Acessibilidade / Reportar erro

Discriminação salarial de trabalhadores(as) com deficiência no Brasil: uma análise interseccional por gênero e raça/cor

Wage discrimination of workers with disabilities in Brazil: an intersectional analysis by gender and race/color

Discriminación salarial de los trabajadores(as) con discapacidad en Brasil: un análisis interseccional por género y raza/color

Resumo:

As discriminações salariais aos trabalhadores(as) com deficiências, bem como as interações destas com outros marcadores sociais da desigualdade, como gênero e raça/cor, foram analisadas utilizando dados do Censo Demográfico 2010 (IBGE). Quatro tipos de deficiência foram investigados, utilizando-se um modelo de regressão multivariada controlando por efeitos fixos por ocupações. Os resultados indicam que há discriminação salarial para os quatro tipos de deficiência analisados. Observa-se que a maior discriminação ocorre para os trabalhadores(as) com deficiência visual severa, seguido das deficiências físicas, mentais e auditivas. No entanto, tal discriminação é de pequena magnitude, quando comparadas a outros marcadores sociais da desigualdade, como gênero e raça/cor. O efeito do gênero, por exemplo, é seis vezes maior que o da deficiência visual enquanto o de pessoas não brancas é quatro vezes maior. Quando considerado o acúmulo dos marcadores sociais da desigualdade, deficiência, gênero e raça/cor, confirma-se que a mulher negra com e sem deficiência é aquela que mais sofre com a discriminação salarial no Brasil.

Palavras-chave:
Mercado de trabalho; Discriminação salarial; Pessoas com deficiências; Gênero; Raça/cor

Abstract:

This paper investigates wage discrimination against workers with disabilities, as well as its interactions with other social markers of inequality, gender and race/color, using data from the 2010 Demographic Census (IBGE). Four types of disability are investigated: visual, hearing, motor, and mental. A multivariate regression model controlling for occupational fixed effects was used. The results indicate that there is wage discrimination for the four types of disability analyzed. It is observed that the greatest discrimination occurs for workers with severe visual impairment, followed by physical disabilities and, lastly, mental and hearing disabilities. However, such discrimination is of small magnitude when compared to other social markers of inequality, such as gender and race/color. The effect of gender, for example, is six times greater than that of visual impairment while non-white people suffer almost four times more discrimination. When considering the accumulation of the social markers of inequality, disability, gender, and race/color, it is confirmed that black women with and without disabilities are those who suffer the most from wage discrimination in Brazil.

Keywords
Labor market; Wage discrimination; Persons with disabilities; Gender; Race/Color

Resumen:

Este trabajo investiga la discriminación salarial de los trabajadores con discapacidad, así como sus interacciones con otros marcadores sociales de desigualdad, el género y la raza/color, utilizando datos del Censo Demográfico de 2010 (IBGE). Se investigan cuatro tipos de discapacidad: visual, auditiva, motriz y mental. Se utilizó un modelo de regresión multivariante controlando los efectos fijos de la profesión. Los resultados indican que existe discriminación salarial para los cuatro tipos de discapacidad analizados. Observamos que la mayor discriminación se produce en el caso de los trabajadores con discapacidades visuales graves, seguidos de las discapacidades físicas y, por último, de las discapacidades mentales y auditivas. Sin embargo, esta discriminación es de pequeña magnitud si se compara con otros marcadores sociales de desigualdad, como el género y la raza/color. El efecto del género, por ejemplo, es seis veces mayor que el de la discapacidad visual, mientras que las personas no blancas sufren casi cuatro veces más discriminación. Al considerar la acumulación de los marcadores sociales de desigualdad, discapacidad, género y raza/color, se confirma que las mujeres negras con y sin discapacidad son las que más sufren la discriminación salarial en Brasil.

Palabras clave:
Mercado laboral; Discriminación salarial; Personas con discapacidad; Género; Raza/color

Introdução

Muito se tem investigado sobre a discriminação salarial dos trabalhadores(as) no Brasil. Sabe-se que as mulheres trabalhadoras sofrem o maior hiato salarial, principalmente as mulheres negras.3 3 Cacciamali, Maria Cristina; Fábio Tatei e Jackson William Rosalino. 2009. Estreitamento dos diferenciais de salários e aumento do grau de discriminação: limitações da mensuração padrão. Planejamento e Políticas Públicas 33: 195-222. Acessado em 12 ago. 2019, https://www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/159. Souza, Paola Faria Lucas, Márcio Antônio Salvato e João Mário Santos De Franį. 2013. Ser mulher e negro no Brasil ainda leva a menores salários? Uma análise de discriminação para Brasil e regiões: 2001 e 2011. Anais do Encontro Nacional de Economia, 41. Foz do Iguaçu: Anpec/UFPR. Acessado em 5 mar. 2020, https://ideas.repec.org/p/anp/en2013/238.html. Mesmo assim, percebe-se que poucos estudos consideram outros marcadores sociais além do gênero, raça e cor em suas análises. (Diniz 2007Diniz, Débora. 2007. O que é deficiência. São Paulo: Editora Brasiliense.; Gomes et al. 2019Gomes, Ruthie B., Paula Helena Lopes, Marivete Gesser e Maria Juracy F. Toneli. 2019. Novos diálogos dos estudos feministas da deficiência. Revista Estudos Feministas 27 (1):1-14. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n148155.
https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v2...
; Almeida e Araújo 2020Almeida, Philippe O. e Luana A. Araújo. 2020. DisCrit: os limites da interseccionalidade para pensar sobre a pessoa negra com deficiência. Revista Brasileira de Políticas Públicas 10 (2): 611-641. https://doi.org/10.5102/rbpp.v10i2.6861.
https://doi.org/10.5102/rbpp.v10i2.6861...
). Nesse sentido, pouco se sabe sobre os fatores que interagem com a inclusão de pessoas com deficiência (PCD) no mercado de trabalho e dos diferenciais salariais entre essas pessoas e aquelas sem deficiência. Assim, este trabalho investiga discriminações salariais dos trabalhadores/as com deficiências, e como essas discriminações interagem com marcadores de gênero4 4 A variável sexo foi usada como proxy de gênero. e raça/cor desses trabalhadores(as).

