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A (c)idade importa! Conceções, experiências e deambulações de crianças pequenas

The (city)age matters! Conceptions, experiences and wanderings of young children

¡La (ciu)edad importa! Concepciones, vivencias y andanzas de niños y niñas

Resumo:

Trabalhar teoricamente a ideia de geração e diversidade das experiências das crianças no espaço público é um desafio que tem ganho visibilidade nos últimos anos. Centradas, sobretudo, em ideias como o direito à cidade e ao espaço público por diferentes grupos geracionais e aos direitos de participação na construção e conceção de espaços adequados às diferentes idades, as perspetivas teóricas têm salientado as competências das crianças em analisar, experienciar e viver o espaço público. Ao mesmo tempo, discutem-se as tensões e as dificuldades desses processos a partir da Sociologia da Infância. O estudo de caso realizado em um jardim de infância em Lisboa, em 2019/2020, procurou caracterizar as conceções e as experiências das crianças sobre o bairro onde vivem quebrando, assim, a ideia de exclusão das crianças mais pequenas sobre o pensamento sobre a cidade e os ambientes que vivem e experienciam, quotidianamente. No final, lançam-se diferentes questionamentos a partir dos quadros teóricos trabalhados e das análises realizadas.

Palavras-chave:
Crianças; Cidade; Jardim de infância; Portugal

Abstract:

Working theoretically on the idea of generation and the diversity of children's experiences in the public space is a challenge that has gained visibility in recent years. Centred, above all, on ideas such as the right to the city and the public space by different generational groups and the rights to participate in the construction and design of spaces suitable for different ages, the theoretical perspectives have highlighted children's competences in analysing, experiencing and living the public space. At the same time, the tensions and difficulties of these processes are discussed based on the Sociology of Childhood. The case study carried out in a kindergarten in Lisbon, during the school year of 2019/2020, wanted to characterize children's conceptions and experiences about the neighbourhood where they live, thus breaking the idea of exclusion of younger children about thinking about the city and the environments they live and experience, every day. In the end, different questions are raised based on the theoretical frameworks worked and the analyses carried out.

Keywords:
Children; City; Kindergarten; Portugal

Resumen:

Trabajar teóricamente sobre la idea de generación y la diversidad de experiencias de los niños y niñas en el espacio público es un desafío que ha ganado visibilidad en los últimos años. Centradas, sobre todo, en ideas como el derecho a la ciudad y al espacio público por parte de diferentes grupos generacionales y el derecho a participar en la construcción y diseño de espacios adecuados para diferentes edades, las perspectivas teóricas han destacado a los diferentes niños y niñas en el análisis, experimentar y vivir el espacio público. Al mismo tiempo, se discuten las tensiones y dificultades de estos procesos a partir de la Sociología de la Infancia. El caso de estudio realizado en un centro de educación infantil en Lisboa, en 2019/2020, buscó caracterizar las concepciones y vivencias de los niños sobre el barrio donde viven, rompiendo así la idea de exclusión de los más pequeños al pensar en la ciudad y los entornos que viven y viven, cada día. Al final, se plantean diferentes cuestiones en base a los marcos teóricos trabajados y los análisis realizados.

Palabras clave:
Niños y Niñas; Ciudad; Centro de educación infantil; Portugal

Introdução3 3 Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia - FCT, I.P., no âmbito do projeto “UIDB/04647/2020” do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa – CICS.Nova. O ProChild CoLAB conta com apoio do Programa Operacional Norte 2020, Portugal 2020, Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), do Fundo Social Europeu (FSE) e do Programa Operacional de Capital Humano (IF/00750/2015/CP1294/CT0011).

O presente artigo pretende evidenciar a importância do acesso à cidade e ao espaço público pelas crianças, e das suas competências para o explorarem e nele construírem experiências significativas. Apesar da importância social e académica que assume o espaço urbano, é comum observar-se um distanciamento das crianças dele. Deste modo, o estudo de caso que aqui se apresenta, realizado em um jardim de infância em Lisboa, em 2019/2020, procura caraterizar as conceções e as experiências das crianças sobre o bairro onde vivem quebrando, assim, a ideia de exclusão das crianças mais pequenas sobre o pensamento sobre a cidade e os ambientes que vivem e experienciam quotidianamente. A pesquisa permite-nos observar que, para lá do conhecimento que vão acumulando sobre os espaços, as crianças, são também capazes de encontrar diferentes possibilidades para resolução dos problemas que as afetam, individual e coletivamente.

No início do século 21 renova-se o interesse por essa temática sobretudo a atenção nos benefícios de as crianças brincarem ao ar livre e nos impactos positivos que tem para o seu bem-estar. Não obstante, o tempo longo que as crianças passam em contextos socioeducativos não tem correspondido a um tempo de promoção da participação delas nos espaços públicos, nos contextos educativos, nas escolas e nas comunidades onde estão inseridas. A educação é confinada quase exclusivamente ao contexto escolar formal. Ainda, observando-se as limitações de acesso das crianças ao espaço público, diferentes autores têm evidenciado uma conceção adulta do que um espaço apropriado para crianças deve ser, fundamentalmente tentando ultrapassar a ideia de “medo” e de “risco” (Gill 2007Gill, Tim. 2007. No fear growing up in a risk averse society. London: Calouste Gulbenkian Foundation.; Malone e Rudner 2017Malone, Karen, e Julie Rudner. 2017. Child-friendly and sustainable cities: exploring global studies on children's freedom, mobility, and risk. In Risk, protection, provision and policy, organizado por Claire Freeman, Paul Tranter, e Tracey Skelton, 1-13. Singapore: Springer.; Pitsikali e Parnell 2019Pitsikali, Alkistis, e Rosie Parnell. 2019. The public playground paradox: ‘child's joy’ or heterotopia of fear? Children's Geographies 17 (6): 719-31. https://doi.org/10.1080/14733285.2019.1605046.
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; Seixas, Tomás e Giacchetta 2020Seixas, Eunice, Catarina Tomás, e Niccolò Giacchetta. 2020. Os jardins/parques urbanos de lisboa pelo olhar de adultos e pela ação das crianças. Revista Práxis Educacional 16(40):134-63. https://doi.org/10.22481/praxisedu.v16i40.6890.
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). Assim, a ideia de que o usufruto das crianças do espaço público é um fator de risco para o seu bem-estar tem levado a uma preocupação excessiva por parte dos adultos que o passam a limitar. No entanto, diferentes pesquisas apontam a competência das crianças em gerir o seu próprio risco (Foley e Leverett 2011Foley, Pam, e Stephen Leverett. 2011. Children and young people's spaces: developing practice. Basingstoke: Palgrave Macmillan.), existindo uma tendência crescente destes estudos em integrar as perspetivas das crianças e os modos como utilizam e vivenciam os espaços. Tal como exploraremos no artigo, as crianças podem sentir-se “deslocadas” dos espaços públicos de duas formas – ou porque sofrem práticas de exclusão de agentes externos (por exemplo, via efeito das políticas públicas), ou porque se autopoliciam.

