Acessibilidade / Reportar erro

Honneth: A família entre a justiça e o afeto

Honneth: The family between justice and affection

Honneth: La família entre la justicia y el afecto

Resumo:

No texto Between justice and affection: the family as field of moral disputes, Honneth oferece uma ampla discussão acerca das controvérsias normativas inerentes à família moderna. Tomando como referenciais de sua investigação Kant e Hegel, os quais defendem, respectivamente, a concepção de família a partir de um modelo de justiça e a partir de um modelo de afeto, Honneth procura demonstrar a necessidade de consolidação de tais modelos reflexivos como interdependentes e não excludentes, salvaguardando, contudo, a concepção embrionária da família a partir do afeto.

Palavras-chave:
Kant; Hegel; Honneth; Família; Justiça; Afeto

Abstract:

In text Between justice and affection: the family the field of moral disputes, Honneth offers a wide discussion about the normative controversies inherent in the modern family. Taking Kant and Hegel as reference for his research, who defend, respectively, the conception of family from a model of justice and from a model of affection, Honneth intends to demonstrate the need to consolidate these reflexive models as interdependent and non-excluding, maintain the embryonic conception of the family defined from affection.

Keywords:
Kant; Hegel; Honneth; Family; Justice; Affection

Resumen:

En el texto Between justice and affection: the family as field of moral disputes, Honneth ofrece una amplia discusión acerca de las controversias normativas inherentes a la familia moderna. Tomando como referenciales de su investigación Kant y Hegel, los cuales defienden, respectivamente, la concepción de familia a partir de un modelo de justicia y a partir de un modelo de afecto, Honneth busca demostrar la necesidad de consolidación de tales modelos reflexivos como interdependientes y no excluyentes, salvaguardando, sin embargo, la concepción embrionaria de la familia a partir del afecto.

Palabras-clave:
Kant; Hegel; Honneth; Familia; Justicia; Afecto

Abordar a família como um campo de disputas morais significa concebê-la sob a tensão de duas orientações, as quais são oriundas de dois paradigmas de reflexão acerca das relações familiares: por um lado, o modelo kantiano caracterizado pelas relações contratuais de dever e, por outro, o modelo hegeliano, definido em termos de comunidade afetiva.1 1 Este texto foi elaborado durante o período de estágio pós-doutoral no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) na modalidade PNPD/Capes. Honneth guarda um forte histórico quanto à concepção da família enquanto locus primordial de afeto e cuidado (em Luta por reconhecimento, a família é apresentada como fonte primária da satisfação de reconhecimento afetivo), contudo, ele igualmente reconhece (sobretudo em obras posteriores) que a estrutura familiar é mais igual e segura quando resguardada pela justiça. Em seu texto Between justice and affection: the family as field of moral disputes, Honneth busca indicar que os paradigmas do dever e do afeto (de Kant e Hegel) não são excludentes: assim como a família é uma esfera na qual os direitos legais de seus membros são tomados e admitidos como meios de proteção da sua integridade pessoal, essa instituição se caracteriza, concomitantemente, como uma convivência na qual os membros se reconhecem reciprocamente como sujeitos que merecem atenção e cuidado.

Modelo jurídico e modelo afetivo: a família segundo Kant e Hegel

Kant: a família enquanto uma esfera de dever e direito

O fim supremo da natureza é a conservação da espécie: essa é a tese fundamental de Kant acerca do fim natural humano, a qual norteará suas reflexões acerca da união matrimonial e da família. Na Antropologia de um ponto de vista pragmático,2 2 As obras de Kant são citadas segundo as normas da Akademie seguindo as seguintes abreviaturas: A (Anthropologie in pragmatischer Hinsicht); MS (Die Metaphysik der Sitten); GMS (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten); KpV (Kritik der praktischen Vernunft). A tradução é nossa, assim como as passagens utilizadas dos outros textos que não se encontram em língua portuguesa. ele afirma que os homens foram dotados naturalmente de inclinações sociais a fim de que a comunidade sexual se consolidasse enquanto união doméstica (cf. A, AA VII, p. 303). Na Metafísica dos costumes, é no âmbito da Doutrina do Direito, mais precisamente do Direito Privado, que o casamento e a família são investigados. De maneira bastante direta e sem referências afetivas, Kant deixa claro que o que caracteriza fundamentalmente a relação familiar é o contrato e com ele o direito.

A comunidade sexual natural se dá ou conforme a mera natureza animal (vaga libido, venus volgigava, fornicatio) ou segundo a lei. A última é o casamento (matrimonium), quer dizer, a união de duas pessoas de sexos diferentes para a posse recíproca dos seus atributos sexuais por toda a vida (MS, AA VI, p. 277).

A ênfase na posse dos atributos sexuais ocorre tendo em vista que, segundo a perspectiva kantiana, a finalidade natural da união é a geração e educação dos filhos. Contudo, ele admite que tomar essa finalidade não é requisito necessário das pessoas que se casam, uma vez que redundaria na dissolução do matrimônio no caso de cessar a procriação.3 3 Isso não representa um abrandamento na tese de que o fim último do homem é a conservação da espécie, mas uma espécie de ajuizamento quanto ao fato de que uma vez cessada a capacidade de procriar, mesmo assim se mantém o compromisso de manutenção da vida familiar. O que é imprescindível é o cumprimento do contrato firmado: “quando um homem e uma mulher desejam usufruir de seus atributos sexuais reciprocamente, precisam necessariamente casar, e isso é necessário segundo leis jurídicas da razão pura” (MS, AA VI, p. 278).

O fundamento da lógica kantiana acerca do matrimônio se assenta na sua consideração de pessoa a qual envolve o respeito à lei moral, autonomia e dignidade. No uso recíproco dos órgãos sexuais, os seres humanos tornam-se “coisas” o que está em conflito com a humanidade da pessoa: “Isso é possível apenas sob uma condição, que uma pessoa ao ser adquirida por outra tal como uma coisa, reciprocamente também adquira essa, de modo que obtém novamente a si mesma e recupera a sua personalidade” (MS, AA VI, p. 278).

A conjugalidade mediante contrato se constitui, portanto, em condição de conciliação entre a apropriação recíproca dos órgãos sexuais e o direito da humanidade da pessoa. Pensar, contudo, a aquisição em termos de reciprocidade não comporta, necessariamente, uma igualdade entre homem e mulher. Embora defenda a igualdade de posse oriunda do contrato matrimonial, Kant não hesita em afirmar que isso não está em contradição com a relação doméstica hierárquica entre marido e esposa, uma vez que essa última se baseia na superioridade natural do homem relativamente à mulher. É interessante mencionar que Kant pensa a união doméstica não só em termos de unidade, mas também de indissolubilidade, o que implica no compromisso de cumprimento de deveres dos pais para com a prole e em reciprocidade entre eles. A noção de pessoa é também norteadora da relação dos pais com a prole no interior da vida familiar. Na perspectiva kantiana, a geração de um novo ser não se restringe ao ato da procriação, mas se estende nos cuidados a ela devidos a partir da humanidade a ele inerente. O filho é uma pessoa, portanto, dotado de liberdade e personalidade.

