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Chatbots para a formação docente: novas possibilidades de aprendizagem em rede

Chatbots for teacher training: new possibilities for network learning

Chatbots para la formación de profesores: nuevas posibilidades para el aprendizaje en red

Resumo:

O presente texto é fruto de uma pesquisa denominada “Fact-checking education: identificação, produção e combate a narrativas nas redes”, que pretende compreender o contexto da emergência das fake news e suas repercussões, para desenvolver metodologias de pesquisa-formação na cibercultura (Santos 2015Santos, Edméa. 2015. Pesquisa-formação na cibercultura. Santo Tirso: Whitebooks.) em tempos de pós-verdade (Santaella 2018Santaella, Lúcia. 2018. A pós-verdade é verdadeira ou falsa. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores Editora.). Apresentamos aqui usos formativos de chatbots para a mediação docente com praticantes culturais através do encadeamento de narrativas e de imagens produzidas em contexto de pesquisa. Partimos do repertório teórico-metodológico da pesquisa-formação na cibercultura para a proposição do dispositivo de pesquisa “Reglus chatbot” para subverter os usos dos dispositivos utilizados em nosso cotidiano e compreender outras ambiências formativas no ciberespaço. O campo da pesquisa é o cotidiano da disciplina “Informática na Educação” do curso de Pedagogia a distância da Uerj, em que investigamos novas formas de pensar a formação docente em rede.

Palavras-chave:
Pesquisa-formação na cibercultura; Docência online; Fake news ; Chatbots ; Algoritmos

Abstract:

The present text is the result of a research called “Fact-checking education: identification, production and combat against narratives in networks”, which aims to understand the context of the emergence of fake news and its repercussions, in order to develop research-training methodologies in cyberculture (Santos) in times of post-truth (Santaella). Here we present formative uses of chatbots for teaching mediation with cultural practitioners through the linking of narratives and images produced in the context of research. We started from the theoretical-methodological repertoire of research-training in cyberculture to propose the research device “Reglus chatbot” to subvert the uses of devices used in our daily lives and understand other formative environments in cyberspace. The field of research is the daily routine of the subject “Informatics in Education” of the Pedagogy course at a distance from Uerj, where we investigate new ways of thinking about teacher education in a network.course at Uerj, in wich we investigate new ways of thinking about networked teacher education.

Keywords:
Research-training in cyberculture; Online teaching; Fake news; Chatbots; Algorithms

Resumen:

El presente texto es el resultado de una investigación denominada “Educación en verificación de hechos: identificación, producción y combate a narrativas en redes”, que tiene como objetivo comprender el contexto del surgimiento de las noticias falsas y sus repercusiones, con el fin de desarrollar investigaciones. Metodologías de formación en cibercultura (Santos) en tiempos de posverdad (Santaella). Aquí presentamos usos formativos de chatbots para la enseñanza de la mediación con practicantes culturales a través de la vinculación de narrativas e imágenes producidas en el contexto de la investigación. Partimos del repertorio teórico-metodológico de la investigación-formación en cibercultura para proponer el dispositivo de investigación “Reglus chatbot” para subvertir los usos de los dispositivos utilizados en nuestra vida diaria y comprender otros entornos formativos en el ciberespacio. El campo de investigación es la rutina diaria de la asignatura “Informática en la educación” del curso de Pedagogía a distancia de la Uerj, en el que investigamos nuevas formas de pensar sobre la formación del profesorado en red.

Palabras clave:
Investigación-formación en cibercultura; Enseñanza online; Noticias falsas; Chatbots ; Algoritmos

Introdução

Este artigo tem como objetivo apresentar o dispositivo de pesquisa-formação Reglus chatbot, que pretende desenvolver uma nova proposta de formação docente para as mídias com professores em contexto de educação online. O presente texto é fruto de uma pesquisa que visa compreender o contexto da emergência das fake news e suas repercussões, para desenvolver metodologias de pesquisa-formação na cibercultura (Santos 2005Santos, Edméa. 2005. Educação online: cibercultura e pesquisa-formação na prática docente. Tese em Educação, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Bahia.; 2015Santos, Edméa. 2015. Pesquisa-formação na cibercultura. Santo Tirso: Whitebooks.; 2019Almeida, Wallace C. e Edméa O. Santos. 2019. Autorias colaborativas via aplicativos em rede: práticas formativas em atos de currículo. In App-education: fundamentos, contextos e práticas educativas luso-brasileiras na cibercultura, organizado por Cristiane de Magalhães Porto e Edméa Santos, 171-87. Salvador: Edufba.) em tempos de pós-verdade (Santaella 2018Santaella, Lúcia. 2018. A pós-verdade é verdadeira ou falsa. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores Editora.; 2020Santaella, Lúcia. 2020. A semiótica das fake news. Verbum 9 (2): 9-25.).