As alterações e modificações constantes destes espaços públicos justificaram, como afirmamos, uma ênfase em lógicas de proteção que se tem sobreposto às de usufruto e de direito à sua utilização, em particular com crianças mais pequenas. Esta ideia é sustentada por Gill (2007)Gill, Tim. 2007. No fear growing up in a risk averse society. London: Calouste Gulbenkian Foundation. quando afirma que a infância tem vindo a ser prejudicada por lógicas de aversão ao risco. Esta aversão ajuda a compreender, por exemplo, que atividades quotidianas levadas a cabo por gerações anteriores são, agora, vistas como perigosas, sendo a sociedade incapaz de conviver com resultados adversos desse usufruto, ainda que estes possam ser altamente improváveis.

Por outro lado, a liberdade das crianças no espaço público tem vindo a diminuir, enquanto a supervisão e controlo adulto parecem ter aumentado. A institucionalização dos tempos das crianças, inclusive os “livres”, é uma marca das sociedades contemporâneas (Gobbi et al. 2022Gobbi, Márcia, Cleriston dos Anjos, Eunice Seixas, e Catarina Tomás. 2022. O direito das crianças à cidade. Perspetivas desde o Brasil e Portugal. São Paulo: Feusp.).

No seguimento destas preocupações, retomamos a ideia de insularização do espaço urbano, defendida por Zeiher (2003)Zeiher, Helga. 2003. Shaping daily life in urban environments. In Children in the city: home, neighborhood and community, organizado por Pia Christensen, e Margaret O’Brien. 66-68. London: Routledge Falmer., onde a crescente especialização do espaço e o modo como as crianças nele se deslocam quebram o continuum dessas experiências. Como afirmam Sarmento, Marchi e Trevisan (2018Sarmento, Manuel, Rita Marchi, e Gabriela Trevisan. 2018. Beyond the modern ‘norm’ of childhood: children at the margins as a challenge for the Sociology of Childhood. In Theorising childhood: citizens, rights and participation, organizado por Claudio Baraldi e Tom Cocburn, 135-57. London: Palgrave., 6),

a cidade é um contexto onde ocorre o processo de institucionalização, na sua dupla aceção: por um lado, a normatividade infantil contemporânea é, em larga medida, decorrente de uma conceção urbana e ocidentalocêntrica da modernidade e, por outro lado, a cidade é o espaço social onde proliferam as instituições para as crianças: escolas, jardins de infância, creches, ateliês de tempos livres, clubes, lares e casas de acolhimento de acolhimento, etc. O processo de institucionalização incrementa as regras e limites de ação das crianças no espaço.

Vivendo em espaços altamente especializados e sem autonomia para explorarem o espaço, as crianças vivem as cidades de modo fragmentado e com pouco conhecimento dos ambientes que habitam, encontrando ainda poucas oportunidades para participar na construção de políticas pública que incluam a sua voz e experiência.