De acordo com a perspectiva interseccional, é necessário considerar como diferentes sistemas de desigualdade se inter-relacionam, produzindo diferentes tipos de desigualdades (Kantola e Lombardo 2017Kantola, Johanna, Emanuela Lombardo, orgs. 2017. Gender and the economic crisis in Europe: Politics, institutions and intersectionality. London: Springer.). Como os indivíduos não são imbuídos apenas de características raciais ou de gênero, ao analisar os processos nos quais as discriminações são produzidas, é interessante considerar diferentes marcadores sociais da desigualdade, como classe social, deficiência, sexualidade, entre outras variáveis, a depender do objeto de análise.

Logo, é importante compreender a participação de PCD no mercado de trabalho e como o sexo e a raça/cor dessas pessoas impactam a desigualdade entre elas e as pessoas sem deficiência. Para tal, utilizou-se dados do Censo Demográfico 2010 (IBGE). Os quatro tipos de deficiência identificados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) são investigados: visual, auditiva, motora e mental. A discriminação ocorre quando ao menos uma des sas quatro deficiências é o fator que diferencia o salário dos trabalhadores(as), mesmo considerando o sexo e a raça/cor destes, bem como outros fatores que influenciam a renda tais como grau de instrução, experiência, número de horas trabalhadas.

De acordo com o Censo 2010, 45.606.048 brasileiros possuem ao menos um dos quatro tipos de deficiência investigados nessa pesquisa, totalizando 23,91% da população residente. Dentre as pessoas com deficiência 15.750.968 relataram possuir ao menos uma deficiência severa (não consegue ou tem grande dificuldade), o que representa 8,26% da população brasileira. Ainda de acordo com o Censo de 2010, apenas 2,05% das pessoas com trabalho formal tinham algum tipo de deficiência.5 5 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 2012. Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE. Acessado em 20 jul. 2018, https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf.

Para investigar a discriminação salarial utilizou-se um modelo de regressão multivariada, controlando por efeitos fixos por ocupações. Desta forma, o modelo controla por diferenciais relativos à ocupação exercida pelos(as) trabalhadores(as).

Esse estudo é organizado da seguinte forma: a próxima seção discute brevemente a legislação nacional e internacional para proteção dos trabalhadores(as) com deficiências, além de apresentar resultados de pesquisas anteriores e algumas políticas públicas acerca do tema. Em seguida, descrevemos a estratégia metodológica da interseccionalidade, bem como alguns resultados de pesquisas que utilizam essa estratégia a partir dos marcadores sociais gênero e raça. Posteriormente são apresentados os dados utilizados nesta análise e descrito o método aplicado. Finalmente os resultados são apresentados e discutidos.

Legislação e literatura

Vários mecanismos na legislação brasileira e internacional protegem os direitos das PCD. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) faz campanhas em defesa desses trabalhadores(as) desde 1923.6 6 Pereira, Ana Camila R. e Sonoe S. Pinheiro. 2016. Fatores associados a chance de estar no mercado de trabalho: brasileiros com e sem deficiência no ano de 2010. Anais VII Congreso de la asociación latinoamericanade población e XX encontro de estudos populacionais (outubro): 1-21. Acessado em 1 jun. 2018, http://abep.org.br/xxencontro/index.php/programacao. Em 1975, a Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou a Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiência.7 7 Organização das Nações Unidas. 1975. Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes. Acessado em 20 set. 2019, https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-das-pessoas-com-deficiencia. O artigo 2 dessa declaração estabelece que as pessoas com deficiência têm os mesmos direitos dos demais cidadãos, sem nenhuma exceção e sem qualquer distinção ou discriminação. No âmbito da OIT, a Convenção 159 assegura a igualdade de oportunidade e tratamento no emprego e integração na comunidade a todas as pessoas com deficiência. Tal convenção foi ratificada pelo Brasil em 1990.

No Brasil, a Lei n. 7.070, de 1982,8 8 Brasil. 1982. Lei nº 7.070, de 20 de dezembro de 1982. Dispõe sobre pensão especial para os deficientes físicos que especifica, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 21 de dez.1982. Acessado em 10 jun. 2019, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1980-1988/l7070.htm. estabelece pensões especiais para as pessoas com deficiência, conhecido como Benefício de Prestação Continuada (BPC), a fim de garantir um salário-mínimo de benefício mensal às PCD. Um marco importante no Brasil foi a Constituição Federal de 1988, a primeira a esclarecer os direitos das pessoas com deficiência de forma abrangente, estabelecendo igualdade de direitos, a proteção ao trabalho, sem discriminação com relação a salários e admissões. Estabelece ainda a reserva de vagas para cargos públicos; a assistência social; educação especial e acessibilidade.

Mais recentemente, em 2006, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi apresentada pela ONU. Esta convenção cria um documento único que engloba todos os direitos das pessoas com deficiência estabelecidos em documentos anteriores. Com relação ao trabalho, a Convenção reconhece o direito ao trabalho, em iguais condições, cabendo ao Estado promover a igualdade e proibir a discriminação baseada na deficiência e resultou na Lei Brasileira de Inclusão (Estatuto da PCD).

A lei de cotas, vigente desde 1999,9 9 Brasil, 1999. Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Regulamenta a Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências. Acessado em 10 jun. 2019, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm. estabelece que empresas com mais de 1000 funcionários devem contratar 5% de pessoas com deficiência, enquanto aquelas com entre 500 e 1000 funcionários precisam contratar, pelo menos, 4%, empresas com 200 a 500 funcionários devem contratar 3% de PCD e empresas com 100 a 200 funcionários devem contar com, pelo menos, 2% de pessoas com deficiência no seu quadro funcional (Neri et al. 2003Neri, Marcelo, Alexandre Pinto, Wagner Soares e Hessia Costilla. 2003. Retratos da deficiência no Brasil. Rio de Janeiro: FGV. ). Esse foi um marco legal na inclusão das pessoas com deficiência ao mercado de trabalho e à sociedade.