Partindo da pesquisa nos/dos/com os cotidianos (Alves 2001Alves, Nilda. 2001. Decifrando o pergaminho – o cotidiano das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In Pesquisa no/do cotidiano das escolas – sobre redes de saberes, organizado por Inês Barbosa de Oliveira e Nilda e Alves, 13-38. Rio de Janeiro: DP&A.; 2009Alves, Nilda. 2009. Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas: sobre redes de saberes. Petrus. São Paulo.) como metodologia de trabalho, entendemos as narrativas como objeto material de pesquisa e de forma de comunicação da ciência. Assim, como pesquisadores cotidianistas assumidos, pesquisamos na cibercultura tendo a educação online como contexto, campo de pesquisa e dispositivo formativo, usando narrativas e imagens para “narrar a vida e literaturizar a ciência” e entendendo “que para comunicar novas preocupações, novos problemas, novos fatos e novos achados é indispensável uma nova maneira de escrever, que remete a mudanças muito mais profundas” (Alves 2001Alves, Nilda. 2001. Decifrando o pergaminho – o cotidiano das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In Pesquisa no/do cotidiano das escolas – sobre redes de saberes, organizado por Inês Barbosa de Oliveira e Nilda e Alves, 13-38. Rio de Janeiro: DP&A., 13-16).

Desse modo, apresentamos aqui usos formativos de chatbots para a mediação docente com praticantes culturais (Certeau 2014Certeau, Michael. 2014. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes.) através do encadeamento de narrativas e de imagens produzidas em contexto de pesquisa. Partimos do repertório teórico-metodológico da pesquisa-formação na cibercultura para a proposição do dispositivo de pesquisa “Reglus chatbot” para subverter os usos dos dispositivos utilizados em nosso cotidiano e compreender outras ambiências formativas no ciberespaço.

A partir dessas considerações iniciais, nas quais introduzimos a problemática, apresentamos a proposta e a opção metodológica para o texto, organizamos o artigo em mais três outras seções conforme demonstramos a seguir: A primeira “o epicentro de uma infodemia”, narra os engendramentos da utilização de fake news como principal catalisador de transformação das redes no epicentro da infodemia da Covid-19. Relacionamos inteligência artificial e algoritmos a partir de uma nova lógica comunicacional estão na segunda seção, intitulada “O jogo da imitação”. E, “Prazer, meu nome é Reglus” introduz a nossa proposta de prática pedagógica inspirada na cibercultura para a bricolagem de uma diversidade de dispositivos de pesquisa-formação. Por fim, concluímos sugerindo ser preciso formar educadores ativistas que sejam capazes de combater a desinformação e de conscientizar a sociedade sobre a importância dos dispositivos de propagação da verdade para se idealizar projetos políticos e pedagógicos em que os seres humanos engajados sejam indivíduos livres e pensantes.

O epicentro de uma infodemia

Não estamos apenas lutando contra uma epidemia; estamos lutando contra uma infodemia.

—Tedros Adhanom Ghebreyesus2 2 World Health Organization (WHO). 2020. We're not just fighting an epidemic; we're fighting an infodemic. Fake news spreads faster and more easily than this #coronavirus & is just as dangerous, Twitter, Fev 15. 2020. https://twitter.com/WHO/status/1228683949796470784?s=20.

Na contramão do mundo, o Brasil disparou na corrida para ser o único país em que ainda transitam notícias falsas acerca de curas para a Covid-19 a partir de medicamentos que já foram descartados como ineficazes para o combate ao vírus.3 3 Bergamo, Mônica. 2020. Hidroxicloroquina não tem eficácia diz maior estudo brasileiro sobre a droga. Folha de S. Paulo, 23 jul. 2020. Acessado 15 out. 2020 https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/07/hidroxicloroquina-nao-tem-eficacia-diz-maior-estudo-brasileiro-sobre-a-droga.shtml. Segundo uma matéria da Folha4 4 Mello, Patrícia Campos. 2020. Brasil é único país onde fake news sobre cloroquina ainda circulam com frequência. Folha de São Paulo, 23 nov. 2020. Acessado 10 dez. 2020. https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/11/brasil-e-unico-pais-onde-fake-news-sobre-cloroquina-ainda-circulam-com-frequencia.shtml. a partir de dados atualizados do levantamento “Political (self) isolation” (Autoisolamento político),5 5 Machado, Caio C. V., João Guilherme Santos, Nina Santos e Luiza Bandeira. 2020. Scientific [Self] Isolation. International trends in misinformation and the departure from the scientific debate. Acessado 14 jan. 2021, https://laut.org.br/wp-content/uploads/2020/11/Political-Self-Isolation-vF.pdf. realizado pelo Laut, INCT.DD e pelo laboratório de pesquisa forense digital do Atlantic Council, esses tópicos ainda permanecem, “a ponto de tornar o ambiente de discussão diferente do resto do mundo”, em razão da política interna que polariza a discussão e abastece o motor de desinformação e ódio.

Mas a infodemia da Covid-19 não se limita às inumeráveis6 6 Pavione, Edson et al. 2020. Memorial dedicado à história de cada uma das vítimas do coronavírus no Brasil. Inumeráveis. Acessado 10 dez, 2020. https://inumeraveis.com.br. vidas ceifadas pelo vírus, nem mesmo ao coletivo de mais de 13 milhões de brasileiros contaminados. Ela busca se estender pelas redes em busca de novos hospedeiros e parasitar suas bolhas, se replicar, para, assim, gerar outras partículas virais em uma nova forja de vetores. Enganados por qualquer novo “farol” que prometa valorizar sua liberdade, esses transmissores extrapolam o direito de expressão e desfiguram a privacidade para tornar cada vez mais difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis quando se precisa. Agora é fato que a propagação de mentiras em larga escala e em um fluxo constante (firehosing)7 7 Le Monde Diplomatique. 2019. Firehosing: a estratégia de disseminação de mentiras usada como propaganda política. Le Monde Diplomatique, 14 jan. 2019. Acessado 17 jan. 2021. https://diplomatique.org.br/tv/firehosing-a-estrategia-de-disseminacao-de-mentiras-usada-como-propaganda-politica. é responsável pela criação das ondas de ceticismo que conhecemos hoje. Em meio a redes de ceticismo, como validar as evidências que comprovam a verdade? Ainda existe espaço para a verdade? De qual verdade estamos falando?