Em um sentido prático, constitui uma ideia inteiramente correta e também necessária, considerar o ato da procriação como aquele mediante o qual se põe uma pessoa no mundo sem o seu consentimento e arbitrariamente. Por um tal ato, pesa aos pais, na medida de suas forças, a obrigação de tornar a criança satisfeita com sua condição (MS, AA VI, p. 281-282).

A obrigação inequívoca dos pais relativamente à prole (a qual inclui não a tomar como propriedade, não a destruir ou descartá-la, não lhes ser indiferente ou abandoná-la à própria sorte) deve durar até que o filho alcance o uso pleno de seus membros e de seu entendimento. É interessante mencionar que esse dever não comporta reciprocidade. Mesmo após a conquista da emancipação (entenda-se quando o filho alcançar o domínio do seu corpo e do seu entendimento),4 4 “Desse dever resulta também o direito dos pais na administração e formação do filho, enquanto esse não seja senhor do uso dos seus membros e do uso de seu entendimento. Ademais é preciso alimentá-lo e cuidá-lo, assim como educá-lo tanto pragmaticamente, a fim de que no futuro possa manter-se e conduzir a vida por si mesmo, quanto moralmente, pois, de outro modo, a culpa de seu abandono recairia sobre os pais” (MS, AA VI, p. 281). os pais não devem esperar nenhuma contrapartida pela dedicação e gastos dispendidos no cuidado dos filhos. Cabe apenas almejar dos filhos um dever de virtude, a gratidão.

Não é atípica a apresentação da relação dos pais frente aos filhos nos termos de comprometimento e responsabilidade de cuidado. A peculiaridade da abordagem kantiana, portanto, não se centra propriamente na sua ênfase de que os pais devem ser responsáveis pelos filhos mas, mais precisamente, na falta de referência a dados afetivos inerentes a essa relação. Kant não se ocupa em nenhum momento em apresentar o amor ou sentimento como traços inerentes ao vínculo entre pais e filhos. Isso se justifica, em sentido amplo, em vista de essa questão estar sendo abordada no âmbito do Direito, mas, em sentido estrito (e esse parece ser o ponto central), em razão de que a relação dos pais perante os filhos é colocada nos termos de um dever [Sollen]. A figura do “dever” leva Kant a assumir no tocante à relação pais e filhos uma posição na qual o sentimento não só é destituído de protagonismo como também pode se constituir em um entrave quanto à qualificação moral da relação. Kant, portanto, por mais incomum que possa atualmente parecer, apresenta, contudo, uma posição que guarda coerência com seu sistema moral.

A teoria moral kantiana é reconhecida (e objeto de rigorosas críticas) por apresentar um modelo de agir deveras austero e, bem por isso, inflexível nas suas normas. O discurso das obras referentes à fundamentação da moral, se caracteriza, basicamente, pela ênfase na resistência da presença das inclinações (grosso modo, definidas como impulsos subjetivos) e, em vários momentos, na incompatibilidade desses impulsos com a conduta moralmente boa. Na Fundamentação da metafísica dos costumes, é observado que

Uma ação por dever precisa separar [absondern] toda a influência [Einfluβ] da inclinação, e, com ela, todo o objeto da vontade, de modo que nada mais resta à vontade, que a possa determinar, senão a lei, do ponto de vista objetivo, e o puro respeito por essa lei prática, do ponto de vista subjetivo… (GMS, AA IV, p. 400).

A oposição entre lei moral e inclinações, enquanto móbiles rivais da ação, se constitui no grande pilar da ética kantiana. Mesmo no caso no qual o desígnio das inclinações coincida com o mandamento da lei, isso não atesta a moralidade da ação, uma vez que a mera convergência é, por um lado, inferior à tomada do dever enquanto motivação fundamental do agir e, por outro, confere caráter de contingência à ação, uma vez que, caso a inclinação não coincidisse com o que demanda o dever, a probabilidade da ação se concretizar seria remota. Isso repercute em juízos de que, por exemplo, a filantropia praticada por prazer se constitui em uma ação conforme o dever e não por dever, e, portanto, moralmente inadequada.

No tocante à relação dos pais perante os filhos, Kant enfatiza sobremaneira o dever a ela inerente no sentido de destacar seu forte compromisso e caráter de incondicionalidade. A questão do sentimento seria aqui destoante com o teor categórico que se supõe de uma relação que também é um dever. Não que Kant esteja defendendo que os pais não amam ou não devem amar os seus filhos, mas, sim, que o amor pelos filhos não deve ser condição da obrigação perante eles. Ademais (e esse é um tema transversal no discurso moral kantiano), Kant afirma que não se pode ter um dever de amar alguém, “pois o homem não tem a capacidade de amar alguém meramente por mando” (KpV, AA V, p. 148). Caso o amor fosse a base do compromisso dos pais com os filhos, tal obrigação seria contingente, pois, dependeria justamente de os pais nutrirem afeto pelos filhos. A inclinação, nesses termos, se constituiria em uma solicitação do sujeito nos termos de uma condição indispensável para a realização da ação. Isso, por um lado, minaria a força da lei moral enquanto incentivo e amiudaria excessivamente a obrigação. Daí a razão pela qual Kant vincula a obrigação dos pais perante os filhos nos termos de um dever, não se dedicando a tematizar acerca do afeto inerente a essa relação, uma vez que, do ponto de vista da incondicionalidade do dever, presença ou ausência de amor não legitimam o compromisso ou o destituem do caráter de obrigatoriedade.

Hegel: a família como lócus natural de vida ética

A família desempenha um importante papel no interior do sistema hegeliano, uma vez que corresponde à esfera na qual ocorrem as primeiras experiências da vida ética. No círculo familiar o ser ético se apresenta na sua imediatez. A orientação primária para a eticidade se dá em vista de que a família é o locus primordial de satisfação das carências humanas naturais nos termos de relações intersubjetivas (do indivíduo como membro [Mitglied] de uma comunidade) e demanda de amor e cuidado bem como esfera na qual o indivíduo absorve e desenvolve o senso de direito e dever. No § 158 da Princípios da filosofia do direito, Hegel afirma que

como substancialidade imediata do espírito, a família determina-se pela sensibilidade de que é una, pelo amor, de tal modo que a disposição de espírito correspondente é a consciência de ter sua individualidade nessa unidade que é a essência em si e para si e de nela existir como membro e não como pessoa para si (Hegel, 1986HEGEL. Georg W. F. Princípios da filosofia do direito. Trad. Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães, 1986., § 158).

