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Revisitação aos atores e territórios psicotrópicos do Porto: Olhares etnográficos no espaço de 20 anos

Revisiting social actors and psychotropic territories in Porto: A twenty years ethnographic perspective

Revisitación a los actores y territorios psicotrópicos de Porto: Miradas etnográficas en el espacio de 20 años

Resumo:

Este artigo tem como proposta acompanhar a evolução dos atores e dos territórios psicotrópicos desde o início dos anos 90 até à atualidade, tendo por base o conhecimento gerado por duas investigações etnográficas levadas a cabo no Porto. A segunda, atualmente em curso, é a revisitação da primeira, realizada por um dos autores nos anos 90. As unidades de estudo, tanto na primeira etnografia como na atual, são espaços situados no interior de bairros sociais ou nas suas imediações nos quais há concentração de indivíduos com interesses nas drogas, sejam eles comerciais ou de consumo. Ambas as pesquisas caracterizam as dinâmicas territoriais do fenómeno droga bem como os seus principais protagonistas em territórios psicotrópicos que se tornaram referenciados no discurso mediático como “bairros das drogas”. Relativamente aos atores aprofundamos a fenomenologia do “agarrado”, descrevendo as suas práticas e vivências, as funções várias que pode desempenhar no funcionamento do território psicotrópico, as estratégias que desenvolve na rua para conseguir financiar o seu consumo. Encontramos hoje sensivelmente o mesmo perfil sociográfico dos atores que caracterizámos na primeira investigação, se excetuarmos o facto de naquela altura haver bastantes indivíduos mais jovens. Quanto aos territórios psicotrópicos, a possibilidade de os olharmos com 20 anos de distância entre as duas etnografias permite notar: a estabilidade temporal das suas características e funcionamento; a grande longevidade de alguns deles, que continuam hoje com a sua localização, dinâmicas e funções mais ou menos inalteradas; grande capacidade de resistência às investidas policiais.

Palavras-chave:
Revisitação etnográfica; Periferia; Território; Drogas

Abstract:

This paper describes and analyses the development of psychotropic actors and territories from the early 90's until today, based on two ethnographies carried out in the city of Porto (Portugal). The second ethnography, currently ongoing, is a revisitation of the first one, which was undertaken by one of the authors in the 90's. In both ethnographies, the research units are territories located in housing estates – or their surroundings – in which there is a concentration of individuals with commercial or consumptive interests in drugs. Both studies portray the territorial dynamics of the drugs phenomenon, as well as its main protagonists in psychotropic territories that the media describe as “drug neighborhoods”. We explore the phenomenology of the “junkie”, describing his/her practices and ways of living, the functions he/she may perform in the operation of the psychotropic territory, and the strategies he/she develops to finance his/her drug use. The current actors' sociographic profile is similar to the one described in the first study, the difference being that in the past there were many younger individuals. Regarding the psychotropic territories, this revisitation authorizes stating the stability of their characteristics and operation; their longevity in terms of location, dynamics and functions; their great resistance to police charges.

Keywords:
Ethnographic revisits; Peripheries; Territory; Drugs

Resumen:

Este artículo tiene como propuesta acompañar la evolución de actores y de los territorios psicotrópicos desde el inicio de los años 90 hasta la actualidad, teniendo como base el conocimiento generado por dos investigaciones etnográficas llevadas a cabo en Oporto. La segunda, actualmente en curso, es la revisitación de la primera, realizada por uno de los actores en los años 90. Las unidades de estudio, tanto en la primera etnografía como en la actual, son espacios situados en el interior de barrios sociales o en sus inmediaciones en las cuales hay concentración de individuos con intereses en las drogas, sean ellos comerciales o de consumo. Ambas investigaciones caracterizan las dinámicas territoriales del fenómeno droga bien como sus principales protagonistas en territorios psicotrópicos que se convierten referencias en el discurso mediático como “barrios de las drogas”. En relación con los actores profundizamos en la fenomenología del “agarrado”, describiendo sus prácticas y vivencias, las diversas funciones que puede desempeñar en el funcionamiento del territorio psicotrópico, las estrategias que desarrolla en la calle para conseguir financiar su consumo. Hoy encontramos el mismo perfil sociográfico de los actores que caracterizamos en la primera investigación, si exceptuamos el hecho de encontrar bastantes individuos más jóvenes. En cuanto a los territorios psicotrópicos, la posibilidad de verlos con una distancia de 20 años entre las dos etnografías permite anotar: la estabilidad temporal de sus características y funcionamiento; la longevidad de algunos de ellos, que hoy continúan con su localización, dinámicas y funciones más o menos inalteradas; gran capacidad de resistencia a las investidas policiales.

Palabras clave:
Revisitación etnográfica; Periferia; Territorio; Drogas

Introdução

A etnografia urbana, desde as suas origens na Escola de Chicago, tem sido sobretudo praticada por antropólogos e sociólogos. Embora reconhecida como estilo de pesquisa que pode ser de grande valor em qualquer ciência social e humana, todas as outras têm recorrido a ela com grande parcimónia. Particularmente na psicologia, campo disciplinar em que se inscrevem os autores, a sua utilização tem sido pouco frequente e nem sequer é comum ensiná-la enquanto estratégia de recolha empírica quando se aborda o leque de métodos que os investigadores têm à disposição.

Que razões nos terão levado a aproximar dum método que não faz parte da nossa tradição disciplinar? No caso de um de nós, a iniciar a sua atividade como profissional no campo das drogas na segunda metade dos anos 80, tratou-se da vontade de superar aquilo que na altura víamos como uma limitação –podemos mesmo dizer um obstáculo epistemológico– à compreensão do fenómeno da adicção às drogas. A sua redução ao psicopatológico, operada pelo setting clínico que era o dominante na época, parecia-nos deixar de fora dimensões do fenómeno que só a imersão nos contextos naturais de vida dos utilizadores de drogas poderia revelar. O tema da “epidemia da heroína” tinha nesses anos uma grande visibilidade nos países da Europa ocidental, amplificado por uma insistente narrativa mediática que encontrava nos “bairros das drogas” e na associação do “heroinómano” e do “toxicodependente de rua” ao aumento da criminalidade uma fonte permanente de reportagem e de debate sociopolítico.

