Introdução
O surgimento de estudos sobre a Ciência Política brasileira, como uma disciplina acadêmica em desenvolvimento, tem registros de pelo menos setenta anos atrás. Em 1950, quando ainda nem possuía instituições especializadas de ensino e pesquisa, o Brasil foi eleito pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como um dos quatro casos latino-americanos, junto ao México, Argentina e Uruguai, a ser analisado na coletânea Contemporary political science, que buscava estimar a estruturação da área em distintos contextos nacionais.1 Redigido por Djacir Menezes, o ensaio septuagenário Political Science in Brazil during the last thirty years é um documento histórico, embora curto e de pouco conteúdo, que atesta o estágio incipiente de demarcação desse campo de conhecimento durante meados do século 20. À época, o cenário brasileiro apresentava indícios de baixa profissionalização, caracterizados pela ausência de cursos de formação e escassez de investigações sistemáticas sobre a política, quase sempre dominadas por perspectivas sociológicas, a cargo de professores universitários de faculdades de direito, ou mesmo de elites intelectuais diletantes (Unesco, 1950).
Ao longo das últimas décadas, transformações intensas ocorreram na organização da disciplina no país. Além da criação e expansão de programas de graduação, mestrado e doutorado, a Ciência Política brasileira passou a desfrutar de um ascendente grau de internacionalização, ampliou e consolidou a atuação de uma associação profissional (a Associação Brasileira de Ciência Política – ABCP – fundada em 1984) e consagrou periódicos que difundem trabalhos concentrados em fenômenos políticos. Os exames acerca da trajetória da área, por sua vez, também mudaram, progredindo em regularidade e diversidade de enfoques. Em contrapartida, nenhuma dessas alterações resultou em mais atenção ao perfil da própria comunidade acadêmica e às desigualdades internas ao exercício da profissão. O objetivo deste artigo é colaborar para atenuar tal falha persistente a partir do mapeamento da composição nacional da elite intelectual de cientistas políticos.
A elite intelectual referida no presente trabalho é definida pelos professores de pós-graduação de grandes áreas das Ciências Sociais (Antropologia, Ciência Política e Sociologia), uma vez que eles praticamente detêm o monopólio sobre os espaços de formação das novas gerações de profissionais, concentram os recursos de pesquisa, editam os principais periódicos que circulam o conhecimento especializado, coordenam os grupos de discussão em congressos e frequentemente são as referências consultadas pela mídia acerca de temas de importância pública.
O texto está dividido em três partes. Inicialmente, elaboramos um breve balanço bibliográfico sobre a evolução das pesquisas com relação à diversidade na Ciência Política brasileira, demonstrando a sua exiguidade, sobretudo se comparada aos debates internacionais. Em seguida, explicamos a metodologia empregada no estudo e apresentamos dados sobre gênero, raça e região de atuação dos quadros docentes de cursos de mestrado e doutorado em Ciência Política, comparados à Antropologia e à Sociologia. Por fim, fazemos um apanhado crítico das informações e sugerimos hipóteses para investigações futuras.
Estudos sobre a Ciência Política como uma agenda de pesquisa
As primeiras revistas brasileiras que declaravam entre suas finalidades disseminar estudos sobre a política começaram a surgir alguns anos depois do ensaio de Menezes (1950).2 Entre as edições iniciais dessas publicações, um exercício de análise do desenvolvimento da Ciência Política se destaca pelo seu pioneirismo: o artigo de Heloisa Michetti e Maria Teresa Kerbauy, veiculado em 1969 na Revista de Ciência Política, da Fundação Getúlio Vargas. Em A Situação do Ensino e Pesquisa de Ciência Política no Brasil, as autoras exploram os resultados de um survey direcionado a professores brasileiros que se identificavam como cientistas políticos.3 Em um período no qual a área não desfrutava de institucionalização, Michetti e Kerbauy empreenderam um levantamento com ampla seleção de variáveis, que almejava fornecer um panorama sobre os aspectos de formação profissional, ensino e pesquisa, estimulando o avanço da disciplina em diferentes cantos do país. O questionário indagava diversos assuntos e incluía no seu repertório a consideração da distribuição de gênero dos intelectuais (Michetti e Miceli, 1969).4
O pequeno número de respondentes e o caráter não probabilístico da amostra impossibilitaram a obtenção de resultados estatisticamente significativos, mesmo assim o texto de Michetti e Kerbauy documenta um contexto histórico sobre o qual há pouca informação. As autoras lidaram com uma comunidade científica reduzida e heterogênea, bem como com as limitações tecnológicas de um tempo no qual a comunicação com os entrevistados tinha que ser feita pelos correios. Os cientistas políticos brasileiros de hoje, por sua vez, dispõem de melhores recursos institucionais, financeiros e técnicos para investigações empíricas e, além disso, a disciplina vivencia um boom de publicações que refletem sobre a sua estrutura institucional e epistêmica.
