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Espaço público e gestão da segurança urbana: um estudo sociológico da célula de proteção comunitária do bairro Jangurussu

Public space and urban security management: a sociological study of the community protection cell of Jangurussu

Gestión del espacio público y la seguridad urbana: un estudio sociológico de la celda de protección comunitaria del Jangurussu

Resumo:

Em muitas cidades no mundo as administrações municipais têm construído mecanismos de segurança com o intuito de reativar os usos públicos do espaço urbano. Em Fortaleza, Ceará, Brasil, a gestão do Prefeito Roberto Cláudio (2017-2020) criou o Programa Municipal de Proteção Urbana que instituiu as células de proteção comunitária (torres de observação, drones, câmeras de vigilância e patrulhamento miliar ostensivo, com guarda municipal e polícia militar circulando em bicicletas e motos) em lugares com altas taxas de criminalidade. Este artigo discute as transformações ocasionadas por esse modelo de “proteção de proximidade” no bairro Jangurussu, território da periferia da cidade que concentra o maior número de mortes de adolescentes. A metodologia baseia-se em pesquisa documental, observação do cotidiano do bairro e entrevistas semiestruturadas com jovens que utilizam o Centro Urbano de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (Cuca), localizado nas proximidades da torre de observação, para saraus, festas de reggae e apresentações de rap. Os resultados desta pesquisa sugerem que a territorialização militarizada da política de segurança urbana, em vez de favorecer, contribui para enfraquecer os usos intensos do espaço urbano ao inibir e controlar a presença dos jovens no raio de ação da torre de observação.

Palavras-chave:
Gestão da segurança; Espaço público; Campo; Contracampo; Arquitetura

Abstract:

In many cities around the world, administrations have built security mechanisms to reactivate public uses of urban space. In Fortaleza, Ceará, Brazil, Mayor Roberto Cláudio's management (2017-2020) created the Municipal Urban Protection Program which instituted community protection cells (observation towers, drones, surveillance cameras and ostensible militia patrolling, with municipal guard). and military police riding bicycles and motorcycles) in places with high crime rates. This paper discusses the transformations caused by this “proximity protection” model in the Jangurussu neighborhood, a territory on the outskirts of the city that concentrates the highest number of adolescent deaths. The methodology is based on documentary research, direct observation of the daily life of the neighborhood and interviews with young people using the Urban Center for Culture, Art, Science and Sport (Cuca), located near the observation tower, for soiree, reggae parties. and rap performances. The results of this research suggest that the militarized territorialization of urban security policy, instead of favoring, contributes to weaken the intense uses of urban space by inhibiting and controlling the presence of young people in the observation tower's range.

Keywords:
Safety management; Public space; Field; Counter field; Architecture

Resumen:

En muchas ciudades del mundo, las administraciones han creado mecanismos de seguridad para reactivar los usos públicos del espacio urbano. En Fortaleza, Ceará, Brasil, la administración del alcalde Roberto Cláudio (2017-2020) creó el Programa Municipal de Protección Urbana que instituyó celdas de protección comunitaria (torres de observación, drones, cámaras de vigilancia y patrulla de la milicia ostensible, con guardia municipal). y la policía militar montando bicicletas y motocicletas) en lugares con altas tasas de criminalidad. Este artículo analiza las transformaciones causadas por este modelo de “protección de proximidad” en el barrio de Jangurussu, un territorio en las afueras de la ciudad que concentra el mayor número de muertes de adolescentes. La metodología se basa en la investigación documental, la observación directa de la vida cotidiana del vecindario y las entrevistas con los jóvenes que utilizan el Centro Urbano para la Cultura, el Arte, la Ciencia y el Deporte (Cuca), ubicado cerca de la torre de observación, para veladas, fiestas de reggae. y actuaciones de rap. Los resultados de esta investigación sugieren que la territorialización militarizada de la política de seguridad urbana, en lugar de favorecer, contribuye a debilitar los intensos usos del espacio urbano al inhibir y controlar la presencia de los jóvenes en el rango de la torre de observación.

Palabras clave:
Gestión de la seguridad; Espacio público; Campo; Contra-campo; Arquitectura

Introdução

No Brasil e no mundo espaços de lazer e consumo, de moradia, periferias urbanas e áreas históricas revitalizadas, diante da escalada dos índices de violência e do sentimento de medo e insegurança, utilizam-se cada vez mais de dispositivos de segurança e estruturas arquitetônicas para criar ambientes seguros e socialmente assépticos, chamadas aqui de arquiteturas da segurança. Inicialmente pensadas como modelos para espaços residenciais as chamadas gated communities proliferam pelas cidades, produzindo efeitos sobre a experiência moderna do espaço público, as interações cotidianas, as representações sociais sobre a vida nas cidades e sobre o imaginário social urbano.