Crianças, cidade e cidadania: uma relação (pouco) intricada

As questões da relação entre crianças e espaço público, e com as cidades em particular, têm ganho particular relevância nos últimos anos com contributos de diferentes áreas do saber. Como temos vindo a argumentar, as crianças e jovens representam uma das categorias específicas de atores capazes de transformar a cidade e de serem por ela influenciadas, quer individual quer coletivamente. Importa, por isso, olhar a cidade como espaço das crianças, não apenas para as crianças, e entender de que modo poderá tornar-se promotor da sua cidadania. Esta consciência poderá ajudar a compreender a tendência crescente de envolvimento e participação dos cidadãos em estratégias de planeamento urbano e de melhoria do espaço público que visam, fundamentalmente, a incorporação dos modos como percecionam a cidade e as melhorias que nela introduziriam (Corney e Howard 2020Corney, Tim, e Williamson Howard. 2020. Approaches to youth participation in youth and community work practice: a critical dialogue. Youth Workers Association.; Trevisan 2020Trevisan, Gabriela. 2020. A participação das crianças nos discursos e práticas: um breve “estado da arte” na procura de novos desafios. In A defesa dos direitos da criança: uma luta sem fronteiras, organizado por Manuel Jacinto Sarmento, Natália Fernandes, e Romilson Martins Siqueira. 129-48. Publisher: Cânone Editorial.). A inclusão das crianças nestas iniciativas, ainda que pouco representativa no contexto português, tem sido realizada sobretudo por iniciativas locais e comunitárias, frequentemente inseridas em diferentes programas mais globais, como é o caso das Cidades Amigas das Crianças (Unicef) e de políticas urbanas locais que procuram construir espaços e mecanismos de auscultação e participação das crianças, muitas vezes, incluindo o espaço público ou o espaço escolar (Matos e Tomás 2013Matos, Ana Raquel, e Catarina Tomás. 2013. A democracia (também) é conversa para crianças. O Orçamento Participativo como prática democrática. In Proceedings Cive Morum 2013 International Congress, organizado por Hernâni V. Neto, e Sandra L. Coelho, 53-6. Vila do Conde: Civeri Publishing.). Não nos deteremos em uma análise alongada sobre a adequação e a capacidade de participação das crianças nestas experiências, mas uma das questões que emerge com frequência prende-se com a pouca representatividade de crianças que muitos destes espaços têm, nomeadamente em termos de idade. Na verdade, a maioria das experiências de participação das crianças, sobretudo as políticas, dirige-se a jovens ou a crianças em idade escolar e mais velhas, deixando de fora as crianças mais pequenas, nomeadamente as que frequentam a educação pré-escolar (Trevisan 2014Trevisan, Gabriela. 2014. ‘Somos as pessoas que temos de escolher, não são as outras pessoas que escolhem por nós’. Infância e cenários de participação pública: uma análise sociológica dos modos de codecisão das crianças na escola e na cidade. Tese em Estudos da Criança, Universidade do Minho, Braga.; 2020Trevisan, Gabriela. 2020. A participação das crianças nos discursos e práticas: um breve “estado da arte” na procura de novos desafios. In A defesa dos direitos da criança: uma luta sem fronteiras, organizado por Manuel Jacinto Sarmento, Natália Fernandes, e Romilson Martins Siqueira. 129-48. Publisher: Cânone Editorial.). Como observam Freeman, Ergler e Guiney (2017)Freeman, Claire, Christina Ergler e Tess Guiney. 2017. Planning with preschoolers: city mapping as a planning tool. Planning Practice & Research 32 (3): 297-318. https://doi.org/10.1080/026974502200005682.
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, os planeadores urbanos precisam de encontrar modos de garantir que as crianças, independentemente da idade, podem fazer parte da conversa sobre planeamento. Assistimos nas últimas duas décadas ao desenvolvimento de pesquisas sobre crianças mais velhas e experiências de bem-estar em ambientes urbanos (Freeman e Tranter 2011Freeman, Claire, e Paul Tranter. 2011 Children's urban environments: changing worlds. London: Routledge.; Hörschelmann e van Blerk 2012Hörschelmann, Kathrin e Lorraine van Blerk. 2012. Children, youth and the city. London: Routledge.). Não obstante, pouco se sabe sobre crianças pequenas e as suas vivências quotidianas nas cidades (Chawla 2002Chawla, Louise. 2002. Growing up in an urbanizing world. Paris: Unesco Publishing.; Freeman, Ergler e Guiney 2017Freeman, Claire, Christina Ergler e Tess Guiney. 2017. Planning with preschoolers: city mapping as a planning tool. Planning Practice & Research 32 (3): 297-318. https://doi.org/10.1080/026974502200005682.
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). Uma outra dimensão de análise prende-se também com o facto de pouco se saber como as crianças entendem e atribuem significado aos seus mundos sociais e culturais através do espaço/lugar (Danby et al. 2016Danby, Susan, Christina Davidson, Stuart Ekberg, Helen Breathnach e Karen Thorpe. 2016. ‘Let's see if you can see me’: making connections with Google Earth™ in a preschool classroom. Children's Geographies 14 (2): 141-57. https://doi.org/10.1080/14733285.2015.1126231.
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).

De resto, e seguindo um conjunto de questões já colocadas sobre o paradigma da competência das crianças, a razão para esta não inclusão é a opinião relativamente comum que as crianças em idade pré-escolar não têm competência para refletir de forma significativa em ambientes de grande escala (Christensen e O’Brien 2003Christensen, Pia, e Margaret O’Brien. 2003. Children in the city: home, neighbourhood and community. London: Routledge Falmer.). No entanto, diferentes experiências e pesquisas têm demonstrado o contrário.

Por exemplo, em diferentes exercícios de mapeamento do território com as crianças, a valorização das suas experiências e perceções é central para a construção de ações significativas no espaço, nos percursos e nas mobilidades quotidianas. Diferentes estudos têm demonstrado as competências das crianças no conhecimento, apropriação e transformação dos espaços que habitam (Christensen 2003Christensen, Pia. 2003. Place, space and knowledge children in the village and the city. In Children in the City: home, neighbourhood and community, organizado por Pia Christensen e Margaret O’Brien, 13-28. London: Routledge Falmer.; Trevisan 2014Trevisan, Gabriela. 2014. ‘Somos as pessoas que temos de escolher, não são as outras pessoas que escolhem por nós’. Infância e cenários de participação pública: uma análise sociológica dos modos de codecisão das crianças na escola e na cidade. Tese em Estudos da Criança, Universidade do Minho, Braga.; Sarmento 2018Sarmento, Manuel. 2018. Infância e Cidade: Restrições e possibilidades. Educação 41 (2): 232-40. https://doi.org/10.15448/1981-2582.2018.2.31317.
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; Sarmento e Trevisan4 4 Sarmento, Manuel, e Gabriela Trevisan. 2018. Local childhood citizenship: programs for children's participation in the city (paper). Parallel session I: Political participation. 9th Child and the City World Conference. 24-26th September 2018. Vienna: Austria. Acessado em 9 ago. 2022. https://bityli.com/wQJJBhoL; Sarmento, Manuel, e Gabriela Trevisan. 2019. Crossing roots: interdisciplinary challenges of a critical and public Sociology of Childhood. Sociology of Children and Childhood. RN04- 09a Borders and Theory in Childhood Studies II. ESA Congress: Europe and Beyond: boundaries, barriers and belonging. Manchester, 20-23 Aug. United Kingdom. https://bityli.com/acbXPPui. 2018Sarmento, Manuel, Rita Marchi, e Gabriela Trevisan. 2018. Beyond the modern ‘norm’ of childhood: children at the margins as a challenge for the Sociology of Childhood. In Theorising childhood: citizens, rights and participation, organizado por Claudio Baraldi e Tom Cocburn, 135-57. London: Palgrave.; 2019). A cidade é também um espaço de encontros inter e intrageracionais e interespécies, devendo ter-se em conta a não uniformização das vivências das crianças contemporâneas no espaço (Christensen 2003Christensen, Pia. 2003. Place, space and knowledge children in the village and the city. In Children in the City: home, neighbourhood and community, organizado por Pia Christensen e Margaret O’Brien, 13-28. London: Routledge Falmer.; Spyrou 2018Spyrou, Spyros. 2018. Disclosing childhoods - research and knowledge production for a critical childhood studies. London: Palgrave MacMillan.). A cidade pode também ser olhada como paisagem de poder (Zukin 2000Zukin, Sharon. 2000. Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder. In O espaço da diferença, organizado por António Arantes. 104-15. Campinas: Papirus.) onde o controlo social das crianças é exercido por adultos, de modo coletivo, mais formalizado, nomeadamente em estruturas específicas para elas. É neste sentido que diferentes autores têm apelado a que se observe a autonomia de mobilidade das crianças, em particular nas dimensões de bairro e rua (Christensen 2003Christensen, Pia. 2003. Place, space and knowledge children in the village and the city. In Children in the City: home, neighbourhood and community, organizado por Pia Christensen e Margaret O’Brien, 13-28. London: Routledge Falmer.), às mobilidades quotidianas e microgeográficas, bem como de fazer sentido do lugar (Horton, Kraftl e Tucker 2011Horton, John, Peter Kraftl, e Faith Tucker. 2011. Spaces-in-the-making, childhoods-on-the-move. In Children and young people's spaces: developing practice, organizado por Pam Foley e Stephen Leverett, 25-39. Basingstoke: Palgrave Macmillan.).