Um dos argumentos para o não cumprimento da Lei é que as PCD não estavam capacitadas para o mercado de trabalho ou não procuravam emprego por receio de perder o BPC. Com a alteração da Lei para que pessoas com deficiência possam recuperar o BPC caso sejam demitidas ou que possam acumulá-lo sem limite de idade com o salário de aprendizagem, a justificativa de que as pessoas não queriam perder o benefício não pode mais ser utilizada. Ainda, a possibilidade de contrato de aprendizagem10 10 De acordo com o artigo 428 da CLT, o contrato de aprendizagem é o contrato de trabalho especial, com prazo determinado, em que o empregador se compromete a assegurar ao maior de 14 e menor de 24 anos, formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico. Acessado em 1 ago. 2021, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. e os programas que o governo federal ofereceu pelo Pronatec derrubaram a justificativa de que não havia pessoas com deficiência qualificadas para atuar nas vagas ofertadas. Há ainda, mais pessoas com deficiência qualificadas do que vagas ofertadas para este grupo.11 11 Oliveira, Ludmilla Cavarzere, Valquiria T. Cavalli e Sidival T. Guidugli. 2017. Política pública de inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho: algumas considerações sobre sua formulação, implementação e avanços de 1991 até 2015. Planejamento e Políticas Públicas 48: 107-148. Acessado em 20 set. 2019, https://www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/623/430.

Dado os diversos mecanismos legais constituídos para proteger as PCD, espera-se que tais trabalhadores(as) tenham condições de igualdade para exercer suas atividades no mercado de trabalho. No entanto, não é isso o que a literatura acadêmica vem reportando. De acordo com Pereira e Pinheiro12 12 Pereira, Ana Camila R. e Sonoe S. Pinheiro. 2016. Fatores associados a chance de estar no mercado de trabalho: brasileiros com e sem deficiência no ano de 2010. Anais VII Congreso de la asociación latinoamericanade población e XX encontro de estudos populacionais (outubro): 1-21. Acessado em 1 jun. 2018, http://abep.org.br/xxencontro/index.php/programacao. , independentemente do tipo de deficiência, PCD ainda são discriminadas, sofrem com o preconceito e com a falta da execução efetiva das leis que garantem seus direitos. Pereira e Pinheiro investigaram fatores associados à inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho utilizando dados do censo 2010. Os resultados mostram que as chances de participar do mercado de trabalho são menores para as pessoas com deficiência, e essas chances se reduzem ainda mais para as mulheres, e com o avanço da idade.

No que tange às discriminações salariais, usando dados do Censo 2000, Neri et al. (2003)Neri, Marcelo, Alexandre Pinto, Wagner Soares e Hessia Costilla. 2003. Retratos da deficiência no Brasil. Rio de Janeiro: FGV. apontam que a remuneração das pessoas com deficiência é 12,65% menor que a remuneração das pessoas sem deficiência, mesmo controlando por escolaridade, gênero, raça, idade, UF e tamanho da cidade.

Deficiência, raça e gênero: uma perspectiva interseccional

A perspectiva da interseccionalidade estuda as marginalizações e dominações que interagem com gênero, raça, classe e outros sistemas produzidos pela desigualdade como deficiência e sexualidade (Kantola e Lombardo 2017Kantola, Johanna, Emanuela Lombardo, orgs. 2017. Gender and the economic crisis in Europe: Politics, institutions and intersectionality. London: Springer.). Os principais argumentos foram elaborados nos anos de 1980 por feministas negras e pós-coloniais que questionavam as hegemonias de raça, etnicidade, gênero e sexualidade que excluíam algumas vozes, buscando a compreensão de como lidar com múltiplos sistemas de desigualdade (Crenshaw 1994Crenshaw, Kimberlé. 1994. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. In The public nature of private violence, organizado por Martha Albertson Fineman e Rixanne Mykitiuk, 93-118. New York: Routledge.; Collins 1998Collins, Patricia H. 1998. It’s all in the family: intersections of gender, race, and nation. Hypatia 13 (3): 62-82. https://doi.org/10.1111/j.1527-2001.1998.tb01370.x.
https://doi.org/10.1111/j.1527-2001.1998...
). Antes mesmo da criação deste conceito, muitos autores (Walzer 2003Walzer, Michael. 2003. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. São Paulo: Martins Fontes.; Taylor 1994Taylor, Charles. 1994. Multiculturalism. New Jersey: Princeton University Press. ; Kymlicka 2020Kymlicka, Will. 2020. Multicultural citizenship. In The new social theory reader, organizado por Steven Seidman e Jeffrey C. Alexander, 270-280. London: Routledge.) já criticavam a perspectiva de um indivíduo universal que norteava as concepções de teorias da justiça (Rawls 1999Rawls, John. 1999. A theory of justice: revised edition. Cambridge: Harvard University Press. ). Tais formulações estão marcadas pelas exclusões e apagamentos das minorias (mulheres, negras/os, indígenas, homossexuais, pessoas transgênero, PCD etc.), principalmente nos espaços políticos e econômicos.

Nesse sentido, propõe-se que a interseccionalidade vai além do empilhamento de duas ou mais desigualdades sociais e não pode ser entendida como uma “olimpíada das opressões” (Walby, Armstrong e Strid 2012Walby, Sylvia, Jo Armstrong e Sofia Strid. 2012. Intersectionality: multiple inequalities in social theory. Sociology 46: 224-240. https://doi.org/10.1177/0038038511416164.
https://doi.org/10.1177/0038038511416164...
, 232). O argumento é que os pontos de confluência são articulações para que as condições que marcam a desigualdade se materializem, o que viabiliza a produção de espaços de marginalização em detrimento da diversidade (Crenshaw 1994Crenshaw, Kimberlé. 1994. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. In The public nature of private violence, organizado por Martha Albertson Fineman e Rixanne Mykitiuk, 93-118. New York: Routledge.). Walby (2007)Walby, Sylvia. 2007. Complexity theory, systems theory, and multiple intersecting social inequalities. Philosophy of the social sciences 37 (4): 449-470. https://doi.org/10.1177/0048393107307663.
https://doi.org/10.1177/0048393107307663...
também aponta a impossibilidade de tratar a interseção das desigualdades como coisas que se adicionam, se apresentando empilhadas, porque elas também podem se alterar, interagindo umas com as outras. A interseccionalidade é, para ela, uma abordagem sistêmica, que engendra uma ideia de teoria de complexidade para as teorias sistêmicas, com a finalidade de construir uma análise melhor do conjunto de desigualdades sociais como parte do processo de análise interseccional (Walby 2007Walby, Sylvia. 2007. Complexity theory, systems theory, and multiple intersecting social inequalities. Philosophy of the social sciences 37 (4): 449-470. https://doi.org/10.1177/0048393107307663.
https://doi.org/10.1177/0048393107307663...
).

