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Entre as andanças e as travessias nas ruas da cidade: Territórios e uso de drogas pelos moradores de rua

Between the wanderings and the crossings in the streets of the city: Territories and drug use by homeless people

Entre las andanzas y las travesías en las calles de la ciudad: Territorios y uso de drogas por los habitantes de la calle

Resumo:

Esse artigo é parte de uma pesquisa etnográfica concluída em 2016. Propõe-se aqui discutir os territórios de drogas apropriados pelos moradores de rua que vivem na região central de Belo Horizonte, os sistemas de significados e os usos de drogas e sua representação simbólica. A organização dos espaços urbanos pelos moradores de rua que fazem uso de drogas segue uma lógica própria decorrente dos significados a eles atribuídos, da forma de percepção da cidade e de sua funcionalidade para acessar recursos necessários à sua condição de vida. A compreensão da forma de organização dos espaços urbanos foi possibilitada pelo mapeamento realizado juntamente com interlocutores e participantes dessa investigação nas “andanças e travessias”. Foi constatado que as definições dos limites físicos da cidade servem para demarcar as desigualdades e diferenças sociais e sustentam as políticas de drogas proibicionistas e as intervenções de controle social.

Palavras-chave:
Territórios de drogas; Moradores de rua; Políticas públicas

Abstract:

This article is part of an ethnography completed in 2016. It proposes to discuss the territories of appropriate drugs by the homeless people living in the central region of Belo Horizonte, the systems of meanings, the uses of drugs and their symbolic representation. The organization of the urban spaces of the central region of the city by the drug-laden street dwellers follows its own logic, due to the meanings attributed, the way of perception of the city and its functionality to access resources necessary for its life condition. The understanding of the organization of urban spaces for drug use and lifestyles was made possible by the mapping carried out together with dialog partners and participants in this research in the “wanderings” and “crossings”. It was also found that the definitions of the physical limits of the city serve to demarcate the inequalities and social differences and support the policies of prohibitionist drugs and the interventions of the organs of social control.

Keywords:
Drug territories; Street dwellers; Public policies

Resumen:

Este artículo es parte de una investigación etnográfica concluida en 2016. Se propone aquí discutir los territorios de drogas apropiados por los habitantes de la calle que viven en la región central de Belo Horizonte, los sistemas de significados y los usos de drogas y su representación simbólica. La organización de los espacios urbanos por los habitantes de la calle que hacen uso de drogas sigue una lógica propia derivada de los significados a ellos atribuidos, de la forma de percepción de la ciudad y de su funcionalidad para acceder a recursos necesarios a su condición de vida. La comprensión de la forma de organización de los espacios urbanos fue posibilitada por el mapeo realizado junto con interlocutores y participantes de esa investigación en las “andanzas y travesías”. Se constató que las definiciones de los límites físicos de la ciudad sirven para demarcar las desigualdades y diferencias sociales y sostienen las políticas de drogas prohibicionistas y las intervenciones de control social.

Palabras clave:
Territorios de drogas; Moradores de la calle; Políticas públicas

Introdução

Esse artigo é produto de uma pesquisa realizada em Belo Horizonte1 1 Este artigo tem como base a pesquisa Dando voltas pela cidade: um estudo sobre a trajetória dos consumidores problemáticos de drogas em Belo Horizonte. O referido trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). e propõe analisar os territórios psicotrópicos urbanos da capital mineira, particularmente na região central, ocupados por moradores de rua.2 2 Nossos interlocutores se auto reconhecem como “moradores de rua” e por essa razão, nesse artigo, eles serão assim referidos. A questão a ser discutida são os usos de drogas no centro da cidade de Belo Horizonte pelos moradores de rua, o sistema de significados dos espaços urbanos ocupados ou apropriados pelos atores sociais dessa pesquisa.

Nas últimas décadas as ciências sociais têm reconhecido os estudos espaciais das cidades como importantes, não só para entender a forma de organização e desenvolvimento urbano, como em função da influência dos espaços na definição de estratégias de políticas públicas e intervenções policiais, particularmente em relação a determinados grupos sociais, dentre os quais os que fazem uso de drogas ilícitas, para compreender as formas de apropriação dos espaços urbanos pelos moradores de rua e a forma de elaboração de táticas para sobreviver a essa situação.

A definição de territórios de drogas é polêmica, pois, como é sabido, em toda história da humanidade existem as substâncias psicoativas que alteram o organismo do sujeito e que são consumidas por diferentes pessoas em diferentes ambientes e por variadas motivações (Escohotado, 1989ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas. Madrid: Alianza, 1989.; Labate et al., 2008LABATE, Beatriz; GOULART, Sandra; FIORE, Mauricio; MAC RAE, Edward; CARNEIRO, Henrique (orgs.). Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: Edufba, 2008.; Romaní, 2010ROMANÍ, Oriol. Adicciones, drogodependencias y el “problema de la droga” en España: la construcción de un problema social. Cuicuilco, v. 17, n. 49, p. 83-101, 2010.) e que não foram em muitos contextos históricos e sociais demarcados em espaços específicos. Os territórios das drogas estão relacionados às cidades na sociedade contemporânea e, quando mencionados, estão associados a um problema social decorrente especialmente das leis proibicionistas e de suas repercussões nos grupos de classes sociais mais baixas como os moradores de periferia e negros que comercializam e fazem uso de drogas. Nesse contexto, discutir sobre os territórios psicotrópicos é debater sobre pobreza, raça e zonas periféricas/marginalizadas da cidade onde concentram-se indivíduos que consomem preferencialmente as substâncias psicoativas ilícitas ou “tornadas ilícitas” (Karam, 2014KARAM, Maria Lucia. Guerras as drogas e saúde: os danos provocados pela proibição. In: Lucília Elias Lopes; Vera Malaguti Batista (orgs.). Atendendo na guerra: dilemas médicos e jurídicos sobre crack. Rio de Janeiro: Revan, 2014. p. 265-300.) e em certos espaços das cidades, como comumente passou a ser focado no Brasil após a chegada do crack, caracterizados como terror contemporâneo e que deram origem as chamadas cracolândias. Fernandes (2000)FERNANDES, José Luis. Los territorios urbanos de las drogas: un concepto operativo. In: Grup Igia y colaboradores (orgs.). Contextos, sujetos y drogas. Un manual sobre drogodependencias. Barcelona: Ayuntament de Barcelona, 2000. p. 53-60. define territórios de drogas como