A proliferação de trabalhos que utilizam extensos bancos de dados com informações extraídas de repositórios online de artigos ou da Plataforma Lattes é um dos reflexos mais nítidos da modernização estrutural da produção acadêmica. Tais bancos de dados abrem um novo horizonte de pesquisa que possibilita, por meio do uso de ferramentas de big data, a análise sistemática dos conteúdos e das práticas profissionais da Ciência Política. Inclusive foi criado um neologismo, cientometria, para denominar o conjunto de técnicas de mensuração e avaliação da atividade intelectual. Cenário que resulta do desenvolvimento de um sistema de comunicação científica e do protagonismo crescente que os periódicos receberam na atribuição de prestígio aos profissionais e às instituições de ensino superior no Brasil e no mundo (Marenco, 2014; 2015; 2016; Leite e Codato, 2013).5
A produção da Ciência Política brasileira não cresceu somente em volume. Paralelamente houve diversificação dos métodos empregados nas investigações. Os textos exegéticos e interpretativos, muitas vezes estruturados meramente em revisões bibliográficas, passaram a sofrer concorrência de artigos baseados no emprego de técnicas quantitativas. Alguns periódicos nacionais de Ciência Política chegaram ao ponto de expurgar trabalhos de teoria de seu escopo em prol de abordagens mais hard ao estudo dos fenômenos políticos. O livro A Ciência Política no Brasil: 1960-2015, lançado em 2016 e organizado pela ABCP, é uma das evidências da centralidade que as estatísticas descritivas e a mensuração de artigos têm recebido nos debates sobre a disciplina, uma vez que vários dos capítulos adotaram tais técnicas (Avritzer et al., 2016).
Todavia, a despeito da proliferação de reflexões sobre a Ciência Política brasileira, o debate do perfil demográfico das comunidades acadêmicas, das diferentes posições de poder e de status no interior da disciplina segue praticamente inexistente. Nos estudos históricos, predominam narrativas sobre a fundação e o desenvolvimento das instituições, o papel dos intelectuais pioneiros ou referências a fatos particularmente relevantes. A ênfase na excepcionalidade dos indivíduos é dominante, ao passo que há pouca reflexão sobre o conjunto geral dos profissionais e, especialmente, acerca das desigualdades que permeiam os espaços de ensino e pesquisa. Só para indicarmos uma evidência, a simples incursão de Michetti e Kerbauy na mensuração de gênero da totalidade de intelectuais envolvidos na disciplina não foi reproduzida posteriormente.
A tentativa mais próxima àquela de Michetti e Kerbauy, de aferir a composição da comunidade de cientistas políticos brasileiros, foi realizada por Cecilia Carpiuc (2016), que buscou mapear e comparar a presença feminina em inúmeros países latino-americanos. Os resultados sobre o Brasil o posicionam como um dos contextos em que existe uma massa crítica de mulheres entre os especialistas em política, mas que perdura a constituir minoria. A conclusão é extraída com base em informações quantitativas sobre as associações profissionais, os quadros de investigadores dos sistemas nacionais de pesquisa, as autorias de publicações de prestígio, as trajetórias de formação e os quadros docentes. No que toca a esses dois últimos aspectos, no entanto, a autora se restringe a avaliar os programas de pós-graduação mais prestigiados, deixando de apreender possíveis distinções na participação de mulheres de acordo com o nível de reconhecimento das instituições.6
Além da pesquisa de Carpiuc (2016), os raros estudos disponíveis sobre as desigualdades na comunidade científica brasileira tematizam as relações de gênero nos meios intelectuais, considerando, inclusive, interações com questões de classe, mas aplicam o método da análise de trajetórias, reconstituindo os processos de socialização de mulheres específicas das Ciências Sociais. Para a Ciência Política, o perfil feminino que foi objeto regular de estudo é o de Paula Beiguelman, a primeira mulher a ocupar a disciplina de Política da Universidade de São Paulo (Spirandelli, 2014; Silva, 2008; 2016). Não existem, contudo, perspectivas sobre a diversidade racial na disciplina, sejam elas quantitativas ou qualitativas.