A marca distintiva da verdade fatual consiste em que seu contrário não é o erro, nem a ilusão, nem a opinião, nenhum dos quais se reflete sobre a veracidade pessoal, e sim a falsidade deliberada, a mentira. É claro que o erro é possível e mesmo comum com respeito à verdade fatual, caso em que ela não difere de modo algum da verdade científica ou racional (Arendt 2016Arendt, Hannah. 2016. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva., 247).

De acordo com Arendt (2016Arendt, Hannah. 2016. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva., 249), a mentira organizada é fruto de um ser de ação: o mentiroso. Esse não precisa perder tempo para tentar explicar em “digressões consideráveis” porque sua verdade é aquela que está em sintonia com os fatos (verdade fatual), pelo contrário, ele é um ator e está perfeitamente confortável sob a luz do palco. Movido pelo profundo desejo de transformação de sua realidade para alcançar seus objetivos, sua veracidade pessoal, ele pode dizer que está tudo perfeitamente bem, quando tudo vai de mal a pior.

Se a falsidade, como a verdade, tivesse apenas uma face, saberíamos melhor onde estamos, pois tomaríamos então por certo o contrário do que o mentiroso nos dissesse. Mas o reverso da verdade tem mil formas e um campo ilimitado (Montaigne 1874, 47 citado por Arendt 2016Arendt, Hannah. 2016. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva., 256).

Na era da corrupção dos sentidos, nos resta apenas ser capazes de ter convicção da nossa própria verdade? Seria ela suficiente? Se “penso, logo existo”, se não penso, sou apenas um robô desenhado para receber e replicar bits de desinformação pelas redes?

Historicamente, o processo de mediação dos saberes sempre esteve confiado ao professor e em tempos de pós-verdade sua atribuição não seria menos coerente. O professor é um navegador, versado nas artes do mar do conhecimento, constituído como tal para intermediar as miragens da visão dos inexperientes e prover orientação crítica que aponte sempre ao sul8 8 O argumento do uso do termo “sul” em oposição a “norte” está orientado para o que Boaventura chama de epistemologias do Sul, que equivale a defender a necessidade de produção e de validação de conhecimentos ancorados nas experiências de resistência de todos os grupos sociais que têm sido sistematicamente vítimas da injustiça, da opressão e da destruição causada pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado (Santos 2019, 17). de uma formação democrática. Mas precisa ser também alguém que esteja desperto e perceba que parar e refletir faz parte do processo, que aprenda como sobreviver em novos contextos a despeito de todos os ataques e perseguições e que, diante de novas oportunidades, consiga mapear novas formas de existência e de resistência na cidade e no ciberespaço.

Os arranjos até aqui apresentados constituem os engendramentos necessários para o estabelecimento de uma nova realidade em busca de um contexto generalizado de desinformação, assim como a sua tática de confrontamento. Desse modo, pretendemos inovar na proposição de um dispositivo de pesquisa-formação na cibercultura que busque compreender como identificar, combater e propor um contradiscurso às fake news. A atualidade do fenômeno e seus métodos de disseminação nos movem em busca de propormos, também, novas formas de compreender esse cenário complexo e múltiplo de dispositivos, redes e aplicativos de dispositivos móveis, abrangendo suas possibilidades de utilização, suas apropriações e subversões, para estabelecer em um contexto dialógico entre a cultura, as práticas e os dispositivos pelos quais somos atravessados todos os dias novos espaços formais e informais de aprendizagem. Afinal, se estamos sendo dominados e transformados pelas máquinas, seriam elas também as únicas capazes de nos despertar?

O jogo da imitação

Inteligência artificial é a ciência de fazer as máquinas fazerem coisas que exigiriam inteligência se fossem feitas por homens.

—Marvin Minsky9 9 Copeland, B. J. 2020. Brasil é único país onde fake news sobre cloroquina ainda circulam com frequência. Britannica, 11 ago. 2020. Acessado 10 dez. 2020. https://www.britannica.com/technology/computer-circuitry.

As máquinas também têm seu tipo próprio de eloquência, uma lógica própria de aprendizagem que se corresponde em muito com a nossa lógica comum. Essa racionalidade não ocorre despropositadamente, pois mesmo que a razão que permeia o machine learning (aprendizagem de máquina) indique a ideia de máquinas que aprendem “sozinhas”, não há como negar as marcas indeléveis da aferição e da afetação humana na base dos seus algoritmos. Além disso, como são desenvolvidas a partir e para a interação com a cognição humana em big data (grandes volumes de dados), as máquinas assimilam e percebem práticas humanas para formular padrões, substanciando ainda mais o impulso humano nos binários do digital.

Há uma aproximação cada vez mais intensa entre estes dois elementos, que já tiveram suas fronteiras bem delimitadas no passado: de um lado, o ser humano e suas emoções e consciência; de outro lado, as máquinas e sua natureza inerte. Atualmente estes dois extremos se aproximam e formam um campo de estudo novo que precisa lidar com realidades que, em um passado não muito remoto, eram impensáveis (Santos, Santos e Filippo 2019Santos, Edméa. 2019. Pesquisa-formação na cibercultura. Teresina: Edufpi., 998).

