente, de capacidades e qualificações individuais. O “cidadão em situação de rua”, inscrito no próprio título da cartilha, depara-se com uma cidadania instaurada entre a destituição total de direitos e a condição necessária para a mudança deste quadro: o desenvolvimento de capacidades, traduzidas em civilidades, superações e qualificações.

Mas documentos deste gênero não apontam apenas caminhos de acessos condicionados ao mundo dos direitos. A cartilha Direitos do morador de rua: um guia na luta pela dignidade e cidadania – publicada em 2012 pelo Ministério Público de Minas Gerais, em parceria com o MNPR-MG, a Universidade Federal de Minas Gerais e outros apoiadores (Ministério…, 2012MINISTÉRIO Público de Minas Gerais. Direitos do morador de rua: um guia na luta pela dignidade e cidadania. Funemp: Belo Horizonte, 2012.) – expõe os direitos à moradia, ao trabalho, à saúde e à assistência social em seções separadas de um capítulo intitulado “direitos do morador de rua”. Ao final de cada seção, há orientações sobre o que fazer para não somente acessar, mas cobrar a garantia desses direitos. Indicando a existência de conselhos, programas, fóruns, núcleos de assistência judiciária, defensoria pública, projetos de capacitação profissional e movimentos sociais, as orientações são precedidas por palavras que estimulam a ação e a iniciativa individual dos sujeitos: defenda, sugira, participe, reivindique, procure, organize, estimule, promova, reclame, mobilize-se.

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Capa da cartilha Direitos do morador de rua –Ministério Público de Minas Gerais, 2012MINISTÉRIO Público de Minas Gerais. Direitos do morador de rua: um guia na luta pela dignidade e cidadania. Funemp: Belo Horizonte, 2012.

No mesmo documento, há ainda uma última seção intitulada “Enquanto não sai da rua” (Ministério…, 2012MINISTÉRIO Público de Minas Gerais. Direitos do morador de rua: um guia na luta pela dignidade e cidadania. Funemp: Belo Horizonte, 2012., p. 61), repleta de conselhos para ensinar a cidade a enxergar as pessoas em “situação de rua” com outros olhos. Argumentando a importância de “dar o exemplo de um cidadão que luta e merece o seu lugar” (Ministério…, 2012MINISTÉRIO Público de Minas Gerais. Direitos do morador de rua: um guia na luta pela dignidade e cidadania. Funemp: Belo Horizonte, 2012., p. 61), constam ainda os seguintes aconselhamentos ao leitor:

Enquanto não sai da rua…. Você pode ensinar a cidade a te enxergar com outros olhos. Dar o exemplo de um cidadão que luta e merece o seu lugar. Mesmo enquanto a cidade não te enxerga, você pode enxergá-la. Mesmo enquanto a cidade não te respeita, você pode respeitá-la. E enquanto não sai da rua, você pode cuidar do seu espaço, deixá-lo limpo e seguro, como se fosse a sua casa. A calçada onde você está pode lhe dar a chance de mostrar a quem passa que ali há uma vida. Você pode proteger o meio ambiente: as árvores, os canteiros, as praças. Eles também têm vida. Essa vida também merece ser preservada para você e para todos […]. Reconhecer que você é gente. E, quem sabe, fortalecer a rede de apoios e solidariedade com a qual você deseja transformar essa realidade. O sonho de sair da rua pode demorar a se cumprir. Enquanto isso, você tem um lugar, ou alguns lugares que podem te apoiar (Ministério…, 2012MINISTÉRIO Público de Minas Gerais. Direitos do morador de rua: um guia na luta pela dignidade e cidadania. Funemp: Belo Horizonte, 2012., p. 61).