Em contraposição à baixa produtividade brasileira sobre o assunto, ele tem sido objeto de investigação em outros contextos nacionais. Há décadas a American Political Science Association divulga na PS: Political Science & Politics resultados de pesquisas sobre recrutamento e retenção de minorias políticas como mulheres (Benedict et al., 1985; Monroe e Chiu, 2010), latinos (Ávalos, 1991; Monforti e Michelson, 2008) e negros (Ards e Woodard, 1992). Embora cada um desses grupos seja alvo de uma discriminação distinta com efeitos particulares, de acordo com essa bibliografia, os mecanismos de exclusão da academia são similares.
Tais contribuições apontam a entrada e, sobretudo, a saída dos programas de doutorado como os gargalos mais substantivos nas trajetórias de minorias. No entanto, a sub-representação de grupos sociais nos departamentos de Ciência Política não pode ser explicada só pela baixa oferta de doutores e doutoras de determinados perfis. Como notam Monroe e Chiu (2010), a presença de mulheres diminui sensivelmente na medida em que se avança nos estratos da carreira universitária, o que deixa patente a existência de filtros excludentes internos à academia estadunidense. Manuel Ávalos (1991) também chama a atenção para mecanismos discriminatórios mais sutis que incidem sobre minorias étnico raciais. Os poucos indivíduos desses grupos que galgam postos de docentes em universidades estadunidenses, tendem a ser alocados em tarefas administrativas de pouco prestígio, paradoxalmente relacionadas ao incentivo e ao apoio dos alunos oriundos de minorias dentro dos campi (Ávalos, 1991, p. 242). Outro fator de exclusão está no insulamento de minorias em temáticas de pesquisa identitárias e com pouca entrada nos periódicos de maior prestígio da Ciência Política (Ávalos, 1991, p. 243). Cabe ressaltar que parte dessa bibliografia não se preocupa apenas em mensurar a sub-representação das minorias e diagnosticar as suas causas, mas também em propor ações afirmativas para solucionar o problema (Benedict et al., 1985).
A ínfima incorporação de mulheres em postos de trabalho mais elevados é uma realidade partilhada na Ciência Política dos países periféricos, como os latino-americanos (Carpiuc, 2016), e os centrais, como os Estados Unidos (Monroe e Chiu, 2010). Na Europa, por seu turno, até regiões historicamente conhecidas como referências em igualdade de gênero padecem desse mal. Por exemplo, a cientista política Johanna Kantola (2008) abordou essa situação no departamento de Ciência Política da Universidade de Helsinki, a mais importante da Finlândia. Após verificar que o quadro docente da instituição era dominado por homens, a acadêmica buscou identificar os fatores que dificultavam a permanência das mulheres na profissão. A partir de surveys e entrevistas, Kantola (2008) explicitou que existem discriminações ocultas, limitadoras de trajetórias femininas, que vão desde expectativas díspares sobre o comportamento de mulheres e homens, como regras de vestimenta e normas de conduta, até à divisão sexual do trabalho e à frequente deslegitimação da expertise feminina por parte de estudantes e orientadores.
