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Mulheres em luta e a educação de crianças pequenas em uma ocupação urbana: perspectivas anticoloniais

Women in struggle and the education of young children in an urban occupation: anti-colonial perspectives

Mujeres en lucha y educación de niños pequeños en una ocupación urbana: perspectivas anticoloniales

Resumo:

Tendo como referência os campos teóricos dos estudos anticoloniais e dos estudos da infância, o presente artigo parte da escuta de educadoras moradoras de uma ocupação urbana em Belo Horizonte e analisa as relações entre a luta por moradia e o direito à educação infantil. Para tanto, são analisados dados de uma pesquisa de doutorado que teve como espaço de investigação uma creche comunitária localizada nesse território. Os resultados do estudo apontam para: os atravessamentos da luta feminista e o papel das mulheres na reivindicação pelos direitos das crianças; a singularidade na oferta da educação infantil no contexto de uma ocupação urbana; e a pertinência da lente anticolonial para a compreensão dos processos de reivindicação de direitos de crianças e mulheres em um movimento social urbano.

Palavras-chave:
Infância; Mulheres; Estudos anticoloniais; Ocupações urbanas; Educação infantil

Abstract:

Based on the theoretical fields of anti-colonial perspectives and childhood studies, this article is based on testimonies of women educators who live in an urban occupation in Belo Horizonte and investigates the relationship between the struggle for housing and Early Childhood Education rights. Therefore, we analyze data produced in doctoral research within a community day care center in this territory. The results point to: the crossings between feminist struggle and women's role in claiming for children's rights; the singularity present in the provision of Early Childhood Education in the context of an urban occupation; and the relevance of anti-colonial lenses to understand the processes of claiming for children's and women's rights in an urban social movement.

Keywords:
Childhood; Women; Anti-colonial perspectives; Urban occupations; Early childhood education

Resumen:

Partiendo de los campos teóricos de los estudios anticoloniales y de los estudios de la infancia, este artículo se basa en los testimonios de educadoras que viven en una ocupación urbana de Belo Horizonte para investigar las relaciones entre la lucha por la vivienda y el derecho a la educación infantil. Para ello, analizamos datos de una tesis doctoral que tuvo como espacio investigativo una guardería comunitaria en aquel territorio. Los resultados del estudio demuestran los siguientes aspectos: los cruces de la lucha feminista y el rol de la mujer en la reivindicación por los derechos de los niños; la singularidad presente en la oferta de educación infantil dentro de un contexto de ocupación urbana; y la relevancia de la mirada anticolonial para que se comprendan los procesos de reivindicación de derechos a los niños y a las mujeres en un movimiento social urbano.

Palabras clave:
Infancia; Mujeres; Estudios anticoloniales; Ocupaciones urbanas; Educación infantil

Introdução

No presente texto, tendo como referência os campos teóricos dos estudos anticoloniais e dos estudos da infância, pretende-se analisar as relações entre a luta das mulheres por moradia e o direito à educação infantil no contexto de uma ocupação urbana localizada na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. O trabalho tem origem em uma pesquisa de doutorado (Ramalho 2019Ramalho, Bárbara. 2019. A escola dos que (não são): concepções e práticas de uma educação (anti)colonial. Tese em Educação, Universidade Federal de Minas Gerais.) que teve como contexto de investigação uma creche comunitária da ocupação urbana, a que nomearemos Marielle Franco (doravante MF). Serão analisados, especificamente, depoimentos de educadoras e lideranças da ocupação. Esses dados foram gerados por meio de entrevistas semiestruturadas e de observações participantes realizadas ao longo de oito meses, no ano de 2018.

Inicialmente, situamos as relações entre os estudos anticoloniais e os estudos da infância. Em seguida, no quadro das pesquisas com crianças em ocupações urbanas no Brasil, discutimos: (i) as relações entre a luta das mulheres pelo direito à moradia e o direito à educação das crianças; e (ii) os direitos das crianças, em especial, o direito à educação infantil.2 2 Agradecemos a interlocução da professora Dra. Lívia Maria Fraga Vieira (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG) no processo de produção desse texto.

A pergunta que nos orientou neste trabalho é: como, no contexto de uma ocupação urbana, se intercruzam os direitos das crianças e a ação das mulheres na luta pelo direito à moradia e à educação das crianças pequenas?