Essa produção instaura o direcionamento do leitor à constituição de si face à necessidade de erguer uma nova realidade, aquela de “um cidadão que luta e merece o seu lugar”. Enquanto alguém que conhece e reivindica os seus direitos e que se movimenta individual e coletivamente para fazê-los valer, a “pessoa em situação de rua” também é orientada a mostrar que merece estar na rua por meio do cultivo de uma relação de respeito com o espaço público, que deve estar limpo e seguro, assim como uma relação de cuidado e proteção com o meio ambiente – tudo isso no intuito de mostrar que ali existem vidas que merecem ser preservadas e respeitadas, enquanto seus direitos ainda não foram garantidos.

A legitimidade e oficialidade desse processo, que envolve órgãos governamentais e não-governamentais, nacionais e transnacionais, além de um movimento social nacional, fazem com que os caminhos da capacitação e do engajamento pareçam, à primeira vista, incontestáveis. Além do mais, são por esses caminhos que o acesso às políticas públicas parece menos tortuoso, como mostra o estudo de Baumgarten (2013)BAUMGARTEN, Britta. Political participation of the homeless in Brazil. CIES, e-working, Paper, n. 1721, 2013. sobre os mecanismos de mobilização do MNPR em suas bases de São Paulo, Brasília e Salvador. Indicando uma certa indistinção entre a presença estatal e a mobilização social, a autora argumenta que a via do engajamento na luta política é também uma via de recuperação da autoestima, do respeito e do retorno a uma vida estável, a partir de projetos de cooperação para o trabalho e de programas de habitação e formação profissional (Baumgarten, 2013BAUMGARTEN, Britta. Political participation of the homeless in Brazil. CIES, e-working, Paper, n. 1721, 2013.). Esse quadro sugere a adesão à mobilização social como uma adesão simultânea às políticas de inclusão e, sobretudo, às práticas e discursos de recuperação.

Estaríamos, assim, frente a mecanismos que orientam o acesso aos direitos e mobilizam regimes éticos e morais (Hilgers, 2013HILGERS, Mathieu. La production de l'etat néolibéral. In: Mathieu Hilgers (org.). État neoliberal et regulation e la pauvreté urbaine selon Loïc Wacquant. Bruxelles: Université Libre de Bruxelles, 2013. p. 79-92.) que fazem da cidadania uma disposição a ser apreendida e ativada no campo das competências individuais. Essa inexorável inauguração de um novo posicionamento frente ao mundo, supõe que o indivíduo tenha a seu dispor uma gama de possibilidades (e oportunidades), entre as quais ele supostamente possui a liberdade de escolher e se empenhar nessa escolha, seja para combater e deslegitimar o modo negativo pelo qual ele é socialmente percebido, ou para transformar a si mesmo rumo à realização de um sonho: sair das ruas. Certos recursos devem ser apreendidos e mobilizados numa verdadeira performance do empoderamento (Genard, 2013GENARD, Jean-Louis. Que peut nous apprendre l'ouvrage Punishing the Poor sur la régulation de la pauvreté dans le contexte européen? In: Mathieu Hilgers (org.). État neoliberal et regulation e la pauvreté urbaine selon Loïc Wacquant. Bruxelles: Université Libre de Bruxelles, 2013. p. 61-78.), da tomada de voz e do domínio sobre as tramas institucionais, suas linguagens e gramáticas de interlocução.

No plano temporal dos efeitos dessa política da capacitação, temos que, ao mesmo tempo em que distintas concepções são postas à mesa, em um jogo que não escapa às tramas de poder e de disputa por centralidades discursivas e decisórias, um “problema social” parece ser atualizado em sua dimensão diacrônica. Quero dizer com isso que uma das assertivas mais caras à constituição histórica da “população em situação de rua” como sujeito de direitos – que a desloca da passividade política atribuída ao lupemproletariado para o engajamento ativo na mobilização social – precisa ser constantemente reivindicada, pois, se tomarmos como parâmetro a normatividade contida nas cartilhas de formação política, vemos que nem todos possuem, de imediato, a potencialidade necessária à militância. Ela precisa ser construída coletivamente mas depende, em grande medida, de esforços individuais que permitam a subjetivação de modos específicos de comportamentos, discursos e posicionamentos.