Em todos esses lugares, as soluções urbanísticas encontradas são variadas, mas apresentam aspectos comuns no que diz respeito à forma urbana construída pelas novas gestões urbanas e pelos especialistas do urbanismo pós-moderno (Arantes 2001Arantes, Otília. 2001. Urbanismo em fim de linha e outros estudos sobre o colapso da modernização arquitetônica. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.). Se, como demonstrou Caldeira (2003)Caldeira, Teresa Pires do Rio. 2003. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. 2. ed. São Paulo: Ed. 34 Edusp., o ideal de espaço público moderno valorizava a diversidade e a abertura para o encontro com o outro como promessas de uma vida plena e segura, as cidades contemporâneas têm erigido arquiteturas que colocam a prova esses ideais. Essa nova arquitetura tem recebido nomes diversos: arquitetura do medo, arquitetura defensiva, arquitetura antimendigo, enclave fortificado, fortificação e arquitetura hostil (Caldeira 2003Caldeira, Teresa Pires do Rio. 2003. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. 2. ed. São Paulo: Ed. 34 Edusp. e Frangella 2009Frangella, Simone Miziara. 2009. Corpo urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São Paulo. São Paulo: Annablume.).

Este artigo2 2 Este artigo resultou do paper apresentado no 23° Congresso Internacional Alas 2019, Lima, Perú. pretende contribuir para alargar o escopo de conhecimento sobre as novas estratégias de segurança urbana concebidas pelas gestões das cidades contemporâneas. A cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará, se configura em espaço de análise ímpar tendo em vista ser uma das cidades mais violentas e desiguais do mundo e estar passando por uma espécie de laboratório de implantação de arquiteturas da segurança por meio do Programa Municipal de Proteção Urbana (PMPU) no que se refere, em particular, a construção de torres de vigilância em bairros com altos índices de violência, a exemplo do bairro Jangurussu, região pobre da periferia da cidade. Para alcançar esse fim, realizou-se pesquisa de campo no bairro e a aplicou-se de entrevistas semiestruturadas com jovens que utilizam o Centro Urbano de Arte, Cultura, Ciência e Esporte (Cuca) para suas sociabilidades.

No âmbito dos debates teóricos no interior das ciências sociais algumas configurações urbanas novas são tomadas como protótipos para as experiências de construção de novas arquiteturas de segurança urbanas. A chamada gentrificação urbana e as práticas de militarização das cidades (Souza 2008Souza, Marcelo Lopes de. 2008. Fobópole: o medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.) são consideradas por alguns cientistas sociais como o laboratório por excelência dessas novas estratégias urbanas. Cabe perguntar em que sentido a análise das políticas de gentrificação e da militarização urbana são úteis para a análise das periferias de cidades desiguais e violentas como Fortaleza, onde a pobreza e a degradação urbanas combinam-se com os altos índices de violência.

Segundo Leite (2004Leite, Rogério Proença. 2004. Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea. Campinas: Editora Unicamp., 53-54), a gentrificação designa, em um primeiro momento, os empreendimentos econômicos que selecionam alguns espaços da cidade como centralidades e os transformam em áreas de investimento material e simbólico a partir da conjugação das parcerias de atores públicos e privados. Os centros históricos das grandes metrópoles mundiais foram o campo de atuação primordial das políticas de gentrificação devido à carga simbólica que esses espaços possuem: áreas portuárias ou centrais e relíquias arquitetônicas capturadas pelas políticas de patrimônio histórico, como monumentos culturais.

Historicamente, de acordo com Smith (2006)Smith, Neil. 2006. A gentrification generalizada: de uma anomalia local à ‘regeneração’ urbana como estratégia urbana global. In De volta à cidade: dos processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dos centros urbanos, organizado por Catherine Bidou-Zachariasen, 59-87. São Paulo: Annablume., a gentrificação passou por algumas fases. Entre os anos 1950 e meados dos anos 1970, teria predominado o que o autor denomina de fase esporádica. De fins da década de 1970 até 1989, a sua consolidação. E, por último, desde 1994, a fase chamada pelo autor de generalização da gentrificação. As principais dimensões da atual fase são: a parceria público-privada; a penetração do capital financeiro, em uma de suas novas formas de extrair renda: a arquitetônica; a questão das lutas contra a gentrificação; a dispersão geográfica; e a generalização da gentrificação setorial.

Zukin (2000Zukin, Sharon. 2000. Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder. In O espaço da diferença, organizado por Antônio A. Arantes, 80-103. Campinas: Papirus., 83), em perspectiva similar, enumera duas formas típicas de paisagem urbana pós-moderna da gentrificação generalizada. Para cidades antigas, como Nova Iorque, Londres e Paris, as intervenções urbanas estão associadas ao enobrecimento. Retirar antigos moradores e usuários, como prostitutas ou homeless, com vistas a aumentar o capital simbólico de certas localidades para o aumento da acumulação de capitais desde a vinda de novos usuários, sobretudo turistas. A segunda paisagem modelar, que colabora para os mapeamentos pós-modernos essenciais de cultura e poder, é aquela presente em novas cidades como Los Angeles e Miami e que toma a forma do Walt Disney World, na Flórida. Certamente essas não são as únicas paisagens a caracterizar os cenários urbanos contemporâneos, mas são representativas dos modelos adotados para construí-los.