um lugar onde existe uma alta probabilidade de que ocorra uma interação a propósito das drogas, ainda que ele não forme parte da intenção prévia dos sujeitos. Estes lugares cumprem a função de potencializar contatos instrumentais eficazes para o caminho da vida das drogas, funcionando como atrativo espacial, e esses espaços permitem a interação entre os atores (Fernandes, 2000FERNANDES, José Luis. Los territorios urbanos de las drogas: un concepto operativo. In: Grup Igia y colaboradores (orgs.). Contextos, sujetos y drogas. Un manual sobre drogodependencias. Barcelona: Ayuntament de Barcelona, 2000. p. 53-60., p. 7).

Segundo o autor os referidos territórios são agrupamentos espontâneos formados por uma diversidade de pessoas em determinadas partes das cidades onde são construídas as regras de conduta, obedecendo a uma lógica própria, seja nas regiões periféricas ou centrais. Oliven (2014OLIVEN, Ruben. O medo nosso de cada dia. Prefácio. In: Antonádia Monteiro Borges; Lia Zanotta Machado; Cristina Patriota Moura (orgs.). A cidade do medo. Brasília: Verbena, 2014. p. 7-9., p. 8), no prefácio do livro A cidade e o Medo, explica que o medo “é uma narrativa. Ela é feita de informações, rumores, estórias que vão sendo construídas coletivamente e que, em certos momentos passam a ter o status de verdade”. Ou, segundo Hall (2016)HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: PUC Rio, 2016., os sentimentos decorrentes das narrativas/linguagens sobre os territórios denominados de drogas são representações sociais construídas por meio de produção de significados e de imagens sociais. Dito de forma mais clara “é a conexão entre conceitos e linguagem que permite nos referirmos ao mundo ‘real’ dos objetos, sujeitos, ou acontecimentos, ou ao mundo imaginário de objetos, sujeitos e acontecimentos fictícios” (Hall, 2016HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: PUC Rio, 2016., p. 34). Essa reunião de pessoas no contexto urbano de uso de drogas implica em uma interação mútua, por certo período de tempo, em determinadas circunstâncias, onde os indivíduos podem modificar condutas para se adequar às normas vigentes e aos papeis a ele atribuído pelo próprio grupo ou pela sociedade. Em geral, esse tipo de ajuntamento é uma tendência decorrente de preconceito, discriminação, dificuldade de acesso aos bens e serviços públicos, gerando uma espécie de isolamento e, de certa forma, fechamento de identidades. No caso particular de territórios das drogas ocupados pelos moradores de rua, são espaços de agregação voluntária, circunstancial ou acidental, de certos sujeitos e tais espaços são negligenciados ou permitidos pelo estado e são importantes marcadores de fronteiras regionais, de grupos e de classe social no cenário urbano. Essa demarcação limítrofe obedece a critérios ideológicos, se tornando “regiões morais” (Park, 1979PARK, Robert. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento no meio urbano. In: Otávio Guilherme Velho (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 25-66.) que podem variar de acordo com a organização, contexto social, histórico e a localização espacial. As referidas regiões são resultado da imposição que a vida urbana decreta aos indivíduos e são caracterizadas por uma aproximação de pessoas e posteriormente a sua segregação; criando uma espécie de código cultural que, segundo o autor, se transforma em “cidades dentro de cidades” (Park, 1979PARK, Robert. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento no meio urbano. In: Otávio Guilherme Velho (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 25-66., p. 38) e acabam por reforçar e legitimar as diferenças, aguçar e intensificar os preconceitos sociais e raciais. Reforça o autor que uma região moral não é fatalmente um lugar onde se concentram indivíduos anormais, ou criminosos, bandidos e ladrões embora no imaginário social assim seja construído.