Por outro lado, é preciso reconhecer que, enquanto uma reivindicação conjunta entre movimento social e diferentes órgãos governamentais nacionais e mesmo organizações transnacionais, as cartilhas não deixam de ser uma aposta nos direitos e, de alguma forma, na mudança de um olhar negativizado sobre os que nela se inscrevem como sujeitos de direitos. É na experiência cotidiana, no entanto, que a noção de capacitação se envolve numa capilaridade de negociações e conflitos abertos, que estimulam o constante repensar dos princípios inscritos nos documentos formativos. É justamente isso que importa na próxima sessão deste artigo: a dimensão incerta das interações e discussões sobre as formas de participação no MNPR-RS. Veremos que, em interações ordinárias, a noção de capacitação política não tem um sentido único e restrito, mas, ao contrário, parece operar como uma espécie de idealização ambígua e muito produtiva ao evocar situações críticas, nas quais as discussões sobre responsabilidades individuais, representação e participação são postas à mesa, questionadas, invalidadas ou reforçadas.

O movimento é inerente à rua

Temos que fazer cumprir a lei: para falar tem que estar preparado e não adianta falar besteira. Queremos fazer capacitação. Temos que saber fazer política! Queremos que mais pessoas participem, mas com conhecimento. Não adianta chegar lá e bater, tem que conhecer as leis. Temos que fazer capacitação com grupos de trabalho, com formação política. Sem isso não tem movimento! (Otávio, coordenador regional do MNPR).

Grupos de trabalho, formação política, conhecimento, lei. No momento em que articulou estas palavras, em 8 de novembro de 2013, Otávio, então representante regional do MNPR-RS, estava apreensivo com a escolha de um militante para representar o movimento em uma discussão sobre segurança alimentar com o secretário municipal de direitos humanos de Porto Alegre. Para ele, era imprescindível capacitar, escutar, conhecer, aprender, pois sem isso não tem movimento. Mas, como fazia habitualmente, Adriana era uma das mulheres em situação de rua que não deixava de confrontar os saberes reiterados para a representação política:

não precisamos de muitos argumentos para dizer o que queremos. Eu não tenho conhecimento, mas posso estar lá sem problemas. Aliás, eu nem sei de qual conhecimento o senhor [Otávio] está falando.

Meses mais tarde, Adriana manifestaria o mesmo desconforto com o excesso de reuniões e com as discussões intermináveis que, para ela, não avançavam e nos mantinham amarrados numa eterna justificação dos problemas, sem resolver as coisas que dependem da materialidade e não se resolvem nunca. Eram empecilhos que, para ela, residiam em condicionalidades representadas pelas exigências de capacitação, pelo excesso de palavras e pela carência de ações transformadoras. Esse primeiro embate, um dos mais significativos sobre a questão, foi potente o bastante para que eu ficasse mais atento às discussões semelhantes. Naquele momento específico de 2013, em que o MNPR-RS buscava adesão e visibilidade, a forma como o coletivo se constituiria, o modo como estruturaria sua organização e, sobretudo, a maneira como alinharia o diálogo com novos militantes “em situação de rua” eram questões de suma importância e, como tal, mereciam redobrada atenção.

De fato, desde os primeiros passos sob a bandeira do MNPR, no segundo semestre de 2013, os apoiadores e militantes questionavam-se acerca dos desafios para a condução e ampliação do movimento social na cidade. Ora, para se legitimar era imprescindível que tal movimento fosse constituído e conduzido por sujeitos referenciados pela categoria “em situação de rua”, sobretudo porque uma das premissas capitais que o fundamentam é a construção do “protagonismo”, traduzido na participação e no engajamento individual e coletivo.