O amor se constitui na base da definição da família e sua unidade característica. A dispersão da família coincide com o reconhecimento dos filhos como personalidades jurídicas e de se tornarem em condições de fundar uma nova família. Assim, em uma transição da singularidade para a universalidade, a experiência ética no nível da família é elevada, posteriormente, ao nível do estado.

Vinculando a família ao amor, Hegel (diferentemente de Kant) defende que o casamento significa mais do que um contrato: mais do que o acordo recíproco e voluntário entre duas pessoas, reflete no comprometimento ético de fundar uma unidade. Embora toda a união matrimonial envolva um contrato, ela não se restringe a ele, mas encontra a sua essência à medida que o transcende na construção de uma comunidade afetiva.

Pode acontecer que o ponto de partida subjetivo do casamento seja ou uma particular inclinação de duas pessoas ou a precaução e arranjo dos pais, etc.., mas sempre o ponto de partida objetivo é o consentimento livre das pessoas e, mais precisamente, o consentimento em constituírem apenas uma pessoa, em abandonarem nessa unidade a sua personalidade natural e individual (Hegel, 1986HEGEL. Georg W. F. Princípios da filosofia do direito. Trad. Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães, 1986., § 162).

No abandono recíproco de sua personalidade natural e individual, homem e mulher constituem uma unidade e formam uma nova e independente união face aos clãs com os quais romperam. No abandono recíproco de um no outro se constrói uma unidade cuja simbologia maior são os frutos daí obtidos. Os filhos representam a continuidade do amor dos pais bem como a consolidação da família em uma comunidade. “Os pais amam os filhos como o amor que se têm, como o seu ser substancial” (Hegel, 1986HEGEL. Georg W. F. Princípios da filosofia do direito. Trad. Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães, 1986., § 173).

No discurso hegeliano, a família é marcada pela lei divina e composta por três relações: homem e mulher, pais e filhos, irmão e irmã (cf. Hegel, 2008HEGEL. Georg W. F. Fenomenologia do espírito. 5. ed. Petropolis: Vozes, 2008., § 456). Ao tratar da educação dos filhos, Hegel menciona o direito de serem alimentados e educados e que eles não se constituem em propriedade dos pais, mas em seres dotados de liberdade. O direito dos pais ao serviço dos filhos, bem como à regulação de seu arbítrio, é limitado ao interesse coletivo de manter a família, no primeiro caso e, à manutenção de sua educação e disciplina, no segundo.

A preocupação com a educação e criação dos filhos se dá em vista do seu alcance à sociedade civil como personalidades livres e autônomas. Isso, contudo, parece estar restrito aos filhos homens, uma vez que o espírito ético é realizado pelos filhos na condição de irmãos. Existe, pois, uma diferenciação na contribuição do irmão e da irmã para a eticidade no âmbito da família: o filho exerce a mediação harmoniosa entre a eticidade fundamental da vida familiar e a eticidade do estado – “O irmão passa da lei divina, em cuja esfera vivia, à lei humana” (Hegel, 2008HEGEL. Georg W. F. Fenomenologia do espírito. 5. ed. Petropolis: Vozes, 2008., § 459) –; a filha, por sua vez, se mantém como guardiã da eticidade familiar e, portanto, restrita ao domínio do lar. A propósito de sua filosofia do direito, Hegel já aponta que a substancialidade da vida do homem está vinculada ao estado, à ciência e ao trabalho, enquanto a mulher encontra seu destino substancial no interior da vida familiar (cf. Hegel, 1986HEGEL. Georg W. F. Princípios da filosofia do direito. Trad. Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães, 1986., § 166). O fato de caber ao homem a figura pública leva a família a ser representada pela figura masculina: “A família, como pessoa jurídica, será representada perante os outros pelo homem, que é o seu chefe” (Hegel, 1986HEGEL. Georg W. F. Princípios da filosofia do direito. Trad. Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães, 1986., § 171). O discurso de Hegel se articula nos termos de uma reciprocidade na qual a complementariedade de gênero desempenha um papel fundamental: a harmonia da família depende de que cada um (homem e mulher como marido e esposa e como pai e mãe, assim como filho e filha) exerça a função que lhe cabe dentro do contexto familiar. Sua exposição aparece, frequentemente, cotejada com uma linguagem melíflua na qual o amor e a doação em prol da entidade familiar aparecem como elementos fundamentais.

Honneth: família, amor e justiça

A questão do amor5 5 Honneth afirma que “por relações amorosas devem ser entendidas aqui todas as relações primárias, na medida em que consistam em ligações emotivas fortes entre poucas pessoas, segundo o padrão de relações eróticas entre dois parceiros, de amizades e de relações pais/filho” (Honneth, 2003, p. 159). é fundamental na teoria do reconhecimento de Honneth uma vez que, juntamente com o direito e a estima social, se configura em uma esfera a partir da qual o ser humano pode alcançar sua dignidade e integridade. Cada esfera do reconhecimento, desde que bem direcionada, aciona um tipo de autorrelação prática:6 6 Autorrelação prática é uma noção fundamental dentro da investigação de Honneth, mas comumente, pouco abordada. Conforme observa Deranty, “Autorrelação prática designa as condições básicas da individualidade, que, ao permitir o surgimento de uma identidade robusta, permitem ao sujeito se envolver em interação com seus ambientes. Em Honneth, a autorrelação prática é, portanto, fortemente conectada, quase se sobrepõe, com a noção de ‘identidade prática’” (Deranty, 2009, p. 272). do amor advém a autoconfiança, do direito o autorrespeito, e, da estima social, a autoestima. Para explicitar a esfera do amor (já presente em Hegel e, a fim de lhe conceder uma inflexão materialista), Honneth se serve da psicanálise de Winnicott e com esse seu recurso pretende pôr em destaque, por um lado, a relação de simbiose inevitável no plano da primeira infância; e, por outro, em vista disso, a primeira etapa de reconhecimento a que todo o humano está submetido. A questão fundamental é que a autoconfiança encontra sua formação embrionária no interior da vida familiar, particularmente na relação do bebê junto à figura do cuidador. Na dialética ligação/separação, amparada pela simbiose absoluta seguida de dependência relativa, o desligamento abona a autoconfiança em vista de que, mesmo distante do seu objeto de afeto, o indivíduo se sente seguro e amparado. Isso se dá, sobretudo, pela crença da criança na afetividade e nos cuidados maternos: “sem a segurança emotiva de que a pessoa amada preserva a sua afeição mesmo depois da autonomização renovada, não seria possível, de modo algum, para o sujeito que ama, o reconhecimento da sua independência” (Honneth, 2003HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editoea 34, 2003., p. 178). Trata-se, pois, de um processo em que os agentes afirmam a sua autonomia mediante a segurança da relação mantida com o outro.