O advento do “humano biocibernético” não vai anunciar apenas a derrocada das barreiras do espaço e do tempo. Viciado pela indissociação do espectro humano no digital, vai propagar também a hominização dos seus valores em busca de propagar sua linhagem. O código não pode e nem consegue ser imparcial, e a exemplo do que ocorre com organismos vivos, o limiar da ética de suas atitudes estará condicionado à permanência de sua existência.

O corpo humano se tornou problemático e as inquietações sobre uma nova possível antropomorfia têm estado no centro dos questionamentos sobre o que é ser humano na entrada do século 21. A esse corpo sob interrogação estou aqui chamando de corpo biocibernético. Quero com isso indicar a consciência que foi gradativamente emergindo de um novo estatuto do corpo humano como fruto de sua crescente ramificação em variados sistemas de extensões tecnológicas até o limiar das perturbadoras previsões comunicativas dos sistemas maquínicos e dos organismos vivos, estes dois últimos eram considerados como estados funcionalmente equivalentes de organização cibernética (Santaella 2010Santaella, Lúcia. 2010. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus., 181).

Por ser, “por princípio e natureza, homofílico” (Santaella 2020Santaella, Lúcia. 2020. A semiótica das fake news. Verbum 9 (2): 9-25., 22), o ser humano rejeita naturalmente tudo aquilo que lhe parece diferente e abraça inconscientemente, como narciso, seu reflexo, ainda que incorra em sua própria morte. Apesar de prova fatual de que foi a variabilidade que nos permitiu chegar ao estado atual do fenótipo humano, a diferença ainda propaga a fobia de que é preciso perseguir para garantir a sobrevivência do eu. Viveu tanto tempo entre os muros do offline que a imensidão agora o ameaça.

O otimista diria que a internet “iria democratizar o planeta, conectando-nos a informações melhores e nos dando a capacidade de interferir sobre elas” (Parisier 2012Parisier, Eli. 2012. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Zahar., 7), mas ao ver o espectro de possibilidades, a escolha do antigo prisioneiro foi recriar os muros que lhe eram tão familiares. Uma vez prontos, eles irão abrigar todo um coletivo similar de indivíduos, informações e verdades que já foram previamente acordados pela ideologia inteligente do algoritmo que vai processar uma nova realidade onisciente da vontade de todos.

A democracia exige que os cidadãos enxerguem as coisas pelo ponto de vista dos outros; em vez disso, estamos cada vez mais fechados em nossas próprias bolhas. A democracia exige que nos baseemos em fatos compartilhados; no entanto, estão nos oferecendo universos distintos e paralelos (Parisier 2012Parisier, Eli. 2012. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Zahar., 9).

Diante disso, nem o que está contido pelos muros nem o seu exterior pode ser ignorado. A realidade está em mutação para compreender o derrame ininterrupto de dados que necessitam de processamento. Se estamos em uma bolha, as formas de filtragem neutralizam o sentimento de necessidade de validação, mas, se desejamos romper com elas, é preciso também mobilizar o letramento que nos permita transitar entre as contradições. E, talvez, a maior destas seja admitir o uso dessa mesma inteligência artificial como recurso metodológico para se discutir a produção do conhecimento.

Nossa nova existência nos ambientes em rede amplifica esse poder, também chamado de viés da confirmação, especialmente porque passamos a ser monitorados por algoritmos de inteligência artificial que, progressivamente, sabem mais de nós do que nós mesmos e só nos enviam aquilo que sabem e adivinham que queremos e gostamos. Basta um clique em uma informação e os algoritmos passarão a nos enviar, dia após dia, repetidamente, informações aparentadas àquilo que porventura nos interessou. E assim caminha a nossa participação nas redes. Pensar que possamos furar as bolhas ou nos livrarmos delas é ingênuo. Somos os signos que escolhemos e com os quais desejamos conviver (Santaella 2020Santaella, Lúcia. 2020. A semiótica das fake news. Verbum 9 (2): 9-25., 23).

Se somos os signos que escolhemos e com os quais desejamos conviver, seríamos também, como seres inteligentes, capazes de escolher os signos e manipular os algoritmos de modo a reescrever as complexas interfaces de simulação que buscam prever o paradigma estrutural da materialidade humana? Se essa for a questão que pode redefinir o fator humano na lógica da cibernética, a pergunta de Sonny10 10 Sonny é um robô personagem do filme Eu, Robô (2004, Mark, Laurence; Davis, John; Dow, Topher; Godfrey, Wyck, Overbrook Entertainment; Davis Entertainment). inspirado no livro homônimo de Isaac Asimov (1950). Na cena do interrogatório, sua humanidade é questionada pela capacidade de compor uma sinfonia ou de pintar uma obra-prima, ao que ele responde ao investigador humano: “Você consegue?”. ecoa em nossos ouvidos: você consegue?

Aqui tem lugar o jogo da imitação de Turing (1950)Turing, Alan Mathison. 1950. Computing machinery and intelligence. Mind 59 (236): 433-460. https://doi.org/10.1093/mind/LIX.236.433.
https://doi.org/10.1093/mind/LIX.236.433...
, mas agora é o humano que precisa provar ser dotado de consciência. Nós nos referimos não somente ao fato de estarmos cientes de nossa existência no ciberespaço, mas, para além disso, de sermos capazes de lograr as “artes de fazer”, as “astúcias sutis” e as “táticas de resistência” pelas quais se alteram os objetos e, principalmente, os códigos, reapropriando o espaço ao nosso uso e nosso jeito (Certeau 2014Certeau, Michael. 2014. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes.).