Em outro lugar (Maciel 2017Maciel, Wellington. 2017. Gentrification praieira: arquitetura, técnicas e movimentos corporais. O Público e o Privado 29: 33-54.), denominei os grandes empreendimentos inventados para o lazer da Praia do Futuro, região praiana a leste de Fortaleza, de barracas-complexos, espaços estilizados e liminares que misturam funções públicas e privadas, erguem barreiras arquitetônicas para isolar e limitar o acesso de sujeitos considerados sujos e perigosos. Como afirmei, além dessa função no espaço urbano, as barracas-complexos (espécies também de arquiteturas da segurança do lazer praiano) participam de uma peculiar forma de agenciamento do corpo praiano que se traduz em técnicas e expressões corporais específicas para o uso dos espaços enobrecidos empresariais. A arquitetura que melhor traduz essa nova investida sobre o corpo é a arquitetura lounge beach.

A semelhança de função entre as barracas-complexos e os tipos de “enclaves fortificados” analisados por Caldeira (2003Caldeira, Teresa Pires do Rio. 2003. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. 2. ed. São Paulo: Ed. 34 Edusp., 258-259) é visível: estes englobam escritórios, shoppings centers e uma quantidade variada de espaços adaptados ao consumo cultural e distinto de segmentos sociais em busca de status e a construção de símbolos que contribuam para demarcar distâncias e desigualdades sociais. Frangella (2005, 204), em registro semelhante, identifica a presença de uma “arquitetura antimendigo” difusa em São Paulo e táticas criadas pelos moradores de rua para contorná-la.

Mike Davis (2009Davis, Mike. 2009. Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles. São Paulo: Boitempo., 235), anos antes, foi o primeiro a apontar a novidade dos novos aparatos arquitetônicos nas cidades.:

Bem-vindo à Los Angeles pós-liberal, onde a defesa dos estilos de vida luxuosos se traduz pela proliferação de novas formas de repressão no espaço e no movimento […] Essa obsessão por sistemas de segurança física e, colateralmente, pelo policiamento arquitetônico das fronteiras sociais, tornou-se o espírito da época da reestruturação urbana.

Essa realidade de cidades fortificadas presente em vários lugares gentrificados é complementada pela noção de novo urbanismo militar cunhada por Stephen Graham (2016)Graham, Stephen. 2016. Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo. e quadros de guerra por Judith Butler (2015)Butler, Judith. 2015. Quadros de guerra: quando a vida é possível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.. Graham (2016Graham, Stephen. 2016. Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo., 127) lembra que as “arquiteturas tecnológicas da vida contemporânea e as geografias imperiais convergem no novo urbanismo militar” em muitas “cidades globais”. Contudo, é possível constatar em outras tantas cidades não imperiais em todo o mundo que este urbanismo militar apresenta facetas peculiares ao mesmo tempo em que reproduz tendências presentes em outros contextos urbanos.

Essas tecnologias de controle cada vez mais se diluem no pano de fundo dos ambientes urbanos, das infraestruturas urbanas e da vida urbana. Aplicam-se sobre e na extensão das paisagens urbanas do dia a dia, trazendo à tona estilos radicalmente novos de movimento, interação, consumo e política, de certa forma elas se tornam a cidade. (Graham 2016Graham, Stephen. 2016. Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo., 126).

Para Butler (2015)Butler, Judith. 2015. Quadros de guerra: quando a vida é possível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., o enquadramento de corpos matáveis posto em prática nas zonas de extermínio atuais reflete mudanças nas maneiras como as tecnologias de última geração da biopolítica compreendem a vida e morte. Nessa visão, alguns corpos são marcados para morrer em detrimento da vida de outros.

A segurança tecnológica e militarizada em Fortaleza: o caso da célula de proteção comunitária do Jangurussu

Segundo o documento oficial do Plano Municipal de Proteção Urbana da Prefeitura de Fortaleza (PMPU), a nova política de segurança urbana foi criada em sintonia com os dados sobre violência.3 3 Globo G1. 2018. Bom Jardim e Jangurussu são os bairros de Fortaleza onde mais jovens são assassinados, 22 maio 2018. Acessado em 13 set. 2019, https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/bom-jardim-e-jangurussu-sao-os-bairros-de-fortaleza-onde-mais-jovens-sao-assassinados.ghtml. Conforme o Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA), no ano de 2017 o estado do Ceará teve um número recorde de casos de violência, com 5.134 assassinatos. Na capital Fortaleza, foram 414 homicídios de jovens entre 10 e 19 anos. Entre os bairros mais violentos, o Jangurussu e a Barra do Ceará foram os mais violentos, ambos com o registro de 31 mortes.

Em 2016, ano de criação da atual política municipal de proteção urbana, entre os dez bairros com maiores índices de homicídios o bairro Jangurussu registrou 59 mortes de jovens. O objetivo do plano é atuar conforme a teoria prevencionista como forma de evitar o conflito e o delito. Para tal, são utilizadas técnicas preditivas, iniciativas socioeducativas, ações de desporto, de amparo ao usuário de drogas, bem como vigilância sistemática, eletrônica e ostensiva. Do ponto de vista estratégico, o plano informa que essa política inverte a lógica de que ações de defesa da comunidade devem partir do macro para o micro optando assim pela territorialidade definida.