A restrição do uso do espaço público condiciona as diferentes experiências individuais e coletivas da Infância nos espaços que circundam os seus contextos. De facto, esta limitação vem acrescer ao uso já limitado das crianças destes tipos de espaços e à pouca autonomia de que, por norma, dispõem para os explorar. Por outro lado, as questões de acesso ao espaço relacionam-se também diretamente com as possibilidades de mobilidade das crianças e adultos e com recursos para promover essa deslocação. Efetivamente é entre as crianças de condição social desfavorecida, constituinte de uma estrutura social desigual, processa-se muito precocemente na infância, quando essas experiências tendem a ser menos ricas e frequentes, quer pela ausência destes espaços e equipamentos nos locais onde residem quer pela dificuldade em aceder àqueles que lhes são exteriores.

O usufruto do direito ao espaço e ao lugar não é, assim, equitativamente garantido a todas as crianças, sublinhando a importância de políticas que promovam a equidade e o combate às desigualdades sociais. É neste quadro que o jardim de infância (JI) se torna um lugar especialmente instigante para se compreender como crianças pequenas dão sentido às suas vivências no espaço público, nomeadamente no seu bairro, e como as “transportam” para o seu quotidiano do JI e para as redes de relações, atravessadas por negociações, conflitos, estereótipos e desigualdades, como se procura mostrar.

Pressupostos ético-metodológicos e contextuais

A investigação realizada assume uma natureza qualitativa e um trilho interpretativo assente no quadro teórico da Sociologia da Infância, e metodologicamente subscreve um estudo de caso realizado em um JI público, localizado em Lisboa (Portugal), de setembro de 2019 a fevereiro de 2020, tendo terminado antes da pandemia. A partir de uma diversidade de técnicas – observação realizada duas vezes por semana e respetivas notas de terreno; das fotografias tiradas e escolhidas pelas crianças utilizando o telemóvel da educadora e da investigadora; e das conversas informais com crianças e das entrevistas com a educadora e a assistente operacional – neste artigo procura-se caracterizar as conceções e as experiências de 21 crianças, entre os três e seis anos, sobre o bairro onde vivem. O grupo de crianças caracteriza-se pela heterogeneidade de idades (entre os três e os seis anos) e sexo (12 meninos e nove meninas). Destacam-se como marcadores sociais: mais de 50% das crianças reside no bairro onde se localiza o JI; a maioria das famílias apresentam múltiplas vulnerabilidades socioeconómicas (baixos recursos socioeconómicos, desempenho de profissões que exigem níveis baixos de escolaridade e situações de desemprego, sobretudo pelas mães); à exceção de duas crianças de nacionalidade angolana, uma paquistanesa e uma ucraniana, todas as outras terem nacionalidade portuguesa. A educadora de infância tinha 19 anos de serviço docente e a assistente operacional, quatro anos de atividade profissional. A recolha e análise de conteúdo dos dados está intrinsecamente associada aos seus contextos sociais e às suas especificidades, como veremos.

Foi assumido e garantido um roteiro ético na pesquisa, desde um processo permanentemente negociado de obtenção do consentimento informado com as adultas e do assentimento com as crianças, ao anonimato da organização socioeducativa, a escolha dos nomes a apresentar no trabalho pelos(as) participantes e da não apresentação da imagem das crianças nas fotografias a pedido das suas mães.

Os de cima e os de baixo5 5 Pedimos emprestado o título do livro de Paloma Valdivia (2009). ou as conceções das crianças sobre si, sobre os outros e sobre os lugares que habitam

Como exploramos no enquadramento teórico deste artigo, as crianças mobilizam conhecimentos diversos sobre os espaços e lugares que habitam, sobretudo a partir das experiências que lhes são proporcionadas e, poucas vezes, quando são elas a propô-las. Assim, quanto mais ricas forem essas experiências sobre o espaço, maior o conhecimento e a relação estabelecida com o espaço por elas. As possibilidades de as crianças se movimentarem livremente nos seus espaços relacionam-se, diretamente, com os recursos materiais e imateriais que têm à sua disposição. Como afirmamos em trabalhos anteriores (Sarmento 2018Sarmento, Manuel. 2018. Infância e Cidade: Restrições e possibilidades. Educação 41 (2): 232-40. https://doi.org/10.15448/1981-2582.2018.2.31317.
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, Trevisan 2014Trevisan, Gabriela. 2014. ‘Somos as pessoas que temos de escolher, não são as outras pessoas que escolhem por nós’. Infância e cenários de participação pública: uma análise sociológica dos modos de codecisão das crianças na escola e na cidade. Tese em Estudos da Criança, Universidade do Minho, Braga., Sarmento e Trevisan 2019), as crianças que vivem em situações de maior vulnerabilidade e carência económica têm acesso a menores situações de mobilidade e de participação em atividades diversas que lhes permitem diferentes leituras do mundo (Diogo, Trevisan e Sarmento 2021Diogo, Fernando, Gabriela Trevisan, e Manuel Sarmento. 2021. Transformações e persistências da pobreza infantil em Portugal. In Sociologia da Infância em Portugal. Memórias, encontros e percursos, organizado por Catarina Tomás e Gabriela Trevisan, 26-49. Lisboa: APS.).