A interseccionalidade é, portanto, uma ferramenta teórica e metodológica que nos permite analisar as interações entre gênero e outros marcadores sociais da desigualdade, e como essas clivagens que constituem o sujeito na estratificação social são percebidas socialmente, inclusive por empregadores. Logo, interseccionalidade foca na diferença, em detrimento da identificação.

No caso da deficiência, segundo Shakespeare (1996Shakespeare, Tom. 1996. Disability, identity and difference. In Exploring the divide, organizado por Colin Barnes e Geof Mercer, 94-113. Leeds: The Disability Press. , 2014Shakespeare, Tom. 2014. Disability rights and wrongs revisited. 2 ed. Londres: Routledge. ), ela pode ser entendida como um processo de exclusão e opressão social, no qual a sociedade precisa se reabilitar, não a pessoa com deficiência, o que transmite parte da responsabilidade moral para a sociedade. Entretanto, esta perspectiva analisa somente as barreiras sociais impostas às pessoas com deficiência. Uma vez superadas essas barreiras, a pessoa com deficiência seria tão produtiva quanto a pessoa sem deficiência. O problema dessa perspectiva é que ela ignora a diversidade dentro da deficiência, os princípios de cuidados, as desigualdades de gênero, de classe, programas compensatórios, entre muitos outros fatores (Diniz 2007Diniz, Débora. 2007. O que é deficiência. São Paulo: Editora Brasiliense.). As produções discursivas que se relacionam com a linguagem e as ideologias, produziram no imaginário social uma representação da pessoa com deficiência como incapacitada, passível de reabilitação para chegar a um ideal de “normalidade” estabelecido socialmente. A partir deste argumento, é formulado um discurso hegemônico no qual se cria corpos “indesejáveis”, que desviam do padrão, ratificando uma distribuição desigual de poder, recursos, reconhecimento, status e de oportunidades (Diniz 2007Diniz, Débora. 2007. O que é deficiência. São Paulo: Editora Brasiliense.; Gesser, Nuernberg e Tonelli 2012Gesser, Marivete, Adriano H. Nuernberg e Maria Juracy F. Tonelli. 2012. A contribuição do modelo social da deficiência à psicologia social. Psicologia & Sociedade 24 (3): 557-566. https://doi.org/10.1590/S0102-71822012000300009.
https://doi.org/10.1590/S0102-7182201200...
). De acordo com uma perspectiva interseccional, as representações de raça, etnia, gênero, classe, habilidades, sexualidade constroem, compreendem e contrapõem interseccionalmente entre si, produzindo identidades e movimentos de exclusão social.

É necessário, portanto, desfazer a separação entre os campos de estudos da deficiência e de gênero, classe e raça a fim de compreender como essas estruturas de desigualdade interagem e os resultados que elas produzem. Essa separação foi muito marcada tanto nos estudos de gênero e raça/cor, que ignoraram a questão da deficiência e das formas de experimentá-la, bem como nos estudos sobre deficiência que não levavam em conta outros marcadores sociais das diferenças como componentes constituintes da experiência da deficiência. Defender a deficiência como categoria de análise é, portanto, fundamental para a compreensão das estruturas de desigualdade que marcam a esfera pública como a política, a arte e o trabalho (Gomes et al. 2019Gomes, Ruthie B., Paula Helena Lopes, Marivete Gesser e Maria Juracy F. Toneli. 2019. Novos diálogos dos estudos feministas da deficiência. Revista Estudos Feministas 27 (1):1-14. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n148155.
https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v2...
).

Dessa forma, a perspectiva interseccional se apresenta como uma boa chave teórica para interpretar dados relativos à ocupação – e, portanto, faixa salarial – das pessoas com deficiência a partir do tipo de deficiência, gênero e da raça/cor dessas pessoas, como veremos a seguir.

Deficiência e trabalho no Brasil: dados utilizados

Na análise do diferencial de renda dos trabalhadores/as com deficiência, utilizou-se os microdados da amostra do Censo Demográfico 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).13 13 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 2012. Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE. Acessado em 20 jul. 2018, https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf. O uso dessa base tem a vantagem da ampla cobertura da população e o número de pessoas entrevistadas. Existem outras bases disponíveis, como a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), do IBGE, e a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministério do Trabalho. No entanto, no caso destes dados, ou o tamanho da amostra é pequeno (quando comparada ao censo), evidenciando pouca variância para a combinação dos tipos de deficiência, gênero e raça, versus ocupação (caso PNS), ou não há diferenciação entre diferentes tipos de deficiência, como no caso da RAIS.

São analisados os indivíduos que atendem, conjuntamente, aos seguintes critérios: pessoas que trabalharam na semana de referência; pessoas que exerciam uma ocupação e esta foi preenchida com um código válido; e pessoas que trabalhavam no setor privado, ou seja, empregados com ou sem carteira de trabalho assinada. Assim, foram investigados trabalhadores(as) com e sem deficiência, empregados no setor privado. Como o objetivo é identificar se há discriminação salarial das pessoas com deficiência, empregadores e trabalhadores(as) por conta própria foram excluídos da análise, pois não recebem salário. Optou-se também por excluir dessa análise os funcionários públicos, uma vez que esses trabalhadores(as) estão submetidos a outro estatuto de trabalho e que, uma vez aprovados em concurso público, seguem um plano de carreira diferente dos empregados do setor privado.

A variável dependente nesse estudo é a renda mensal do(a) trabalhador(a) no seu trabalho principal. Caso um indivíduo trabalhe em mais de um local, apenas o trabalho principal foi considerado. Considerando que “renda” é uma variável muito concentrada nas menores faixas, a distribuição é skewed. Para aproximar a distribuição da renda à uma distribuição normal, utilizou-se o logaritmo neperiano (LN) da renda ao invés da variável renda diretamente.