Mas, em reunião ocorrida em outubro de 2013, um senhor autodeclarado ex-morador de rua explicou o que para ele seria o maior obstáculo nesse processo: o que a população de rua não sabe é a questão política. A maioria só quer um lugar para comer e dormir. Compactuando da mesma assertiva, outros dois militantes advertiram que o pessoal é muito desinteressado. Tem que dizer que tem comida. Inconformada com as conclusões um tanto pessimistas dos companheiros, uma apoiadora e educadora social afirmou que precisávamos trazer mais pessoas em situação de rua para o movimento. Teremos que ir até os locais de acolhimento, conversar com as pessoas e trabalhar com a cartilha de formação política.

A partir de então, não faltaram ideias para o recrutamento de militantes. Não demorou muito para que aquilo que nos parecia incontestável e absolutamente salutar fosse colocado em xeque, novamente por Adriana: qualquer um pode falar da rua, pois o movimento é inerente à rua. Ela tentava mostrar que não precisávamos ir até as pessoas no intuito de atraí-las para o movimento, pois o movimento já estava com elas, era inerente a elas por uma razão muito específica: a experiência de rua concede o saber suficiente para que as pessoas saibam contra o que devem se voltar e por quais mudanças devem lutar. Como esse argumento nunca foi unânime e totalizante, emergindo em determinadas situações, a busca do protagonismo prevaleceu como uma questão incompleta ao longo dos últimos meses de 2013. Nas primeiras reuniões de 2014, no entanto, acordou-se que aquele seria o ano em que, nas palavras de Otávio, sairíamos às ruas em busca de nossos companheiros. Enquanto movimento, está na hora de começarmos a fazer o protagonismo das pessoas.

Exatamente um mês após a decisão de sair para as ruas em busca de novos companheiros, a primeira experiência desta iniciativa ocorreu sob a ponte dos Açores, no centro de Porto Alegre. Naquela tarde de março de 2014, Otávio sugeriu que fossemos conversar com um grupo instalado naquele espaço e anunciar a existência do MNPR, aproveitando também para divulgar a realização do 2° Encontro Nacional da População de Rua, que ocorreria no mês de maio em Curitiba. Acompanhados por outros três apoiadores, nos aproximamos de sete pessoas que repousavam sobre colchões, envoltos também em algumas cadeiras e carrinhos de supermercado onde guardavam seus pertences. Um casal de meia idade descansava ao chão, enquanto um jovem repousava em outro leito mais afastado. Um pouco mais distante, outro casal interagia com dois adolescentes e, juntos, pareciam nada inclinados ao diálogo conosco.

Após as primeiras trocas de palavras, aquele casal manifestou sua indignação com as abordagens policiais violentas no local. Para eles, essas abordagens eram ainda mais injustas pelo fato de que foram impulsionados a viver nas ruas para evitar “problemas familiares”. Como se mostrássemos outras vias para situações violentas como essas, passamos a discorrer sobre a existência do MNPR-RS, informando que em breve haveria uma seleção de 15 pessoas para participar de um congresso nacional. Nesse momento, uma apoiadora também interveio para elencar as conquistas da mobilização: encontros, seminários e o apoio do Ministério Público na luta contra a violência policial. Sentado ao chão, um dos adolescentes que escutava atentamente as explicações interveio repentinamente para dizer que nada do que a apoiadora dizia era novidade para ele: a senhora não precisa explicar porque eu já sei disso tudo. Eu participava do (jornal) Boca de Rua e dava as pautas no (movimento) Aquarela.2 2 O jornal Boca de Rua, do qual a maioria dos atuais militantes do MNPR-RS faz parte, é fruto de um descontentamento com as tendências da imprensa gaúcha. Criado em 2000 por duas jornalistas, assumiu o papel de dar ressonância às vozes de uma gente invisível, conjugando denúncias de múltiplas violências, preconceitos e violações (Jaenisch, 2007). Por sua vez, o Movimento Aquarela da População de Rua (2008-2011) amarrou, em sua gramática de mobilização, as demandas dos trabalhadores da assistência social e as reivindicações dos usuários dos serviços e dos militantes em situação de rua de Porto Alegre, que posteriormente integraram o MNPR-RS. Para informações mais detalhadas sobre estes processos, ver Lemões (2017).