Perante o alarme social assim gerado, os dispositivos medico-psicológico e juridico-penal ganhariam a dianteira nas estratégias do denominado “combate à droga”. Qualquer destes dispositivos operaria um reducionismo individualizante: o juridico-penal em torno do “traficante” e o medico-psicológico em torno do “drogado”, que a linguagem clínica designaria primeiro por “toxicómano” e, pouco depois, por “toxicodependente”.1 1 Seria um exercício interessante seguir o passo às mudanças de terminologia no campo das drogas, com certeza reveladoras dos a priori morais, ideológicos e teóricos que vão determinando os modos de falar dos especialistas: de “toxicómano” passou-se a “toxicodependente” e, de há alguns anos para cá, a “utilizador de substâncias psicoativas”, coincidindo esta última com a ascensão da política de redução de riscos e minimização de danos e com o papel ativo das associações de utilizadores de drogas; também a “droga” é hoje “substância psicoativa” e a consagrada expressão “combate à droga” vai caindo em desuso, enquanto os organismos públicos que dão forma ao dispositivo vão mudando de nome de modo a acompanhar estas evoluções.

O contacto de médicos e psiquiatras, psicólogos e outros profissionais de saúde com os indivíduos que desenvolveram dependência da heroína seria sobretudo realizado nos gabinetes onde se desenrolava a terapia. Estagiávamos por essa altura num desses centros de tratamento no Porto e rapidamente nos pareceu que, sem pôr em causa o valor das abordagens clínicas tanto na ajuda aos indivíduos adictos como na compreensão da dinâmica da dependência, haveria que procurar outros contextos de expressão do fenómeno de modo a superar o reducionismo individualizante, que se circunscrevia à psicopatologia dos estados de dependência (Fernandes, 2011FERNANDES, Luís. Terapias punitivas e punições terapêuticas: o estranho caso do “toxicodependente”. In: Manuela Cunha; Jean-Yves Durand (org.). Razões de saúde: poder e administração do corpo. vacinas, alimentos, medicamentos. Lisboa: Fim de século, 2011. p. 39-56.). Foi então que decidimos contactar o “mundo da droga” nos seus contextos naturais de expressão, iniciando a nossa prática etnográfica (Fernandes, 1993FERNANDES, Luís. Territórios psicotrópicos. In: Cândido da Agra (org.). Dizer a droga ouvir as drogas: estudos teóricos e empíricos para uma ciência do comportamento adictivo. Porto: Radicário, Instituto de Ciências do Comportamento Desviante, 1993. p. 195-225.; 1997FERNANDES, Luís. Actores e territórios psicotrópicos: etnografia das drogas numa periferia urbana. Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, 1997. Tese de doutoramento.; 1998FERNANDES, Luís. O sítio das drogas. Lisboa: Editorial Notícias, 1998.).

Esta nossa rotação do campo clínico para os contextos naturais via-se reforçada ao identificarmos outros investigadores que faziam o mesmo movimento. Rudolph Ingold operava uma crítica da abordagem medico-psicológica e, aproximando-se do terreno, abandonava a prática psiquiátrica e realizava os primeiros trabalhos de etnografia da heroinodependência em França (Ingold, 1984INGOLD, Rodolph. La dépendance économique chez les héroinomanes. Revue Internationale de Criminologue et de Police Technique, v. 7, p. 331-338, 1984.); o etnógrafo catalão Oriol Romani caracterizou processos de recuperação em heroinodependentes, propondo uma compreensão destas trajetórias cujas determinantes socioculturais mostravam a insuficiência do racional clínico (Romani e Funés, 1985ROMANI, Oriol; FUNÈS, Jaime. Dejar la heroína. Madrid: Ed. Cruz Roja Española, 1985.).

O aumento do número de consumidores de drogas e da oferta disponível no mercado ilícito, sobretudo nos grandes centros urbanos, daria progressivo protagonismo ao “toxicodependente de rua” e aos “bairros do tráfico” (figuras do vocabulário jornalístico rapidamente adotado por muitos agentes políticos). Por outro lado, a prática generalizada do consumo intravenoso nos dependentes de heroína viria juntar o perigo sanitário ao já muito noticiado perigo criminal: se este era responsável pelo grande aumento do encarceramento prisional, aquele levaria o toxicodependente aos serviços de infeciologia dos hospitais e aos cuidados de saúde primários.2 2 Para a análise das relações entre o fenómeno droga, as taxas de encarceramento e o novo papel da prisão ver Fernandes e Silva (2009) e Cunha (2002). A ineficácia do “combate à droga” perante esta dupla perigosidade punha em causa as políticas vigentes no campo das drogas, culminando numa importante reforma legislativa em 2001 que descriminalizava o consumo de todas as drogas ilegais e instituía a redução de riscos e minimização de danos como política oficial da rede pública de saúde em Portugal.

Se chamamos ao nosso argumento estes factos é porque esta nova política é responsável pela colocação nos principais pontos críticos de venda e consumo de drogas de equipas multidisciplinares para uma intervenção de primeira linha. Esta circunstância promove uma proximidade de alguns profissionais relativamente aos territórios psicotrópicos, criando deste modo novas condições de observação e caracterização dos atores, das suas práticas e contextos. É numa destas equipas que um de nós começará a trabalhar em 2009, juntando as preocupações de intervenção psicossocial à investigação etnográfica. A partir de finais de 2014 intensificaríamos esta última, iniciando uma pesquisa de revisitação aos territórios psicotrópicos investigados por um de nós no início dos anos 90. Ao longo do artigo falaremos assim na primeira investigação ou primeira etnografia para indicar a dos anos 90 (Fernandes, 1993FERNANDES, Luís. Territórios psicotrópicos. In: Cândido da Agra (org.). Dizer a droga ouvir as drogas: estudos teóricos e empíricos para uma ciência do comportamento adictivo. Porto: Radicário, Instituto de Ciências do Comportamento Desviante, 1993. p. 195-225.; 1997FERNANDES, Luís. Actores e territórios psicotrópicos: etnografia das drogas numa periferia urbana. Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, 1997. Tese de doutoramento.; 1998FERNANDES, Luís. O sítio das drogas. Lisboa: Editorial Notícias, 1998.) e da segunda investigação ou segunda etnografia para indicar a atualmente em curso, cujos primeiros resultados se encontram já publicados (Mata e Fernandes, 2016MATA, Simão; FERNANDES, Luís. A construção duma política pública no campo das drogas: normalização sanitária, pacificação territorial e psicologia de baixo limiar. Global Journal of Community Psychology Practice, v. 7, p. 1-25, 2016., 2018MATA, Simão; FERNANDES, Luís. Questões metodológicas de uma revisitação etnográfica a territórios psicotrópicos do Porto. Etnográfica, v. 22, n. 2, p. 311-333, 2018 <10.4000/etnografica.5443>.
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). O que faremos nas secções seguintes é dar continuidade à narrativa em torno dos atores e dos territórios psicotrópicos, acompanhando assim a sua evolução desde os anos 90 até hoje possibilitada pelo presente trabalho de revisitação etnográfica.