Com relação às variáveis explicativas, utilizou-se variáveis binárias, separadas para cada um dos quatro tipos básicos de deficiências identificados no questionário do censo 2010: visual, auditiva, motora e mental. Para os três primeiros tipos, o censo 2010 coletou informações acerca do grau ou severidade da deficiência, a saber: alguma dificuldade, grande dificuldade, ou não consegue de modo algum. Nesse trabalho, considerou-se apenas as deficiências severas, ou seja, indivíduos que informaram grande dificuldade ou não conseguir de modo algum. Essa escolha deve-se ao fato de que algumas deficiências de menor severidade serem imperceptíveis aos olhos dos empregadores e, dessa forma, não são alvo de discriminação. Já no caso de deficiência mental ou intelectual, o censo 2010 questiona apenas a existência ou não de tal deficiência. Dessa forma, todos os indivíduos que responderam sim a esse questionamento são considerados neste estudo. A análise descritiva dos dados revela que 2,43% dos trabalhadores(as) informam uma deficiência visual severa, 0,66% uma deficiência motora severa, 0,65% deficiência auditiva, e 0,34% relatam deficiência mental.

Para verificação da hipótese da interseccionalidade, incluiu-se nessa análise algumas características dos trabalhadores(as) que são reconhecidas na literatura como fontes de discriminação salarial, a saber sexo (proxy para gênero) e raça/cor.14 14 Antigo, Mariângela Furlan, Daniela G. P. Lacerda e Sandro E. Monsueto. 2017. Uma análise do padrão de rendimentos por cor e gênero no Brasil no século XXI. Anais VII Congreso de la Asociación Latino-americana de Población e XX Encontro de Estudos Populacionais, Foz do Iguaçu, (outubro): 1-21. Acessado em 1 jun. 2018, http://abep.org.br/xxencontro/index.php/programacao. No caso da raça/cor, diferenciou-se dois grupos: brancos e não-brancos.

Também foi considerado na análise um conjunto de variáveis que diferenciam os salários dos indivíduos por motivos relacionados ao mercado, e que não constituem discriminação contra um grupo da sociedade. A primeira dessas variáveis é escolaridade. Espera-se que graus maiores de escolaridade estejam relacionados à maiores salários.

Similarmente, espera-se que os anos de experiência numa ocupação propiciem aumento da produtividade do trabalhador, que está associada a maiores salários. Dado que o censo 2010 não pergunta o tempo de experiência do trabalhador, nesse trabalho utiliza-se como proxy a idade do trabalhador. Espera-se que, quanto maior a idade, maior seja sua experiência.

A terceira variável é o número de horas trabalhas por semana. Espera-se que, quanto maior o número de horas trabalhadas, maior a remuneração. A última variável dessa parte indica se o trabalhador possui ou não carteira de trabalho assinada. Espera-se que trabalhadores/as com carteira assinada recebam remunerações maiores que trabalhadores/as sem carteira assinada.

Por último, controlou-se o efeito da ocupação exercida pelo trabalhador, dado que trabalhadores(as) são remunerados de forma diferente em diferentes ocupações. Por exemplo, a remuneração média de um médico com 35 anos de idade é R$ 7845, superior à remuneração média de um fisioterapeuta com a mesma idade que é R$ 2081. O código de ocupações utilizado no censo ٢٠١٠possui quatro dígitos. Analisando a frequência de PCD por ocupação, notou-se que ninguém, ou muito poucos, menos de 10 trabalhadores(as), exercia cerca de metade das ocupações. Essa baixa frequência de pessoas com deficiência por ocupação prejudica a análise da variância intraocupações. Para minimizar esse problema, decidiu-se usar o agrupamento superior, com três dígitos. Utilizando-se esses agrupamentos, 102 dos 123 agrupamentos ocupacionais possuíam ao menos 10 trabalhadores(as) com deficiência.

A Tabela 1 apresenta a descrição dos dados.

Tabela 1
Estatísticas descritivas

As correlações entre as variáveis foram verificadas e encontram-se abaixo de 0,42.

Método

Para verificar a ocorrência de discriminações salariais das pessoas com deficiência no mercado de trabalho privado no Brasil utilizou-se um modelo de regressão multivariada com controle de efeitos fixos ao nível de ocupação, ponderadas pelos pesos amostrais disponíveis no Censo 2010. O modelo completo testado é apresentado na Equação 1:

(1) L N ( R e n d a i ) = β 1 , j D E F i , j + β 2 , g G E N E R O i , g + β 3 , g D E F i G E N E R O i , g + β 4 , r R A C ̧ A i , r + β 5 , r D E F i R A C ̧ A i , r + β 6 , k X i , k + μ r OCUP r + ε i

Nesse modelo, a renda do trabalhador i (Rendai,), é explicada pela deficiência j do trabalhador i1′jDEFi,j), seu gênero g2′gGENEROi,g) e a interação entre algum tipo de deficiência e gênero (β3,g · DEFi · GENEROi,g), sua raça/cor r4,rRACAi,r) e pela interação entre algum tipo de deficiência e raça> (β5,r · DEFi · RACAi,r), e por um conjunto de K variáveis de controle dos indivíduos i (Xi,k). Os efeitos fixos de cada ocupação r são capturados pelo vetor μr, para o conjunto de variáveis binárias OCUPr, que representam cada uma das ocupações no mercado de trabalho. O erro associado ao indivíduo i é capturado pelo termo εεi.

O modelo apresentado na Equação 1 é um modelo de efeitos fixos (Wooldridge 2010Wooldridge, Jeffrey M. 2010. Econometric Analysis of Cross Section and Panel Data. Cambridge: MIT Press.) e será utilizado para testar duas hipóteses. A primeira verifica o efeito de cada um dos quatro tipos de deficiência na renda do trabalhador. Se β1,j ≠ 0, poderemos concluir que a deficiência do trabalhador afeta sua renda. A segunda hipótese atesta o efeito das interseccionalidades na renda do trabalhador. Neste caso, se algum dos coeficientes β3,g ou β5,r for diferente de zero teremos evidências do efeito das interseccionalidades. A análise dos resultados utiliza a estimativa de erro robusta (Wooldridge 2010Wooldridge, Jeffrey M. 2010. Econometric Analysis of Cross Section and Panel Data. Cambridge: MIT Press.) ao nível de significância de 1%.