Foi com base nessa “proteção de proximidade” que foi erguida, em fevereiro de 2018, a primeira célula de proteção comunitária no bairro Jangurussu, região pobre da periferia de Fortaleza com altas taxas de homicídio entre jovens. A “torre do Jangurussu”, como é mais conhecida, foi apresentada como “exemplo prático” a ser posteriormente estendido a toda a cidade. Cabe perguntar, do ponto de vista sociológico, no que consiste essa “célula” e o sentido das transformações favorecidas por esse modelo de proteção no espaço urbano do bairro. Busca-se discutir aqui o modo ambíguo de relação desse modelo de segurança com os usos intensos do espaço público por parte dos jovens que utilizam o Cuca e seu entorno para a realização de saraus e festas. Para tal, foram realizadas observações no Cuca do Jangurussu e entrevistas com jovens.

As chamadas células de proteção comunitária é um modelo de arquitetura da segurança formado pelos seguintes dispositivos de controle: torre de vigilância e observação, câmeras de videomonitoramento, drones e patrulhamento militar ostensivo em áreas degradadas e com altas taxas de criminalidade. Esses dispositivos formam um tipo de “proteção de proximidade” com base na territorialização da segurança urbana. Em Fortaleza, o objetivo é que cada “célula” abranja 200 quarteirões. O PMPU prevê que até o fim de 2019 a cidade esteja coberta por 30 células (6000 quarteirões). Considerando que Fortaleza conta com aproximadamente 18000 quarteirões 1/3 de seu território estará coberto com esse tipo arquitetura em dois anos de implantação.

O monitoramento eletrônico é composto por 40 câmeras em cada célula, em formato de “X”, a partir da torre de observação, permitindo uma cobertura de toda a área circunscrita, como é o caso do bairro Jangurussu. Segundo informa o plano, as equipes que realizam a ronda cotidiana fazem o patrulhamento seguindo um “sorteio randômico do quadrante” (quarteirão). O intuito é que não esteja previsto qual percurso será feito pela equipe militar, evitando-se “que o delinquente saiba qual o momento em que a patrulha estará presente em cada local”.

Partindo da torre como centro de comando a presença militar se torna mais ostensiva. Nos três primeiros quarteirões o patrulhamento é feito em bicicletas por três guardas municipais. Nos nove quarteirões seguintes a ronda é realizada por três guardas municipais em motos. E nos quatorze quarteirões restantes a vigilância é feita por três policiais militares em motos. Essa proposta de segurança visa ser “uma ação repressiva cirúrgica, que permite aos órgãos de inteligência a precisa identificação dos chefes de quadrilhas que atuam no perímetro […] dando exemplo, principalmente à juventude, e mostrando que o crime não compensa” (Prefeitura de Fortaleza 2016Prefeitura de Fortaleza. 2016. Plano municipal de proteção urbana. Fortaleza: PMF.) Mais a frente demonstro como essa política não tem por alvo apenas “delinquentes” e “chefes de quadrilha”, mas também a juventude que ocupa os espaços do bairro.

Como mostrou o jornal O Povo,4 4 Moura, Ricardo. 2019. A Fortaleza de Moroni. O Povo, 7 ago. 2017. Acessado em 13 set. 2019, https://www20.opovo.com.br/colunas/segurancapublica. a linguagem médico-militar não estava prevista na proposta de política de segurança durante o primeiro mandato do Prefeito Roberto Cláudio. Segundo o jornal, em 2014, o plano, intitulado Programa de Pacificação Territorial (PPT), abrangia seis eixos de atuação: melhoria dos contextos urbanos, prevenção à violência nos “segmentos vulneráveis” (violência doméstica, LGBT, étnico racial e de gênero), prevenção à violência juvenil, participação cidadã, fortalecimento do Guarda Municipal e institucionalização. No segundo mandato do Prefeito (2016-2020), porém, ocorre uma modificação substancial no entendimento da política de segurança. Agora com o nome de PMPU, idealizado pelo vice-prefeito Moroni Torgan, a ação passa a priorizar a vigilância ostensiva e de proximidade com base nas “células de proteção comunitária”.

A fortificação da cidade parece estar no horizonte político do vice-prefeito e da nova gestão municipal da segurança urbana iniciada no segundo mandato. Conforme destacou Torgan (2019Torgan, Moroni. 2019. Programa municipal de proteção urbana. In Políticas públicas inovadoras para cidades e os objetivos de desenvolvimento sustentável, organizado por Cláudio Brandão e Nelson Campos, 69-73. Fortaleza: Edições UFC., 72) o objetivo até fins de 2019 é “a edificação de um cinturão de segurança estratégica formada por 12 torres blindadas que vão monitorar as entradas e saídas da capital, além de bairros onde os índices de violência ainda preocupam”.