Teorias anticoloniais e infância

Nos últimos anos, os diálogos entre o campo da educação e o pensamento anticolonial têm se adensado no Brasil. A presença dos temas “decolonialidade”, “pós-colonialismo” e “epistemologias do sul” no conjunto das produções no campo da Educação (Gomes 2021Gomes, Nilma L. 2021. O combate ao racismo e a descolonização das práticas educativas e acadêmicas. Revista de Filosofia: Aurora 33 (59): 435-54. https://doi.org/10.7213/1980-5934.33.059.DS06.
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; Rufino 2021Rufino, Luiz. 2021. Vence-demanda: educação e descolonização. Rio de Janeiro: Mórula.; Ramalho e Leite 2020Ramalho, Bárbara, e Lúcia Helena A. Leite. 2020. Colonialidade da educação escolar. Revista Educação em Questão 58 (58): 1-23. https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n58ID22412.
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) atestam essa crescente interlocução.

Ainda que existam especificidades entre essas diferentes abordagens, elas se convergem na análise crítica da manutenção do chamado sistema-mundo moderno (Wallerstein 2005Wallerstein, Immanuel. 2005. Analisis de sistema-mundo: una introdución. México: Siglo 21.). Trata-se da compreensão de que a modernidade se constitui uma forma de existência eurocêntrica e, portanto, localizada no espaço e no tempo, mas que passa, a partir do final do século 15, a ser dotada do status de legitimidade e suficiência, graças às hierarquias produzidas pelo colonizador a partir da noção de raça (Quijano 2005Quijano, Aníbal. 2005. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, organizado por Adgardo Lander, 227-78, Buenos Aires: Clacso.) e de gênero (Lugones 2014Lugones, Maria. 2014. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas 22 (3): 935-52. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300013.
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). Assim, ainda que superadas as relações formais entre metrópole e colônias, permanecemos sob a égide da modernidade e de sua falácia universalista, (re)produzindo desigualdades. Uma engenharia que se constitui pilar das relações capitalistas (Quijano 2005Quijano, Aníbal. 2005. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, organizado por Adgardo Lander, 227-78, Buenos Aires: Clacso.).

É sob essa perspectiva, e em oposição à diferença colonial (Mignolo 2020Mignolo, Walter. 2020. A geopolítica do conhecimento e a diferença colonial. Revista Lusófona de Educação 48: 187-224. https://doi.org/10.24140/issn.1645-7250.rle48.12.
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), que a ideia de “reconhecimento” ganha força. Entende-se que, se por um lado, a ausência e, portanto, as inúmeras estratégias de silenciamento, invisibilização e/ou mesmo extermínio serviram à subalternização de sujeitos, por outro, a afirmação das legitimidades das diversas existências será a via para a emancipação. Fanon (1968Fanon, Frantz. 1968. Os condenados da terra. São Paulo: Civilização Brasileira., 275) nos convida a essa reflexão:

Se desejamos transformar a África numa nova Europa, a América numa nova Europa, então confiemos aos europeus o destino de nosso país. Eles saberão fazê-lo melhor do que os mais bem dotados dentre nós. Mas, se queremos que a humanidade avance um furo, se queremos levar a humanidade a um nível diferente daquele onde a Europa a expôs, então temos de inventar, temos de descobrir. Se queremos corresponder à expectativa de nossos povos, temos de procurar noutra parte, não na Europa.

O encontro entre o debate anticolonial e os estudos da infância também é recente. Ele parte do reconhecimento de que a sociedade se assenta em uma ordem geracional e de que a infância, categoria estrutural constituída pela modernidade, igualmente é atravessada pela lógica universalista.

Os estudos de Nieuwenhuys (2013Nieuwenhuys, Olga. 2013. Theorizing childhood(s): why we need postcolonial perspectives. Childhood 20 (1): 3-8. https://doi.org/10.1177/0907568212465534.
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citado por Liebel 2016Liebel, Manfred. 2016. ¿Niños sin Niñez? Contra la conquista poscolonial de las infancias del Sur global. Millcayac: Revista Digital de Ciencias Sociales 3 (5): 245-72.) denunciam, por exemplo, que se media a qualidade de vida das crianças a partir de uma régua europeia padronizada. Castro (2020)Castro, Lucia R. de. 2020. Why global? Children and childhood from a decolonial perspective. Childhood 27 (1): 48-62. https://doi.org/10.1177/0907568219885379.
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também critica uma concepção global de infância, na qual está implícita a divisão geopolítica entre Norte e Sul e a produção do conhecimento em torno dessa divisão dominada pelo pensamento hegemônico norte centrado.