Interseccionalidade na discriminação salarial de PCD no Brasil: testes e resultados

A Tabela 2 apresenta os resultados dos modelos de regressão multivariada. Por uma questão de parcimônia, a tabela não apresenta os efeitos de cada uma das 123 ocupações.

Tabela 2
Modelos de regressão multivariada com efeitos fixos de ocupações. Variável dependente: Renda (ln)

Os quatro modelos apresentam R2 ajustado maior que 0,8, indicando que boa parte da variância da renda é explicada. Analisando os resultados, nota-se que todas as variáveis explicativas são significantes ao nível de 1%. Desta forma, rejeita-se a hipótese nula que estabelece que não há discriminação salarial das PCD.

Comparando-se a discriminação salarial de cada tipo de deficiência, no modelo M1 observa-se que a maior discriminação ocorre para os trabalhadores(as) com deficiência visual grave. Nesta comparação, utiliza-se o coeficiente beta padronizado, uma vez que este modelo inclui variáveis com diferentes escalas de medidas. Para um aumento de um desvio padrão na presença de pessoas com deficiência visual, há uma redução de 0,003 desvios padrão no logaritmo da renda desses trabalhadores(as). O segundo tipo de deficiência com maior discriminação é a deficiência motora. Para cada desvio padrão de aumento na presença de deficiências físicas há uma diminuição no logaritmo da renda de ٠,٠02 desvios padrão. Em terceiro lugar, para um crescimento de um desvio padrão na presença de deficiências mentais ou auditivas há uma queda de ٠,٠01 desvios padrão no logaritmo da renda desses trabalhadores(as).

Outra evidência interessante é que a discriminação salarial dos(as) trabalhadores(as) com deficiência é substancialmente menor que a discriminação de outros grupos sociais minoritários testados nesse modelo, a saber gênero e raça/cor. Enquanto o aumento de um desvio padrão na proporção de trabalhadores(as) com deficiência visual reduz em 0,003 desvios padrão o logaritmo da renda, a mesma mudança na proporção no número de mulheres propicia uma redução de 0,019 desvios padrão na renda, ou seja, o efeito do gênero é seis vezes maior que o da deficiência visual. De forma similar, o efeito da raça/cor do trabalhador (não brancos) é quase quatro vezes maior que o efeito da deficiência visual.

Nota-se na observação desses resultados que, embora exista discriminação salarial contra todos os quatro tipos de deficiências no mercado de trabalho brasileiro, tal discriminação é de menor magnitude, quando comparada a outros marcadores sociais da diferença. As variáveis com efeito mais substancial na renda são idade, número de horas semanais trabalhadas, e carteira de trabalho assinada.

Os modelos 2, 3 e 4 testaram a hipótese da interseccionalidade de que os marcadores sociais da desigualdade se acumulam, gerando disparidades sociais ainda maiores. A inclusão das interações no modelo gerou problemas de multicolinearidade (VIF<0,03). Para mitigar esse problema optou-se por excluir o efeito isolado das variáveis gênero e raça/cor, e por mensurar as interações entre raça/cor e gênero apenas com um indicador de PCD (e não com cada tipo de deficiência individualmente).

No modelo 2, buscou-se mensurar a interação entre a raça/cor e a existência de, pelo menos, uma das deficiências identificadas pelo IBGE. Tomamos, portanto, como referência pessoas brancas, sem deficiência. Temos nesse modelo que, em relação aos brancos sem deficiência, os(as) trabalhadores(as) não brancos sem deficiência são aqueles que recebem as remunerações mais baixas, seguidos pelos não brancos com deficiência e, por último, os brancos com deficiência. Vale ressaltar que o diferencial entre o trabalhador não branco sem deficiência e o trabalhador branco com deficiência é maior do que o diferencial entre o não branco com deficiência e o branco com deficiência.

Resultados parecidos foram encontrados no modelo 3, onde examinou-se a interação entre gênero e deficiência. Neste caso, temos como referência os trabalhadores homens, sem deficiência. Em relação a estes, as mulheres sem deficiência são aquelas que se encontram no pior estrato, seguidas pelas mulheres com deficiência e, por último, temos os homens com deficiência. Os resultados dos modelos 2 e 3 revelam, de uma forma geral, uma maior potência discriminatória das categorias raça/cor e gênero em relação às pessoas com deficiência. Uma possível interpretação desse resultado é, por contemplar um universo de pessoas inseridas no mercado formal de trabalho, as normativas que desde a década de 1990 determinam a formulação de políticas públicas que garantem a entrada de PCD nas empresas, já apresentem hoje um efeito direto na discriminação dessas pessoas no mercado de trabalho.

Deficiência e a perspectiva interseccional

Neste artigo investigou-se a discriminação salarial de empregados(as) do setor privado com algum tipo de deficiência (visual, auditiva, motora ou mental) em comparação com empregados do mesmo setor sem nenhuma dessas deficiências. Testou-se modelo de regressão linear multivariada com efeitos fixos por ocupação para se estimar o efeito da presença de cada tipo de deficiência, bem como do gênero e da raça/cor do trabalhador(a), e do acúmulo dessas características, no salário dos mesmos, utilizando dados do Censo Demográfico 2010 (IBGE).

Os resultados mostram evidências da discriminação salarial para os quatro tipos de deficiência analisados. Tal discriminação é mais substancial para trabalhadores(as) que possuem deficiência visual severa, seguido dos que possuem deficiência física severa, pelos que possuem deficiências mentais e auditiva. Embora a discriminação salarial seja evidenciada para os quatro tipos de deficiência investigados, tais discriminações são de pequena magnitude quando comparados com as discriminações salariais de outros grupos sociais minoritários, como mulheres e trabalhadores/as de cor declarada não branca (pretos, amarelos, pardos e indígenas). O caso mais gritante é o das mulheres, cuja discriminação é cerca de seis vezes superior a daqueles com deficiência visual, que são os mais discriminados dentre as pessoas com deficiência. Embora a discriminação das pessoas com deficiência seja de menor magnitude, os resultados geram preocupações relativas às políticas públicas para proteger esse grupo de trabalhadores(as), dada a agenda de reformas trabalhistas em execução no Estado brasileiro, em direção à menor regulação das relações de trabalho e, consequentemente, menor regulação no que tange à proteção do emprego e condições de vida das minorias.