Os estudos qualitativos realizados no campo das substâncias psicoativas, têm evidenciado que os agrupamentos são compostos de pessoas desempregadas, desabrigadas, loucas, pobres coitadas, vagabundas ou aventureiras que fazem uso ou não de drogas e que, de toda forma, levando em conta as normativas sociais, são desviantes. Ainda que esses grupos sejam assim organizados, o que predomina no discurso midiático, político e social é o uso de drogas, preferentemente as proibidas, e a imagem construída de degradação moral daqueles que ali se concentram como transgressores, sujos e perigosos. Com efeito, desperta na população sentimentos de raiva, medo, compaixão e, por outra parte, motiva a elaboração de estratégias institucionais no sentido de implementar medidas de segurança, vigilância e controle por parte das organizações públicas de seguridade, de saúde, religiosas e jurídicas. Esses dispositivos servem para validar esses lugares como marginais nas grandes cidades e como um problema social. Esse fenômeno é exaltado nos conteúdos e narrativas discursivas, ora para manifestar posições favoráveis às manobras políticas, ora para justificar e demarcar os territórios urbanos, para motivar a repressão (a limpeza) ou o “desinfetar” (em nome da higienização da cidade) e para retroalimentar as diferenças entre a ordem e a desordem, o normal e o patológico, a norma e a transgressão. Pesquisas etnográficas ressaltam que, embora esses lugares sejam produtores ou receptores de personagens que são rotulados, estigmatizados e que recebem tratamento social diferenciado, são também lugares de promessa de sociabilidade, de construção de identidade, pertencimento, solidariedade, emoções, sofrimento, conflito, ajuda mútua e visibilidade. São espaços importantes para orientar as narrativas biográficas, o tempo, a posição dos corpos e as práticas sociais tendo o elemento droga como intermediário das interações tão ricas e fundamentais para aqueles que ocupam esses lugares (Rui, 2012RUI, Taniele. Corpos abjetos: etnografia em cenário de uso e comércio de crack Campinas: Unicamp, 2012. Tese de doutorado em Antropologia.; Adorno, 2015ADORNO, Rubens. A produção das cracolândias: razões de mercado, pânico moral e elogio a violência do estado – epidemias de uma miséria política brasileira. In: Osvaldo Francisco Ribas Lobos Fernandez; Marcelo Magalhães Andrade; Antonio Nery Filho (orgs.). Drogas e políticas públicas. Educação, saúde coletiva e direitos humanos. Salvador: Ufba, 2015. p. 291-305.; Raupp, 2011RAUPP, Luciane. Circuitos de uso de crack nas cidades de São Paulo e Porto Alegre: usos, regulações e cuidado entre jovens usuários. São Paulo: USP, 2011. Tese de doutorado em Saúde Pública.; Frangella, 2009FRANGELLA, Simone. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São Paulo. São Paulo: Anablume, 2009.; Frúgoli e Spaggiari, 2010FRÚGOLI, Heitor; SPAGGIARI Enrico. Da cracolândia aos noias: percursos etnográficos no bairro da Luz. Ponto Urbe, 6, 2010 <10.4000/pontourbe.1870>.
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; Malvasi, 2014MALVASI, Paulo. A. Além do consenso moral: o problema das drogas na perspectiva de jovens de periferias paulistas. Revista Brasileira Adolescência e Conflitualidade, v. 1, n. 1, p. 87-109, 2014 <10.17921/2176-5626.n10p%25p>.
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entre outros).

Nesse artigo será feita uma discussão sobre os territórios; as estratégias de mapeamento por meio das trajetórias e andanças cotidianas de nossos interlocutores e da construção social das travessias ou lugares de parada, os usos de drogas, as normas, as regras e a representação simbólica das substâncias.

Territórios psicotrópicos em Belo Horizonte

Em Belo Horizonte, embora exista determinados bairros reconhecidos por um grande contingente de pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas, como perigosos por sua intensa concentração de comércio ilegal de drogas, os espaços de consumo de drogas ilícitas não são identificados como cracolândias nos modelos de São Paulo. Na capital mineira, esses lugares estão pulverizados, inclusive no centro da cidade onde existe grande confluência e pluralidade de pessoas, organizações comerciais, volume de circulação de veículos e heterogeneidade de divisão social de trabalho. Algumas ruas centrais contam com um fluxo intenso de moradores de rua que optam por essas zonas pela facilidade em acessar serviços de assistência ou por serem lugares “táticos” para atividades específicas, como por exemplo, para aceder aos albergues, restaurante popular, praças, parques, assistência social, distribuição de roupas, comida etc., e também para fazer uso de drogas. Por essa razão, esse foi o espaço escolhido para essa pesquisa etnográfica. A etnografia tem sido priorizada pelos antropólogos no campo das drogas, para documentar a vida e os sistemas de significados dos atores sociais.