Ao se dirigir às comunidades latino-americanas, onde as crianças indígenas e as trabalhadoras não são apartadas do mundo adulto e compartilham responsabilidades, Liebel (2016)Liebel, Manfred. 2016. ¿Niños sin Niñez? Contra la conquista poscolonial de las infancias del Sur global. Millcayac: Revista Digital de Ciencias Sociales 3 (5): 245-72. aponta para outras infâncias possíveis e chama atenção para a agência política de crianças. Em diálogo com Quijano (2005)Quijano, Aníbal. 2005. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, organizado por Adgardo Lander, 227-78, Buenos Aires: Clacso., Oliveira (2020)Oliveira, Assis da C. 2020. Juventudes indígenas: mobilizações por direitos em perspectiva descolonial. Tese em Direito, Universidade de Brasília (UnB). compreende a classificação etária como produto da modernidade, por meio do que denominou “colonialidade do poder adultocêntrico”, que seria “um dos mecanismos de controle dos povos racializados via domínio e exploração de suas crianças e jovens” (Oliveira 2020Oliveira, Assis da C. 2020. Juventudes indígenas: mobilizações por direitos em perspectiva descolonial. Tese em Direito, Universidade de Brasília (UnB)., 101), às quais estariam institucionalizadas em instituições modernas de educação, cuidado e exploração econômica.

Nesse horizonte, Balagopalan (2019)Balagopalan, Sarada. 2019. Why historicize rights-subjectivities? Children's rights, compulsory schooling, and the deregulation of child labor in India. Childhood 26 (3): 304-20. https://doi.org/10.1177/0907568219856077.
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busca complexificar a noção dos direitos da criança, a partir do conceito de governança e da reflexão sobre o papel do estado. Voltando-se para a disputa pelo direito à educação na Índia, a autora mostra como os direitos das crianças são acionados pelo estado para garantir o controle social e a marcha da economia capitalista, mantendo famílias marginalizadas em situação de subemprego e pobreza.

Ao assumir direitos subjetivos como universais, a governança dos direitos da criança no mundo majoritário corre o risco de ignorar, e assim, reproduzir, a diferença fundamental nas maneiras pelas quais as comunidades de elite e marginais produziram seus direitos subjetivos como cidadãos das democracias liberais moldadas pelo desenvolvimento pós-colonial. (Balagopalan 2019Balagopalan, Sarada. 2019. Why historicize rights-subjectivities? Children's rights, compulsory schooling, and the deregulation of child labor in India. Childhood 26 (3): 304-20. https://doi.org/10.1177/0907568219856077.
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, 317).3 3 Tradução do original, em inglês: “By assuming rights-subjectivities as universal, child rights governance in the majority world risks ignoring, and thereby reproducing, the fundamental difference in the ways in which elite and marginal communities have engaged their rights-subjectivities as citizens of liberal democracies and been worked upon by postcolonial development”, Traduzido para o português pelos autores do artigo.

Este conjunto de autores pertence a um movimento recente no campo dos estudos da infância que, pautados na realidade de crianças que vivem no contexto do Sul global, defendem a necessidade de desconstruir concepções sobre a infância e os direitos das crianças que tenham como premissa um modelo hegemônico e universal, apontando para uma perspectiva plural que reconhece a diversidade dos sujeitos e de suas experiências.4 4 Aqui nomeamos como uma concepção hegemônica e universal de infância aquela que foi pautada por uma visão normativa que emerge da especificidade do contexto do norte e do Ocidente e que estabeleceu um parâmetro universal de criança e consequentemente fronteiras de inclusão e exclusão. Propomos aqui, reconhecer a diversidade e as profundas desigualdades e violências que afetam a infância, pensando esse tempo da vida de modo descentralizado, política e epistemologicamente, do chamado Norte global (Castro 2021). Ao discutir a luta das mulheres pelo direito à moradia e à educação das crianças pequenas neste artigo, assumimos essa visão historicizada dos direitos das crianças e reconhecemos o projeto de violência e conquista imposto pela modernidade (Balagopalan 2019Balagopalan, Sarada. 2019. Why historicize rights-subjectivities? Children's rights, compulsory schooling, and the deregulation of child labor in India. Childhood 26 (3): 304-20. https://doi.org/10.1177/0907568219856077.
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). Buscamos, portanto, questionar: qual a pertinência do universalismo moderno/colonial enquanto matriz orientadora da formulação de direitos e oferta de políticas para infância? Ou, de que forma os sujeitos coletivos convocam formuladores de marcos legais e políticas públicas a uma descolonização?