Cada relação amorosa na vida de um indivíduo (seja de amizade ou amor erótico) atualiza a dialética dependência/autonomia procedente dessa relação originária. A autoconfiança obtida mediante os laços básicos será reativada no decorrer da vida do indivíduo nas amizades, relações amorosas e associação a grupos. A esfera do amor desempenha também um papel crucial junto as outras duas esferas de reconhecimento: ela é a base para a autorrelação prática oriunda das esferas que seguem, ou seja, a autoconfiança é fundamental para o desenvolvimento do autorrespeito e da autoestima (cf. Honneth, 2003HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editoea 34, 2003., p. 177). Tanto lógica quanto geneticamente (para usar a expressão de Honneth), o amor é a condição para as outras esferas do reconhecimento, uma vez que diz respeito ao estabelecimento das condições fundamentais da agência subjetiva. Isso fica claro, entre outras passagens, quando, a propósito da diferenciação histórica das três esferas do reconhecimento, Honneth observa que

para permitir a socialização da progênie, a ordem baseada na propriedade da sociedade pré-moderna desenvolveu de modo rudimentar as atitudes de cuidado e amor – sem as quais as personalidades das crianças não podem se desenvolver (Fraser e Honneth, 2003FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or recognition? A political-philosophical exchange. London: Verso, 2003. https://doi.org/10.3366/per.2005.1.2.215
https://doi.org/10.3366/per.2005.1.2.215...
, p. 138).

Sob esse aspecto, e considerando o espaço conferido à esfera do amor, Deranty considera que

não é exagerado afirmar que, para Honneth, a primeira relação de reconhecimento, os vínculos afetivos, que Hegel caracterizou tão bem, especialmente em seus escritos de Jena (a partir da expressão ‘ser a si mesmo em outro’), são traços constitutivos da subjetividade como um todo, além das ‘formas do amor’ (Deranty, 2009DERANTY, Jean Philippe. Beyond communication: a critical study of Axel Honneth's social philosophy. Leiden: Brill, 2009. https://doi.org/10.1163/ej.9789004175778.i-502
https://doi.org/10.1163/ej.9789004175778...
, p. 291).

Os cuidados obtidos, sobretudo, durante a primeira infância são fundamentais para o desenvolvimento da liberdade interna e externa do indivíduo, configurando o amor em uma primeira esfera incondicional do reconhecimento. Sem o amor, portanto, respeito e autoestima restam impossíveis de realização. Nota-se, pois, que a questão do amor desempenha um papel de funcionalidade essencial junto à teoria de Honneth. Esse é um ponto importante para perceber a sua análise da configuração familiar nos modelos de Kant e Hegel. Dada a configuração da primeira esfera do reconhecimento, falar em família no discurso de Honneth implica necessariamente falar em cuidado e afetividade resumidos sob a rubrica do amor.

Com efeito, é mister mencionar que, ainda na investigação de Luta por reconhecimento, as questões inerentes ao amor e à caracterização da vida familiar são objeto de fortes críticas. É aparentemente uníssono entre as feministas, por exemplo, a interpretação de que o modelo de família apresentado naquele contexto a propósito da esfera do amor é um tanto quanto deslocado da realidade de dominação inerente à estrutura social e histórica. Iris Marion Young, apesar de reconhecer que a teoria de Honneth oferece vasta instrumentalização teórica para uma crítica social feminista, identifica na estrutura da primeira etapa do reconhecimento certa engenharia argumentativa que não atende, de maneira reta, a igualdade e reciprocidade (Young, 2007YOUNG, Iris Marion. Recognition of love's labor considering Axel Honneth's feminism. In: VAN DEN BRINK, Bert; OWEN, David (org.). Recognition and power: Axel Honneth and the tradition of critical social theory. New York: Cambridge University Press, 2007. p. 189-212. https://doi.org/10.1017/cbo9780511498732.008
https://doi.org/10.1017/cbo9780511498732...
, p. 199). Por um lado, Honneth pressupõe um modelo de família nuclear arraigado na figura da mãe como agente de cuidado das crianças; por outro, em decorrência da argumentação inerente à primeira esfera, deposita grande responsabilidade no agente de cuidados (uma vez que a autorrelação prática na forma da autoconfiança depende, sobremaneira, do modo como foi direcionado o cuidado da criança na primeira infância) sem, contudo, conceder a ele uma brecha de fragilidade. “Se de fato todos necessitam de cuidados em alguns aspectos, algumas das vezes, precisam de reconhecimento como uma pessoa vulnerável” (Young, 2007YOUNG, Iris Marion. Recognition of love's labor considering Axel Honneth's feminism. In: VAN DEN BRINK, Bert; OWEN, David (org.). Recognition and power: Axel Honneth and the tradition of critical social theory. New York: Cambridge University Press, 2007. p. 189-212. https://doi.org/10.1017/cbo9780511498732.008
https://doi.org/10.1017/cbo9780511498732...
, p. 208). Reconhecer na figura materna o agente de cuidados responsável pelo desenvolvimento da autoconfiança da criança não só reflete uma divisão de papéis de gênero como também implica em um exaustivo encargo o qual repercute (considerando que, segundo Young toda a relação de cuidado é, por sua própria natureza, assimétrica) em um certo esquecimento de si em prol da doação ao outro.

Louis McNay, por sua vez, observa a respeito da caracterização da primeira esfera do reconhecimento que “tal visão ignora a medida em que a família não é mais o lugar exclusivo para a reprodução de relações íntimas” (McNay, 2008MCNAY, Louis. Against recognition. Cambridge: Polity, 2008., p. 135). Ambas críticas convergem, portanto, para a consideração que Honneth sustenta uma perspectiva excessivamente romanesca da vida familiar oriunda, sobretudo, da herança hegeliana que compõe a base embrionária da sua teoria. É difícil definir, sumariamente, se Honneth (em Luta por reconhecimento) ignorou os pontos relativos à dinâmica do poder no que tange à vida doméstica em nome de certa licença investigativa, no sentido de manter a atenção do argumento às etapas do reconhecimento ou se, efetivamente, desmereceu a complexidade das relações familiares. O fato, porém, é que essas questões que foram objeto de crítica são resgatadas em textos posteriores (notadamente Between justice and affection: the family as field of moral disputes e Direito da liberdade) cuja investigação, em certa medida, procurou sanar algumas pendências. Seu exame dos modelos de orientação familiar de Kant e Hegel expressa o esforço de pensar em uma estrutura de vida doméstica na qual a dinâmica de poder não passa anônima ou incólume.