Breve nota metodológica

As nossas unidades de estudo, tanto na primeira etnografia como na atual, são espaços situados no interior de bairros sociais ou nas suas imediações nos quais há concentração de indivíduos com interesses nas drogas, sejam eles comerciais, de consumo ou ambos. A expressão “bairro social” é a forma simplificada de “bairro de habitação social” e refere-se aos aglomerados residenciais edificados pelo Estado para alojamento de famílias sem capacidade económica para adquirir casa própria. Situam-se, na sua maioria, na periferia do Porto.3 3 Para uma análise sociológica detalhada da evolução e das características dos bairros sociais do Porto, ver Pereira (2009).

Na segunda investigação, o trabalho interventivo numa equipa de redução de danos marcou a forma como interagimos, de início, com os atores sociais nos territórios psicotrópicos considerados. Foi portanto o nosso papel enquanto profissionais da intervenção que permitiu uma aproximação que possibilitaria, progressivamente, a adoção da postura etnográfica. Designamos este período como fase exploratória.

A intensificação da etnografia deu-se a partir de dezembro de 2014, já sem o suporte da equipa de redução de danos, procurando caracterizar e compreender as dinâmicas evolutivas do fenómeno droga bem como os seus principais protagonistas nalguns territórios psicotrópicos da zona ocidental do Porto – particularmente os situados nos bairros do Aleixo, Pinheiro Torres e Pasteleira. Chamamos intensiva a esta fase, com grande recurso à observação participante e às entrevistas etnográficas (Spradley, 1979SPRADLEY, James. The etnographic interview. Belmont: Wadsworh Group, 1979.) enquanto técnicas centrais. O Go-Along (Kusenbach, 2003KUSENBACH, Margarethe. Street phenomenology: the go-along as ethnographic research tool. Ethnography, v. 4, n. 3, p. 455-485, 2003 <10.1177/146613810343007>.
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) foi também importante, sendo realizado com a presença de atores-chave das comunidades estudadas. Fomos ainda realizando deambulações pelos territórios sem a companhia de qualquer ator social, a que chamámos Go-Alone.

Os territórios psicotrópicos que vamos focar de seguida situam-se, como já referimos, nos bairros sociais do Aleixo, Pinheiro Torres e Pasteleira Velha. Salienta-se o elevado contraste em relação à zona envolvente, coexistindo locais de elevada carência económica (os bairros sociais considerados) com lugares de elevado capital social e simbólico, contraste que era já verificado na altura da primeira investigação.

Atores e territórios psicotrópicos

Atores

Os territórios psicotrópicos são frequentados por utilizadores de drogas que apresentam diferentes relações com as substâncias. Vão desde aqueles que mantêm uma relação esporádica até aos que se encontram fortemente “agarrados” ao “produto”4 4 Termos da linguagem corrente entre os utilizadores. “Estar agarrado” é a expressão que sinaliza a consciência de se estar adicto, geralmente à heroína e/ou à base de cocaína. e cujo quadro de vida se relaciona com o quotidiano destes territórios. Chamámos-lhes já em texto anterior os “permanentes” (Mata e Fernandes, 2016MATA, Simão; FERNANDES, Luís. A construção duma política pública no campo das drogas: normalização sanitária, pacificação territorial e psicologia de baixo limiar. Global Journal of Community Psychology Practice, v. 7, p. 1-25, 2016.). Foi sobre eles que, quer na fase exploratória quer na fase intensiva da nossa pesquisa, nos relacionámos com maior regularidade. Dizíamos sobre eles que “se verifica um enraizamento profundo ao lugar, sendo nele que o ator encontra as condições para experimentar uma determinada posição existencial” (Mata e Fernandes, 2016MATA, Simão; FERNANDES, Luís. A construção duma política pública no campo das drogas: normalização sanitária, pacificação territorial e psicologia de baixo limiar. Global Journal of Community Psychology Practice, v. 7, p. 1-25, 2016., p. 17). Aprofundemos agora um pouco mais a fenomenologia deste ator das drogas.

Um “permanente” é alguém para quem o consumo de drogas assume grande centralidade na vida diária. Ele está “agarrado”, vivendo em função de uma questão que o preocupa: como angariar dinheiro para a dose seguinte de “produto” (quase sempre base de cocaína ou heroína) para aliviar a “ressaca” (síndrome de abstinência). Esta questão orienta uma boa parte da sua jornada, consumindo grande quantidade de tempo a “desenrascar-se”, tendo de se “fazer à vida”.6 6 O OEDT é uma agência oficial da União Europeia que tem como objetivo monitorar a evolução do fenómeno droga na Europa e fazer recomendações relativas às políticas no campo das drogas. Os atores que temos contactado na segunda investigação têm, a este respeito, um comportamento que em nada se alterou relativamente ao que registrávamos durante a primeira investigação – e alguns deles são, passados 25 anos, ainda os mesmos sujeitos. Definíamo-los nessa altura assim: “Caracteriza-se por organizar toda a sua vida em função da sequência compra-chuta-curte-ressaca-compra. Quando compra só pensa em chutar, quando regressa do chuto só pensa em chutar, para isso tem de comprar e quando consegue comprar só pensa em chutar” (Fernandes, 1997FERNANDES, Luís. Actores e territórios psicotrópicos: etnografia das drogas numa periferia urbana. Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, 1997. Tese de doutoramento., p. 356-357). Se escrevêssemos a frase hoje teríamos de substituir o termo “chutar” por “fumar”, dada a clara diminuição que o consumo por via intravenosa conheceu desde o início do novo milénio. Este dado, que resulta da nossa observação direta, é ano após ano corroborado pelos indicadores epidemiológicos fornecidos pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência.6 6 O OEDT é uma agência oficial da União Europeia que tem como objetivo monitorar a evolução do fenómeno droga na Europa e fazer recomendações relativas às políticas no campo das drogas.