Outra similitude nas relações de gênero de diferentes comunidades de cientistas políticos ao redor do globo é a pequena proporção de artigos publicados individualmente por mulheres nas revistas mais bem avaliadas da área (Fernandez, 2006; Cardipuc, 2016; Langan Teele e Thelen, 2017). Linda Grant e Kathryn Ward (1991) buscaram encontrar as causas de assimetrias desse tipo na Sociologia e indicaram empecilhos em diversas etapas do processo de publicação: mulheres recebem escassos financiamentos de pesquisa, predominam em instituições com menor probabilidade de angariar fundos, tendem a utilizar metodologias pouco prestigiosas e submetem menos artigos, dando preferência inicial a revistas de baixo reconhecimento; consequentemente, o grupo conquista menor visibilidade na academia, é menos citado e estabelece poucas redes de contato profissionais.
Recentemente, editores de prestigiados periódicos internacionais da Ciência Política testaram a hipótese de que a disparidade de gênero entre os autores de artigos era determinada por discriminações nas avaliações de submissões. Os resultados, entretanto, não a confirmaram. Um dos maiores problemas das assimetrias entre homens e mulheres, no que tange à publicação em revistas, parece continuar sendo a menor proporção de envio de textos de autoria feminina, o que foi constatado em incontáveis casos (Peterson, 2018; Samuels, 2018; König e Ropers, 2018; Tudor e Yashar, 2018). No Brasil, a Dados – Revista de Ciências Sociais evidenciou o entrave em nota editorial recente: 60% dos artigos submetidos foram assinados por homens, enquanto apenas 40% por mulheres (Brigel, 2016).
O artigo ora apresentado pretende contribuir para as reflexões sobre desigualdades na Ciência Política no contexto brasileiro, revelando de modo exploratório as assimetrias de gênero, raça e região geográfica em um posto elitizado da área, a docência dos programas de pós-graduação. Mesmo que não seja possível assumir que o conhecimento produzido no interior de uma disciplina acadêmica reflita de modo imediato o perfil social de seus praticantes, é difícil defender que não haja qualquer interação entre essas variáveis. A relação entre inclusão de grupos específicos e consolidação de novas temáticas parece valer, por exemplo, para a questão racial.
A branquitude histórica da Ciência Política brasileira se reflete na ausência quase completa de estudos sobre a questão racial na área. Levantamentos recentes mostram que pioneiros como Wanderley Guilherme dos Santos, Bolívar Lamounier, Amauri de Souza e Glaucio Soares empreenderam pesquisas sobre a interface entre raça e política ainda nas primeiras décadas de institucionalização da disciplina (Campos, 2015; Rodrigues et al., 2017). Contudo, a temática não se consolidou como subárea, ao contrário do que ocorreu, mesmo que lentamente, com os estudos de gênero, o que provavelmente reflete o número exíguo de cientistas políticos pretos e pardos, como veremos a seguir. Antes, porém, apresentamos a metodologia empregada no trabalho.7
Metodologia
A base de dados utilizada neste artigo foi obtida por meio de raspagem da Plataforma Sucupira, que contém os resultados de acompanhamento do Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG). Mantida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a página permite consultar as avaliações de programas de pós-graduação, bem como as informações sobre o corpo docente que integra cada uma dessas instituições.8 Com a finalidade de analisar a Ciência Política e estabelecer alguns paralelos com as outras duas grandes áreas das Ciências Sociais, o começo do nosso trabalho foi dividido em duas etapas: primeiro selecionamos todos os cursos de mestrado e doutorado creditados pela Capes nas áreas de (a) Ciência Política e Relações Internacionais, (b) Sociologia e (c) Antropologia. Posteriormente, em outubro de 2017, baixamos as listas de professores permanentes vinculados a eles.
Para determinar a variável raça, empregamos a técnica da heteroclassificação múltipla, bastante utilizada e discutida em estudos de relações raciais quando não se tem acesso direto à autoidentificação dos indivíduos (Muniz, 2012; Silva, 1999; Bastos et al., 2008). O método consiste na atribuição de pertença racial por meio da análise de fotografias disponíveis na internet. O procedimento de atribuição é feito em vários estágios para garantir maior grau de intersubjetividade e tem como referência as categorias de cor definidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – branca, preta, parda, indígena e amarela. Na primeira etapa, três pesquisadores codificam todo o material. Em seguida, separamos os casos consensuais daqueles sobre os quais há dissenso. Passamos então para a recodificação das dúvidas por outros pesquisadores, baseada, se possível, na coleta de mais material fotográfico. Os remanescentes são incorporados ao rótulo outros, no qual são incluídos também os poucos professores dos quais não obtivemos registro de imagem, ou os grupos raciais que não alcançaram percentual significativo. Para facilitar a exposição, adotamos procedimento comum na literatura especializada e apresentamos os dados somando pretos e pardos na categoria não brancos.