Verificou-se também a hipótese da interseccionalidade de que os marcadores sociais da desigualdade se acumulam. Para tal, foram incluídas interações nos modelos apresentados. Os resultados das interações mostram que as mulheres sofrem mais discriminação salarial que os homens e que a presença de deficiências potencializa essa discriminação salarial, o que corrobora a hipótese da interseccionalidade.

Ao refletir sobre os porquês da (aparente) maior força discriminatória das categorias raça/cor e gênero em relação às pessoas com deficiência, é importante levar em conta que as pessoas com deficiência incluídas neste estudo são aquelas já inseridas no mercado formal de trabalho. Logo, essa menor discriminação das pessoas com deficiência pode ser efeito direto das normativas que determinaram, desde a década de 1990, a criação de cotas para esse segmento, bem como das políticas públicas de incentivo ao cumprimento das leis, e o monitoramento e fiscalização pelas quais as empresas privadas passaram a ser submetidas desde então. Logo, em um regime de reserva de vagas, é possível que a inclusão desse grupo no mercado de trabalho dilua os efeitos dos outros marcadores sociais da desigualdade. Isto é, entre as pessoas com deficiência, devido às cotas que garantem a inserção no mercado de trabalho, os impactos da raça e do sexo nos diferenciais de renda são mais brandos do que entre os indivíduos sem deficiência, que estão em regime de ampla concorrência. Isto explicaria o fato de os efeitos discriminatórios mais substanciais serem o de não brancos no modelo 2 e o de mulheres sem deficiência no modelo 3. É, portanto, possível pensar na hipótese de que políticas de inclusão em um determinado eixo (neste caso, de pessoas com deficiência) enseje também em desigualdades menos severas em outros campos.

Outro fator que vale a pena ser considerado é que, em se tratando do mercado de trabalho formal, é possível imaginar que muitas das pessoas com deficiência contempladas pela pesquisa são provavelmente provenientes de classes sociais mais altas e tiveram, portanto, estrutura familiar e financeira de desenvolvimento e inserção no marcado de trabalho. Isso é relevante principalmente porque os outros marcadores de desigualdade considerados neste artigo são justamente aqueles que estão mais presentes no mercado informal, sendo as mulheres negras aquelas que, proporcionalmente, mais ocupam o espaço da informalidade (Ávila 2013Ávila, Maria Betânia de M. 2013. A dinâmica do trabalho produtivo e reprodutivo: uma contradição viva no cotidiano das mulheres. In Mulheres Brasileiras e gênero nos espaços públicos e privado, organizado por Gustavo Venturi e Tatau Godinho, 231-243. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo. ).

Independentemente da magnitude da discriminação às pessoas com deficiência, essas discriminações demandam políticas públicas voltadas às garantias de inclusão desses grupos sociais. À época que os dados utilizados neste estudo foram coletados, um conjunto de leis e acordos internacionais regulavam a ação dos empregadores a fim de evitar discriminações. Já no momento da redação deste artigo, dez anos depois, reformas trabalhistas de cunho neoliberal foram e continuam sendo implementadas, visando diminuir a regulação do Estado e aumentar a liberdade dos empregadores para negociar com trabalhadores(as), inclusive individualmente, sem a proteção de um sindicato. Tal liberalização do mercado de trabalho pode resultar em aumento das discriminações já existentes. Como exemplo pode-se citar a exclusão da base de cálculo da cota para contratação de Pessoas Com Deficiência em 18 ocupações, acordada em convenção coletiva de trabalho entre o Sindicato de empresas de asseio e conservação do estado de São Paulo (Seac-SP) e o Sindicato dos(as) trabalhadores(as) em empresas prestadoras de serviço em asseio e conservação e limpeza urbana (Siemaco) das unidades regionais São Paulo capital, Campinas e Região, em 2018.15 15 Silva, Maísa S. C. 2019. Negociação coletiva no setor de Asseio e Conservação do estado de SP - Análise dos anos recentes e impacto da Reforma Trabalhista. XVI Encontro Nacional da ABET - 3 a 6 set. 2018, Ufba, Salvador (BA). Acessado em 5 mar. 2020, https://www.abet2019.sinteseeventos.com.br/simposio/public. Ou seja, os sindicatos de trabalhadores(as) e empregadores decidiram, em convenção coletiva, o rebaixamento dos direitos de uma minoria (pessoas com algum tipo de deficiência), violando a Convenção 159 da OIT (ratificada pelo Brasil em 1990), que assegura a igualdade de oportunidade e tratamento no emprego a todas as pessoas com deficiência.