A primeira etapa de trabalho investigativo foi constituída de um estudo exploratório por meio de entrevistas com os comerciantes da região central, transeuntes habituais, funcionários de hotéis e estabelecimentos públicos, além de observação nos pontos de maior concentração de moradores de rua. Na especulação introdutória, a questão colocada era o que/quem se constituía como incômodo da região central da cidade. Os resultados obtidos, quase que unanimemente, indicavam os moradores de rua que fazem uso de drogas e tudo que implica a sua vida de rua, como por exemplo, a sujeira, odor, perigo, escândalo, ameaça, entre outros (Medeiros, 2015MEDEIROS, Regina. Bêbados, noiados e moradores de rua: efeitos do proibicionismo e desafios das políticas públicas. In: Osvaldo Francisco Ribas Lobos Fernandez; Marcelo Magalhães Andrade; Antonio Nery Filho (orgs.). Drogas e políticas públicas: educação, saúde coletiva e direitos humanos. Salvador: Ufba, 2015. p. 51-65.), os sujeitos “ninguéns” (Galeano, 2002GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2002.), as “vidas nuas” (Agamben, 2007AGAMBEMG, Giorgio. Homo Sacer I: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2007.), os “corpos abjetos” de Rui (2012)RUI, Taniele. Corpos abjetos: etnografia em cenário de uso e comércio de crack Campinas: Unicamp, 2012. Tese de doutorado em Antropologia.. A partir dessa deliberação foi definido o foco da pesquisa: moradores das ruas centrais que fazem uso de drogas. A decisão polêmica era de caráter metodológico visto que, nos primeiros passos do trabalho de campo, surgiram dois desafios essenciais: o primeiro é que as falas dos interlocutores e dos entrevistados do entorno evidenciavam que o uso de substâncias psicoativas seria uma condição sine qua non para viver na rua. No caso da bebida alcoólica, não só para autocuidado com o corpo como para aquecimento ou para relaxar e dormir ou, ainda, para substituir os alimentos. No caso das drogas ilícitas, seria uma exigência daqueles indivíduos que dominam os múltiplos territórios de venda dessas substâncias. Assim, foi necessário fazer e refazer os critérios para definir os atores sociais da pesquisa (que representavam a quase totalidade dos moradores de rua), as abordagens para entrevistas preliminares e uma escuta atenta não só sobre as motivações, mas sobre as formas de uso das drogas e a representação social que fazem elas em suas vidas. O segundo desafio foi delimitar os espaços para o foco da pesquisa ou o território de drogas. Havia alguns lugares de maior concentração de moradores de rua como praças e parques, proximidades de albergue, restaurante popular, serviços de assistência social e portas de hospitais, porém, foi observada uma mobilidade intensa no uso desses espaços, reiterados deslocamentos espaciais, representações, trajetos, construções, variedade de objetos urbanos e uma diversidade de personagens com diferentes maneiras de marcar sua presença materializada no corpo em movimento. Uma espécie de nomadismo que envolve processos vitais dos sujeitos em variados pontos do centro da cidade. Essa questão exigiu o exercício de mapeamento para entender, definir e desenhar aqueles espaços e os sujeitos que nele permanecem, mesmo que por pouco tempo. Seguindo as recomendações de Agier (2011)AGIER, Michel. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011., para o conhecimento antropológico da cidade onde recebe, reproduz e multiplica encontros de uma multiplicidade e diversidade de pessoas e para pensar a construção e relações de identidades, hibridação, trocas, convivência, territorialidade e fronteiras é necessário analisar as dinâmicas urbanas, saberes construídos, entroncamentos, situações, lugares, fluxos e os contextos.