Enquanto o método usado para a determinação da variável raça exigiu bastante trabalho humano, a imputação do gênero foi em grande medida computacional, assentada em um pacote de programação que atribui gênero a nomes por meio de um cálculo estatístico. Esse cálculo é construído com referência à lista de frequência de registros de nascimento disponibilizada pelo IBGE no sistema de dados abertos do Governo Federal.9 Nomes mais ambíguos ou não identificados pelo algoritmo foram classificados manualmente a partir das fotos e outras informações do docente. Por fim, a região de procedência dos professores, também foi quantificada caso por caso.
Resultados
A Ciência Política evoluiu tardiamente se comparada à Sociologia e à Antropologia. A criação de pós-graduações começou lenta e a conquista da nota máxima (7) nas avaliações da Capes só aconteceu em 2010 (Marenco, 2014, 2015, 2016; Leite e Codato, 2013).10 Atualmente, devido em parte à expansão dos programas de Políticas Públicas e de Estudos Estratégicos, a disciplina chegou a ultrapassar a área de Antropologia em número de cursos de mestrado e doutorado em exercício, embora ainda fique atrás da Sociologia.11 Pouco se sabe, porém, sobre o perfil de gênero, raça e região de origem de seus membros.
O Gráfico 1 explicita que a Ciência Política é a área com presença masculina mais elevada entre os docentes (67%), enquanto a Sociologia é mais equilibrada (53%) e a Antropologia tem leve predominância de mulheres (52%). O padrão mais feminizado das áreas correlatas à Ciência Política é mais uma característica que pode ser ressaltada como partilhada entre distintos contextos nacionais, dos países latino-americanos aos norte-americanos e europeus (Carpiuc, 2016).

Fonte: Elaborado pelos autores com base em dados da Plataforma Sucupira.
Gráfico 1 Gênero dos docentes dos programas de pós-graduação nas grandes áreas de Ciências Sociais
A intensa predominância masculina praticamente não se altera nem quando as instituições de mestrado e doutorado de Ciência Política e Relações Internacionais são vistas separadamente. As exceções ficam a cargo do programa de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), bem como das pós-graduações de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc), exemplos em que o total de professoras mulheres fica entre 54% e 58%. Não obstante, 25 instituições têm população masculina de docentes igual ou superior a 60%, com dois departamentos exclusivamente compostos por homens: o mestrado de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF) e o mestrado e doutorado em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Ainda que as assimetrias entre homens e mulheres nas posições de ensino das pós-graduações sejam significativas, trabalhos que ponderam a relação do poder público com a evolução institucional da Ciência Política não costumam problematizar os impactos das questões de gênero.12 Ao quantificar a produção de docentes em revistas de qualidade como um dos fatores para aferir nota aos programas de doutorado e mestrado, a Capes, por exemplo, não desconta o período em que as mulheres ficam em licença maternidade. Recentemente, o projeto Parent in Science mostrou que a taxa de publicações de mulheres é afetada pelo cuidado com os filhos recém-nascidos. O estudo concluiu que 81% das entrevistadas percebia consequências negativas da gravidez na produtividade mensurada pelas agências de fomento e na concessão de recursos para trabalhos futuros (Andrade, 2018). Ter filhos, portanto, pode representar um atraso na progressão de carreira para mulheres, não só pela desigual divisão do trabalho doméstico e de cuidados, como também pelo descuido dos órgãos públicos em considerar as diferenças de socialização por gênero.13
Além disso, os centros de ensino e pesquisa que competem por recursos podem se tornar ambientes hostis para as gerações que se aproximam de temporadas em licença maternidade ou que se enquadram nessas expectativas de gênero. Como os financiamentos para as universidades dependem de resultados quantificáveis, a possibilidade de perda momentânea de força de trabalho acaba parecendo um prejuízo à coletividade. Ademais, a faixa etária do grupo feminino durante o período de formação em graduação e pós-graduação é justamente a da época de maior fertilidade, o que eventualmente cria barreiras para a inserção profissional de mulheres, visto que os concursos para cargos docentes frequentemente reproduzem exigências de produtividade determinadas pelas agências de fomento.