Inesperada, a inserção pretérita do rapaz em coletivos de organização política serviu como estímulo ao convite de participação no MNPR, quando Otávio frisou a importância de viajar para outros lugares e conversar com a população de rua de todo o país. Quando já nos despedíamos do grupo, uma das apoiadoras que nos acompanhava alertou a todos que a viagem para Curitiba não é para passear, é para discutir com o movimento.

Autoridade, hierarquia e, ao mesmo tempo, a sua ruína situacional. Ao início, as diferenças foram postas em jogo nos discursos e ações, pois éramos, para aquelas pessoas, um grupo ainda desconhecido que, pela aproximação, desencadeou o protocolo inicial já comum quando do contato entre agentes estatais e pessoas em situação de rua: foi preciso expor violências sofridas e associar suas condições atuais de existência aos problemas familiares. Tão logo fosse esclarecido que estávamos no local com o objetivo primordial de levar até eles um movimento social que reivindica seus direitos – portanto, assumindo o posicionamento de quem detém certas informações e, como tutores, apontam caminhos – a desestabilização de nossas posições viria de um jovem absolutamente ciente de que aquilo que estávamos falando não era novidade. Ele não só sabia dos seus direitos e conhecia as pautas de mobilizações anteriores, como já participara de outros coletivos. E ainda que ele estivesse falando de engajamentos pretéritos, a experiência reverberava exatamente ali onde ele estava, certamente na relação com os seus e no diálogo com sujeitos externos que não precisariam levar o movimento até a rua.

Não precisa de muito argumento para dizer que queremos comer

A conjugação entre a busca de novos companheiros e a produção de um tipo de protagonismo, depositado como atributo a ser conquistado através da integração de novos militantes, não cessava de impor novos impasses. Ainda em fevereiro de 2014, Diego, militante em situação de rua, foi convidado a participar de um congresso sobre saúde coletiva em Fortaleza (CE). A sua escolha e o aceite do convite para o evento propiciaram uma discussão sobre o desequilíbrio de responsabilidades no interior do movimento social. Conforme argumentou uma apoiadora: O Diego tem entendimento das coisas! Não que os outros não tenham, mas é que não adianta ficar catando as pessoas nas ruas para participar de eventos onde elas não terão voz! Queremos quantidade ou qualidade?

Por sua vez, Diego não deixou de manifestar um desconforto com a posição de destaque que ocupara naquele momento, apontando que o movimento não poderia ser conduzido apenas por ele e por outros apoiadores, acenando para uma definição de militância calcada na responsabilização por determinadas tarefas e compromissos que ultrapassavam a presença nas reuniões semanais.

Contudo, algumas diferenciações eram acionadas quando posições de destaque ou relações de hierarquia tornavam-se o foco das atenções, como demonstram os diálogos travados durante uma reunião que antecedeu a escolha de quem participaria do já mencionado encontro nacional em Curitiba. Na ocasião, a apoiadora Ana Paula fomentou a reflexão sobre o significado do MNPR para os militantes, estimulando-os a expressar seus entendimentos sobre a representatividade do movimento, partindo de uma indagação inicial: a representação deveria concentrar-se na figura de uma pessoa ou todos teriam as capacidades necessárias para representar o MNPR? Adriana foi a primeira pessoa a apresentar a sua compreensão por meio de um questionamento: mas eu pensei que automaticamente todos nós fossemos representantes do movimento! Temos que falar em várias pessoas como representantes. Em meio às falas sobrepostas neste debate, Otávio manifestou-se para considerar que

temos que criar um código de ética do MNPR, para saber o que vamos falar nos encontros nacionais. Sete integrantes foram selecionados [para participar do Encontro] e são os que mais participam das reuniões e estão por dentro do debate.