Entendemos como uma espécie de peregrinação, a atividade de mapear o ato de andar a pé pelos lugares traçados (Marques, 2006MARQUES, Robson. Entorno, drogas e violência nas escolas: uma contribuição sobre a espacialidade no município de Belo Horizonte. In: Regina Medeiros (org.). A escola no singular e no plural: um estudo sobre violência e drogas nas escolas. Belo Horizonte, Autêntica, 2006. p. 47-83.), em movimentação contínua acompanhando os deslocamentos dos moradores de rua pelo centro da cidade, como. Afirma Ingold (2005INGOLD, Tim. Jornada ao longo de um caminho de vida: mapas, descobridor-caminho e navegação. Religião e sociedade, v. 25, n. 1, p. 76-110, 2005., p. 87) que mapear não corresponde a uma “vista de pássaro”, mas pressupõe percorrer territórios, apreender os lugares por meio dos sujeitos que neles vivem, ou seja, exige uma “vista nativa” para captar os significados que foram construídos “ao longo das muitas trilhas que compõem um território, ao longo das quais as pessoas vão e vem na vida prática”. Fazer mapas é então uma fotografia com delimitação espacial concreta, simbólica e relacional com base em códigos de conhecimento, experiências, padrões e comunicação compartilhados entre os que nele habitam. Com base nessas recomendações, a equipe de pesquisa iniciou o processo de mapeamento, caminhando a pé com os moradores de rua no intuito de perceber a lógica dos circuitos feitos, suas rotinas, os espaços frequentados, suas representações simbólicas e as interações sociais. Essa incursão exigiu meses de trabalho, durante longos dias de duras caminhadas, sujeitas às condições meteorológicas, isto é, expostos ao sol e chuva, ao estado de ânimo e de humor dos moradores resultante de noites mal dormidas, efeitos de álcool e outras drogas, conflitos internos, com a polícia etc. Os andantes, sem uma preocupação em dizer sobre o seu roteiro ou dar alguma explicação ao pesquisador, saiam caminhando, na maioria das vezes com olhar rebaixado, calados, limitando-se a dar respostas com palavras soltas, reduzidas e articuladas por entre os dentes, quase inaudíveis, principalmente, enquanto estão perambulando. Passavam por entre carros, viadutos, marquises, lotes vagos, travessas, becos e, da mesma forma, faziam paradas na maioria das vezes de forma repentina e pouco justificadas. A marcha era feita durante o dia, em grupos de pelo menos duas pessoas – é raro encontrar alguém fazendo esse circuito sozinho. Em geral, carregavam uma sacola de plástico na mão ou uma mochila nas costas, circulando pelas mesmas ruas, em especial as de intenso movimento de automóveis e pessoas e em outros espaços como becos, linhas de trem, ruelas estreitas etc. Circulavam sem dar importância ao semáforo, seguiam uma ordenação invisível como um pêndulo de um relógio, sempre na mesma direção. É notadamente um fluxo de aventura diária e, ao mesmo tempo um risco, expresso pelos insultos, abordagem policial, problemas de saúde que surgem instantaneamente, como diarreia, vômitos e desmaios ou acidente e atropelamento. O risco foi um ponto importante de indagação na prática do mapeamento. Questiona-se se seria ele uma realidade daqueles que tem a rua como morada ou é um estilo de vida, como uma espécie de adrenalina, que configura a novidade, um triunfo e vantagem ao desafio que a rua apresenta e a superação ou troféu por mais um dia de vida. De toda forma, os nossos interlocutores, tem consciência da previsibilidade débil em percorrer aqueles caminhos e comentam isso entre os companheiros como uma espécie de vitória conquistada. O risco, nesse caso, é uma opção e nos remete à afirmativa de Breton (2012BRETON, David. La sociologie du risque. Paris: PUF, 2012., p. 182), “quando o risco é escolhido em uma atividade de diversão ou de desafio pessoal, torna-se uma espécie de reserva no qual se buscam sentidos, refazendo-se o gosto de viver ou buscando aquele gosto que se perdeu”. O vaivém dos compassos pelos caminhos representa uma busca constante e é uma maneira de expressar o autoabandono e a não conformidade com sua vida, visivelmente marcada pelo corpo, as vestes e o cheiro fétido exibido publicamente, expondo ao restante da população as diferenças sociais. Ao mesmo tempo, ainda que não de uma forma consciente, é uma maneira de provocar os demais cidadãos que transitam também pelos mesmos lugares e despertar medo e desconfiança. As andanças transformam a cidade em um território em movimento (Medeiros, 2015MEDEIROS, Regina. Bêbados, noiados e moradores de rua: efeitos do proibicionismo e desafios das políticas públicas. In: Osvaldo Francisco Ribas Lobos Fernandez; Marcelo Magalhães Andrade; Antonio Nery Filho (orgs.). Drogas e políticas públicas: educação, saúde coletiva e direitos humanos. Salvador: Ufba, 2015. p. 51-65.), expressando a subversão da lógica construída sobre a imagem coisificada de sujeira horripilante ou dos corpos abjetos (Rui, 2012RUI, Taniele. Corpos abjetos: etnografia em cenário de uso e comércio de crack Campinas: Unicamp, 2012. Tese de doutorado em Antropologia.) das pessoas que estão nessa situação. A movimentação, oposto à inercia da organização urbana, revela a ambivalência entre a cidade projetada e como é vivenciada pelas pessoas em seu cotidiano. Os errantes (Frangella, 2009FRANGELLA, Simone. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São Paulo. São Paulo: Anablume, 2009.) ou nômades da região central da cidade são sujeitos sem residência fixa, com laços sociais, familiares e de trabalho corroídos e com um andar desengonçado revelam o lugar social que ocupam, de certa forma mostrando o que o “outro” quer ver e, ao mesmo tempo, demonstrando resistência e retroalimentando as classificações sociais enquanto torneiam por determinados lugares de maneira repetida. Nos fluxos contínuos, os andantes, revelam o conhecimento produzido pelos percursos, cada rua, loja, barraquinha, os vendedores ambulantes, algumas pessoas com as quais cruzam diariamente, os buracos nas calçadas, os desvios, becos, bares, pontos de ônibus e travessas. Cada detalhe é um elemento simbólico importante para modelar e sinalizar as modificações urbanas dos trechos percorridos, ou seja, para usar ou se apropriar de parte da cidade ou para fazer uso funcional da mesma, como seguir por uma determinada rua que se destina às praças para o descanso e banho, ao restaurante popular para se alimentar, aos centros de acolhimento, as esquinas de distribuição de comida e os albergues para dormir. Em geral, embora caminhando em pequenos grupos, o fazem em silêncio como se o silêncio expressasse a própria fala e os pés descalços ou, na maioria das vezes, com chinelas de borracha, ritmam seus passos e a velocidade acelerando ou desacelerando, ao seu modo, sem um aviso prévio ao seu acompanhante, que testemunhava situações incômodas, como o cuspir no chão, urinar em público e, mais que tudo, experimentar a pobreza e a marginalidade social, dando conta das restrições estruturais. No final de cada intensa jornada de trabalho de campo, os pesquisadores se encontravam exaustos, suados, confusos e com uma série de questões sem respostas. Mas, questões inquietantes produziam reflexões pontuais, sobretudo pela ambivalência e os limites tênues entre a vida e a morte, o moral e o ético, a solidão e a diversidade, o silêncio e o barulho excessivo. Viver esse processo é a constatação de que “estive lá” (Geertz, 2002GEERTZ, Clifford. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002.), conhecendo o centro da cidade com os olhos de nossos interlocutores. Conforme adverte Agier (2011)AGIER, Michel. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011. é preciso abordar a cidade a partir do ponto de vista de seus atores, e, nesse processo, foi possível ver de perto a indigência, a vergonha e o sofrimento social. Aos olhos dos “outros” sociais, eles são nada além de um conjunto ambulante de lixo que espalha mau cheiro pela cidade (Medeiros, 2015MEDEIROS, Regina. Bêbados, noiados e moradores de rua: efeitos do proibicionismo e desafios das políticas públicas. In: Osvaldo Francisco Ribas Lobos Fernandez; Marcelo Magalhães Andrade; Antonio Nery Filho (orgs.). Drogas e políticas públicas: educação, saúde coletiva e direitos humanos. Salvador: Ufba, 2015. p. 51-65.) e, nesse lugar, humilhados e hostilizados socialmente, expressam conscientemente uma forma diferente de visualizar o mundo, de ocupar e apropriar-se da cidade, desordenando a estrutura urbana e dando visibilidade à invisibilidade das pessoas que são e dos lugares que ocupam. Esse momento etnográfico nos remete a Magnani (2002)MAGNANI, Jose Guilherme. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 49, p. 11-29, 2002 <10.1590/S0102-69092002000200002>.
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que elucida,

a natureza da explicação pela via etnográfica tem como base um insight que permite reorganizar dados percebidos como fragmentários, informações ainda dispersas, indícios soltos, num novo arranjo que não é mais o arranjo nativo […] nem aquele com o qual o pesquisador iniciou a pesquisa (Magnani, 2002MAGNANI, Jose Guilherme. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 49, p. 11-29, 2002 <10.1590/S0102-69092002000200002>.
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, p. 17).