Os atores dos territórios psicotrópicos de rua são, como já fomos salientando, consumidores de heroína e cocaína, usando-as em simultâneo (na forma de speedball ou bower7 7 “Speedball” ou “bower” são termos nativos que servem para designar o consumo da mistura de base de cocaína com heroína. ) ou em separado. Usam a forma fumada – seja “no caneco” seja “na prata”8 8 “No caneco” e “na prata” são termos nativos que designam as duas principais formas de consumo fumado. A primeira refere-se a um dispositivo semelhante a um cachimbo, muitas vezes de confeção improvisada; o segundo refere-se a uma folha de estanho na qual se queima o produto de modo a aspirar a coluna de fumo que ele liberta. – mas a intravenosa está longe de ter desaparecido das suas práticas habituais. Vivem nos bairros sociais onde se foram formando ao longo dos anos 80 e 90 territórios psicotrópicos, mas vivem também em zonas da cidade central, testemunhando nestes casos o poder atrator que aqueles territórios possuem.

São, na sua grande maioria, do sexo masculino, com idades na casa dos 30-40, mas também na casa dos 50 anos de idade, sendo raros os sujeitos abaixo dos 20 anos. Têm baixa escolaridade e são praticamente todos desempregados; os que trabalharam provêm maioritariamente do segmento menos qualificado dos setores da indústria e da construção civil. Era também este o perfil sociográfico na primeira investigação, se excetuarmos o facto de na altura haver bastantes indivíduos mais jovens. As equipas de redução de danos a trabalhar nos diversos territórios em várias cidades corroboram as características que encontrámos nos nossos atores, sendo seguro afirmar que estamos perante o envelhecimento dos utilizadores de drogas duras, que têm hoje muito menos poder atractor sobre os mais jovens.

A sua forte ligação ao território psicotrópico faz-se através da participação nas dinâmicas internas deste. A sua dependência está longe de se reduzir à componente química da droga, tendo uma importante componente contextual, como evidenciaremos ao longo do texto. O “agarrado” ao “pó” (heroína) ou à “branca” (cocaína) é, sobretudo, um “agarrado” ao bairro, ao seu ambiente de rua, resguardado das vistas da cidade em redor, ao ambiente psicotrópico que o envolve, aos meios de consumo e de venda, às companhias durante a vivência dos efeitos das substâncias psicoativas. Sem esta componente contextual e relacional que envolve o ato de consumo o “banho químico” é escasso e a viajem psicotrópica é curta. A frase de FT (sexo masculino, cerca de 35 anos) sintetiza bem o caráter contextual da experiência das drogas: Parece que ressaco o lugar ou algo do género (FT, 22 fev. 2011).

A forma como os “permanentes” conseguem obter a quantia necessária para a dose diária varia muito de caso para caso. Alguns desempenham nos territórios psicotrópicos uma série de funções –nomeadamente as de “enfermeiro”, de “capeador” e de “vigia”9 9 Os “enfermeiros” injetam ou ajudam a injetar o utilizador que é pouco hábil ou cujo estado de abstinência é crítico; os “capeadores” angariam clientes para o dealer para o qual trabalham; os “vigias” têm funções de segurança, observando atentamente aproximações de potenciais perigos para a atividade do território psicotrópico, nomeadamente a chegada da polícia. Remetemos para Mata e Fernandes (2016) para uma descrição mais pormenorizada destas três funções nos territórios psicotrópicos. – sendo pagos ou em droga ou em dinheiro. O desempenho de alguma destas funções confere aos indivíduos um papel reconhecido no meio drug, dando-lhes um sentimento de pertença e, mesmo, de enraizamento no território psicotrópico, que funciona deste modo como um lugar no sentido antropológico do termo. Este sentimento de enraizamento é tanto mais importante quanto o “agarrado” já se distanciou dos contextos familiares, laborais e de outras esferas consideradas normativas.

Aqueles que não têm modo de angariar dinheiro ou “produto” a troco de serviços próprios ao território psicotrópico terão de realizar uma série de atividades informais noutras zonas da Cidade, não muito distantes dali, de modo a estarem próximos do local de compra e consumo. Dessas atividades destacam-se o arrumar carros (daí a representação comum no portuense de que o “arrumador” é um toxicodependente) e a mendicidade. A sua deslocação ao território psicotrópico é então um vaivém diário, não raro várias vezes no mesmo dia, apenas para comprar e consumir drogas. O território constitui-se neste caso como uma base logística, o referencial espacial permanente em ligação com as suas necessidades de adicto – incluindo nalguns casos o encontro com os profissionais de redução de danos, que desde o início do milénio se tornaram atores de “pleno direito” destas zonas. Vejamos na secção seguinte estes territórios com mais detalhe.

Territórios

A noção de território pode sugerir, dum modo espontâneo, um espaço fixo e bem delimitado. Não é o caso dos territórios de rua de que aqui falamos, já que apresentam alguma indefinição de fronteiras e são dotados de mobilidade. A sua fluidez prende-se com o facto de se organizarem em pleno espaço público, ainda que em zonas muito pouco frequentadas pelo cidadão comum. Reconhecemo-los pelas atividades em torno de “capeadores” e “agarrados”, que se movem constantemente em torno de um dado ponto de venda num raio de ação que não é fixo; quanto à sua mobilidade, ela resulta de uma adaptação a pressão do controlo social, particularmente das forças policiais. Eles são, de forma sistemática, territórios vigiados e intervencionados. Na primeira investigação chamávamos-lhes já territórios acossados. No mais mediático, o bairro do Aleixo, o policiamento teve períodos em que decorreu 24 sobre 24 horas, procurando dissuadir toda a aproximação de compradores de drogas, de modo a “secar” os pontos de venda. Observámos isto durante o nosso trabalho de campo em meados dos anos 90 (Fernandes, 1998FERNANDES, Luís. O sítio das drogas. Lisboa: Editorial Notícias, 1998.). Mas o principal território psicotrópico do bairro, na localmente famosa torre 1, continua hoje, passados 20 anos, a funcionar do mesmo modo.

Quando a pressão policial é grande desarticulam-se rapidamente, reconstituindo-se nas imediações, por vezes nalgum bairro social vizinho, que aumentará o seu protagonismo como território psicotrópico atraindo para ele a polícia e permitindo a reconstituição do anterior território. É esta eficácia na rápida mobilidade que explica em grande parte a resistência destes espaços à repressão policial, observável na longevidade que alguns deles têm na cidade.