Estar por dentro do debate e saber o que, quando e como falar é um aprendizado que se faz em contraposição a ideia de que para falar “da rua”, basta “ser da rua”. Voltar às primeiras reuniões do MNPR em 2013 nos fornece um exemplo elucidativo sobre os limites do empoderamento, necessários quando os sujeitos falam e agem “pela rua” e não “pelo movimento”. Uma lembrança marcante que tenho de uma dessas reuniões é composta pela contenda em torno da atuação de um jovem militante em situação de rua que, por conta própria, teria marcado uma reunião com a Guarda Municipal no intuito de discutir casos de agressão e remoção de pessoas em alguns pontos da cidade. Para alguns apoiadores e militantes, a atuação do novo integrante era inadmissível e representava a falta de capacitação, pois o movimento não é uma pessoa que se empodera. O caso específico explicitava que, para alguns, a experiência das ruas concede legitimidade para acessar espaços de enunciação em nome da “população em situação de rua”, ao passo que para outros há uma defasagem entre as pautas do MNPR-RS e os anseios mais imediatos que estimulam iniciativas individuais realizadas em nome das ruas e não do movimento.

A suposição dessa incomunicabilidade ficou mais clara para mim ao longo de uma conversa informal, quando um militante me confidenciou que, na sua opinião, algumas pessoas só aparecem no movimento para reivindicar as suas demandas e os problemas do albergue onde vivem. Elas não entendem que o movimento é uma luta por direitos. A defasagem a que me refiro pode ser posta nos termos de um choque entre linguagens e também entre a magnitude argumentativa do que se entende que deva ser reivindicado ou transformado. Enquanto se defende que as pessoas conhecem seus direitos, expressando-os por uma espécie de gramática das urgências que dispensa capacitações – como defendeu Adriana, não se precisa de muito argumento para dizer que queremos comer. Também se entende que, para alguns, esse conhecimento é potencializado quando alçado a categorias mais abstratas, amplas e coletivas, evocando, assim, o universo das normativas legais para se fazer cumprir a lei.

A rua torna-se, então, o principal elemento diacrítico que classifica, diferencia, aproxima e distancia os múltiplos agentes envolvidos na imbricação dos processos de organização política. Enquanto um saber adquirido que distingue, a rua concede espaços de fala para quem a vivenciou. Em face disso, embora muitos defendam a capacitação política com unhas e dentes, pouca coisa pode ser dita sobre e com a rua, sem que se esteja realmente capacitado – não pelas cartilhas, mas pela experiência vivida na sua cotidianidade.

Conclusões comparativas: hierarquia, contestação e igualdade

Poderíamos parar por aqui e englobar o choque de linguagens e concepções sobre capacitação militante como parte das dinâmicas de luta política orientada no contexto dos movimentos sociais. É o que defende Daniel Cefaï (2009)CEFAÏ, Daniel. Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia da ação coletiva. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p.11-48, 2009., para quem a vida associativa tem a potencialidade de promover meios de sociabilidade que moldam formas específicas de coexistência e gerenciam objetos, normas e pessoas, ordenando o que seus os membros podem fazer ou dizer. Por meio de conjunturas prático-sensíveis (Cefaï, 2009CEFAÏ, Daniel. Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia da ação coletiva. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p.11-48, 2009.) hábitos de cooperação e de conflitos são fixados para conceder parâmetros à experiência de mobilização e para lapidar “a vida cotidiana de rituais, comandar a eleição de afinidades, a representação de si, as relações com os outros e os lugares de vida [ditando] o que é bom ou ruim de dizer, em que se acreditar e fazer” (Cefaï, 2009CEFAÏ, Daniel. Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia da ação coletiva. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p.11-48, 2009., p. 23).