Desse modo, para além de destacar os desdobramentos negativos que essas máquinas inteligentes causam em nossa sociedade, é de nosso interesse buscar dialogar com essas invenções para inspirar novas práticas educativas. Se temos aqui um espelho da humanidade, precisamos compreender essa outra imagem de quem somos.11 11 Fernandes, Daniela. ‘Gigantes da web são novo Estado’, diz Pierre Lévy. Valor Econômico, 23 out. 2020. Acessado 15 dez. 2020. https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/10/23/gigantes-da-web-sao-novo-estado-diz-pierre-levy.ghtml. Se vivemos na cibercultura, não podemos pesquisar sem a efetiva imersão em suas práticas (Santos 2015Santos, Edméa. 2015. Pesquisa-formação na cibercultura. Santo Tirso: Whitebooks., 10; 2019, 20). Esvaziar o debate é permitir que o totalitarismo discurse sozinho. Fugir desse confronto não é apenas ignorar um opositor, mas é, especialmente nesse caso, ceder à oportunidade de dominar as ferramentas e fazer a verdade viralizar (Singer 2019Singer, Peter Warren. 2019. ‘Guerra de likes’: precisamos dominar as ferramentas e fazer a verdade viralizar. In Pós-verdade e fake news: reflexões sobre a guerra de narrativas, organizado por Mariana Barbosa, 66-73. Rio de Janeiro: Cobogó., 106).

Essas questões tornam-se cada vez mais urgentes, principalmente com a emergência da cibercultura. Além de conhecer a dinâmica dos processos comunicacionais, como são produzidas as mensagens circuladas? Quais os interesses dominantes? Cabe ao trabalho docente não só fazer a crítica aos meios, mas sobretudo arquitetar situações e ambiências para a produção desses meios. A cibercultura desafia o currículo e os professores para o exercício de autorias coletivas com seus alunos, pois, ao contrário das mídias de massa, através da internet, cada espaço ou cenário de aprendizagem pode se constituir como uma agência de notícias (Santos 2005Santos, Edméa. 2005. Educação online: cibercultura e pesquisa-formação na prática docente. Tese em Educação, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Bahia., 58).

Partindo dessa nova perspectiva comunicacional, intencionamos também ensinaraprender com/por esses dispositivos novas formas de saberfazer docente, atreladas ao contexto de uma pesquisa em educação com praticantes de uma disciplina. Como tais configurações cognitivas podem articular contextos de formação praticados através da produção de atos de currículo em interfaces de inteligência artificial coletiva? O relato a seguir revela alguns desses passos em que educação e cibercultura bricolam um dispositivo para compartilhamento e colaboração.

Prazer, meu nome é Reglus

A inteligência coletiva é um projeto. É uma utopia, uma direção de desenvolvimento para a evolução cultural.

É isso que devemos fazer

Pierre Lévy

“Eu sou um chatbot criado por professores para organizar um movimento que busca difundir opinião e informação, agregar pessoas e promover ações físicas e digitais para expressar um contradiscurso em relação aos problemas cotidianos causados pelas fake News.” É desse modo que o chatbot se percebe e responde quando lhe perguntam “quem é você?”, uma interação que parece bem simples, mas que resulta de muitas outras intenções e interações formativas entre docentesdiscentes em multiplicidades de redes.

Figura 1
Captura de uma conversa com o chatbot do Reglus no Messenger

Tendo a intenção de entender o contexto da emergência das fake news e suas repercussões na sociedade a partir da perspectiva da educação, foi fundante para a concepção do chatbot a escolha do campo de pesquisa. A disciplina “Informática na Educação” do curso de Licenciatura em Pedagogia a distância da Uerj (Cederj/UAB) vivencia a renovação periódica de seu desenho didático forjado nas mais diferentes redes educativas e espaços multirreferenciais de aprendizagem. Bricolando uma diversidade de aplicativos, softwares livres e proprietários em uma plataforma de aprendizagem a distância onde todos interagem criando e cocriando o conhecimento, buscamos compreender agora como formar docentes em tempos de pós-verdade no tsunami das fake news (Santaella 2018Santaella, Lúcia. 2018. A pós-verdade é verdadeira ou falsa. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores Editora., 38), uma opção que se manifesta dos estudos dos fenômenos que emergem da cibercultura e suas apropriações pelos praticantes culturais, bem como da proposição de um diálogo entre a formação docente e as novas formas de socialização e aprendizagem contemporâneas.