A especificidade da família definida a partir do afeto

Na sua análise de modelo familiar em Kant e Hegel, a questão fundamental de Honneth é apontar para o aumento das liberdades individuais e das opções de ações daí derivadas na sua relação com o aparecimento de novos perigos ou novas vulnerabilidades aos membros das famílias. Isso repercute, segundo ele, inclusive, em um empobrecimento das relações familiares: por um lado, a instabilidade da conduta dos pais, abonada pela liberdade em manter ou não a união, pode repercutir em uma disputa afetiva da prole no caso de uma separação; por outro, admitindo-se conflitos incontornáveis no interior da vida conjugal, a mulher pode se converter em vítima do marido (Honneth, 2004HONNETH, Axel. Between justice and affection: the family as field of moral disputes. In: Beate Rössler (org.). Privacies: philosophical evaluations. Standford: Standford University Press, 2004. p. 142-162., p. 147). Considerando o aspecto das vulnerabilidades inerentes à configuração moderna da família, Honneth menciona que “pareceria óbvio tomar, hoje, a orientação do paradigma kantiano ao procurar um arcabouço moral para resolver a crise da família” (Honneth, 2004HONNETH, Axel. Between justice and affection: the family as field of moral disputes. In: Beate Rössler (org.). Privacies: philosophical evaluations. Standford: Standford University Press, 2004. p. 142-162., p. 154). Isso se justifica em vista que um modelo de família vinculado a direitos seria mais hábil para corrigir injustiças relacionadas à divisão desigual do trabalho e oportunidades desiguais entre homens e mulheres. De modo ainda mais profundo, estruturar a família a partir de uma configuração de justiça redundaria em blindar a opressão junto ao seu berço, uma vez que a esfera doméstica se constitui em grande foco de vulnerabilidade de mulheres e crianças.7 7 “precisamente porque começaram a se libertar das funções clichês recebidas, hoje é, sobretudo, o mundo da vida no interior da família que obstrui as mulheres de realizarem a sua autonomia individual e, nessa medida, representa um lugar onde elas são altamente ‘vulneráveis’” (Honneth, 2004, p. 148). Essa seria, por assim dizer, uma vantagem do modelo kantiano de família relativamente ao modelo hegeliano, uma vez que a concepção de justiça guarda uma abordagem mais flexível e, portanto, apta aos avanços de modelo familiar.

Se a orientação kantiana conduz a uma maior implementação de direitos legais, da qual se podem estabelecer condições igualitárias dentro das famílias, então a orientação hegeliana baseada na crítica contratual só pode manter a família em sua forma antiga e inabalável. Oculto nesse contraste político, existe a ideia de que somente mediante a extensão dos direitos legais dentro da família, a justiça pode ser implementada, enquanto as atitudes morais de amor e cuidado deixam apenas inalteradas as formas estabelecidas da divisão de trabalho específica do gênero. Em suma, são os princípios universais da justiça que permitem uma reforma da vida familiar atual, enquanto os laços afetivos parecem apenas adotar o papel conservador de fixar o que foi recebido da instituição (Honneth, 2004HONNETH, Axel. Between justice and affection: the family as field of moral disputes. In: Beate Rössler (org.). Privacies: philosophical evaluations. Standford: Standford University Press, 2004. p. 142-162., p. 154).

Na perspectiva kantiana, se impõe o fortalecimento dos direitos no interior da família, do qual se pode derivar que o empobrecimento emocional bem como a discriminação da mulher encontram seu contrabalanço na organização da família segundo os princípios de justiça. No tocante à concepção hegeliana, tem-se a caracterização da família como uma esfera de solidariedade não legal, na qual as tensões internas podem ser solucionadas a partir da mobilização do amor e do cuidado, contudo, essa mobilização é desprovida de qualquer regulação para além do círculo familiar. Ademais o modelo hegeliano está preso em uma estrutura de família naturalmente concebida o que gera certo enrijecimento das relações intrafamiliares.

Adotar o modelo kantiano de família implica, contudo, trazer para a esfera subjetiva das relações princípios cuja aceitação extrapolam a perspectiva da subjetividade, uma vez que encontram sua legitimidade junto a uma configuração universal do que deve ser feito. Ou seja, apelar a princípios universais de justiça como forma de reivindicar direitos no interior da vida familiar equivale a remeter a princípios universais aceitos por todo e qualquer ser racional. As obrigações encontram sua legitimidade não porque são reconhecidos e aceitas pelos outros membros da família, mas porque são universalmente reconhecidas por qualquer sujeito.

Com esse apelo universalista, no entanto, uma forma de interação moral é abandonada, que é típico nas famílias, enquanto o vínculo emocional não parece ser quebrado. Aqui, as próprias necessidades ou interesses são habitualmente introduzidos referindo-se a obrigações que derivam não de princípios universais, mas de sentimentos comumente compartilhados (Honneth, 2004HONNETH, Axel. Between justice and affection: the family as field of moral disputes. In: Beate Rössler (org.). Privacies: philosophical evaluations. Standford: Standford University Press, 2004. p. 142-162., p. 156).

Honneth observa que as relações familiares guardam como característica embrionária a preferência recíproca daqueles que estão envolvidos, o qual por sua vez envolve necessidades e capacidades individuais. Esse tipo de relação contém a especificidade perante as obrigações universais. Enquanto no primeiro caso, o aporte dos argumentos são obrigações gerais universalmente reconhecidas, nesse segundo caso, é apresentado um apelo subjetivo no que tange à preferência que algumas pessoas sintam perante outras: “ao invés de argumentos que todos os outros sujeitos deveriam ser capazes de aceitar racionalmente, são apresentadas reflexões de natureza muito pessoal, que só devem ser plausíveis com base nas afeições da outra pessoa” (Honneth, 2004HONNETH, Axel. Between justice and affection: the family as field of moral disputes. In: Beate Rössler (org.). Privacies: philosophical evaluations. Standford: Standford University Press, 2004. p. 142-162., p. 157). Tais considerações não estão ancoradas diretamente na racionalidade, tal como as obrigações universais, mas em relações de afeto.

Os argumentos de Honneth frente ao modelo kantiano oscilam dentro dos seguintes polos: por um lado, a concepção kantiana oferece mais segurança aos membros individuais da família, uma vez que defende a consideração dos deveres do humano enquanto fim em si mesmo, por outro, porém, redunda em certa descaracterização da família enquanto entidade, pois promulga princípios universais que podem ser reconhecidos por todos os humanos, excedendo, portanto, a esfera de afetividade composta pelos membros da família. Perde-se aqui, pelo excesso de racionalização e caráter universal, a dinâmica da preferência dos membros da família entre si. Enfim, apesar de reconhecer vantagens no modelo kantiano, Honneth orienta sua investigação no sentido de denunciar que a definição da família enquanto um modelo jurídico representaria uma perda moral no contexto familiar.