Crianças, mulheres e ocupações urbanas

As ocupações urbanas surgem no início do século 21 nas grandes cidades brasileiras e regiões metropolitanas e expressam um problema estrutural dado por um histórico de despossessão, negligência estatal e avanço da racionalidade neoliberal (Cruz e Silva 2019Cruz, Mariana de M., e Natália A. da Silva. 2019. Intersections in subaltern urbanism: the narratives of women in urban occupations in Brazil. Environment and Planning C: Politics and Space 0 (0): 1-17. https://doi.org/10.1177/2399654419887969.
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). Desde 2009, mais de 15.781 moradias foram autoproduzidas em Belo Horizonte em cerca de 30 ocupações.5 5 Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH). 2020. Relatório Final do Grupo de Trabalho da Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor sobre Direito à Moradia. Acessado em 19 jan. 2022. https://www.cmbh.mg.gov.br/comunica%C3%A7%C3%A3o/not%C3%Adcias/2020/08/relat%C3%B3rio-aponta-defici%C3%Aancias-e-novos-caminhos-para-pol%C3%Adtica. Na Região Metropolitana de Belo Horizonte, estima-se que mais de 20 mil famílias vivem nessas condições (Cruz e Silva 2019Cruz, Mariana de M., e Natália A. da Silva. 2019. Intersections in subaltern urbanism: the narratives of women in urban occupations in Brazil. Environment and Planning C: Politics and Space 0 (0): 1-17. https://doi.org/10.1177/2399654419887969.
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). Dados levantados pelo Tribunal Internacional de Despejos no Brasil (TID), em 2018, apontaram 39 casos de conflitos que envolveram 230 mil pessoas.6 6 Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU). 2018. Panorama dos Conflitos Fundiários Urbanos no Brasil. Relatório de 2018. Acessado em 19 jan. 2022. https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/panorama-dos-conflitos-fundiarios-urbanos-no-brasil.

Os sujeitos que protagonizam a luta das ocupações urbanas são famílias que circulam pelas esferas invisibilizadas da produção e da reprodução da vida. Trata-se, em sua maioria, de mulheres negras com crianças que assumem a linha de frente dos processos de enfrentamento direto, como marchas e manifestações, e estendem o trabalho de cuidado do espaço da casa e da família para toda a comunidade, em mutirões de autoconstrução, cozinhas comunitárias e hortas urbanas.

Diante de sua magnitude e relevância para o contexto das lutas no urbano contemporâneo, o fenômeno das ocupações urbanas se tornou objeto de trabalhos acadêmicos na última década em diferentes áreas do conhecimento.7 7 Dentre elas, destaca-se: Arquitetura e Urbanismo, Sociologia e Antropologia Urbana e Direito Urbanístico. Alguns dos trabalhos destacam esse protagonismo das mulheres nos espaços de coordenação comunitária e resistência dos movimentos, relacionando-o a fatores como: a histórica subalternização da mulher negra no país, que não tem acesso à moradia, à infraestrutura urbana, aos equipamentos ou serviços públicos, e se vê submetida a episódios cíclicos de violência; a sobrecarga da mulher na realização das tarefas relativas ao cuidado do lar e dos filhos, consequência de concepções patriarcais socialmente construídas que não podem ser compreendidas à parte dos atravessamentos étnico-raciais; e a habilidade da mulher em transitar entre o espaço privado da casa e o espaço público e comunitário nas ocupações (Gobbi, Anjos e Pito 2020Gobbi, Márcia, Cleriston Izidro dos Anjos, e Juliana D. Pito. 2020. Sediciosas formas de viver: crianças, arte e cozinha na luta pelo direito à moradia. Práxis Educacional 16 (40): 184-208. https://doi.org/10.22481/praxisedu.v16i40.6896.
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; Isaías 2017Isaías, Thaís L. S. 2017. Mulheres em luta: feminismos e direito nas ocupações da Izidora. Dissertação em Direito, Universidade Federal de Minas Gerais.; Cruz e Silva 2019Cruz, Mariana de M., e Natália A. da Silva. 2019. Intersections in subaltern urbanism: the narratives of women in urban occupations in Brazil. Environment and Planning C: Politics and Space 0 (0): 1-17. https://doi.org/10.1177/2399654419887969.
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; Franzoni, Alves e Faria 2020Franzoni, Julia, Natália Alves, e Daniela Faria. 2020. As bruxas da Izidora: feminismos e acumulação por despossessão. In Naão saão soó quatro paredes e um teto: uma década de luta nas ocupações urbanas na regiaão metropolitana de Belo Horizonte, organizado por Thiago Canettieri, Marina Sanders Paolinelli, e Clarissa Campos, 263-302. Belo Horizonte: Cosmópolis.).