Os territórios psicotrópicos desempenham todos as funções que já destacámos, mas variam em função do contexto envolvente. Por exemplo uns são mais “públicos”, claramente visíveis por quem se aproxime, outros mais discretos, funcionando em dobras espaciais que os resguardam dos olhares; uns têm mais atores do que outros, variando muito na quantidade de vendedores e no número de clientes que aí acorrem; alguns são conhecidos na cidade por via da mediatização de que são alvo, outros são praticamente desconhecidos – o que não significa que não tenham importância no meio drug. Apesar das especificidades de cada um, é possível identificar características comuns a todos eles. Destacaremos em seguida duas das que se mostraram mais relevantes na manutenção da funcionalidade destes territórios, e a que chamámos defensividade e abertura funcional.

A defensividade

As recorrentes operações da polícia levadas a cabo em bairros sociais etiquetados como “de tráfico”, convertendo-os em “alvos coletivos e rotineiros das polícias” (Cunha, 2008CUNHA, Manuela. O bairro e a prisão: a erosão de uma fronteira. In: Manuela Cunha (org.). Aquém e além da prisão: cruzamentos e perspectivas. Lisboa: 90 graus, 2008. p. 111-123., p. 112) impele os atores do mercado de rua das drogas a desenvolver um conjunto de estratégias que garantam a manutenção do negócio em curso. Daí que a defensividade relativamente ao “exterior” – leia-se “exterior” como tudo aquilo e aqueles que possam ser interpretados como ameaça – seja uma marca evidente destes territórios. Ilustrámos abaixo este fechamento no bairro da Pasteleira Nova com um excerto do nosso diário de campo:

Aquilo está muito “marcado” (termo dela). Mesmo os técnicos que fazem domicílios e que se têm que deslocar lá é grande filme. Até têm que se identificar antes de entrar, pelos capeadores, pessoal que está a capear no bairro. E aliás muitos deles já sabem quem vai lá e dizem logo mal os veem “pois, é o técnico da [identifica nome da instituição] não é?”, perguntam logo, alguém lhes diz que vêm cá e tal […]. No outro dia fui lá, mas é muito difícil entrares ali, via-se o movimento e tal mas entrar não… – disse a AL (AL. cerca de 40 anos, técnica de intervenção social nos bairros de Lordelo do Ouro, diário de campo, 29 set. 2016).

O funcionamento do território psicotrópico produz uma diferenciação dessa zona relativamente à restante vida do bairro. Isto é ainda mais evidente no Aleixo, com uma territorialidade ligada a um mercado de rua com grande dinamismo, e outra onde essa atividade tem pouca visibilidade. Para o observador, é como se esta parte do bairro se alheasse do que se passa na outra. Alguns autores (Pereira e Queirós, 2014PEREIRA, Virgílio; QUEIRÓS, João. “It's not a bairro, is it?”: subsistence sociability and focused avoidance in a public housing estate. Environment and Planning, v. 46, p. 1297-1316, 2014 <10.1068/a46300>.
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; Wacquant, 2006WACQUANT, Loïc. Parias urbains. Paris: Le Decouvert, 2006.) destacam processos de distância social e simbólica dos moradores de algumas periferias sociais relativamente àqueles que são entendidos como fonte da depreciação simbólica.

Apesar da defensividade e do fechamento, estes territórios preveem uma abertura dentro de determinados limites, como mostra bem o excerto acima. Assim, passámos já à segunda característica dos territórios psicotrópicos considerados: a sua abertura funcional.

A abertura funcional

O caráter defensivo e fechado dos territórios psicotrópicos não permite concluir que a comunicação com o seu exterior não exista. Aliás, a nossa experiência etnográfica mostra que eles apresentam um certo grau de abertura quer para com o exterior quer para com outros territórios psicotrópicos que funcionam na zona ocidental do Porto. Mas essa abertura, como vimos também pelo excerto acima, não se processa de forma aleatória: para que tal aconteça, requer momentos de negociação simbólica com o exterior. A sua abertura apresenta regras, pressupõem limites e é funcional na medida em que estes territórios se abrem apenas para permitir e assegurar uma determinada função realizada no seu interior. Após isso acontecer voltam a fechar-se, prevendo-se a sua abertura posterior dentro de determinados limites e regras impostas pelo mesmo. O mecanismo de abertura funcional que aqui caracterizamos é bastante semelhante ao ciclo de abertura-fecho de uma válvula.

A intervenção policial que se exerce nos territórios psicotrópicos apresenta uma dimensão ritualizada, sendo notória a abertura funcional que aqui estamos a destacar. Verificámos, em vários momentos, que após o aparecimento de algum automóvel, carro de patrulha ou ator que possa sugerir a presença da Polícia ali, se dava a saída ou a retirada dos dealers dos seus postos de venda sempre que ouviam o grito “água” da parte do “vigia”. Após a polícia realizar o seu trabalho, o ambiente psicotrópico voltava ao mesmo que era antes da intervenção policial. Mostrámos abaixo um excerto do nosso diário de campo que ilustra a reação do território psicotrópico situado no bairro Pinheiro Torres (PT) face à intervenção policial:

A presença da polícia no PT tem sido bastante frequente. Quase todos os dias a polícia aparece aqui para fazer rondas e, às vezes, rusgas. No outro dia quando estava na meta10 10 “Meta”: termo nativo que designa a Metadona, substituto opiáceo utilizado no tratamento de heroinodependentes. e via ao longe a venda de drogas na capela, verifiquei que os dealers saíam dali após a aparição da polícia. A capela parecia uma colmeia que, por qualquer razão, afastava agora as suas abelhas. Quando a polícia passou (estava apenas a vigiar o bairro), as abelhas regressaram à sua doce colmeia (Diário de campo, 21 fev. 2011).

O que este excerto mostra é que os territórios psicotrópicos preveem uma abertura funcional relativamente às forças policiais. É como se a chegada destas já estivesse incluída no programa comportamental destes atores. A sua chegada, embora imprevisível no dia e hora, é de tal modo expectável que está assimilada ao quotidiano e este cenário de conduta tem já bem incorporados os comportamentos que são desencadeados pela sua chegada.11 11 Cenário de conduta é a tradução proposta para “behavioral setting”. Inspirámo-nos em Wicker (1987), quando propõe considerar certos territórios como “behavioral settings”, caracterizados por um programa comportamental bem definido e conhecido/reproduzido pelos seus atores, que são por sua vez dotados de equipotencialidade – isto é, a estrutura e o funcionamento do “behavioral setting” não dependem de indivíduos concretos, mas da estabilidade do programa comportamental. Para uma revisão recente do “behavioral setting”, ver Popov e Champalov (2011).