Partindo desse pressuposto, e do registo de observação que abaixo transcrevemos, a educadora da sala encontrou o ponto de partida para um projeto posteriormente a ser desenvolvido com as crianças.

“Logo de manhã, quando chego à sala o Carlos pergunta-me:

– Queres vir brincar comigo para os jogos? […]

Enquanto brincamos, a Ana C. e a Clara juntam-se a nós e ‘servem-me o pequeno-almoço’.

– E se fossemos dar uma volta, depois, para eu tomar ‘café’ e aproveitar para fazer umas compras na mercearia, ali em cima? (Há uma mercearia na parte de cima do bairro) – pergunto.

– Ali, não. É perigoso e sujo. Lá em cima é para elas – apontando para a Eloisa e para a Ana B. – diz a Clara.

– Olha, não podemos levar [apontando com a cabeça e um dedo para o ‘carro de bebé’ com ajeitava com um ‘vestido/cobertor’. Não dá para passar por causa dos buracos. – diz a Ana C.

– Não? Mas já lá foram? Como é? – pergunto.

– Não, mas a minha mãe diz que lá moram os pretos e os ciganos e não podemos ir. Diz que tem lixo e muitos buracos – responde a Ana C.

– Mas se não viste? – pergunta a Educadora - Não sei se podemos falar sem ver, não acham? […]

Foi este o mote para o desenvolvimento do projeto na sala: Conhecer o meu bairro. (Registo de 17 dez. 2019).

Seguindo os pressupostos de trabalho de projeto com crianças (Vasconcelos 2011Vasconcelos, Teresa. 2011. Trabalho de projeto como “pedagogia de fronteira”. Da Investigação às Práticas 1 (3): 8-20.), a referência pedagógica da educadora do JI onde foi realizada a pesquisa, e por conseguinte, importante ser mencionada, e a ideia já apresentada anteriormente de que as crianças têm direito a identificar assuntos do seu interesse, quotidiano e lugar, a educadora encontrou nas observações das crianças um conjunto de elementos bastante ricos desta situação, transformando-a, posteriormente, em um projeto significativo para o grupo e para a sala – Conhecer o meu bairro.

Uma ideia central que emerge das observações das crianças é de estratificação social do espaço, ou seja, o espaço dividido e apropriado por diferentes grupos sociais sobre os quais recaem diferentes análises e vivências – “Ali, não. É perigoso e sujo. Lá em cima é para elas”. Estas ideias são, primeiramente, apropriadas pelas crianças a partir das visões adultas produzidas sobre o espaço e no qual, partindo de lógicas de proteção da infância, se formulam as conceções de espaços seguros e não seguros, qualificados ou desqualificados, limpos e sujos, mas, sobretudo, do que é ou não adequado para elas nos espaços públicos abertos. No entanto, a ação num campo de recontextualização pedagógica (Cortesão e Stoer 1997Cortesão, Luiza, e Stephen Stoer. 1997. Investigação-acção e a produção de conhecimento no âmbito de uma formação de professores para a educação inter/multicultural. Educação, Sociedade & Culturas 7: 7-28.), que potencializa a mobilização de recursos e as oportunidades de enriquecimento das experiências das crianças, só se alcança através da acuidade na observação do que as crianças dizem e fazem e na análise do contexto. Esta ideia, de resto, está presente no diálogo encetado pela educadora com o grupo: “Não, mas a minha mãe diz que lá moram os pretos e os ciganos e não podemos ir. Diz que tem lixo e muitos buracos – responde a Ana C.” – Mas se não viste? – pergunta a Educadora – Não sei se podemos falar sem ver, não acham? […].” Também neste excerto é possível registar o princípio de integração das experiências das crianças na sua comunidade e lugar, valorizando as suas vozes e o sentido de pertença, enquanto elemento central da sua cidadania (Sarmento 2018Sarmento, Manuel. 2018. Infância e Cidade: Restrições e possibilidades. Educação 41 (2): 232-40. https://doi.org/10.15448/1981-2582.2018.2.31317.
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; Tomás 2011Tomás, Catarina. 2011. Há muitos mundos no mundo. Cosmopolitismo, participação e direitos da criança. Porto: Edições Afrontamento.; Trevisan 2014Trevisan, Gabriela. 2014. ‘Somos as pessoas que temos de escolher, não são as outras pessoas que escolhem por nós’. Infância e cenários de participação pública: uma análise sociológica dos modos de codecisão das crianças na escola e na cidade. Tese em Estudos da Criança, Universidade do Minho, Braga.).

A visita ao bairro

A visita ao bairro começa com grande entusiasmo. […] O trajeto foi feito pela educadora com as crianças. Na semana anterior tinham ido ao Google Earth e pesquisado mais sobre o bairro em vários sites e decidiram quais os locais onde queriam ir e como iriam fazer o registo: fotografia e, posteriormente por escrito, na sala de atividades. Cada grupo partilharia as informações recolhidas.

No dia frio, mas solarengo, de 15 de janeiro, a educadora reuniu-se com as crianças na manta para relembrar os locais do bairro a visitar e combinar as regras e os cuidados a ter na saída. A alegria era audível. Após algum tempo de discussão, as crianças chegam a um consenso e dizem que querem ir ao parque infantil, ao café, à mercearia e à loja (de informática). Eloisa pergunta se a irmã também vai [Isis tem deficiência motora], a que a educadora responde - obviamente. (Registo de 9 jan. 2020).

Tal como defende Vasconcelos (2011)Vasconcelos, Teresa. 2011. Trabalho de projeto como “pedagogia de fronteira”. Da Investigação às Práticas 1 (3): 8-20., o trabalho de projeto é benéfico ao promover o desenvolvimento holístico das crianças e, simultaneamente, dos educadores ou professores. Neste tipo de trabalho, as crianças colocam questões, resolvem problemas e procuram compreender os mundos sociais e culturais onde vivem e, finalmente, a capacidade de continuar a aprender.