A questão de gênero nas ocupações deve ser analisada, contudo, a partir de seu recorte racial. Isaías (2017)Isaías, Thaís L. S. 2017. Mulheres em luta: feminismos e direito nas ocupações da Izidora. Dissertação em Direito, Universidade Federal de Minas Gerais. destaca os questionamentos das mulheres da ocupação quanto ao feminismo branco e elitizado, que ignora a diversidade da pauta feminista e, por vezes, não dialoga com a resistência da mulher negra. Desse modo, as perspectivas feminista e anticolonial compõem chaves de leituras centrais para compreender o protagonismo da mulher negra no movimento das ocupações. As dificuldades enfrentadas pela mulher negra para acessar a renda e a moradia na América Latina se vinculam a relações de opressão e colonialidade que historicamente têm levado à subalternização da mulher negra e à desvalorização da esfera da reprodução, em um contexto de avanço do capitalismo neoliberal (Federici 2019Federici, Silvia. 2019. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante.; Lugones 2014Lugones, Maria. 2014. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas 22 (3): 935-52. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300013.
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).

Essas mulheres que lideram os processos de mobilização, em geral, não caminham sozinhas, mas acompanhadas de seus filhos e suas filhas. As crianças produzem nas famílias o impulso visceral e ético pela garantia de um mínimo para a reprodução da vida, ao mesmo tempo em que trazem consigo desejos e modos outros de viver o espaço ocupado. Contudo, ainda que as crianças ganhem lugar de destaque nos momentos de resistência e luta junto às famílias, são recentes e poucas as investigações dedicadas estritamente a compreendê-las nestes contextos. Seja pelo fato de não terem com quem deixar as crianças ou por compreenderem a importância de sua presença nos momentos de luta, a participação das crianças em atividades de mobilização comunitária é destacada em diversos trabalhos (Gobbi, Anjos e Pito 2020Gobbi, Márcia, Cleriston Izidro dos Anjos, e Juliana D. Pito. 2020. Sediciosas formas de viver: crianças, arte e cozinha na luta pelo direito à moradia. Práxis Educacional 16 (40): 184-208. https://doi.org/10.22481/praxisedu.v16i40.6896.
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; Nascimento 2019Nascimento, Beatriz Débora P. S. 2019. Infância em ocupação urbana: reflexões sobre resiliência. Dissertação em Psicologia, Universidade Federal do Amazonas (Ufam).; Carvalho-Silva 2018Carvalho Silva, Hamilton H. de. 2018. A dimensão educativa da luta de mulheres por moradia no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto de São Paulo. Tese em Educação, Universidade de São Paulo.; Ramalho 2019Ramalho, Bárbara. 2019. A escola dos que (não são): concepções e práticas de uma educação (anti)colonial. Tese em Educação, Universidade Federal de Minas Gerais.) e a empiria tem nos mostrado que a participação infantil na luta das ocupações é um reflexo da organização da luta em torno da lógica da reprodução da família chefiada pela mulher negra.8 8 Essas atividades se dividem entre processos de resistência ativa (assembleias e marchas) e relacionados à vida quotidiana (mutirões de autoconstrução, cursos de formação e celebrações festivas).

Os estudos também apontam que, diante dessa realidade, é comum nas ocupações a construção de espaços coletivos destinados às crianças, como creche, biblioteca ou brinquedoteca. Tais espaços, muitas vezes, são utilizados pela comunidade para a realização de reuniões. Os trabalhos sobre crianças em ocupações urbanas indicam, ainda, as dificuldades de acesso à matrícula na educação formal, por fatores diversos, como: a distância da ocupação até uma escola pública, somada à dificuldade de mobilidade urbana (Nascimento 2019Nascimento, Beatriz Débora P. S. 2019. Infância em ocupação urbana: reflexões sobre resiliência. Dissertação em Psicologia, Universidade Federal do Amazonas (Ufam).); a dificuldade de obter os documentos necessários, como comprovante de moradia ou documentação da criança (Cruz e Silva 2019Cruz, Mariana de M., e Natália A. da Silva. 2019. Intersections in subaltern urbanism: the narratives of women in urban occupations in Brazil. Environment and Planning C: Politics and Space 0 (0): 1-17. https://doi.org/10.1177/2399654419887969.
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); ou, ainda, o preconceito da comunidade escolar com as famílias (Ramalho 2019Ramalho, Bárbara. 2019. A escola dos que (não são): concepções e práticas de uma educação (anti)colonial. Tese em Educação, Universidade Federal de Minas Gerais.). Assim, os estudos revelam que a construção de uma creche comunitária surge, muitas vezes, como estratégia de fortalecimento do movimento das ocupações urbanas e da luta por direitos.