A abertura funcional é pois necessária ao equilíbrio dos territórios psicotrópicos. Eles teriam muito a perder se não se abrissem, dentro de determinados limites, ao exterior, mesmo quando ele pode mostrar-se uma ameaça. Esta permeabilidade atenua possíveis extremizações entre atores das drogas e forças do controle e permite não haver disruptividade notória, garantindo uma certa normalidade do quotidiano local – que é, não o esqueçamos, o lugar de vida de muitas famílias que não têm ligações ao “mundo da droga”.

Constatámos também a abertura funcional relativamente a outros atores que não as forças policiais. Assim, verificámos que alguns dealers ligados a diferentes territórios apresentam um interconhecimento mútuo sendo possível constatar, por um lado, situações que demonstram competição pela apropriação do mercado de drogas, mas também episódios que evidenciam cooperação, permitindo o funcionamento em simultâneo das atividades de venda por parte de diferentes territórios. Assistimos várias vezes ao “abastecimento” de um território psicotrópico por parte de outro com “produto” quando este último se encontrava sem stock para venda.

Defensividade e abertura funcional no território psicotrópico do bairro do Aleixo

O Aleixo é um dos 46 bairros existentes no Porto, situando-se na zona ocidental da cidade, sendo um dos 7 da freguesia de Lordelo do Ouro. Tem atualmente 290 habitantes.12 12 <domussocial.pt/habitacoes/bairro-do-aleixo>. Desde a sua construção, em meados da década de 70, este bairro era constituído por 5 torres de 13 andares, num total de cerca de 1800 habitantes, e conta, nos dias de hoje, com apenas 3 torres.13 13 A torre 5 foi demolida em dezembro de 2011 e a 4 em abril de 2013. Destas, a Torre 1 é aquela onde se concentra a grande maioria das práticas ligadas à venda de drogas. O seu funcionamento enquanto principal concentrador das atividades de deal apresenta uma considerável estabilidade temporal: desempenhava já, no início dos anos 90, estas funções, o que nos levou a selecioná-lo para a primeira etnografia. A sua imagem pública está, desde aí, ligada ao fenómeno droga, sendo sistematicamente etiquetado na comunicação social como o “bairro das drogas”: ele é notícia porque “a droga” é notícia.

Já nos anos 90, durante a primeira etnografia, constatávamos como o Aleixo era o bairro portuense mais noticiado como espaço problemático, projetando dele uma imagem cujo tema era invariavelmente “o mundo da droga”: esta estigmatização do Aleixo, representado como “ghetto”, foi por nós confirmada tanto a partir da análise do discurso da comunicação social como dos residentes e dos consumidores de drogas que aí se deslocam. Neste discurso é ainda saliente a sua conotação com a dissocialidade, incluindo centralmente o “problema da droga” (Fernandes, 1997FERNANDES, Luís. Actores e territórios psicotrópicos: etnografia das drogas numa periferia urbana. Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, 1997. Tese de doutoramento., p. 220).14 14 Esta imagem do bairro apresenta uma grande estabilidade temporal. Quase 20 anos depois da nossa análise ao discurso da imprensa, Mendes (2012), diz-nos o seguinte: “O tráfico e o consumo de drogas têm aqui alguma visibilidade e importância muitas das vezes mediatizada, encontrando-se geralmente concentrado na torre 1, ou seja, junto a uma das entradas do bairro.” (Mendes, 2012, p. 92). Debrucemo-nos então sobre o território psicotrópico que se situa no seu interior. O seu ambiente drug – conjunto dos atores e das atividades em torno das drogas – apresenta uma clara organização, com uma hierarquia que assinala a cada sujeito o que deve e não deve fazer ali. Foi esta constatação já nos anos 90 que nos levou a propor o território psicotrópico como um “behavioral setting”. Esta proposta vê-se confirmada com a investigação que temos agora em curso.

Como em qualquer atividade organizada em função de determinada finalidade, há um equilíbrio entre competição e cooperação. É frequente a competição entre os utilizadores de drogas para adquirirem determinada função. Mas é também frequente a cooperação, desde logo porque cada uma destas funções visa assegurar a possibilidade de uma outra (a de dealer pelo capeador, a de injetor de heroína pelo enfermeiro, a de todos pelo vigia).

A elevada defensividade deste território, cuja eficácia e longevidade dependem da capacidade de se manter sempre alerta relativamente ao exterior – tem no “vigia” um importante elemento. Os nossos trabalhos de campo, separados de cerca de 25 anos, atestam esta resistência dos territórios psicotrópicos, que lhes tem permitido sobreviver a toda a ação policial de que são alvo.15 15 E sobreviver também às estratégias de controle urbano, que decidiram demolir o bairro – mas nem o demoliram ainda na totalidade, num processo iniciado em 2011, nem desarticularam o seu principal território psicotrópico, a torre 1.

O “vigia” está quase sempre situado numa das entradas superiores do Aleixo, que é mais próxima da torre 1, observando quem se desloca para o seu interior e sinalizando com o grito “água!” em direção a essa torre sempre que suspeita de alguma ameaça:

Enquanto conversava com o DM perto da entrada do Aleixo, aproxima-se um skoda da polícia. Digo para ele:

– Ei, olha aí eles…

O DM pára de falar comigo e dirige-se para a torre 1 a pedir desculpa porque não viu. Perto da torre, o movimento que estava antes parou e não se via ninguém. O carro da polícia passava lentamente pela zona da torre 1, descendo a Arnaldo Leite em direção à Escarpa. Entretanto, quando o carro da polícia já tinha passado, um sujeito que estava na torre 1 abre os braços na nossa direção, minha e do DM. Enquanto abria os braços, ele dizia para o DM:

– Atão pah!? Não dizes nada?!!

O DM diz para a torre 1:

– Que é que queres? Não vi pah, não vi… Desculpa lá […] (Diário de campo, 03 fev. 2016).