De fato, desde a pesquisa exploratória, as andanças e as vivências entre os nativos em seu ambiente possibilitou outras leituras e olhares sobre o contexto social e, em decorrência, provocou modificações na proposta inicial, na dinâmica da pesquisa, na escuta e compreensão dos conteúdos narrativos, na percepção das práticas sociais e no entendimento sobre as formas de gerir a pobreza. E, tão importante, foi a construção do laço de confiança e respeito entre os pesquisadores e os sujeitos da pesquisa e a aproximação dos interlocutores que passaram a fazer parte do estudo etnográfico.

Entender a logicidade dos trajetos nas andanças, a dimensão espacial e seus significados foi fundamental para conhecer os lugares de parada ou de descanso que denominamos “travessia”. Esse cognomino foi inspirado nos escritos de Guimarães Rosa que explica que “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (1984, p. 80). Para o autor é possível pensar em uma espécie de entre lugares, espaços fronteiriços ou mediadores sensíveis de regresso e de partida ao mesmo tempo, de rituais de passagem entre o real e o imaginário, entre o sentido físico e simbólico. São importantes locais para a estruturação do tempo e da vida psicossocial marcados pela expressão do corpo e performance. São apropriados para estabelecer laços que sujeitam as pessoas aos territórios, muito além dos usos e das representações das drogas, longe de negar que elas têm um sentido significativo na vida e nas relações cotidianas entre os moradores de rua. É na travessia onde se aprende os truques de viver na rua de conhecer e aprender a gramática cultural e o guia prático para usufruir dos serviços públicos oferecidos, de aceder e utilizar os equipamentos urbanos, estabelecer encontros e trocas e para usar e apropriar-se dos espaços e da paisagem da cidade. É um ponto de encontro e de referência. São lugares com iluminação, ainda que precária, com sombra, existência de água e de recursos de higiene próximo, embora não disponibilizados publicamente, mas, aos quais é possível ter acesso com um pouco de sorte, negociação com os proprietários de negócios comerciais e disponibilidade de uns trocados para pagar pelo uso. Não se trata de um lugar de moradia fixa e definitiva, é um ponto de registro e de orientação, de ancoragem, de repouso ou de trégua. A travessia é impregnada de uma diversidade de memórias de cada um, e é onde as histórias se articulam formando uma trama imbuída de sentimentos, emoções, expectativas, conflitos, desacordos e diferenças e, em caráter processual, estabelecendo relações e construindo biografias particulares e coletivas, normas e regras de comportamento, formas de estabelecer vínculos, ajuda mútua, trocas e solidariedade. As travessias também passaram a ser um ponto referência para os pesquisadores e foram valorosas para estabelecer laços de confiança, observar os rituais, as interações entre eles e com o entorno, os conflitos, infortúnios, a divisão de trabalho, a liderança, o preparo da alimentação, os momentos de chegada e de saída, de lazer e de diversões. Na travessia foi possível observar a relação com os objetos, a hierarquia, a forma de organização e disposição de cada parte do lugar: lugar de fazer fogo para aquecer ou para a feitura da comida, para colocar os colchões, sacolas etc. Ela foi importante também para entendermos o uso dos espaços no cotidiano, as mudanças ou alterações da rotina nos dias de festas, feriados e celebrações na cidade e sua repercussão na vida deles. Ademais, foi nas travessias que ocorreram as conversas mais importantes, não só com os nossos interlocutores, como também com as pessoas que compõem a sua biografia singular. Pudemos entender a economia subterrânea, as trocas reais e simbólicas e a lógica de construção do contexto da rua e para estabelecer interação com os nativos. Nesse quesito, nos alerta Bourgois (2010)BOURGOIS, Philippe. En busca de respeto: vendiendo crack en Harlem. Buenos Aires: Siglo XXI, 2010., é na relação cooperativa que o pesquisador entende a luta pela sobrevivência abaixo da linha de pobreza com dignidade e as malícias da rua.

A travessia, em nosso estudo foi reconhecida em dois pontos que denominamos de marco zero A – a praça da Estação e marco zero B – o viaduto das Bolas. O marco zero A de travessias é uma praça – da Estação – rodeada de grande volume de veículos públicos e particulares, estação de metrô e de trem, estabelecimentos comerciais, sobretudo bares, restaurantes, lanchonetes e instituições públicas, principalmente, municipais. Esses equipamentos públicos são essenciais para facilitar a solução de problemas imediatos no que concerne às necessidades básicas para a sobrevivência na rua. É notório nessa área a intensidade e diversidade de transeuntes que se cruzam sem dar atenção aos demais passantes ou se relacionando com os vendedores ambulantes, com outros cidadãos nas paradas de ônibus e para usar os serviços existentes no entorno da praça.

O marco zero B das travessias é um viaduto que está localizado abaixo de um conjunto de viadutos que cruzam ruas e avenidas centrais e que têm a estação rodoviária em seu eixo principal. Em torno do viaduto trafegam automóveis e ônibus intermunicipais, há pontos de táxi, estabelecimentos comerciais e por ele passa diariamente um grande número de pessoas fazendo um atalho para aceder o outro lado das ruas ou para chegar à rodoviária. A travessia B é conhecida como viaduto das bolas devido à existência de bolas de cimento cravadas no chão pelo governo municipal, com o objetivo de impossibilitar a concentração de moradores de rua ou de outros grupos marginais, a colocação de colchões ou o acendimento de fogueiras para o aquecimento ou para a preparação de comidas. Essa estratégia foi ineficaz justamente porque as bolas de cimento possibilitaram maior conforto: elas servem como encosto, suporte para jogar baralho, secar roupa ou como mesa para comer ou centralizar uma conversa. Tanto a travessia do marco A como a do marco B dá acesso aos serviços sociais oferecidos na cidade, ao restaurante popular, às praças que contam com fonte de água, a hospitais e albergues e outros espaços que requerem um transitar por ruas movimentadas.