Para adentrar e se manter nos quadros profissionais de instituições acadêmicas, as mulheres que escolhem a maternidade fatalmente precisam trabalhar redobrado, superar discriminações ou contar com o bom senso dos pares. Efeitos peculiares dessas questões, ao grupo de cientistas políticas, ainda precisam ser objeto de maior aprofundamento. O ponto principal é que a Capes simplesmente desconsidera a equidade de gênero como um item de avaliação da pós-graduação. O que não fornece nenhum incentivo para que a inserção de mulheres seja tratada como uma prioridade.
Apesar desses fatores adversos, é importante ressaltar que não há correlação entre a proporção de docentes mulheres nos programas de pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais e a avaliação que eles recebem. Dentre todos os casos que analisamos para a disciplina, sinalizam isso, por exemplo, a presença de professoras nos cursos de mestrado e doutorado de excelência (nota máxima na Capes), que pode ser uma das mais baixas do Brasil, como na Universidade de São Paulo (apenas 23%), ou uma das mais altas, como na Universidade Federal de Minas Gerais, que tem 47% de docentes mulheres.
Mais severa que a desigualdade de gênero, todavia, é a desigualdade racial, como revela o Gráfico 2, que contém a distribuição de docentes em programas de pós-graduação de acordo com o grupo de cor ao qual pertencem. Nas três grandes áreas das Ciências Sociais a dominância de brancos é da ordem de quatro para um, com a Ciência Política e a Antropologia praticamente empatadas e a Sociologia levemente menos desigual.

Fonte: Elaborado pelos autores com base em dados da Plataforma Sucupira.
Gráfico 2 Raça dos docentes dos programas de pós-graduação nas grandes áreas de Ciências Sociais
As assimetrias de raça e gênero se prestam quase que perfeitamente à comparação no Brasil, pois ambas dividem a sociedade ao meio: 51,6% de mulheres para 48,4% de homens, e 54,9% de não brancos (pretos e pardos) para 44,2% de brancos.14 Ou seja, as três áreas das Ciências Sociais revelam alto grau de desigualdade racial, pois em seus quadros docentes de pós-graduação os brancos alcançam quase o dobro de sua proporção demográfica. No outro extremo, não brancos são severamente sub-representados, com menos de um quarto de sua proporção demográfica na Ciência Política e menos de um sexto na Antropologia.
Quatro programas de pós-graduação da área de Ciência Política e Relações Internacionais são integrados apenas por professores brancos: Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC, Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Além disso, diferentemente da distribuição de gênero, na qual havia ao menos três programas de instituições com maior presença feminina – na Ufrgs, na UnB e na Ufsc –, em nenhum dos casos analisados a participação de não brancos é minimamente equilibrada.
A desigualdade racial na pós-graduação em Ciência Política certamente é impactada pela alta assimetria da distribuição dos programas e professores pelas diferentes regiões do país. Mas as diferenças geográficas estão longe de explicar a participação desproporcional dos grupos raciais, como ajuda a ilustrar o Gráfico 3.

Fonte: Elaborado pelos autores com base em dados da Plataforma Sucupira.
Gráfico 3 Distribuição de raça dos docentes de pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais por região
Os autodeclarados brancos no Sudeste somam 55,2% da população da região, mas na pós-graduação de Ciência Política, esse contingente corresponde a 83% dos docentes credenciados. Há, portanto, uma discrepância substantiva, de quase trinta pontos percentuais na representatividade dos brancos na disciplina quando comparada à realidade. Na região Sul, os brancos perfazem 78,5% da população, mas 89,2% dos professores de mestrado e doutorado da área. A maior disparidade, por fim, está no Nordeste. Nessa região, pretos e pardos somam quase 69% da população e apenas 27,6% dos que lecionam na pós-graduação. Em suma, a desigualdade racial varia de região para região, mas em todos os casos ela é pronunciada.