O fechamento deste território acontece, desde logo, face ao próprio bairro onde se situa. Essa situação traduz-se numa distância, que é menos física do que simbólica, entre os atores ligados às drogas e aqueles que em nada se relacionam com as atividades ditas desviantes. Queirós (2014)QUEIRÓS, João. A experiência reiterada da relegação socioespacial perspectivada a partir de um bairro do Porto. In: Bruno Monteiro; Emília Marques; Inês Brasão; Inês Coelho; João Baía; João Queirós; José Matos; José Soeiro; Nuno Dias; Nuno Domingos; Sandra Leitão; Sara Conceição (orgs.). Tempos difíceis: as pessoas falam sobre a sua vida e o seu trabalho. Lisboa: Outro Modo Cooperativa Cultural, 2014. p. 49-54., a partir de entrevistas realizadas a moradores do bairro do Aleixo, faz uma constatação próxima da nossa, ao identificar os processos de “evitamento social” destes moradores em relação às zonas, atores e atividades ligadas às drogas.

Essa fratura interior num espaço que, visto de fora, parece homogéneo levou-nos à sensação de estarmos perante dois bairros distintos dentro do mesmo bairro: um em que o fenómeno droga tinha grande visibilidade e outro em que a sua expressão era bem mais discreta ou mesmo indetetável – chamamos, no nosso diário de campo, a esta parte do bairro “O Aleixo de cima” e à outra “O Aleixo de baixo”. Esta perceção do bairro como um território dualizado, quebrado ou dividido, tem correspondência com aquilo que interventores comunitários nos disseram a este respeito:

Porque há mesmo uma grande separação entre o pessoal da venda de drogas no bairro e as outras pessoas, as pessoas mais idosas e assim. Aliás, são essas pessoas que nós acabamos por ter mais contacto. Essas e as crianças. Aliás a associação é mesmo frequentada mais por essas crianças, do ensino básico, por assim dizer, que acabam por passar aqui os tempos livres. Mas depois quando crescem… deixam de frequentar o espaço, pura e simplesmente isso. E claro que ficam ali perto da torre 1 […] (R. cerca de 40 anos, membro da Associação de moradores do bairro do Aleixo, diário de campo, 24 set. 2015).

Nota final

O trabalho de revisitação etnográfica que temos atualmente em curso, e de que fomos dando notícia ao longo deste artigo, permite acompanhar a evolução dos territórios psicotrópicos situados em bairros sociais de periferia urbana. É este tipo de territórios, que vimos acompanhando desde os inícios da década de 90 do século passado, que a comunicação social tem visibilizado como os lugares do “mundo da droga”, fornecendo deste modo as imagens que têm incorporado as representações sociais dominantes.

O primeiro aspeto a salientar é de ordem metodológica: pôr em diálogo duas pesquisas de campo com vinte anos de diferença entre elas exigiu um cuidadoso questionamento dos dados empíricos de modo a não cair no simplismo das comparações apressadas, bem como uma grande atenção à postura de cada um dos etnógrafos. Isto foi (e é ainda) objeto de monitorização permanente entre o primeiro e o segundo etnógrafo, num constante exercício de reflexividade (Lichterman, 2015LICHTERMAN, Paul. Interpretive reflexivity in ethnography. Ethnography, v. 18, n. 1, p. 35-45, 2015 <10.1177/1466138115592418>.
https://doi.org/10.1177/1466138115592418...
).

Outro aspeto a salientar é o da estabilidade tanto dos lugares como do tipo de atores e de atividades destes territórios. É como se a sua existência fosse pouco menos do que impermeável ao que se passa nas dinâmicas mais gerais do fenómeno droga. Com efeito, os produtos psicotrópicos em circulação diversificaram-se ao longo dos anos que estamos aqui a considerar, nomeadamente pelo surgimento e expansão das “novas drogas” (design drugs, drogas de síntese, de que a mais emblemática será o eicstasy) e de toda uma gama de substâncias psicadélicas de introdução recente em certas práticas urbanas (por exemplo reuniões “xamânicas”, rituais do ayauaska…). Os territórios psicotrópicos são conservadores, prolongam a mundivivência da heroína e da base de coca como se para lá deles não houvesse outras paisagens psicotrópicas.

Outra constância que fomos encontrar entre as duas etnografias é a da persistência destes bairros como as zonas de concentração da pobreza urbana, continuando o mercado das drogas a representar um recurso e um problema: recurso porque é uma forma de trabalho informal que permite fazer face às dificuldades económicas, problema porque torna estes bairros alvos da ação policial e aponta a prisão como destino de muitos destes atores.

Que dizer destas duas persistências – a da pobreza e segregação e a dos territórios psicotrópicos? Não é aqui o lugar de o discutir, estamos a fechar o argumento e não a abri-lo a uma nova problematização. Mas importa sublinhar que, com certeza, esta dupla persistência faz falar um duplo fracasso:

  • Fracasso das políticas de intervenção social: quando começávamos a primeira etnografia estava também no seu início uma nova geração de políticas sociais para zonas urbanas em risco de pobreza ou atingidas pela segregação e pelo estigma, permitida pelos fundos estruturais da União Europeia, a que Portugal aderira há poucos anos. Ao longo dos anos 90 e dos dois mil multiplicar-se-iam medidas, projetos e programas dirigidos a populações vulneráveis e/ou em exclusão social. Sem pôr em causa o valor destes programas na ajuda a inúmeras situações de grande carência, no seu conjunto o destino destes bairros enquanto concentradores de pobreza e principais representantes duma periferia desqualificada não se alterou.

  • Fracasso das políticas das drogas: a resistência dos principais territórios psicotrópicos ao controle policial, tal como fomos mostrando com os nossos dados empíricos, poderia por si só evidenciar a falta de eficácia das estratégias assentes na repressão. Por outro lado, a atual etnografia, ao mostrar como são semelhantes as características destes atores e práticas em relação aos de 20 anos atrás, evidencia como, nesta escala marcada pela exclusão e pela marginalidade, a lei que, em 2001, descriminalizou o consumo de todas as drogas ilícitas em Portugal, praticamente não se fez notar.