O imaginário de cidade fortificada que, num primeiro momento, associa Fortaleza aos fortes militares em torno dos quais se desenvolveu parece se materializar na atual gestão da segurança municipal. De todo modo, embora as torres lembrem os fortes de outrora em sua estrutura e finalidade, as tecnologias e as estratégias usadas são atuais. Foi de Israel5 5 Diário do Nordeste. 2018. Fortaleza vai utilizar tecnologia de Israel para ajudar na segurança pública, 22 mar. 2018. Acessado em 10 out. 2019, https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/fortaleza-vai-utilizar-tecnologia-de-israel-para-ajudar-na-seguranca-publica-1.1912123. que veio a inspiração para a política de militarização da segurança. De acordo com a reportagem a “tecnologia israelense” será capaz de “detectar metais (armas de fogo), fazer registros biométricos, acionar alarmes, reconhecer situações de risco e realizar a identificação de criminosos”. A matéria do jornal informa que a adoção dessas medidas “é consequência da visita do vice-prefeito Moroni Torgan a Jerusalém, no início deste ano”.6 6 Na mesma matéria jornalística do Diário do Nordeste 5 é dito que Fortaleza contou com a presença de “um dos mais importantes especialistas na área de segurança pública, o israelense Omer Gleser”. Segundo o Prefeito Roberto Cláudio, o objetivo é fazer de Fortaleza “um misto de cidade inteligente e segura”.

Campo e contracampo: juventudes e o direito à vida no Jangurussu

Como mostram Silva e Freitas (2018Silva, Rômulo e Geovane Freitas. 2018. Práticas poéticas: juventude, violência e insegurança em Fortaleza. Revista Tensões Mundiais 14 (26): 129-155. https://doi.org/10.33956/tensoesmundiais.v14i26.887.
https://doi.org/10.33956/tensoesmundiais...
, 133), o Jangurussu é um dos “territórios socialmente estigmatizados” que reúne, de um lado, as juventudes organizadas em grupos que produzem “saraus” (“reuniões em praças e bares de diferentes bairros suburbanos de Fortaleza, onde tanto moradores quanto frequentadores de outros bairros declamam ou leem textos próprios ou de outros compositores” [Silva e Freitas, 2018Silva, Rômulo e Geovane Freitas. 2018. Práticas poéticas: juventude, violência e insegurança em Fortaleza. Revista Tensões Mundiais 14 (26): 129-155. https://doi.org/10.33956/tensoesmundiais.v14i26.887.
https://doi.org/10.33956/tensoesmundiais...
, 133]) e, de outro, práticas policiais truculentas sobre sujeitos previamente definidos como perigosos e suspeitos.

Complemento a leitura de Silva e Freitas (2018)Silva, Rômulo e Geovane Freitas. 2018. Práticas poéticas: juventude, violência e insegurança em Fortaleza. Revista Tensões Mundiais 14 (26): 129-155. https://doi.org/10.33956/tensoesmundiais.v14i26.887.
https://doi.org/10.33956/tensoesmundiais...
sobre o Jangurussu recorrendo a noção de “campo”7 7 A respeito da perspectiva adotada neste trabalho em considerar o Jangurussu um “campo”. Nogueira, Adriano. 2017. Jangurussu é o bairro onde mais se morre em Fortaleza. O Povo, 11 out. 2017. Acessado em 15 jul. 2019, https://mais.opovo.com.br/jornal/cotidiano/2017/10/jangurussu-e-o-bairro-onde-mais-se-morre-em-fortaleza.html. Conforme a reportagem, “entre os cinco bairros mais miseráveis, o Jangurussu concentrou maior número absoluto de homicídios entre a população geral e os adolescentes, de janeiro a agosto deste ano, em Fortaleza. Ao todo, 72 pessoas foram mortas na região, sendo 19 adolescentes.” proposta por Mbembe (2017)Mbembe, Achille. 2017. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona., como locus do exercício do necropoder, ou seja, uma região onde se mata, onde

[…] ninguém se sente obrigado a responder. Ninguém tem qualquer sentimento de responsabilidade ou de justiça no que respeita a esta espécie de vida ou a esta espécie de morte. O poder necropolítico opera por um gênero de reversão entre vida e morte, como se a vida não fosse o médium da morte. (Mbembe, 2017Mbembe, Achille. 2017. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona., 65).

Mbembe (2017)Mbembe, Achille. 2017. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona., embora considere a plantation o protótipo da expropriação dos corpos na modernidade, estabelece uma ligação mais estreita entre as áreas matáveis de hoje e os campos de concentração nazistas.

Também na esteira de Mbembe, Suely Aires sugere importantes ideias para refletir sobre o Jangurussu quando afirma que “a ideia da política como guerra articula necropolítica, estado de exceção e ficcionalização do inimigo, construindo as bases normativas para o direito de matar. Há um tempo e espaço definidos para o exercício do necropoder”.8 8 Aires, Suely. 2018. Corpos marcados para morrer. Revista Cult, 5 nov. 2018. Acessado em 20 out. 2019, https://revistacult.uol.com.br/home/corpos-marcados-para-morrer. Articulando Foucault (2010)Foucault, Michel. 2010. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes. e Mbembe (2017)Mbembe, Achille. 2017. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona., Bento (2018)Bento, Berenice. 2018. Necrobiopoder: quem pode habitar o Estado-nação? Cadernos Pagu (53). https://doi.org/10.1590/18094449201800530005.
https://doi.org/10.1590/1809444920180053...
, em registro semelhante ao de Aires, sugere o termo necrobiopoder como “um conjunto de técnicas de promoção da vida e da morte a partir de atributos que qualificam e distribuem corpos em uma hierarquia que retira deles a possibilidade de reconhecimento como humano e que, portanto, devem ser eliminados e outros que devem viver”.