Os usos de drogas nos territórios urbanos

Embora os territórios urbanos ocupados pelos moradores de rua não tenham uma demarcação tão objetiva como parecem ter ou, como se observa no imaginário social, são desenhados e colocados em debate público com base no juízo condenatório ou como problema social, são locais de referência espacial e moral percebidos de maneira diferente e complementar na ordenação social. Em determinados lugares e situações seus ocupantes parecem reforçar as desigualdades, as hierarquias e justificar as intervenções feitas pelos mecanismos de controle social através de sanções aplicadas, em geral, de maneira autoritária e preconceituosa. Nesses lugares, o uso de drogas varia entre as andanças e as travessias com base em sua funcionalidade e representação simbólica e, dadas as condições de vida na rua e aos seus efeitos diversos que alteram o estado de consciência, trazem benefícios sociais e individuais e são eficazes nas redes de sociabilidades. Em cada espaço da cidade, o consumo das substâncias psicoativas e as relações dos sujeitos com elas são organizadas de maneira particular. No caso da pesquisa realizada, são intermediadores prestigiosos na forma de estruturar a vida, a temporalidade e a espacialidade urbana.

As drogas nas andanças

As drogas mais consumidas nas andanças pelas ruas da cidade e entre uma infinidade de personagens que se cruzam nesses espaços são as drogas lícitas, como o cigarro e a bebida alcoólica, especificamente a conhecida “barrigudinha”. A barrigudinha é uma cachaça de má qualidade, de custo baixo, acondicionada em uma pequena e rechonchuda garrafinha de plástico que pode ser adquirida nos pontos de venda do entorno e em supermercados populares. É compartilhada entre as pessoas que transitam em conjunto pela cidade e passada de mão em mão especialmente nos dias de frio ou de chuva, como uma espécie gestual de aproximação, de solidariedade e doação, como bem coloca Mauss: “se as pessoas se dão, é porque se devem –elas e seus bens– aos outros” (Mauss, 2003MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Marcel Mauss. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003., p. 256). Esse ritual é repleto de sentidos, códigos e nexos compartilhados pelos moradores de rua que atribuem valores e simbolismo à bebida, de maneira particular. Esse signo, a cachaça compartilhada, é importante para a comunicação e para interceder relações, experiências subjetivas e sociabilidade. Nas andanças, não observamos o uso em público de outras drogas diferentes da bebida e do tabaco. Tais drogas, certamente por serem ilícitas, geralmente não são usadas ou transportadas nos espaços centrais da cidade; enquanto que a cachaça, ao contrário, os iguala aos cidadãos comuns que podem beber uma cerveja ou outras bebidas em cenas públicas, sem nenhum constrangimento, dado a sua permissibilidade social. A barrigudinha tem um sentido extraordinário nas andanças e tem uma coerência valorativa que pode ser variável de acordo com a situação e com a garrafinha (coisa) e seus significados, sobretudo como troca não monetária e nem quantificável, mas como forma de reprodução das relações de reciprocidades entre as pessoas que fazem parte dessa rota. Ela, enquanto objeto simbólico, veicula aspectos do lugar do sujeito na cidade e de suas experiências singulares. Observando como ela é concebida, vê-se que é um mediador das relações sociais e estratégia de continuidade para conectar tempo, espaço e sujeitos. Seguir a barrigudinha é desvelar sistemas de significados, comunicação intersubjetiva, mecanismos de proteção, reação, velocidade, e, sobretudo aproximação da realidade social submersa nos fluxos urbanos.

As drogas nas travessias

Diferentemente das andanças, nas travessias são usadas as drogas ilícitas, porém as mais baratas e de fácil acesso, como, por exemplo, cola de sapateiro, maconha, cocaína e crack. De modo oposto à bebida alcoólica, em geral, não são compartilhadas, apesar de o uso ser em conjunto e em público. O lugar escolhido para o consumo é preservado dos olhares dos outros cidadãos, dos órgãos de assistência e, de maneira particular, dos organismos de controle social, inclusive quando estão nas travessias. Cada qual adquire a sua substância para uso individual e as regras são muito claras. Por exemplo, não se empresta uma porção de drogas (crack, cocaína, maconha) para não ficar em débito com o outro o que pode gerar desavenças, violência e até morte. Assim, como na dádiva de Mauss (2003)MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Marcel Mauss. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003. o ato de receber obriga a retribuição no mesmo momento ou em outra época, naquele mesmo local ou em outros, aonde certamente vão se reencontrar mais cedo ou mais tarde. Se a droga não for retribuída ou paga, torna o receptor inferior e não merecedor de respeito. Por essa razão, deve ser duramente punido, preferencialmente pelo doador ou por parceiros que também conhecem essa regra e têm o compromisso de retroalimentá-la. A punição pode ser um ato público à vista de qualquer pessoa, do grupo de moradores ou pode ser enquanto o devedor está sozinho e sem condição de defesa, preferentemente, quando está dormindo, o que resulta como cruel e fatal. Esse fato aponta para a noção da honra expressa em rituais governados por regras inscritas na reciprocidade. Para evitar essas desavenças, em geral, a droga ilícita não é dada, não é emprestada, não é bem recebida e nem é compartilhada nas travessias. Esse ritual expressa um caráter normativo, já que a ação/comportamento e a reação/punição é de consenso do grupo e segue uma espécie de roteiro, como bem afirma Goffman (2011)GOFFMAN, Erving. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face. Petrópolis: Vozes, 2011. quando, em uma cena determinada os indivíduos se agrupam, tendem a agir como atores em uma peça de teatro onde a dramatização causa impressões dos outros sobre eles, sobre as normas e os papéis sociais. No caso de haver uma opinião contrária, no momento do ritual, a pessoa deve ficar em silêncio, pois ela também pode se tornar o alvo devido à desobediência à norma. Trata-se de um código moral para definir os parâmetros comportamentais que incluem o ofendido e o ofensor, a tolerância, os limites e o descrédito que pode gerar constrangimento. Por essa razão, o agir deve ter como base a racionalidade entre as pessoas que interagem em um determinado contexto social.