Considero, contudo, que tal perspectiva deixaria de lado ao menos dois fenômenos importantes: (1) os processos normativos intimamente ligados às desigualdades no acesso aos espaços internos de visibilidade e representatividade, onde jogos de poder são conduzidos e atualizados incessantemente; (2) a coexistente emergência e ruína de hierarquias e diferenças entre os sujeitos envolvidos no engajamento coletivo. Este último aspecto inspira-se no que Karina Biondi (2010)BIONDI, Karina. Junto e misturado. Uma etnografia do PCC. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2010. identificou como processo de formação e supressão simultânea de focos de poder e desigualdade entre os irmãos batizados no Primeiro Comando da Capital, o PCC, de modo que toda gênese de mando ou autoridade entre os presos é desmantelada pela labilidade do ideal de igualdade, através do qual o desempenho político de seus integrantes deve ser conduzido “sem lançar mão de qualquer autoridade, superioridade ou exercício de poder sobre o outro” (Biondi, 2010BIONDI, Karina. Junto e misturado. Uma etnografia do PCC. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2010., p. 131).

É impossível negar que, idealmente, no MNPR-RS, todos têm espaços iguais de fala, manifestação e representação – entendidos aqui como a possibilidade de falar “em nome da população em situação de rua”. Na mesma perspectiva ideal, apoiadores e militantes possuem igual poder de proposição e deliberação. Mas se o valor da igualdade está presente, é na contingência das relações cotidianas que as distinções ganham peso na atribuição de capacidades militantes. É justamente quando a noção de capacitação entra em cena para potencializar a participação política que as desigualdades emergem, exibindo, consequentemente, posições hierárquicas alimentadas pela possibilidade/impossibilidade de aquisição de discursos considerados mais ou menos eficazes para a reivindicação de direitos.

Situações semelhantes foram percebidas por John Comerford (1999)COMERFORD, John. Fazendo a luta: sociabilidades, falas e rituais na construção de organizações camponesas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999., em pesquisa com integrantes de associações de sindicatos de trabalhadores rurais dos estados do Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais. Pelo mergulho nesses contextos diversos, o autor argumenta que o polo igualitário expressa concepções internas sobre união e participação, valores assumidamente basilares para aquelas organizações. Idealmente, todos podem e devem participar, figurando os dirigentes como meros delegados ou representantes em ocasiões específicas. No extremo hierárquico, contudo, a organização é pautada por posições de destaque e autoridade daqueles que encarnam o grupo e são, por isso, autorizados a falar e cobrados para que falem bem. Nesse contexto, falas e posturas que não abarquem cenários múltiplos e coletivizados, tendem a ser deixadas sem respostas, desvelando elementos de autoridade, ordenamento de formas mais adequadas de engajamento e seus efeitos de sobre participação: uma espécie de inserção periférica dos que ouvem atenta e respeitosamente os que falam com maestria, convicção e conhecimento (Comerford, 1999COMERFORD, John. Fazendo a luta: sociabilidades, falas e rituais na construção de organizações camponesas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.).

Ora, não é raro que enquadramentos semelhantes sejam referenciados em diferentes inserções etnográficas. O estudo de Biondi (2010)BIONDI, Karina. Junto e misturado. Uma etnografia do PCC. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2010. mostra que o ingresso de um sujeito no PCC depende de um consistente conhecimento da vida prisional, de suas capacidades oratórias e de negociação, além de sua observação pregressa à ética e aos valores do PCC. Em um cenário ainda mais distinto, a pesquisa etnográfica de Benédicte Duclos (2010)DUCLOS, Bénédicte. L'intervention militante em faveur de pauvres: un encadremet brutal indépassable? In: Patrick Bruneteaux; Daniel Terrole (orgs.). L'arrière-cour de la mondialisation: ethnographie des paupérisés. Broissieaux: Éditions du Croquant, 2010. p. 205-226. sobre a mobilização pelo direito à moradia em Paris, aponta para um quadro complexo de diferenciação, no qual “militantes profissionais” concentram recursos e poder de decisão pouco transmissíveis, apesar das tentativas retóricas de formação política voltadas às famílias de imigrantes atingidas pela ineficácia das políticas de moradia na França. A autora mostra que a visibilidade de alguns desses integrantes condiciona-se à substituição de testemunhos individuais de sofrimento pela supervalorização do coletivo, mas essa mudança gradual nas condutas discursivas não altera o sistema desigual de repartição de poderes entre militantes (que organizam, falam e decidem) e os sujeitos em busca de ajuda material, moradia e emprego.