A mobilização comunitária de mulheres em bairros populares na luta por creche também foi observada, no Brasil, na segunda metade da década de 1970 como pauta dos movimentos feministas de trabalhadoras (Teles 2015Teles, Maria Amélia de A. 2015. A participação feminista na luta por creches! In Creche e feminismo: desafios atuais para uma educação descolonizadora, organizado por Daniela Finco, Márcia Aparecida Gobbi, e Ana Lúcia Goulart de Faria, 21-34. Campinas: Edições Leitura Crítica.). Embora em um primeiro momento estivesse vinculada aos direitos das mulheres, no decorrer da luta, afirmou-se o direito da criança pequena à educação, e a creche passou a fazer parte das políticas de governo. Assim, a luta por creche proporcionou, pela primeira vez, à criança aparecer na legislação brasileira como sujeito de direitos.9 9 A Constituição Brasileira de 1988 estabeleceu o direito à educação para crianças de 0 a 6 anos e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 estabeleceu a educação infantil como a primeira etapa da Educação Básica, que, desde a Lei 11.247/2006, foi dividida em creches (para crianças de 0 a 3 anos) e pré-escolas (para crianças de 4 a 5 anos e 11 meses). Destaca-se ainda, mais recentemente, a promulgação do Marco Legal da Primeira Infância (MLPI, Lei 13.257 de 2016), que fortalece a temática na agenda pública.

Em Belo Horizonte, o Movimento de Luta Pró-Creche (MLPC), com o apoio de associações de bairros e movimentos por moradia, que compreendem a luta pela educação como etapa importante na consolidação de um núcleo habitacional, garantiu a construção de vários equipamentos educacionais na rede pública (Vieira e Melo 1987Vieira, Lívia Maria F., e Regina Lúcia C. de Melo. 1987. A creche comunitária ‘Casinha da Vovó’: prática de manutenção/prática de educação. Cadernos de Pesquisa (62): 60-78.). Portanto, observamos nas ocupações urbanas uma atualização desse processo.

A creche como estratégia de ocupação e a luta das mulheres

A Ocupação MF surgiu em 2012, em uma região periférica do município de Belo Horizonte, em Minas Gerais.10 10 Trata-se de ocupação horizontal de um terreno vazio, e não de ocupação vertical de um prédio abandonado. E, como em outros casos, um dos primeiros passos para a garantia de permanência das famílias na ocupação foi a construção de uma creche comunitária por moradoras e moradores.

Conforme apontam Laura e Maria, a iniciativa resultou de um duplo movimento: por um lado, a construção foi mobilizada por mulheres que precisavam ter onde deixar seus filhos e suas filhas para trabalhar e realizar outras atividades; por outro, foi uma resposta à ameaça de despejo, que se deu após denúncia pelo Conselho Tutelar de que as crianças estavam em local insalubre. A creche surge, portanto, como estratégia de resistência, a fim de garantir, em um primeiro momento, a permanência das famílias no território, antes mesmo do direito à educação das crianças propriamente dito, como explicita Laura.

Aí, quando a gente ocupa, logo a gente vai construir uma creche, porque as crianças precisam estar em algum lugar para as mulheres fazerem as suas coisas. […] Ficamos na lona11 11 Referência às barracas utilizadas no primeiro momento da ocupação e que, aos poucos, foram substituídas por construções de madeirite e alvenaria. por um tempo, por um ou dois meses, talvez menos. E aí o Conselho Tutelar – na época era um cara que era de um partido que detestava Ocupação – falou: – “O negócio é o seguinte: o lugar que essas crianças estão é insalubre, não tem a menor condição delas ficarem aí nessa lona. Vocês têm que arrumar um lugar para elas ficarem em 24 horas, se não a gente vai levar todas embora”. […] Primeiro veio para mim a consciência do trabalho feminista que a creche fazia. Porque as crianças que estavam lá, as mães estavam trabalhando e, se elas não estivessem na creche, onde mais elas estariam? […] Foi isso: primeiro veio essa consciência do que é essa representação feminista que a creche tinha e só depois veio a educação infantil… (Laura, 23 anos, com. pess., 11 nov. 2017).