  • 3
    Cacciamali, Maria Cristina; Fábio Tatei e Jackson William Rosalino. 2009. Estreitamento dos diferenciais de salários e aumento do grau de discriminação: limitações da mensuração padrão. Planejamento e Políticas Públicas 33: 195-222. Acessado em 12 ago. 2019, https://www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/159. Souza, Paola Faria Lucas, Márcio Antônio Salvato e João Mário Santos De Franį. 2013. Ser mulher e negro no Brasil ainda leva a menores salários? Uma análise de discriminação para Brasil e regiões: 2001 e 2011. Anais do Encontro Nacional de Economia, 41. Foz do Iguaçu: Anpec/UFPR. Acessado em 5 mar. 2020, https://ideas.repec.org/p/anp/en2013/238.html.
  • 4
    A variável sexo foi usada como proxy de gênero.
  • 5
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 2012. Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE. Acessado em 20 jul. 2018, https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf.
  • 6
    Pereira, Ana Camila R. e Sonoe S. Pinheiro. 2016. Fatores associados a chance de estar no mercado de trabalho: brasileiros com e sem deficiência no ano de 2010. Anais VII Congreso de la asociación latinoamericanade población e XX encontro de estudos populacionais (outubro): 1-21. Acessado em 1 jun. 2018, http://abep.org.br/xxencontro/index.php/programacao.
  • 7
    Organização das Nações Unidas. 1975. Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes. Acessado em 20 set. 2019, https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-das-pessoas-com-deficiencia.
  • 8
    Brasil. 1982. Lei nº 7.070, de 20 de dezembro de 1982. Dispõe sobre pensão especial para os deficientes físicos que especifica, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 21 de dez.1982. Acessado em 10 jun. 2019, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1980-1988/l7070.htm.
  • 9
    Brasil, 1999. Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Regulamenta a Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências. Acessado em 10 jun. 2019, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm.
  • 10
    De acordo com o artigo 428 da CLT, o contrato de aprendizagem é o contrato de trabalho especial, com prazo determinado, em que o empregador se compromete a assegurar ao maior de 14 e menor de 24 anos, formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico. Acessado em 1 ago. 2021, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm.
  • 11
    Oliveira, Ludmilla Cavarzere, Valquiria T. Cavalli e Sidival T. Guidugli. 2017. Política pública de inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho: algumas considerações sobre sua formulação, implementação e avanços de 1991 até 2015. Planejamento e Políticas Públicas 48: 107-148. Acessado em 20 set. 2019, https://www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/623/430.
  • 12
    Pereira, Ana Camila R. e Sonoe S. Pinheiro. 2016. Fatores associados a chance de estar no mercado de trabalho: brasileiros com e sem deficiência no ano de 2010. Anais VII Congreso de la asociación latinoamericanade población e XX encontro de estudos populacionais (outubro): 1-21. Acessado em 1 jun. 2018, http://abep.org.br/xxencontro/index.php/programacao.
  • 13
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 2012. Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE. Acessado em 20 jul. 2018, https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf.
  • 14
    Antigo, Mariângela Furlan, Daniela G. P. Lacerda e Sandro E. Monsueto. 2017. Uma análise do padrão de rendimentos por cor e gênero no Brasil no século XXI. Anais VII Congreso de la Asociación Latino-americana de Población e XX Encontro de Estudos Populacionais, Foz do Iguaçu, (outubro): 1-21. Acessado em 1 jun. 2018, http://abep.org.br/xxencontro/index.php/programacao.
  • 15
    Silva, Maísa S. C. 2019. Negociação coletiva no setor de Asseio e Conservação do estado de SP - Análise dos anos recentes e impacto da Reforma Trabalhista. XVI Encontro Nacional da ABET - 3 a 6 set. 2018, Ufba, Salvador (BA). Acessado em 5 mar. 2020, https://www.abet2019.sinteseeventos.com.br/simposio/public.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

Referências

  • Almeida, Philippe O. e Luana A. Araújo. 2020. DisCrit: os limites da interseccionalidade para pensar sobre a pessoa negra com deficiência. Revista Brasileira de Políticas Públicas 10 (2): 611-641. https://doi.org/10.5102/rbpp.v10i2.6861
    » https://doi.org/10.5102/rbpp.v10i2.6861
  • Ávila, Maria Betânia de M. 2013. A dinâmica do trabalho produtivo e reprodutivo: uma contradição viva no cotidiano das mulheres. In Mulheres Brasileiras e gênero nos espaços públicos e privado, organizado por Gustavo Venturi e Tatau Godinho, 231-243. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.
  • Collins, Patricia H. 1998. It’s all in the family: intersections of gender, race, and nation. Hypatia 13 (3): 62-82. https://doi.org/10.1111/j.1527-2001.1998.tb01370.x
    » https://doi.org/10.1111/j.1527-2001.1998.tb01370.x
  • Crenshaw, Kimberlé. 1994. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. In The public nature of private violence, organizado por Martha Albertson Fineman e Rixanne Mykitiuk, 93-118. New York: Routledge.
  • Diniz, Débora. 2007. O que é deficiência São Paulo: Editora Brasiliense.
  • Gesser, Marivete, Adriano H. Nuernberg e Maria Juracy F. Tonelli. 2012. A contribuição do modelo social da deficiência à psicologia social. Psicologia & Sociedade 24 (3): 557-566. https://doi.org/10.1590/S0102-71822012000300009
    » https://doi.org/10.1590/S0102-71822012000300009
  • Gomes, Ruthie B., Paula Helena Lopes, Marivete Gesser e Maria Juracy F. Toneli. 2019. Novos diálogos dos estudos feministas da deficiência. Revista Estudos Feministas 27 (1):1-14. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n148155
    » https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n148155
  • Kantola, Johanna, Emanuela Lombardo, orgs. 2017. Gender and the economic crisis in Europe: Politics, institutions and intersectionality London: Springer.
  • Kymlicka, Will. 2020. Multicultural citizenship. In The new social theory reader, organizado por Steven Seidman e Jeffrey C. Alexander, 270-280. London: Routledge.
  • Neri, Marcelo, Alexandre Pinto, Wagner Soares e Hessia Costilla. 2003. Retratos da deficiência no Brasil Rio de Janeiro: FGV.
  • Rawls, John. 1999. A theory of justice: revised edition Cambridge: Harvard University Press.
  • Shakespeare, Tom. 2014. Disability rights and wrongs revisited 2 ed. Londres: Routledge.
  • Shakespeare, Tom. 1996. Disability, identity and difference. In Exploring the divide, organizado por Colin Barnes e Geof Mercer, 94-113. Leeds: The Disability Press.
  • Taylor, Charles. 1994. Multiculturalism New Jersey: Princeton University Press.
  • Walby, Sylvia. 2007. Complexity theory, systems theory, and multiple intersecting social inequalities. Philosophy of the social sciences 37 (4): 449-470. https://doi.org/10.1177/0048393107307663
    » https://doi.org/10.1177/0048393107307663
  • Walby, Sylvia, Jo Armstrong e Sofia Strid. 2012. Intersectionality: multiple inequalities in social theory. Sociology 46: 224-240. https://doi.org/10.1177/0038038511416164
    » https://doi.org/10.1177/0038038511416164
  • Walzer, Michael. 2003. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade São Paulo: Martins Fontes.
  • Wooldridge, Jeffrey M. 2010. Econometric Analysis of Cross Section and Panel Data. Cambridge: MIT Press.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2021
  • Aceito
    13 Jan 2022
  • Publicado
    30 Nov 2022
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Av. Ipiranga, 6681 - Partenon, Cep: 90619-900, Tel: +55 51 3320 3681 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: civitas@pucrs.br