Para responder à questão de como desenvolver em nossa prática uma metodologia de fact-checking (verificação de fatos) que nos permita identificar, combater e propor um contradiscurso às fake news, nos amparamos em outras pesquisas, nas quais se investigou a potencialidade dos atos de currículo na perspectiva do App-learning (Almeida 2018Almeida, Wallace C. 2018. Atos de currículo na perspectiva de App-learning. Dissertação em Pedagogia, Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), RJ, Rio de Janeiro.) e, em estudos posteriores, da App-docência (Almeida e Santos 2018Almeida, Wallace C. e Edméa O. Santos. 2018. Autorias colaborativas via aplicativos em rede: APP-docência em atos de currículo. In Tecnologias e educação digital: diálogos contemporâneos, organizado por Ariston de Lima Cardoso, Adilson Gomes dos Santos e Eniel do Espírito Santo, 201-222. Cruz das Almas: UFRB., 2019Almeida, Wallace C. e Edméa O. Santos. 2019 Perspectivas de autoria em práticas de APP-Learning. Educação & Linguagem 22 (1): 95-118. https://doi.org/10.15603/2176-1043/el.v22n1p95-118.
https://doi.org/10.15603/2176-1043/el.v2...
). Mergulhamos nos desafios de uma pesquisa-formação na cibercultura em tempos de pós-verdade (Almeida e Santos, 2020aAlmeida, Wallace C. e Edméa O. Santos. 2020a. De memes a fake news: desafios de uma pesquisa-formação na cibercultura. Educação em Foco 25 (1): 173-196. https://doi.org/10.22195/2447-524620202530436.
https://doi.org/10.22195/2447-5246202025...
) e nas propostas de práticas pedagógicas na cibercultura inspiradas na verificação de fatos (Almeida e Santos 2020bAlmeida, Wallace C. e Edméa O. Santos.. 2020b. Reglus: uma proposta de prática pedagógica na cibercultura. Acta Scientiarum. Education 42(1): e52872. https://doi.org/10.4025/actascieduc.v42i1.52872.
https://doi.org/10.4025/actascieduc.v42i...
; Almeida 2020Almeida, Wallace C. 2020. Educação online e fake news: pesquisando a formação docente em tempos de pandemia. Encontro Virtual da Abciber 2020. Rio de Janeiro: Anais Eletrônicos. http://abciber.org.br/simposios/index.php/virtualabciber/virtual2020/paper/view/975/496
http://abciber.org.br/simposios/index.ph...
) e pudemos verificar que os desdobramentos desse fenômeno, ainda que embrionários, podem sugerir novas re(exi)sistências na interface universidade/cidade/ciberespaço.

Nesse novo espaço de atuação, os praticantes da disciplina são impulsionados a acompanhar as ressonâncias de suas verificações tomando nova materialidade para um contexto formativo público situado na web. Com o disparador de gerar um processo formativo coletivo e público, a autoria do praticante atua também de forma transformadora em sua percepção pessoal, embrionando no âmago do indivíduo uma “nova visão” consciente de sua interferência no ciberespaço.

Figura 2
Captura de uma praticante relatando sua experiência com o chatbot do Reglus

Esse fato pode ser verificado nas narrativas de “J” e “A”. Enquanto afirma que “apanhou um pouquinho” para ser capaz de dominar essa nova arte de fazer, “J” assume também que o seu processo educativo pessoal ainda necessitava de novos letramentos e dispositivos que fossem capazes de empoderar suas práticas para uma percepção de mundo que se propaga para além da universidade. Situações em que, sem mediação, nos impelem a retrair, congelar, estagnar, como afirma “R”.

Enquanto “A” relata o surgimento de uma “nova visão”, uma nova implicação ativista manifesta-se imediatamente em sua narrativa, indicando uma atualização na identificação com o fenômeno; ao nos abstemos da letargia e percebermos que no mundo em que estamos não podemos mais deixar que [as farsas] tomem conta da verdade e que coloquem o que querem na cabeça de todos, para nos assumirmos como parte ativa da resolução do problema, cabe a nós disseminar a coisa boa. Ela admite que a pesquisa e confronto de informações demanda tempo e trabalho, mas reforça que não podemos deixar que ela se perpetue erroneamente por aí. Uma vez liberto das falácias, é preciso viralizar a verdade. Portanto, assim como ela, precisamos formar, até mesmo na família e entre amigos, esse caminho do investigar para validar o que recebemos em qualquer canal de propagação de informação. O princípio da transformação é, então, instaurado na descoberta do indivíduo como autor de seus próprios signos.

Se lhe chamo “princípio de transformação” é porque esse sujeito sensível, vulnerável e ex/posto é um sujeito aberto a sua própria transformação. Ou a transformação de suas palavras, de suas ideias, de seus sentimentos, de suas representações, etc. De fato, na experiência, o sujeito faz a experiência de algo, mas, sobretudo, faz a experiência de sua própria transformação. Daí que a experiência me forma e me transforma. Daí a relação constitutiva entre a ideia de experiência e a ideia de formação. Daí que o resultado da experiência seja a formação ou a transformação do sujeito da experiência. Daí que o sujeito da experiência não seja o sujeito do saber, ou o sujeito do poder, ou o sujeito do querer, senão o sujeito da formação e da transformação (Larrosa 2011Larrosa, Jorge. 2011. Experiência e alteridade em Educação. Revista Reflexão e Ação 19 (2): 4-27. https://doi.org/10.17058/rea.v19i2.2444.
https://doi.org/10.17058/rea.v19i2.2444...
, 7).

Não seriam essas astúcias sutis verificáveis, sem a ação transformadora do ato de currículo. Partindo de uma perspectiva construcionista, os atos de currículo se configuram através de ações situadas de atores sociais que, portando e criando sentidos e significados em “dinâmica responsível e responsável, se atualizam como possibilidades de alteração de toda e qualquer cena curricular” (Macedo 2013Macedo, Roberto Sidnei. 2013. Atos de currículo e autonomia pedagógica: o socioconstrucionismo curricular em perspectiva. Petrópolis: Vozes., 429).