A preponderância da figura feminina nos papéis de liderança e mobilização comunitária nas ocupações urbanas também se revela nas entrevistas com moradoras da ocupação MF. Nas palavras de Maria, uma das coordenadoras da creche comunitária: “A gente meio que vira uma referência, né? As pessoas sempre vêm procurar a gente meio que para tudo!” (Maria, 51 anos, com. pess., 6 fev. 2018).

Ao ser indagada sobre o perfil dos moradores da MF, Paula é assertiva: “Mulheres, mães solteiras, negras” (Paula, 30 anos, com. pess., 21 nov. 2017). Como ressalta Cíntia, são as mulheres que assumem a “coragem de agir” para deixar algo para seus filhos: “Se você ficar a vida inteira morando de aluguel, você não consegue deixar nada!” (Cíntia, 43 anos, com. pess., 17 jan. 2018). Como revela o depoimento de Maria, mesmo quando as famílias são compostas por homens e mulheres, são elas que assumem destaque nos processos de luta por melhorias das condições de moradia do grupo.

As mulheres ficam na linha de frente, as mulheres é que ficam na lona, né? Tudo é as mulheres! Eu mesmo, eu fiquei o tempo todo na lona, bem dizer sozinha, porque meu esposo, toda vida, ele trabalhou fora, ele viajava e ele vinha de 15 em 15 dias. Quando ele vinha ele não tinha paciência de ficar, ele não queria ficar. Se dependesse dele eu não ficava, eu não tinha a minha casa, né?! (Maria, 51 anos, com. pess., 6 fev. 2018).

Em diálogo com produções marxistas de perspectiva feminista, Federici (2019)Federici, Silvia. 2019. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante. aponta como a intensificação das relações capitalistas contribuiu para invisibilizar o trabalho na esfera da reprodução e o confinou ao espaço doméstico. Assim, não se trata de compreendê-lo como uma vocação feminina, mas como resultado histórico de um sistema capitalista patriarcal. Pode-se apreender que o protagonismo feminino nas ocupações se associa, portanto, a uma dependência histórica das mulheres do acesso a recursos comunitários, uma vez que assumem os trabalhos de reprodução e se veem excluídas da esfera de produção (Franzoni, Alves e Faria 2020Franzoni, Julia, Natália Alves, e Daniela Faria. 2020. As bruxas da Izidora: feminismos e acumulação por despossessão. In Naão saão soó quatro paredes e um teto: uma década de luta nas ocupações urbanas na regiaão metropolitana de Belo Horizonte, organizado por Thiago Canettieri, Marina Sanders Paolinelli, e Clarissa Campos, 263-302. Belo Horizonte: Cosmópolis.).

Da luta pela moradia nas ocupações, extrai-se uma potência criativa que passa pelas tarefas cotidianas de criação, manutenção e cuidado da comunidade, para além das ações de enfrentamento (Franzoni, Alves e Faria 2020Franzoni, Julia, Natália Alves, e Daniela Faria. 2020. As bruxas da Izidora: feminismos e acumulação por despossessão. In Naão saão soó quatro paredes e um teto: uma década de luta nas ocupações urbanas na regiaão metropolitana de Belo Horizonte, organizado por Thiago Canettieri, Marina Sanders Paolinelli, e Clarissa Campos, 263-302. Belo Horizonte: Cosmópolis.). Isso se associa à compreensão de tais tarefas como possibilidades de “mobilização político-afetiva”, que mantém acesa a luta da comunidade e de seus espaços coletivos (Tonucci-Filho 2017Tonucci Filho, João Bosco M. 2017. Comum urbano: a cidade além do público e do privado. Tese em Geografia, Universidade Federal de Minas Gerais., 196). A politização dos processos assume forma, também, no envolvimento das mulheres com movimentos sociais, como percebe-se pela trajetória de Paula:

Eu começo numa atuação no Movimento Social ainda na coordenação da MF, eu entrei como moradora e aos poucos fui me envolvendo no processo, fui convidada a fazer parte da coordenação da Ocupação. […] Hoje em dia é dedicação exclusiva, é tempo integral pelo Movimento, pela moradia, pela reforma urbana, tempo integral! Mas eu trabalho, né? (Paula, 30 anos, com. pess., 21 nov. 2017).

A construção da creche na MF contou com o apoio do Movimento Social.12 12 Para não revelar a identidade da creche, não será mencionado o movimento social atuante no território. Como nas ocupações urbanas os processos construtivos ocorrem por meio da autoconstrução, esse processo se estendeu ao longo do tempo via financiamento coletivo. Destaca-se a importância dos laços de solidariedade internos e externos, com os chamados apoiadores, tecendo uma rede de relações que dribla os obstáculos da ação comunitária e da ausência de recursos (humanos, materiais e financeiros).