Assim, a relação familiar compartilha com as amizades a característica de que, de acordo com seu verdadeiro sentido, elas podem continuar a existir somente enquanto os sujeitos envolvidos mostrarem consideração moral e cuidado por afeto. De fato, semelhantes ações de carinho perdem seu valor moral nessas relações quando são realizadas não por sentimento de amor, mas pela compreensão racional de um dever (Honneth, 2004HONNETH, Axel. Between justice and affection: the family as field of moral disputes. In: Beate Rössler (org.). Privacies: philosophical evaluations. Standford: Standford University Press, 2004. p. 142-162., p. 157).

A necessidade da identificação da família como lócus embrionário dessa forma de reconhecimento recíproco é explicada sob a justificativa de que existem consequências negativas vinculadas à admissão de que os membros da família representassem suas considerações de reconhecimento recíproco operado unicamente sob a aceitação de um dever universal. Isso configuraria a vida familiar nos termos de uma socialização cujo ponto em comum entre seus membros é a observação de um dever. A dificuldade da adoção da perspectiva de Kant diz respeito, sobretudo, à faceta altamente atomizada do sujeito kantiano, cuja autonomia é oriunda de um esforço solitário e individualista, contrastando fortemente com os matizes intersubjetivos tão caros a Honneth.8 8 “A autonomia individual não é concebida como uma dimensão monológica, mas intersubjetiva: segundo ela, o indivíduo só alcança a liberdade da autodeterminação ao aprender, em relações de reconhecimento recíproco, a compreender suas necessidades, convicções e habilidades como algo que vale a pena ser articulado e perseguido na vida pública” (Honneth, 2009, p. 360). Perde-se, aqui, a concepção da família como uma unidade movida por laços essencialmente definidos nos termos de afeição e estima. Perde-se, enfim, a dimensão do reconhecimento ancorado no amor e no cuidado.

Em sua análise do texto de Honneth, Pauer-Studer sugere que a investigação opera sob a equivalência entre duas virtudes que, a bem da verdade, pertencem a esferas distintas: a família, enquanto instituição social básica perfaz a esfera da moral pública vinculada a princípios universais; afeto e cuidado como característicos da família, por sua vez, dizem respeito à moralidade pessoa (Pauer-Studer, 2004PAUER-STUDER, Herlinde. Justice as a precondition of affection and care: a comment on Axel Honneth. In: RÖSSLER, Beate (org.). Privacies: philosophical evaluations. Standford: Standford University Press, 2004. p. 163-168., p. 165). Ela observa, ainda, que “seria uma estranha concepção de amor que explicitamente exige excluir considerações de justiça dela. A integridade pessoal de uma pessoa está em jogo se ela ama alguém que a trata de maneira que parecem profundamente injustas” (Pauer-Studer, 2004PAUER-STUDER, Herlinde. Justice as a precondition of affection and care: a comment on Axel Honneth. In: RÖSSLER, Beate (org.). Privacies: philosophical evaluations. Standford: Standford University Press, 2004. p. 163-168., p. 166).

Ocorre que o modelo romântico de amor centra nesse sentimento uma completude e incondicionalidade nas relações de maneira que o cuidado, a preocupação e a educação são administrados gratuitamente. Mesclá-lo com questões de direito redundaria em admitir certa corrupção ou incompletude nas relações afetivas. Existe, aqui, claramente, na medida em que se pretende harmonizar a perspectiva honnethiana com esse tipo de crítica, a necessidade de ressignificar o amor familiar. Isso vem sendo feito, por exemplo, junto à teoria feminista, relativamente ao mito da maternidade e do instinto materno. De alguma maneira, Honneth abre brecha no sentido de conceber a família para além do amor, contudo, a herança hegeliana por ele mimada ainda é muito forte, de modo que mesmo no contexto em que admite a dimensão jurídica o faz em termos de exceção e no sentido de uma manutenção do afeto.

As duas orientações morais da família: a justiça e o afeto

Honneth observa que, geralmente, as concepções de estrutura familiar em Kant e Hegel são interpretadas como excludentes. Assim as interpretações se polarizam entre o domínio da família como uma esfera na qual cada membro possui direitos legais perante os outros ou como uma esfera na qual impera a afetividade. Sem se desfazer da concepção embrionária da família vinculada ao afeto, Honneth defende pensar essa instituição a partir de uma orientação moral dupla: afeto e justiça.

Por um lado, a libertação da família da convenção e da tradição levou, paradoxalmente, ao fato de sua vida interior ter atingido um grau de fragilidade e instabilidade emocional que cada vez mais expõe a perigos, sobretudo, as crianças, mas também os próprios parceiros matrimoniais; nesse sentido, parece estar em crescimento, hoje, a necessidade de garantir, segundo o modelo legal, que a integridade pessoal dos membros da família continue sendo mantida. Por outro lado, esta ampliada significação dos direitos traz à luz, por seu turno, a importância do vínculo emocional de atenção e cuidado para a família, o que Hegel tinha em mente em seu modelo afetivo (Honneth, 2004HONNETH, Axel. Between justice and affection: the family as field of moral disputes. In: Beate Rössler (org.). Privacies: philosophical evaluations. Standford: Standford University Press, 2004. p. 142-162., p. 154).

Entre uma perspectiva de uma extensão de direito e reforma e uma orientação conservadora de afeto, Honneth parece optar por um consórcio assimétrico de ambas. O que se impõe aqui é a constatação da complexidade da família como uma estrutura social híbrida na qual os membros precisam se reconhecer reciprocamente como indivíduos portadores de direitos (mediante os quais é protegida a identidade pessoal) e, a par disso, precisam ser reconhecidos como sujeitos que demandam bem-estar, atenção e cuidados. Ao mesmo tempo que a família se configura na unidade de afeto concebida por Hegel, é por suposto necessário, para além da dimensão da entidade familiar, admitir cada membro na sua individualidade. O direito aparece, aqui, como uma perspectiva individualizante no interior da família. As proposições de Kant e Hegel se fundem, portanto, à proporção que a família pede pela estruturação de duas orientações morais: autonomia e cuidado. Honneth explica que

a introdução do princípio jurídico de reconhecimento – uma restrição externa de respeito legal entre os membros da família normalmente tem a função de proteger contra os perigos que podem resultar da prática ‘pura’ do princípio do amor recíproco e da preocupação (Fraser e Honneth, 2003FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or recognition? A political-philosophical exchange. London: Verso, 2003. https://doi.org/10.3366/per.2005.1.2.215
https://doi.org/10.3366/per.2005.1.2.215...
, p. 146).