Se queremos compreender os processos pelos quais as pessoas constroem cotidianamente currículos, seus sentidos e significados, sejam essas pessoas técnicos, professores, gestores, coordenadores, estudantes, pais, líderes comunitários, entre outros atores sociais e institucionais, temos que ir, compreensivamente, ao encontro dos atos de currículo, suas realizações, seus motivos, suas crenças, seus pontos de vista e justificativas (Macedo 2013Macedo, Roberto Sidnei. 2013. Atos de currículo e autonomia pedagógica: o socioconstrucionismo curricular em perspectiva. Petrópolis: Vozes., 430).

Em atos em que se alteram objetos, códigos e indivíduos, reapropriando-se a percepção consciente no ciberespaço, criam-se novos usos e novos jeitos capazes de gerar outras vivências. Vivências essas que só podem ser percebidas quando há a mudança de paradigma do processo interativo coletivo. A utopia da inteligência coletiva é gerar na era digital o oposto de inteligência artificial.12 12 Fernandes, Daniela. 2020. ‘Gigantes da web são novo Estado’, diz Pierre Lévy. Valor Econômico, 23 out 2020. Acessado 15 dez 2020. https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/10/23/gigantes-da-web-sao-novo-estado-diz-pierre-levy.ghtml. Desse modo, a segunda etapa do projeto (que compreende a ação efetiva do chatbot) não busca usar algoritmos para desenvolver máquinas inteligentes, mas, em vez disso, usar esses dispositivos para gerar ambiências formativas de inteligência coletiva.

Em vez de ter palavras escritas com tinta em papel, você tem códigos digitais que não são totalmente materiais, é claro, mas que têm que estar em um computador em algum lugar. A quantidade de informação e qualidade da memória são melhores e é acessível de todo lugar. O que falta é a habilidade e educação para tirar o melhor dessas possibilidades.

A interação com o chatbot, que responde utilizando uma base de dados coletiva, facilita e melhora a disseminação da verdade fatual no ciberespaço. Temos agora esse dispositivo “consciente” que é o chatbot, atuando completamente inspirado em práticas de inteligência coletiva. Mas não se esgota aqui a sua importância. A mudança do paradigma comunicacional em relação com o dispositivo motiva a construção de uma conscientização ativista crítica em um coletivo acerca das notícias que ele recebe/compartilha em suas próprias redes.

Figura 3
Captura de uma praticante relatando sua experiência com o chatbot do Reglus.

Na narrativa da praticante “E”, percebemos como a mudança do olhar acerca de uma proposta pode subverter lógicas até então estruturadas nos usos regulares do cotidiano. Ao afirmar que ela já havia passado por essa experiência em canais de atendimento, e revelar que o fenômeno não é novo em sua prática cotidiana. Mas o uso “especializado” ou implicado do dispositivo na verificação de notícias, inspirado e fundamentado na sua própria produção, transforma o papel de mero utilizador de um chatbot, para a constatação de autoria de um processo formativo.

Ao se perceber materializada no dispositivo, “E” não conversa mais com um algoritmo, mas estabelece uma nova percepção dialógica de si ao aprender a controlar, produzir e gerenciar dispositivos de formação. Percebe agora a potência da iniciativa e denota a importância de “combater a cultura de propagação das fake news” como também divulgar a existência de “ferramentas que possam auxiliá-las nesse processo”. Portanto, é preciso veicular esse movimento de incentivo de autoria do fazer, do analisar, do pesquisar e do encontrar dados e fatos que possam contribuir para corroborar ou confrontar a desinformação. Esse é o ponto central dessa nova educação.13 13 Fernandes, Daniela. 2020. ‘Gigantes da web são novo Estado’, diz Pierre Lévy. Valor Econômico, 23 out. 2020. Acessado 15 dez. 2020. https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/10/23/gigantes-da-web-sao-novo-estado-diz-pierre-levy.ghtml.

Esse é o ponto central da nova educação. Você tem que aprender a controlar ou gerenciar sua atenção corretamente. Você precisa poder categorizar os dados corretamente, avaliar a confiança que pode dar para fontes de informação, ser capaz de comparar diferentes fontes. E tem que aprender a se comportar numa inteligência coletiva para trabalhar com outros a fim de transformar todos esses dados em conhecimento.

“E” resume em seu relato a realidade que percebemos em nossa pesquisa. Precisamos aprender como bricolar os saberes e as práticas para criar novas táticas de confrontamento. Somente assim teremos os dispositivos necessários para re(exi)sistir no ciberespaço tendo nas redes o ponto de partida para a convergência dos atos contra as maquinações que ameaçam nossa existência depois do fim pandêmico do mundo como conhecemos. Desse modo, percebemos que essas experiências de vida e formação, das quais nem fazíamos ideia da existência, podem proporcionar existências significativas para além da formação docente, dado que a dimensão da problemática da pós-verdade abrange todos os aspectos da vida humana.

A terceira etapa do projeto revela como a concepção de autoria de si na tessitura do chatbot autoriza praticantes para elaborar, como docentes, novas possibilidades de aprendizagem em rede. Esse processo pode ser verificado através da narrativa de pesquisa de um grupo de praticantes que acionou o aspecto colaborativo de divulgar a ciência e a troca entre pares, para produzir novas interações em redes de pesquisa.