A despeito de suas especificidades, essas pesquisas expõem o estímulo à aquisição individual de recursos que perpassa o destaque de sujeitos considerados aptos à interlocução com instâncias responsáveis pela gestão de visibilidades. A partir dessas contribuições, também poderíamos afirmar que a experiência com o MNPR-RS produz um corte entre aptos e inaptos. Mas se olharmos com mais atenção e desconfiança, veremos que, ao mesmo tempo em que diferencia, o insistente discurso sobre a capacitação política promove um debate contínuo, que se movimenta pela dinâmica das relações entre militantes e apoiadores, na medida em que as reflexões constantes sobre a politização das pessoas em situação de rua permitem que posições de hierarquia sejam postas à prova.

Se o conhecimento das leis, o funcionamento das instituições, o domínio de uma linguagem e comportamento específicos são valorados e reificados, também o é a assertiva de que a experiência das ruas conforma uma genuína capacitação política. Esse embate entre concepções de experiências que capacitam, a um só tempo afronta as pretensões interventivas do estado e enfraquece hierarquias entre linguagens e subjetividades ideais à luta política. Eis uma das facetas mais incríveis mobilizadas por militantes e apoiadores do MNPR: movimentar-se pelas querelas e contestações internas que promovem, fazendo com que os focos hierárquicos em seu interior nunca se fortaleçam a ponto de cristalizar desigualdades no acesso aos espaços de fala, poder e visibilidade.

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    Um histórico pormenorizado da atuação destas mobilizações pretéritas consta em minha tese de doutorado (cujas reflexões integram parte deste artigo) sobre a mobilização social do MNPR em Porto Alegre, realizada entre 2013 e 2017, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação de Patrice Schuch e com financiamento em período integral por meio da Capes.
  • 2
    O jornal Boca de Rua, do qual a maioria dos atuais militantes do MNPR-RS faz parte, é fruto de um descontentamento com as tendências da imprensa gaúcha. Criado em 2000 por duas jornalistas, assumiu o papel de dar ressonância às vozes de uma gente invisível, conjugando denúncias de múltiplas violências, preconceitos e violações (Jaenisch, 2007JAENISCH, Samuel. Vozes de uma gente invisível: o jornal Boca de Rua como espaço de mediação. In: Soraya Fleischer; Patrice Schuch; Cláudia Fonseca (orgs.). Antropólogos em ação: experimentos de pesquisas em direitos humanos. Porto Alegre: Editora da Ufrgs, 2007. p. 121-131.). Por sua vez, o Movimento Aquarela da População de Rua (2008-2011) amarrou, em sua gramática de mobilização, as demandas dos trabalhadores da assistência social e as reivindicações dos usuários dos serviços e dos militantes em situação de rua de Porto Alegre, que posteriormente integraram o MNPR-RS. Para informações mais detalhadas sobre estes processos, ver Lemões (2017)LEMÕES, Tiago. De vidas infames à máquina de guerra: etnografia de uma luta por direitos. Porto Alegre: PPGAS-Ufrgs, 2017. Tese de doutorado em Antropologia Social..

Referências

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    » www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7053.htm
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2018
  • Aceito
    08 Dez 2018
  • Publicado
    01 Mar 2019
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