Deixamos uma pista de leitura para o que acabamos de dizer: este desfasamento entre políticas interventivas e as vidas reais dos atores concretos em certos contextos de relegação inscrevem-se, ou são o efeito, das contradições entre o global e o local. Num mundo em globalização constante as políticas que são desenhadas tendo em vista quadros territoriais alargados – mesmo transnacionais – poderão ter efeitos limitados, ou até contraditórios, à escala micro das relações quotidianas das comunidades locais. Assim, uma política descriminalizadora que recolhe indicadores de sucesso (por exemplo, menos consumos pela via injetada, menos pessoas presas em relação com a droga, menos conflitualidade levantada pelo tema no debate público ao deixar de ser permanentemente assunto de polícia) parece não ter efeitos em zonas urbanas conotadas com o ”tráfico e consumo”.

  • 1
    Seria um exercício interessante seguir o passo às mudanças de terminologia no campo das drogas, com certeza reveladoras dos a priori morais, ideológicos e teóricos que vão determinando os modos de falar dos especialistas: de “toxicómano” passou-se a “toxicodependente” e, de há alguns anos para cá, a “utilizador de substâncias psicoativas”, coincidindo esta última com a ascensão da política de redução de riscos e minimização de danos e com o papel ativo das associações de utilizadores de drogas; também a “droga” é hoje “substância psicoativa” e a consagrada expressão “combate à droga” vai caindo em desuso, enquanto os organismos públicos que dão forma ao dispositivo vão mudando de nome de modo a acompanhar estas evoluções.
  • 2
    Para a análise das relações entre o fenómeno droga, as taxas de encarceramento e o novo papel da prisão ver Fernandes e Silva (2009)FERNANDES, Luís; SILVA, Maria. O que a droga fez à prisão: um percurso a partir das terapias de substituição opiácea. Lisboa: Instituto da Droga e da Toxicodependência, 2009. e Cunha (2002)CUNHA, Manuela. Entre o bairro e a prisão: tráfico e trajectos. Lisboa: Fim de século, 2002..
  • 3
    Para uma análise sociológica detalhada da evolução e das características dos bairros sociais do Porto, ver Pereira (2009)PEREIRA, Virgílio; QUEIRÓS, João. Estado, alojamento e a “questão social”: elementos para a compreensão sociológica da formação da respectiva relação no Porto contemporâneo. Argumentos de Razón Técnica. Revista Española de Ciencia, Tecnología y Sociedad, y Filosofia de la Tecnología, n. 2, p. 113-128, 2009..
  • 4
    Termos da linguagem corrente entre os utilizadores. “Estar agarrado” é a expressão que sinaliza a consciência de se estar adicto, geralmente à heroína e/ou à base de cocaína.
  • 5
    “Fazer-se à vida”: termo nativo que se refere às estratégias e atividades que o “agarrado” tem de realizar de forma a angariar dinheiro para a sua dose diária.
  • 6
    O OEDT é uma agência oficial da União Europeia que tem como objetivo monitorar a evolução do fenómeno droga na Europa e fazer recomendações relativas às políticas no campo das drogas.
  • 7
    “Speedball” ou “bower” são termos nativos que servem para designar o consumo da mistura de base de cocaína com heroína.
  • 8
    “No caneco” e “na prata” são termos nativos que designam as duas principais formas de consumo fumado. A primeira refere-se a um dispositivo semelhante a um cachimbo, muitas vezes de confeção improvisada; o segundo refere-se a uma folha de estanho na qual se queima o produto de modo a aspirar a coluna de fumo que ele liberta.
  • 9
    Os “enfermeiros” injetam ou ajudam a injetar o utilizador que é pouco hábil ou cujo estado de abstinência é crítico; os “capeadores” angariam clientes para o dealer para o qual trabalham; os “vigias” têm funções de segurança, observando atentamente aproximações de potenciais perigos para a atividade do território psicotrópico, nomeadamente a chegada da polícia. Remetemos para Mata e Fernandes (2016)MATA, Simão; FERNANDES, Luís. A construção duma política pública no campo das drogas: normalização sanitária, pacificação territorial e psicologia de baixo limiar. Global Journal of Community Psychology Practice, v. 7, p. 1-25, 2016. para uma descrição mais pormenorizada destas três funções nos territórios psicotrópicos.
  • 10
    “Meta”: termo nativo que designa a Metadona, substituto opiáceo utilizado no tratamento de heroinodependentes.
  • 11
    Cenário de conduta é a tradução proposta para “behavioral setting”. Inspirámo-nos em Wicker (1987)WICKER, Allan. Behavior settings reconsidered: temporal stages, resources, internadynamics, context. In: Daniel Stokols; Irwin Altman (org.). Handbook of environmental psychology. New York: John Willey & Sons, 1987. p. 613-653., quando propõe considerar certos territórios como “behavioral settings”, caracterizados por um programa comportamental bem definido e conhecido/reproduzido pelos seus atores, que são por sua vez dotados de equipotencialidade – isto é, a estrutura e o funcionamento do “behavioral setting” não dependem de indivíduos concretos, mas da estabilidade do programa comportamental. Para uma revisão recente do “behavioral setting”, ver Popov e Champalov (2011).
  • 12
  • 13
    A torre 5 foi demolida em dezembro de 2011 e a 4 em abril de 2013.
  • 14
    Esta imagem do bairro apresenta uma grande estabilidade temporal. Quase 20 anos depois da nossa análise ao discurso da imprensa, Mendes (2012)MENDES, Maria. A demolição do bairro do Aleixo e a acção da população local vista pela imprensa diária e nas notícias online. In: Maria Mendes; Teresa Sá; José Crespo; Carlos Ferreira (orgs.). A cidade entre bairros. Lisboa: Caleidoscópio, 2012. p. 87-105., diz-nos o seguinte: “O tráfico e o consumo de drogas têm aqui alguma visibilidade e importância muitas das vezes mediatizada, encontrando-se geralmente concentrado na torre 1, ou seja, junto a uma das entradas do bairro.” (Mendes, 2012MENDES, Maria. A demolição do bairro do Aleixo e a acção da população local vista pela imprensa diária e nas notícias online. In: Maria Mendes; Teresa Sá; José Crespo; Carlos Ferreira (orgs.). A cidade entre bairros. Lisboa: Caleidoscópio, 2012. p. 87-105., p. 92).
  • 15
    E sobreviver também às estratégias de controle urbano, que decidiram demolir o bairro – mas nem o demoliram ainda na totalidade, num processo iniciado em 2011, nem desarticularam o seu principal território psicotrópico, a torre 1.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2018
  • Aceito
    30 Nov 2018
  • Publicado
    01 Mar 2019
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