O direito atua como um espaço constitucional que agencia a realização da família enquanto uma estrutura baseada no afeto. Movido pela mentalidade “com Hegel, mas além de Hegel”.9 9 “Honneth está com Hegel quanto à necessária formatação intersubjetiva e triádica da família, quanto à educação ética dos filhos para uma personalidade livre e comunitária (socialmente antipatológica), mas, enquanto filho dos séculos 20 e 21, dá um passo além de Hegel no que diz respeito à naturalização dos laços familiares e à suposição androcêntrica da centralidade do homem na composição familiar” (Lima, 2016, p. 471). Honneth, mantém que “os membros da família podem, uma e outra vez, ter boas razões para deixar o campo moral da vinculação afetiva porque eles não se veem tratados iguais em seus interesses ou dignidade” (Honneth, 2004HONNETH, Axel. Between justice and affection: the family as field of moral disputes. In: Beate Rössler (org.). Privacies: philosophical evaluations. Standford: Standford University Press, 2004. p. 142-162., p. 157). A ameaça da dignidade como pessoa legal não se restringe ao desrespeito aos direitos legais, mas pode se manifestar quando ideias morais de igualdade são ignoradas. Aqui o nível afetivo das ligações familiares adentra no domínio das obrigações. Assim, ações que se caracterizam pelo seu caráter recíproco são conduzidas ao domínio dos princípios universais da justiça.

Sob o aporte kantiano do humano como fim em si mesmo, Honneth pretende defender a esfera do direito no interior da vida familiar como possibilidade de retratação no caso em que os membros não sejam reconhecidos nos seus direitos como pessoa (em que são abarcadas a autonomia física e psicológica). Isso, porém, não representa propriamente uma concessão ao modelo kantiano, uma vez que a gênese característica da vida familiar se mantém vinculada ao afeto e, sob esses termos, o consórcio entre os modelos de Kant e Hegel se dá de modo assimétrico. A esfera pública adentra, assim, na esfera privada em contextos nos quais se acredita que o elemento afetivo pode fracassar.

Em contraste com a ideia hegeliana, temos que aceitar que os passos necessários para uma reforma interna da vida familiar só podem ser tomados se os membros individuais deixam o quadro afetivo da interação para afirmar seus interesses, referindo-se a princípios universais de justiça (Honneth, 2004HONNETH, Axel. Between justice and affection: the family as field of moral disputes. In: Beate Rössler (org.). Privacies: philosophical evaluations. Standford: Standford University Press, 2004. p. 142-162., p. 158).

Honneth condiciona a sua argumentação ao modelo hegeliano do qual ele é, atualmente, forte expoente e defensor. Seu uso de argumentos oriundos da tradição kantiana é instrumentalizado enquanto contraposto e esclarecimento dos princípios que pretende consolidar. Honneth, contudo, não sustenta, nesse texto, qualquer visão romanesca da vida familiar. Concomitante à sua adesão a Hegel, ele atualiza o modelo hegeliano em vista da evolução da estrutura familiar moderna. Hegel, reconhece Honneth, se abstraiu de investigar a tensão interna inerente ao modelo familiar ancorado no amor e no cuidado em vista de que seu modelo de reflexão. No interior da reflexão honnethiana, a perspectiva hegeliana encontra seus limites de interpretação desnudados no confronto com um modelo familiar nos quais as tensões internas são admitidas e relevantes.

Isso é consolidado por Honneth na obra O direito da liberdade na qual, novamente, a respeito da evolução da configuração familiar, resgata as perspectivas do amor e do dever enquanto fundamentais para repensar a família. O amor, nessa obra, não é tanto investigado enquanto laços de afeto, mas diz respeito a um relacionamento pessoal que é institucionalizado no âmbito de sociedades modernas e ocidentais. Nesse contexto, Honneth fala de um modelo democrático de família oriundo do rompimento com o modelo patriarcal.

Nos últimos cinquenta anos, a família moderna, organizada em forma de papéis atribuídos, passou de uma associação social patriarcal, organizada em papéis, a uma relação social entre pares, na qual a demanda normativa de manifestar amor uns pelos outros, como pessoas em sentido pleno, está institucionalizada em todas as necessidades concretas (Honneth, 2015HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015., p. 307).

Manter a família sob o consórcio do afeto com o dever remete ao reconhecimento dos limites do amor, embora não signifique propriamente uma deficiência dele na caracterização da família. O amor ainda é o princípio de distinção das relações familiares, com efeito, se constitui em condição absolutamente necessária, mas não suficiente, uma vez que por si só não garante a proteção à integridade dos indivíduos. Nesse ponto, Honneth vai além de Hegel, no entanto, se mantém com Hegel no que concerne à tese de que a família se constitui, na sua concepção embrionária em suporte de amor e cuidados independentemente da obrigação jurídica, o que não significa que não possa ocorrer interferência legal. O fato é que conceber a gênese da família unicamente a partir da legalidade redunda na ameaça de se perder a conexão íntima e afetuosa distintiva da comunidade familiar.

Ao definir a família pela conciliação do modelo kantiano da justiça junto ao modelo hegeliano do amor, Honneth atende à demanda de uma desmistificação da união familiar que foi fortemente invocada pelo movimento e teoria feministas a partir, sobretudo, da década de 1960. A superação da concepção de família como uma esfera definida unicamente pela égide do afeto, permite a percepção e a ressignificação dessa instituição como um campo cuja lógica do poder e da dominação estão fortemente presentes, registros que são ocultados na adoção da perspectiva hegeliana. Relações de poder, hierarquia, divisão do trabalho, dependência econômica e restrição de escolhas são questões inerentes à vida cotidiana familiar e compõem campos semânticos de relações politizadas que requerem uma percepção de família de uma perspectiva de justiça que possa atuar e nivelar as relações onde o amor não serve como mediação.