Mesmo que as substâncias ilícitas sejam prevalentes no marco A e B, é comum observar o uso e a companhia constante de uma barrigudinha que é a substância hegemônica de uso continuado entre os interlocutores dessa pesquisa. Ela é um marcador simbólico importante de identidade do morador de rua e, ao mesmo tempo, um atributo estigmatizador. É um tipo de espírito coadjuvante capaz de fazer do possuidor da garrafinha, com seu conteúdo encantador, suficientemente habilitado para enfrentar os obstáculos, sobretudo para amparar a intermediação pacífica com os outros. É uma espécie de vínculo mágico e difuso; da palavra, do gesto e do olhar; um gênero de suporte humano ou um personagem extraordinário indispensável e intercessor das interações sociais e simbólicas relevantes, pois, trata-se de um fluxo de sentidos compartilhado que veicula aspectos singulares e experiências individuais e sociais. A literatura antropológica e etnográfica tem nos ensinado há mais de um século que os objetos assim como os donos ou usuários deles só ganham significação no sistema de classificação em seu contexto específico, pois expressam a lógica da organização da vida cotidiana, os rituais e representações e seus efeitos na subjetividade individual e coletiva dos atores sociais. O objeto droga é um veículo simbólico que transporta mensagens, normativas construídas com base em uma lógica própria, expectativa e códigos de comportamento entre os grupos que dela fazem uso, mas, ao mesmo tempo identifica, discrimina, rotula, constrói e manipula sistemas sociais, num processo de ação e reação. De toda forma, as drogas estão sob o domínio dos grupos hegemônicos que tem o poder para classificá-las e indexá-las à legalidade ou a ilegalidade, resultando no estatuto de liberação de algumas e proibição de outras, alicerçado na possibilidade de ameaçar o funcionamento da ordem social.

Com jeito de conclusão

Os estudos etnográficos em territórios das drogas têm apontado para a diversidade de agregação coletiva, espontânea ou acidental dos sujeitos para quem a droga é um importante elemento de ruptura com os modelos sociais normativos e com as estruturas formais. Nessa perspectiva, é impossível definir um território de drogas de maneira certeira e absoluta, pois ele é formado com base na história, nos interesses políticos e ideológicos ou na maneira de apropria-se ou fazer uso dele. Delimitar os espaços urbanos é uma estratégia classificatória de apartar, demarcar e cronificar os espaços da cidade com base em questões morais, sociais e políticas que acabam por incidir sobre pessoas que fazem uso dele, de maneira particular os de classe social mais baixa, as minorias ou os desviantes sociais atribuindo-lhes rótulos. No caso dos moradores de rua, o direito individual de fazer opção pela vida na rua, consumir cotidianamente drogas e bebidas alcoólicas de maneira independente e de vivenciar a liberdade pessoal, como um valor essencial, é desconsiderado. O que prevalece é a negação da capacidade reflexiva do sujeito sobre o seu corpo, do prazer de vivenciar suas escolhas e dos riscos aos quais comumente está exposto. Por outra parte, delimitar espaços físicos e nomeá-los negativamente é uma tática para produzir e reproduzir imagens sociais dos personagens que fazem uso deles como indivíduos que perderam o discernimento e o controle de suas vidas, do seu próprio corpo, dos lugares públicos e das normas sociais vigentes. Com efeito, se justifica a elaboração de políticas públicas autoritárias, falseadas e repressivas por meio de conteúdos discursivos moralistas sobre a incapacidade do sujeito de responder por si próprio e de exercer sua autonomia retroalimentando as políticas proibicionistas. Por fim, fazer etnografia na rua, com grupos estigmatizados é uma experiência de reflexão continuada e mesclada pela sedução e pelo desânimo que exige tempo e dedicação para romper com os desafios das dissoluções, mobilidades, dispersões, intermitência, fragmentações, descontinuidade, sistemas simbólicos, interseções, identidades diversificadas e múltiplas, estruturas instáveis e fluxo contínuo. Ademais, exige do pesquisador bases técnico-metodológicas e éticas que sustentem e permitam um fazer e refazer constante. Estudar os territórios de uso de drogas é entender a relatividade dos usos dos espaços urbanos, a diversidade social e o significado das drogas na vida das pessoas.

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    Este artigo tem como base a pesquisa Dando voltas pela cidade: um estudo sobre a trajetória dos consumidores problemáticos de drogas em Belo Horizonte. O referido trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).
  • 2
    Nossos interlocutores se auto reconhecem como “moradores de rua” e por essa razão, nesse artigo, eles serão assim referidos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2018
  • Aceito
    25 Nov 2018
  • Publicado
    01 Mar 2019
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