O excerto transcrito representa então a continuidade do princípio de escuta e integração das vontades e interesses das crianças sobre o espaço, tendo estas identificado com a educadora os diferentes sítios onde pretendem ir no bairro – ao parque infantil, ao café, à mercearia e à loja de informática. Para lá da vontade do grupo, a Eloisa, uma das crianças, levanta uma questão importante e reconhecida pela educadora que se prende com as dificuldades de usufruto do espaço e de mobilidade para cidadãos com diferentes limitações no seu uso, neste caso pela Isis. Esta preocupação é importante revelar, não apenas essa consciência das crianças de que o espaço nem sempre está adaptado a quem tem diferentes limitações, mas, também, pela ideia de inclusão de todos no seu uso, como refere o Salvador quando em grupo discutem como vão divulgar a visita ao bairro a outros grupos de crianças do JI: “Já sei, podemos construir uma casa em legos para umas pessoas que não podem…olha, como ela, apontando para a Isis, diz o Salvador ao Ian. Foi bem difícil subir o passeio para irmos à loja [informática].”

O conhecimento do espaço pelas crianças permite, também, que observem diferentes restrições do espaço, nomeadamente para que tenha limitações de mobilidade, como dissemos atrás. De resto, e uma vez que conhecem crianças nessa situação, torna-se relativamente fácil para elas identificar os espaços que não são adequados aos seus pares no seu contexto de residência e/ou vivência. O espaço enquanto fator de desigualdade quer no acesso quer no usufruto passa a ser identificado pelas crianças não por conhecimentos de natureza “teórica”, mas, antes, pela experiência (ver imagem 1).

Imagem 1
“Uma rampa para quem tem problemas de andar”, 2020. Lisboa

– Foi? – pergunta Sofia (a auxiliar).

– Ó, se foi, responde o Salvador. Não conseguiu. Aquilo é mesmo bué difícil para ela.

Eu: Ah boa, boa ideia e como fazemos isso?

Salvador: Eu já te mostro. [coloca uma peça inclinada e diz-me:] Isto é uma rampa e agora vou fazer um elevador.

– Estão sempre a falar do passeio – diz-lhe Sofia. Já cansa. Chega a Leonor com um lego cor de rosa e começou a ‘pintar-me as unhas’.

– Foi mesmo fixe. Olha, nunca na vida tinha ido lá cima – responde o Salvador.

– E? – questiona Ana.

– Não é nada do que a minha mãe disse. Até gostei. (Registo de 28 jan. 2020).

Mas, mais do que apenas o conhecimento, as crianças são capazes de encontrar soluções que permitam a acessibilidade e a igualdade de direito ao espaço para aquelas que não o podem fazer autonomamente, como é possível observar na colocação de uma rampa pelo Salvador, a partir de Lego disponível na sala.

Diferentes autores, de resto, apontam uma ideia comum em relação à participação de crianças no espaço público, a de que tenderiam a ter uma postura “egoísta”, ou seja, de que as crianças tenderiam a preocupar-se apenas consigo e com o modo como se apropriariam desse espaço (Pyer et al. 2010Pyer, Michelle, John Horton, Faith Tucker, Sara Ryan, e Peter Kraftl. 2010. Children, young people and ‘disability’: challenging children's geographies? Children's Geographies 8 (1): 1-8 https://doi.org/10.1080/14733280903500059.
https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
; Trevisan 2014Trevisan, Gabriela. 2014. ‘Somos as pessoas que temos de escolher, não são as outras pessoas que escolhem por nós’. Infância e cenários de participação pública: uma análise sociológica dos modos de codecisão das crianças na escola e na cidade. Tese em Estudos da Criança, Universidade do Minho, Braga.). No entanto, diferentes trabalhos têm vindo a demonstrar que as crianças, ao analisarem os espaços onde vivem, identificam não apenas preocupações suas, mas com outros grupos geracionais, nomeadamente os mais velhos, manifestando assim uma visão integrada das suas comunidades, ainda que não isenta de conflitos e exclusões internas, como nos dá conta o seguinte excerto:

Estão na área do Projeto a Sofia [a auxiliar] com o grupo das cinco crianças responsável pela construção da maquete do bairro. Mostram e explicam à Sofia as fotografias e os registos. Pedro diz que adorou e que podiam sair mais vezes. Irina diz que podiam juntar peças de Lego e material reciclado na maquete. […]. As restantes crianças ficam surpreendidas com a intervenção da Irina. Foi a primeira vez desde que está no JI que falou. A Eloisa vem em direção ao grupo e o Francisco, exaltado, diz-lhe:

– Olha, tu não podes. Afonso afasta com muita força a Eloisa. Pega no braço da Benedita e da Francisca e aponta para o braço de ambas. Tu és com elas, és preta e vives lá em cima [referência à parte de cima do bairro onde se situa o JI) – apontando para a Carolina e a Ana B. (Registo de 8 fev. 2020).

Spyrou (2018)Spyrou, Spyros. 2018. Disclosing childhoods - research and knowledge production for a critical childhood studies. London: Palgrave MacMillan. defende que as vozes das crianças, como todas as outras, emergem continuamente e os seus significados estão circunscritos aos limites do tempo, espaço, discurso e matéria. A descentralização das crianças anda de mãos dadas com um processo dialógico que produz as suas vozes, não como resultado autêntico de uma verdade interior não adulterada, mas como resultado de múltiplas relações e encontros situados. Este pressuposto epistemológico, teórico e metodológico, implica estar efetivamente atento ao que as crianças dizem e fazem e, assim, encontrar e reconhecer nas suas vozes preconceitos e estereótipos – “Tu és com elas, és preta” –, dimensões habitualmente desconsideradas no trabalho com crianças pequenas. Estes permeiam o quotidiano das relações sociais entre crianças, entre elas e os adultos. Questões de racismo, poder e discriminação entre crianças são muitas vezes desconsideradas pelos(as) adultos(as), o que invisibiliza não só o processo de como as crianças ressignificam e negoceiam entre si estas questões, desconsiderando-as assim, atores sociais com direitos, mas também suporta discursos e práticas pedagógicas despolitizadas, acríticas e descontextualizadas (Ferreira e Tomás 2018Ferreira, Manuela, e Catarina Tomás. 2018. “O pré-escolar faz a diferença?” Políticas educativas na educação de infância e práticas pedagógicas. Revista Portuguesa de Educação 31 (2): 68-84. https://doi.org/10.21814/rpe.14142
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). Neste diálogo, a questão racial é desocultada sob a forma da cor da pele e pela posição geosocial de algumas crianças e suas famílias.