A justiça que cabe ao Jangurussu é a punitiva e da exceção. Bairro pobre da periferia e antigo aterro sanitário da cidade o Jangurussu é constantemente estigmatizado pelo senso comum e pelos meios de divulgação de notícias como lugar da pobreza e da violência. Em que pese as imagens negativas sobre o lugar, o Grande Jangurussu (região que reúne os bairros Jangurussu, Conjunto Palmeiras, Curió e Barroso) é o perímetro urbano com a concentração dos piores índices de desenvolvimento humano da capital. A despeito disso, é nessa região onde, nos últimos anos, veio emergir, de forma contraditória, uma rica experiência cultural de jovens que se reúnem na Praça do Jangurussu, nas proximidades do Cuca, e em outras localidades no interior do bairro (Sarau da B1) para se encontrar e recitar poesias e cantar rap e reggae (Silva e Freitas 2018Silva, Rômulo e Geovane Freitas. 2018. Práticas poéticas: juventude, violência e insegurança em Fortaleza. Revista Tensões Mundiais 14 (26): 129-155. https://doi.org/10.33956/tensoesmundiais.v14i26.887.
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).

Se a violência travada pelas facções9 9 As facções são conhecidas no Brasil como grupos de criminosos organizados de forma hierárquica e burocrática, capilarizadas nos presídios e nas áreas mais pobres das grandes e médias cidades brasileiras (Soares 2019). e a truculência policial se espalham pelo tecido urbano do bairro, reduzindo suas sociabilidades, sobretudo noturnas, é na “invenção do cotidiano” (Certeau 2003Certeau, Michel de. 2003. A invenção do cotidiano. 9. ed. Petrópolis: Vozes.) por parte dos grupos de jovens que o espaço público sobrevive. Os jovens do Jangurussu reunidos em torno do grupo Hip Hop Nós por Nós denunciaram em uma rede social10 10 Instagram. 2019. Grupo Nós por Nós. Instagram, 28 ago. 2019. Acessado em 2 set. 2019, https://instagram.com/hip.hop.nos.por.nos?utm_medium=copy_link. as ameaças à “vida” pela “territorialidade efetivada” da necropolítica à cargo do estado. Na nota são evocadas as ações intimidadoras dos agentes de segurança ao mesmo tempo em que é demarcado um contracampo de luta e resistência ao necropoder. Diz a nota:

A militância Hip Hop esteve participando ontem do programa Ensaios Abertos no Cuca Jangurussu. Nossos grupos de rap ensaiaram e na sequência sentamos para elaborar o próximo baile Jangu Por Nós. Lamentavelmente, presenciamos, mais uma vez, os guardas municipais da Torre do Senhor Moroni Torgan entrando no espaço para agredir a juventude com baculejos humilhantes. Isso ocorre dias após relatos de agressão sofrida por artistas da quebrada. Sabemos qual o objetivo dos guardas e da torre do terror: afastar a juventude do Cuca. Impedir que os artistas que denunciam as injustiças possam se comunicar com as comunidades que cercam o Centro Urbano de Cultura e Arte. Não nos intimidarão. O Cuca é uma importante trincheira conquistada pela juventude da periferia. Estaremos de prontidão para defendê-la. Nossa arte, nossas rimas, nosso protesto continuarão a ecoar na alma de cada favelado que frequenta o espaço. Querem nos calar, mas eles não vão conseguir! Malandragem promete resistir!

Ao denunciar a entrada dos guardas da “torre do terror” “no espaço para agredir a juventude favelada” e ao postular uma “trincheira” onde estarão de “prontidão para defendê-la” e a partir da qual se “resiste” é de se indagar se não estamos presenciando a emergência de um contracampo às zonas de extermínio contemporâneas. São os jovens aqueles que teimam em permanecer nos lugares onde a necropolítica se exerce em sua plenitude. No Jangurussu e em outros bairros pobres de Fortaleza com altas taxas de violência e criminalidade ruas e espaços públicos tem seus usos diminuídos por parte de moradores e comerciantes com medo da violência.

Importa destacar que a noção de contrauso (Leite 2004Leite, Rogério Proença. 2004. Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea. Campinas: Editora Unicamp.), mais consagrada no Brasil, foi pensada para o tipo específico de uso praticado pelos habitueés no interior dos espaços gentrificados, sobretudo áreas portuárias, áreas de lazer, parques temáticos, áreas residenciais ou centros históricos revitalizados no Brasil, transformados em relíquias culturais do consumo pós-moderno, portanto, distantes dos “campos” do necropoder erguidos em áreas pobres e com altas taxas de criminalidade

É no confronto entre “campo” e o seu contraponto (o contracampo) que ocorre a “guerra sem fim” e onde o espaço público nas periferias pobres ganha vida. É no anfiteatro da Praça do Jangurussu onde o contracampo se levanta e resiste à política de extermínio e à gestão da vida. Tomo para mim a observação de Carla Rodrigues 11 11 Rodrigues, Carla. 2018. Guerra colonial à brasileira. Revista Cult, 5 nov. 2018. Acessado em 10 out. 2019, https://revistacult.uol.com.br/home/guerra-colonial-a-moda-brasileira. ao afirmar que

se aqui eu retomar a noção de ‘guerra sem fim’ proposta por Mbembe, talvez possa me arriscar numa reflexão sobre como a metáfora da guerra define o Brasil desde o início da empresa colonial europeia e se perpetua em práticas cotidianas que produzem distinção entre aqueles que só podem viver à margem da lei e àqueles que instituem a lei a fim de instituir os que ficarão à margem […] O que está em vigor pela via da guerra sem fim e da vida à margem da lei é uma foraclusão de todas as vidas que a qualquer momento podem ser marcadas para morrer.