  • 1
    Este texto foi elaborado durante o período de estágio pós-doutoral no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) na modalidade PNPD/Capes.
  • 2
    As obras de Kant são citadas segundo as normas da Akademie seguindo as seguintes abreviaturas: A (Anthropologie in pragmatischer Hinsicht); MS (Die Metaphysik der Sitten); GMS (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten); KpV (Kritik der praktischen Vernunft). A tradução é nossa, assim como as passagens utilizadas dos outros textos que não se encontram em língua portuguesa.
  • 3
    Isso não representa um abrandamento na tese de que o fim último do homem é a conservação da espécie, mas uma espécie de ajuizamento quanto ao fato de que uma vez cessada a capacidade de procriar, mesmo assim se mantém o compromisso de manutenção da vida familiar.
  • 4
    “Desse dever resulta também o direito dos pais na administração e formação do filho, enquanto esse não seja senhor do uso dos seus membros e do uso de seu entendimento. Ademais é preciso alimentá-lo e cuidá-lo, assim como educá-lo tanto pragmaticamente, a fim de que no futuro possa manter-se e conduzir a vida por si mesmo, quanto moralmente, pois, de outro modo, a culpa de seu abandono recairia sobre os pais” (MS, AA VI, p. 281).
  • 5
    Honneth afirma que “por relações amorosas devem ser entendidas aqui todas as relações primárias, na medida em que consistam em ligações emotivas fortes entre poucas pessoas, segundo o padrão de relações eróticas entre dois parceiros, de amizades e de relações pais/filho” (Honneth, 2003HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editoea 34, 2003., p. 159).
  • 6
    Autorrelação prática é uma noção fundamental dentro da investigação de Honneth, mas comumente, pouco abordada. Conforme observa Deranty, “Autorrelação prática designa as condições básicas da individualidade, que, ao permitir o surgimento de uma identidade robusta, permitem ao sujeito se envolver em interação com seus ambientes. Em Honneth, a autorrelação prática é, portanto, fortemente conectada, quase se sobrepõe, com a noção de ‘identidade prática’” (Deranty, 2009DERANTY, Jean Philippe. Beyond communication: a critical study of Axel Honneth's social philosophy. Leiden: Brill, 2009. https://doi.org/10.1163/ej.9789004175778.i-502
    https://doi.org/10.1163/ej.9789004175778...
    , p. 272).
  • 7
    “precisamente porque começaram a se libertar das funções clichês recebidas, hoje é, sobretudo, o mundo da vida no interior da família que obstrui as mulheres de realizarem a sua autonomia individual e, nessa medida, representa um lugar onde elas são altamente ‘vulneráveis’” (Honneth, 2004HONNETH, Axel. Between justice and affection: the family as field of moral disputes. In: Beate Rössler (org.). Privacies: philosophical evaluations. Standford: Standford University Press, 2004. p. 142-162., p. 148).
  • 8
    “A autonomia individual não é concebida como uma dimensão monológica, mas intersubjetiva: segundo ela, o indivíduo só alcança a liberdade da autodeterminação ao aprender, em relações de reconhecimento recíproco, a compreender suas necessidades, convicções e habilidades como algo que vale a pena ser articulado e perseguido na vida pública” (Honneth, 2009HONNETH, Axel. A textura da justiça: sobre os limites do procedimentalismo contemporâneo. Civitas, v. 9, n. 3, p. 345-368, 2009. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2009.3.6896
    https://doi.org/10.15448/1984-7289.2009....
    , p. 360).
  • 9
    “Honneth está com Hegel quanto à necessária formatação intersubjetiva e triádica da família, quanto à educação ética dos filhos para uma personalidade livre e comunitária (socialmente antipatológica), mas, enquanto filho dos séculos 20 e 21, dá um passo além de Hegel no que diz respeito à naturalização dos laços familiares e à suposição androcêntrica da centralidade do homem na composição familiar” (Lima, 2016LIMA, Francisco Josivan Guedes de. A família como uma realização da eticidade democrática segundo Honneth. Para além do modelo androcêntrico e do naturalismo de Hegel. Civitas, Porto Alegre, v. 16, n. 3, p. 463-481, 2016. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2016.3.23318
    https://doi.org/10.15448/1984-7289.2016....
    , p. 471).

Referências

  • DERANTY, Jean Philippe. Beyond communication: a critical study of Axel Honneth's social philosophy. Leiden: Brill, 2009. https://doi.org/10.1163/ej.9789004175778.i-502
    » https://doi.org/10.1163/ej.9789004175778.i-502
  • FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or recognition? A political-philosophical exchange. London: Verso, 2003. https://doi.org/10.3366/per.2005.1.2.215
    » https://doi.org/10.3366/per.2005.1.2.215
  • HEGEL. Georg W. F. Princípios da filosofia do direito. Trad. Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães, 1986.
  • HEGEL. Georg W. F. Fenomenologia do espírito 5. ed. Petropolis: Vozes, 2008.
  • HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editoea 34, 2003.
  • HONNETH, Axel. Between justice and affection: the family as field of moral disputes. In: Beate Rössler (org.). Privacies: philosophical evaluations Standford: Standford University Press, 2004. p. 142-162.
  • HONNETH, Axel. A textura da justiça: sobre os limites do procedimentalismo contemporâneo. Civitas, v. 9, n. 3, p. 345-368, 2009. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2009.3.6896
    » https://doi.org/10.15448/1984-7289.2009.3.6896
  • HONNETH, Axel. O direito da liberdade São Paulo: Martins Fontes, 2015.
  • KANT, Immanuel. Anthropologie in pragmatischer Hinsicht In: Akademie Textausgabe, v. VII. Berlin: de Gruyter, 1968.
  • KANT, Immanuel. Die Metaphysik der Sitten In: Akademie Textausgabe, v. VI. Berlin: de Gruyter, 1968.
  • KANT, Immanuel. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten Akademie Textausgabe, v. IV. Berlin: de Gruyter, 1968.
  • KANT, Immanuel. Kritik der praktischen Vernunft. Akademie Textausgabe, v. V. Berlin: de Gruyter, 1968 [Crítica da razão prática. Tradução de Valerio Rohden: São Paulo: Martins Fontes, 2002 – baseada no original de 1788]. https://doi.org/10.1524/9783050050317.81
    » https://doi.org/10.1524/9783050050317.81
  • LIMA, Francisco Josivan Guedes de. A família como uma realização da eticidade democrática segundo Honneth. Para além do modelo androcêntrico e do naturalismo de Hegel. Civitas, Porto Alegre, v. 16, n. 3, p. 463-481, 2016. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2016.3.23318
    » https://doi.org/10.15448/1984-7289.2016.3.23318
  • MCNAY, Louis. Against recognition. Cambridge: Polity, 2008.
  • PAUER-STUDER, Herlinde. Justice as a precondition of affection and care: a comment on Axel Honneth. In: RÖSSLER, Beate (org.). Privacies: philosophical evaluations. Standford: Standford University Press, 2004. p. 163-168.
  • YOUNG, Iris Marion. Recognition of love's labor considering Axel Honneth's feminism. In: VAN DEN BRINK, Bert; OWEN, David (org.). Recognition and power: Axel Honneth and the tradition of critical social theory New York: Cambridge University Press, 2007. p. 189-212. https://doi.org/10.1017/cbo9780511498732.008
    » https://doi.org/10.1017/cbo9780511498732.008

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2017
  • Aceito
    25 Nov 2018
  • Publicado
    30 Jul 2019
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Av. Ipiranga, 6681 - Partenon, Cep: 90619-900, Tel: +55 51 3320 3681 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: civitas@pucrs.br