Considerações finais
O objetivo deste trabalho foi contribuir às análises sobre o desenvolvimento da Ciência Política brasileira a partir da observação de aspectos demográficos da comunidade acadêmica frequentemente subestimados: os perfis de gênero, raça e região geográfica dos docentes. Para tal, classificamos os professores dos programas de pós-graduação nacionais e analisamos características institucionais. Constatamos uma substantiva desigualdade de gênero na disciplina, seja ela medida em relação às proporções de homens e mulheres na população geral do país, que tem ligeira superioridade numérica feminina, ou em relação às áreas de Sociologia e Antropologia, bastante equilibradas nesse quesito. Na Ciência Política existem praticamente dois homens para cada mulher em atividade docente.
A desigualdade racial, contudo, é bem mais contundente. No Brasil, a média verificada é de aproximadamente quatro professores brancos para um não branco lecionando nos cursos de mestrado e doutorado em Ciência Política, padrão que se manifesta de modo similar nas outras duas grandes áreas das Ciências Sociais. Os brancos constituem maioria em quase todos os programas de pós-graduação, independentemente da localização das instituições. A assimetria racial nos quadros docentes de regiões mais desenvolvidas economicamente e mais brancas, como o Sudeste e o Sul, que reúnem a maioria dos centros de ensino e pesquisa, é mais alarmante que a das demais regiões, em números absolutos. Por outro lado, é possível sugerir que a presença superior de não brancos na população do Nordeste, Norte e Centro-Oeste praticamente cancela a relativa maior proporção desse grupo entre os docentes dessas regiões. Em suma, a desigualdade racial é intensa em todo país.
Ainda que o presente trabalho tenha sido um primeiro esforço para mapear e discutir as assimetrias na Ciência Política brasileira, dados estatísticos externos permitem formular algumas hipóteses para orientar pesquisas futuras que explorem as causas do contexto de desigualdades. Em 2018, mulheres eram maioria entre os graduandos de Instituições de Ensino Federais (Ifes), 54,6%, e não brancos também, 51,2% (Gomes et al., 2019). Por que será que o nível de inclusão desses grupos entre os professores de pós-graduação é diferente? A primeira hipótese explicativa é que a inserção de mulheres brancas, quando comparada à da população não branca, no Ensino Superior é mais antiga e extensa, o que favorece o incremento da presença feminina entre a elite acadêmica dos cursos de mestrado e doutorado. Os não brancos, por sua vez, ganharam maior acesso à formação universitária com o advento das cotas raciais, que nas Ifes foram implementadas somente a partir de 2005 (Machado, Eurístenes e Feres Júnior, 2017).
A segunda hipótese para aprofundar a diferença proporcional dos grupos sub-representados, que não cancela a primeira, é a de que não brancos sofrem formas de discriminação mais renitentes que mulheres brancas ao longo da carreira acadêmica. Certamente a maior presença de não brancos na graduação e na pós-graduação, que também têm incorporado cotas raciais, por mais tempo, vai nos permitir testar parcialmente essa pressuposição em breve, isto é, se vislumbramos apenas uma tendência de natureza demográfica ou se há mecanismos ativos de segregação na educação superior explicados por racismo.
É preciso, ademais, explorar os determinantes que tornam a Ciência Política a mais masculina das grandes áreas das Ciências Sociais. Trabalhos como o de Kantola (2008), referidos em seção anterior do texto, também são importantes agendas de pesquisa para as próximas avaliações sobre a disciplina no Brasil. De qualquer forma, é imprescindível atentar para as múltiplas consequências dessas desigualdades, desde a mais básica injustiça social até problemas epistêmicos, como a desvalorização dos estudos de gênero e raça do temário de subáreas de pesquisas na Ciência Política. O primeiro passo para começarmos a sanar essas assimetrias é tomá-las seriamente como objeto de investigação, tal como procuramos fazer na presente contribuição.