Construído em 2014, o Cuca Jangurussu previa em seu projeto original o cercamento de todo o perímetro da Praça. Nesse ano dois assassinatos de jovens ocorreram no anfiteatro. Segundo o coordenador de Políticas de Juventude da Prefeitura de Fortaleza à época, Élcio Batista, a área onde os jovens foram assassinados não pertencia ao Cuca por estar fora da cerca instituída pela gestão anterior para delimitar o Centro. A localização do anfiteatro, da pista de skate e da quadra para esportes na areia fora do perímetro impediria, segundo o coordenador, do Instituto Cuca em manter a gestão da área, inclusive no tocante à segurança. “Mesmo que pelo projeto inicial esses três espaços terem sido previstos como pertencentes ao Centro”.12 12 O Povo. Dois jovens são mortos em frente ao Cuca do Jangurussu, 26 maio 2014. Acessado em 8 mar. 2019, https://www20.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2014/05/26/noticiasjornalcotidiano,3256518/dois-jovens-sao-mortos-em-frente-ao-cuca-do-jangurussu.shtml.

Para um dos organizadores dos saraus de poesia e artista participante do evento Ensaios Abertos13 13 Entrevista, realizada em 13 de setembro de 2019, com um artista que participa do movimento hip hop no Jangurussu. o anfiteatro, por ser um espaço aberto, é constantemente disputado por policiais e guarda municipal e por artistas e o público dos eventos organizados pela juventude que frequenta o Cuca. Desde 2017 a Prefeitura de Fortaleza, por meio da Rede Cuca, organiza o Projeto Ensaios Abertos no anfiteatro do Jangurussu. A Rede Cuca é formada pelo conjunto dos complexos culturais, denominados Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte -Cuca, localizados em bairros carentes de Fortaleza. Atualmente são três os Cucas: o Cuca Jangurussu, o Cuca Barra e o Cuca Mondubim.

Segundo o jovem, a presença militar ostensiva se intensificou após a construção da “torre”:

Surgiu agora… os organismos de repressão reprimindo a juventude desde o tempo do Cuca Roots e agora surgiu esta torre. Uma política de segurança que parte do vice-prefeito, né?, o Moroni. A torre, cara, é inacreditável porque o local em que ela tá…é uma torre de vigilância que pelo local, é um local privilegiado pra vigilância dos artistas. Se você subir lá dá de cara com o palco. É um local perfeito pra gravar um vídeo clip, por exemplo. Então, tu tá falando lá e aqueles guardas municipais estão ouvindo. Eles portam armas que só de ver você se assusta. São armas enormes […] E se eles quiserem fazer uma catalogação dos artistas, de classificar por viés ideológico, eles podem fazer. Nós já presenciamos algumas vezes a guarda municipal entrar no anfiteatro. O anfiteatro não é cercado. Ele é aberto. Eles entram no meio de apresentações artísticas e começam com os baculejos humilhantes. Tem históricos de ameaça a educadores sociais que trabalham no Cuca, de crachá […] Há toda uma provocação porque se você ver lá o espaço, né?, eles poderiam ficar mais afastados, entende? Tem muito espaço na Praça que não é usado. Então a guarda fica num lugar privilegiado pra ver o que os artistas tão falando, pra ver o público que tá frequentando ali. Então, o objetivo da torre, na minha opinião, é frear esse acesso. (Entrevistado 1, com. pess., 10 out. 2019).

Esse ponto de vista sobre a “torre” é compartilhada por um ex-educador social do Cuca Jangurussu:

O projeto [da torre] já existia. A gente sabia disso. Próximo da gente ser demitido. Aí eles começam a delimitar a área. A torre fica de frente pro anfiteatro. Os Cucas foram as experiências pras ‘células’. Ela visualiza quem tá no ‘centro’, quem tá mandando um rap, uma poesia, quem tá fazendo um discurso. O pessoal do Nós por Nós, do Baile Negro, tá sendo vigiado. Se você protesta você tá sendo controlado. Aquilo é pra vigiar e controlar os grupos subversivos na periferia, que querem se rebelar. É um projeto integrado com Israel pra abater os palestinos. Agora, você percebe que são em territórios com grandes adensamentos, né? Com desigualdades social e com reserva de desempregados. (Entrevista realizada em 04 de setembro de 2019 com um ex-educador social do Cuca Jangurussu). (Entrevistado 2, com. pess., 7 nov. 2019).