– Mas afinal que conversa é essa Afonso? Podes explicar? – pergunta a educadora que estava sentada na manta.

– Elas brincam com elas e ela com elas. – Responde, visivelmente incomodado com a interpelação.

– Mas porquê? – pergunta a educadora.

– Elas são da mesma cor e vem lá em cima. Estão, olha, habituadas. – responde o Afonso.

A educadora intervém e quando questiona o Afonso sobre as suas afirmações, ele remata a conversa com “não é por causa disso [cor da pele], é porque, é porque…ela não é deste grupo, ok?” (Registo de 24 jan. 2020).

No final do projeto, na entrevista de grupo focalizada realizada às crianças, quisemos fazer um balanço com elas sobre a ida ao bairro.

– Gostei de estar na rua – disse o Carlos

– Porquê? – pergunto.

Também gostei, numa espécie de coro, dizem muitas das crianças.

– É poucas vezes – responde.

– Gostei que fossem à minha casa? – disse a Eloisa, visivelmente orgulhosa […].

– Achei difícil para a Isis e as pessoas com bebés e com as pernas más. Olha, não conseguem bem. Tudo cheio de buracos e é perigoso, não é? – diz o Carlos. […].

– E o que as crianças podem fazer? – pergunto.

Num primeiro momento, ninguém diz nada.

– Podíamos escrever aos adultos que mandam – diz o Rodrigo muito baixinho.

– A quem? – pergunto.

– Aquele, aquele… ai… o da junta (freguesia) e ao Marcelo (Presidente da República Portuguesa).

– E o que diriam – pergunto?

– É preciso rampas e arranjar a rua. Tem muitos buracos. Tem muitos, não viste? – levanta-se a Ana C. e aponta para o painel de fotografia da área do projeto.

– Limpar o lixo – diz o Carlos.

– Arranjar o parque e por casas para os gatos dormirem. Gostava de brincar lá mais vezes, mas a minha mãe não deixa por causa daquilo [seringas] e algumas coisas estão partidas- diz a Ana C.

– Eu e ela vamos – responde a Elisa e a Iris.

– Nunca fui lá, mas gostava. Foi fixe passar lá. É fixe – diz o Rodrigo. […].

– Mas achas que eles respondem? – pergunta a Ana Clara. [...].

– Não, não respondem. Somos pequenos – diz o Afonso com um ar contundente e levanta-se -

Achas mesmo que eles vão responder a nós? Dah, claro que não.

– Mas as crianças não vivem ... não fazem parte deste bairro? – pergunto.

Ninguém respondeu. “(Entrevista, 9 fev. 2020).

Este excerto assume também particular relevância pelo confronto entre as visões produzidas pelas crianças e pelos adultos, sendo que estas últimas são frequentemente imbuídas das culturas de medo anteriormente referidas (Gill 2007Gill, Tim. 2007. No fear growing up in a risk averse society. London: Calouste Gulbenkian Foundation.). Assim, a difícil gestão entre a necessidade e a perceção das crianças e as suas possibilidades de usufruto do espaço estão intimamente ligadas, significando, muitas vezes, o impedimento da exploração livre das crianças dos mesmos por parte dos adultos.

Como sustenta Arai (2011Arai, Lisa. 2011. Growing up: moving through time, place and space from babyhood to adolescence. In Children and young people's spaces. Developing practices, organizado por Pam Foley e Stephen Leverett, 116-30. Milton Keyes: The University Press., 124):

Provavelmente porque as crianças e bebés veem frequentemente o mundo a partir de um carrinho de bebé, e por estarem tanto tempo em casa [...], a análise académica dos espaços que as crianças muito pequenas habitam tem sido negligenciada, ou analisada apenas da perspetiva dos pais ou outros adultos. No entanto, mesmo as crianças pequenas são capazes de exercer agência nos espaços vistos como existentes para utilidade dos pais, e podem demonstrar atenção aos sentidos e usos de diferentes espaços.

A pesquisa desenvolvida e apresentada neste texto, ainda que assuma um carácter exploratório, permite-nos afirmar que, a par do conhecimento que acumularam, as crianças, como defendemos anteriormente, são também capazes de vislumbrar diferentes possibilidades para resolução dos problemas que as afetam, seja individual seja coletivamente. Como proposto na conversa acima transcrita, as crianças identificam os adultos com capacidade para intervir nas dificuldades identificadas de modo a resolver problemas que as afetam de um ponto de vista geracional. A criação de vias de comunicação eficazes entre crianças e estruturas de decisão local, como é o caso de uma junta de freguesia, constituem-se como elementos centrais para o exercício de uma participação não limitada à escuta, mas com potencial transformador para as crianças.

Imagem 2
A caminho do parque infantil, 2020. Lisboa

Uma outra questão interessante possível de observar quando as crianças exploram o seu ambiente é o poder olhar o contexto a partir das suas próprias perspetivas, tal como exemplifica a fotografia acima (imagem 2). De facto, olhar a criança sobre o espaço situa-se ao seu nível, isto é, à sua altura, fazendo com que as visões de adultos e crianças sejam drasticamente distintas. Muitas destas preocupações já são, aliás, tidas em conta em diferentes partes do mundo em processos de planeamento urbano com crianças, por exemplo (Karssenberg et al. 2016Karssenberg, Hans, Jeroen Laven, Meredith Glaser e Mattijs van‘t Hoff. 2016. The city at eye level. Lessons for street plinths. Delft: Eburon.).