Figura 4
Captura de uma praticante relatando sua experiência com o chatbot do Reglus

Desafiado a criar um contexto formativo de combate à fake news, um grupo de praticantes resolveu usar uma notícia como disparador de um evento formativo. Da leitura da notícia “Informação é a arma contra as fake news, diz criador do Fakepedia” surgiu a ideia de se entrar em contato com o pesquisador da Fakepedia e propor uma live14 14 Santos, Edméa O. 2020. Notícias: #livesdemaio… Educações em tempos de pandemia. Revista Docência e Cibercultura, jun. 2020. Acessado 15 nov. 2020. https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/re-doc/announcement/view/1109. formativa. Durante a transmissão, o grupo interagiu com o pesquisador para entender o processo formativo que originou o projeto Fakepedia, em busca de descobrir coletivamente soluções para a prática docente. Como identificar notícias falsas? Como criar táticas de confronto para reprimir o avanço do fenômeno e produzir a propagação de fatos? As perguntas que envolvem o cotidiano na cibercultura são também o motor da inovação das táticas de resistência.

A inteligência coletiva surge, portanto, da interação entre indivíduos singulares, que em perspectiva de conectividade em rede fazem trocas entre si e com o mundo através de experiências significativas, partindo do enfrentamento individual de um contexto dilemático para a conscientização coletiva ao aproximarem cada vez mais os pares em busca de soluções.

Assim, podemos perceber que, para além da criação, manutenção e utilização de um chatbot, o diálogo coletivo acerca das possibilidades do uso da inteligência artificial fomenta ambiências formativas próprias para o surgimento da consciência coletiva. Ao contemplarmos as narrativas compartilhadas pelos praticantes durante a live, percebemos como todos se percebem autores e propagadores de práticas cotidianas de “enfrentamento”.

No trabalho para produzir artefatos formativos através de suas próprias narrativas e imagens produzidas em contexto de pesquisa, os praticantes bricolam o espaçotempo da aula, da cidade e da vida para produzir novas lógicas investigativas que extrapolam o âmbito da pesquisa. Na medida em que a troca entre os praticantes e o pesquisador nos revelou tantas perspectivas de interação e de colaboração, buscamos entrar em contato com esse pesquisador para entender como nossas pesquisas podem colaborar para a produção de novos frontes de propagação.

Desse modo, através da interação dos praticantes, subvertemos até mesmo mídias de propagação de desinformação (como o YouTube), para agir no combate à pós-verdade. Como é do nosso interesse colaborar em tantos espaços de formação quantos forem possíveis, assim também é inestimável a ajuda de parceiros de pesquisa em nosso próprio processo formativo. Divulgamos aqui nossa “midiateca” onde buscamos centralizar toda a produção audiovisual produzida em contexto de pesquisa.

Figura 5
Midiateca15 15 Disponível também via link. Acessado 15 nov. 2020. http://reglus.me/midiateca. de pesquisa do dispositivo do Reglus

Conclusão

Apesar do contexto de crise existencial da verdade e da proliferação de mecanismos de manipulação da opinião pública através da atuação coordenada de ação de propagação de políticas ultrapartidárias, surgem também indivíduos e dispositivos implicados no ativismo de produzir autoria colaborativa.

Em meio às ressonâncias desse movimento, os praticantes da disciplina criam e ressignificam signos de modo a responder com atos, como pensar a formação docente na era da pós-verdade, em específico, na cidade e no ciberespaço nas interfaces com que interagimos hoje. Da atual necessidade de se combater à infodemia e de conscientizar a sociedade sobre a importância dos dispositivos de propagação da verdade, concluímos que, mais do que nunca, as mobilizações aqui apresentadas se tornam potentes para debater como podemos articular saberes em redes de inteligência colaborativa.

Uma vez que a formação de professores engajados na criação e na propagação de interfaces digitais pode ser o melhor caminho para se idealizarem projetos políticos e pedagógicos que possam garantir a propagação de práticas democráticas, é imprescindível que tenhamos os letramentos necessários para produzir formação crítica.

As pessoas formam opiniões e crenças por razões complexas e melhor equipar os cidadãos com habilidades cognitivas para analisar conteúdos e contextos não significa que eles o farão em todos os momentos ou que razões cognitivas podem vencer fatores morais e socioemocionais. Portanto, auxiliar as pessoas a desenvolver uma formação crítica para as mídias não deve ser uma panaceia contra todas as doenças digitais, mas deve ser a primeira defesa.16 16 Chapman, Martina. 2017. Fake news, echo chambers and filter bubbles: what you need to know. Better Internet for Kids, 29 jun. 2017. Acessado 15 nov. 2020 https://www.betterinternetforkids.eu/practice/awareness/article?id=1990814.

Todos precisam estar envolvidos nesse processo de reconquista do lugar da verdade, mobilizando letramentos individuais e coletivos que nos ajudem a perceber como, onde e quando os discursos são produzidos. Esse deve ser o nosso principal objetivo: gerar um processo formativo compreendido pela abstenção das práticas reativas para a discussão do ato como potência. Como não existe imparcialidade, e como todos são orientados por uma base ideológica (Freire 2011Freire, Paulo. 2011. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra.), a nossa resistência precisa ser motivada pela lógica de aprender, de cocriar e de reproduzir uma infinidade de projetos (outros), em que cada intencionalidade, cada discurso político e ideológico, crie e propague os usos que inovem visando garantir que se autorizem os sujeitos, que se potencialize o sentimento de pertença, de colaboração e de cidadania. Nessa perspectiva, nosso chatbot já iniciou o diálogo e aguarda você para ampliar nossa conversa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2020
  • Aceito
    29 Abr 2021
  • Publicado
    24 Ago 2021
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