O entrevistado me contou que muitos artistas deixaram de ir ao Cuca Jangurussu devido ao modo como os policiais os abordam. Além da presença policial, a propagação das chamadas facções criminosas tem inibido a ida de jovens e artistas. São recorrentes em sua fala os relatos de casos de abuso de autoridade por parte dos agentes de segurança e a violência praticada pelo chamado crime organizado no bairro. É assim que ele narra o período em que o Cuca Roots (evento de reggae que ocorria às terças-feiras no anfiteatro) terminou. O evento chegava a reunir mais de mil pessoas: “vinha gente de toda a cidade. O que você via nesse evento era muita consciência negra, muita autoestima da juventude negra da periferia.” Em umas dessas terças ocorreu um homicídio o que levou ao fim do evento.

Após a construção da “célula de proteção comunitária” os jovens tiveram que criar “táticas” para jogar com a política de segurança municipal. Embora essa política contribua para afugentar a juventude das festas e saraus, alguns grupos ocupam o anfiteatro, repolitizando o espaço urbano com suas músicas e performances. Por outro lado, a imagem do Jangurussu como campo de concentração sobressai em seu discurso ao falar dos sujeitos matáveis:

Cara, a gente tá aprendendo como lidar com essa torre. Tem gente, artista, que entende que não é mais pra andar no Jangurussu, no Cuca, pra usar os espaços. O hip hop não pensa dessa forma. A gente entende que o Cuca é uma política de juventude incrível, né? […] Porque o Cuca te oferece uma série incrível de serviços, do ponto de vista da cultura, da arte e do esporte. Ali tem muitas histórias de superação. Muita gente que consegue ser reintegrado à sociedade. Eu tenho vontade de abraçar o Jangurussu. E aí tem todo esse problema da política de segurança pública e genocida. Da avenida Perimetral, onde está a Praça do Cuca, pra dentro fica todo mundo no seu campo de concentração bem guardado, né?, Sem ameaçar a cidade. Lá é um campo de concentração porque os índices de violência são semelhantes aos processos de holocausto e tem o questão da mobilidade. A nossa mobilidade na cidade é muito perigosa porque você pode morrer, né? Temos o principal polo cultural talvez do país e a gente não pode chegar lá. A impossibilidade de nos movimentar na cidade lembra um campo de concentração. Uma detenção sem muros. (Entrevistado 1, com. pess., 10 out. 2019).

É no tempo-espaço das “batalhas de MC's” que o espaço dos ensaios abertos entra em conflito com as marcas simbólicas do “campo”. É nessa escala tempo-espacial que o contracampo tensiona a ordem do espaço urbano e joga com os recursos disponibilizados pela forma urbana. Os espaços residuais são aproveitados e marcados na forma de usos contestatórios.

Não é por que é perigoso que a gente não se ‘move’, né? A gente se ‘move’. Vale a pena mencionar as batalhas de MC's. Isso se espalhou pela cidade de tal forma que é uma coisa incrível. As batalhas são incríveis. Imagina que eles estão ali afiando suas armas, treinando uns contra os outros pra um dia poder enfrentar o sistema, né? E nós no Cuca Jangurussu não temos tanta autonomia porque o projeto que a gente faz é em parceria com a Rede Cuca. A gente se aproveita de certos buracos que o estado deixa pra nós. Aí a gente tenta trabalhar com certos limites, mas tenta se aproveitar de um espaço que os grupos de rap possam criar, ter experiência de palco, gravar um som, construir um público. Ao mesmo tempo que não impede da gente trabalhar politicamente, de fazer bailes temáticos.14 14 Os movimentos dos jovens do hip hop pelo anfiteatro do Jangurussu lembram as “assembleias” surgidas nos últimos anos em todo o mundo analisadas por Butler (2018, 80). (Entrevistado 1, com. pess., 10 out. 2019).

Considerações finais

Neste artigo discuti a emergência de uma arquitetura de segurança voltada para controlar e vigiar setores socialmente estigmatizados em muitas cidades do mundo. Apresentei a configuração que esses dispositivos assumem na cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará, situado no nordeste brasileiro. Tendo o caso do bairro Jangurussu na periferia pobre da cidade argumentei que a política de proteção urbana municipal posta em prática nos últimos anos, inicialmente pensada para reativar os usos do espaço público, contribui para certo retraimento dos usos públicos dos espaços urbanos.

Como demostrei as experiências dos jovens do hip hop e dos saraus de poesia no bairro repolitizam os sentidos públicos do espaço urbano ao confrontar, de forma performática, a lógica militarizada da presença do estado. Observei que os espaços da gestão da vida e do exercício do necropoder (o que chamei, com base em Mbembe (2017)Mbembe, Achille. 2017. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona., de “campo”) tem seu contraponto no que denominei contracampo, um espaço residual ao mesmo tempo de resistência à política da morte e de celebração da vida. O anfiteatro do Cuca Jangurussu, espaço sobrante do projeto original do Centro, se constitui em lugar de encontros e de fortalecimento de identidades sociais de jovens que vivem uma vida precária (Butler 2015Butler, Judith. 2015. Quadros de guerra: quando a vida é possível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). É no jogo de disputa entre campo e contracampo, portanto, que os sentidos do viver e do morrer são ressignificados pelos jovens que teimam em fazer da cidade um lugar seguro porque diverso e pleno de experiências de estar com o outro no espaço público.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2020
  • Aceito
    02 Ago 2021
  • Publicado
    08 Nov 2021
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