No entanto, as questões de confinamento fruto da pandemia Covid-19 limitaram o uso do espaço público a todos cidadãos ainda que, no caso das crianças, o encerramento de parques infantis e zonas envolventes tenha tido particular visibilidade e tenha tido como consequência o reduzido leque de atividades desenvolvidas pelas crianças, remetendo-as exclusivamente à esfera privada, no caso de algumas das crianças, em más condições de habitabilidade e pobreza. Assim, as vidas das crianças reduziram-se ao espaço doméstico e, em períodos de pós-confinamento, ao da sala do JI ou da escola, uma vez que as próprias saídas para visitas foram também suspensas. Do mesmo modo, os impactos na continuidade deste trabalho também se fizeram sentir, nomeadamente pelo encerramento das organizações socioeducativas à presença de elementos externos nas suas salas, limitando as possibilidades de observação e interação com as crianças em contexto de JI.

Considerações finais

Como temos vindo a discutir, as experiências das crianças mais pequenas no espaço e os seus níveis de conhecimento e participação têm recebido menor atenção do que de crianças mais velhas. Torna-se, no entanto, fundamental, ampliar quer a investigação que a prática de processos de planeamento urbano e local, de participação em decisões locais que as afetam diretamente, às crianças mais pequenas, em particular de contexto de JI.

Como argumentamos anteriormente, as cidades devem ser estabelecidas como espaços onde diferentes gerações podem viver juntas. No entanto, a normalização dos espaços geográficos urbanos que atendem a um “cidadão típico” dificulta essa lógica, o que implica ver uma “cidade para todos” que deve ser negociada (Christensen e O’Brien 2003Christensen, Pia, e Margaret O’Brien. 2003. Children in the city: home, neighbourhood and community. London: Routledge Falmer.). Também aqui, integrar as perspetivas das crianças sobre a cidade, as formas como elas as usam e vivenciam, estritamente relacionadas à lógica de reconhecimento da sua agência e de suas competências de participação é central.6 6 Sarmento, Manuel, Natália Fernandes, e Gabriela Trevisan. 2021. Mobilidades e processos de construção de cidadania na infância: um estudo exploratório. Secção temática Sociologia da Infância. XI Congresso Português de Sociologia, 29 a 31 de março. https://bityli.com/UexcCqNA. Como foi também possível observar ao longo do artigo, a compreensão do espaço da cidade como condição para o exercício da cidadania infantil situa as crianças no reconhecimento de um espaço que já habitam, ainda que nem sempre aberto à sua exploração. As crianças são capazes de reconhecer elementos de tensão, conflito e interesse que precisam ser tidos em conta, principalmente pelo modo como interferem nas possibilidades de exercício da cidadania no espaço. Como vimos em diferentes momentos deste artigo, é frequente existirem versões do mesmo espaço contraditórias entre adultos e crianças e entre crianças, nomeadamente no modo como o risco a ele associado é percecionado por cada um(a) ou a quem está no centro e nas margens do espaço. Por essa razão a inclusão da voz de crianças pequenas na construção de conhecimento do espaço, na identificação das suas potencialidades e limitações, é um contributo inestimável que deveria, na nossa perspetiva, ser prática comum de planeamento urbano e de requalificação do espaço público no qual habitam. Nesse sentido, diferentes autores têm vindo a defender a sua participação e envolvimento efetivo nos contextos de vida, mas também a construção de políticas públicas que possam sustentar essas práticas e dar-lhes sentido. Mais do que um conjunto de direitos que lhes pertencem, a cidade é capaz de lhes proporcionar experiências únicas, mas também de limitar a sua ação quotidiana. Como defende Sarmento (2018Sarmento, Manuel. 2018. Infância e Cidade: Restrições e possibilidades. Educação 41 (2): 232-40. https://doi.org/10.15448/1981-2582.2018.2.31317.
https://doi.org/https://doi.org/10.15448...
, 6)

para as crianças, o direito à cidade é a condição da sua própria cidadania. […] algo que decorre diretamente de políticas públicas para a infância e para a cidade, que garantam a participação de crianças e de adultos na edificação do território urbano segundo lógicas de inclusão e sustentabilidade.

  • 3
    Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia - FCT, I.P., no âmbito do projeto “UIDB/04647/2020” do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa – CICS.Nova. O ProChild CoLAB conta com apoio do Programa Operacional Norte 2020, Portugal 2020, Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), do Fundo Social Europeu (FSE) e do Programa Operacional de Capital Humano (IF/00750/2015/CP1294/CT0011).
  • 4
    Sarmento, Manuel, e Gabriela Trevisan. 2018Sarmento, Manuel, Rita Marchi, e Gabriela Trevisan. 2018. Beyond the modern ‘norm’ of childhood: children at the margins as a challenge for the Sociology of Childhood. In Theorising childhood: citizens, rights and participation, organizado por Claudio Baraldi e Tom Cocburn, 135-57. London: Palgrave.. Local childhood citizenship: programs for children's participation in the city (paper). Parallel session I: Political participation. 9th Child and the City World Conference. 24-26th September 2018. Vienna: Austria. Acessado em 9 ago. 2022. https://bityli.com/wQJJBhoL; Sarmento, Manuel, e Gabriela Trevisan. 2019. Crossing roots: interdisciplinary challenges of a critical and public Sociology of Childhood. Sociology of Children and Childhood. RN04- 09a Borders and Theory in Childhood Studies II. ESA Congress: Europe and Beyond: boundaries, barriers and belonging. Manchester, 20-23 Aug. United Kingdom. https://bityli.com/acbXPPui.
  • 5
    Pedimos emprestado o título do livro de Paloma Valdivia (2009)Valdívia, Paloma. 2009. Os de cima e os de baixo. Matosinhos: Kalandraka..
  • 6
    Sarmento, Manuel, Natália Fernandes, e Gabriela Trevisan. 2021. Mobilidades e processos de construção de cidadania na infância: um estudo exploratório. Secção temática Sociologia da Infância. XI Congresso Português de Sociologia, 29 a 31 de março. https://bityli.com/UexcCqNA.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação das autoras antes da publicação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    12 Out 2021
  • Aceito
    30 Maio 2022
  • Publicado
    9 Jan 2023
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