E aí a gente fez a assembleia e aí assumiu a postura de subir a creche de alvenaria. […] Aí todo mundo doou o que podia doar. Um podia doar um tijolo, o outro um metro de areia, o outro um carrinho… Foi doando, doando… A mão de obra também foi doação. A creche ficou funcionando assim por muito tempo. […] Depois, quando as coisas foram ficando mais individuais, a creche deixou de existir porque não tinha condições dela existir, nem física, nem financeira. Só tinha o espaço, mas não tinha ninguém para estar lá e não tinha dinheiro. […] Aí, o Movimento de Mulheres e o Movimento [Social] desenvolveu o projeto da creche, que foi o projeto que foi lançado para financiamento coletivo. Na época, a meta era 45 mil e conseguimos arrecadar 50 […] Os pais sempre ajudaram. No início, era 50 reais, agora são 60. Ah, e tinha o apadrinhamento. […] (Laura, 23 anos, com. pess., 11 nov. 2017).

Os direitos das crianças e uma escola com cara de ocupação

No Brasil, as relações entre estado e sociedade civil, destacadamente com movimentos sociais organizados, caracterizam-se pelo conflito na reivindicação da superação de desigualdades históricas. Foi por meio da mobilização popular que se deu a luta pelo direito à creche e a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).13 13 O ECA constitui um desdobramento da Constituição Federal de 1988 e tem forte influência da Convenção Internacional dos Direitos da Criança que, pela primeira vez, contemplou a cidadania infantil. Entretanto, a convenção é especialmente criticada por ancorar-se na experiência social das crianças dos países do hemisfério Norte, tomada como universal, desconsiderando as crianças e as infâncias do hemisfério Sul (Rosemberg e Mariano 2010; Reynolds, Nieuwenhuys e Hanson 2006). A organização coletiva e o conflito são também marcas do contexto aqui analisado.

Pesquisadora: Mas teve pressão pra desocupar, assim? Você tem essa lembrança, assim de conflito?

Carolina: Teve. […] Eu lembro que a gente fez cordão de crianças, de idosos e de adultos atrás. Ai, ficou, tipo… umas… até de tardinha, assim, e a polícia foi embora. E aí a gente conseguiu… Depois disso a gente foi fazendo mais manifestações para poder conseguir o que a gente precisava pra ocupação, tipo, luz e essas coisas assim… […] (Carolina, 13 anos, com. pess., 2 dez. 2017).

Tanto no discurso dos movimentos sociais ligados às questões de moradia quanto na produção acadêmica, converge a visão de que a luta das ocupações urbanas não se restringe à busca pelo direito à moradia digna, mas se estende ao direito à educação, à saúde, ao saneamento básico, ao trabalho etc. Se, por um lado, os direitos das crianças correm o risco de serem subsumidos nos demais direitos presentes na bandeira das ocupações, por outro, o que se observa é que, nos momentos mais críticos de ameaças de despejo, aciona-se o discurso da criança como sujeito de direitos como estratégia de permanência das famílias.14 14 Em alguns casos, processos de reintegração de posse têm sido barrados devido à necessidade de os órgãos públicos assegurarem o acesso à educação e à alimentação para as crianças. A sobreposição dos direitos da criança ao direito de propriedade da terra aponta para a visibilidade desses sujeitos no processo de resistência de movimento sociais (Gouvea, Carvalho e Silva 2019). Essa realidade nos desafia a pensar a governança dos direitos não apenas a partir do texto normativo, mas das experiências concretas das crianças na vida social (Liebel 2012Liebel, Manfred, org. 2012. Children's Rights from below: cross-cultural perspectives. London: Palgrave Macmillan.), complexificando a noção de direitos das crianças e de “invisibilização” ou “vulnerabilidade” 15 15 Em diálogo com Boaventura de Sousa Santos (2008), estamos aqui mobilizando a reflexão sobre os limites da regulação/emancipação, inclusive no que diz respeito à normatização de direitos, ancorada em universalismo abstrato e orientado por padrões hegemônicos. A emancipação, segundo o autor, como quem concordamos, está condicionada ao reconhecimento. em contextos de ocupações urbanas, conforme veremos nos dados a seguir.

Observa-se na realidade da ocupação MF a presença constante das crianças nas ações de mobilização que passam a ser marcadas pela especificidade infantil. Desse modo, sua agência social reivindica o direito à presença nos espaços públicos, pelos quais também circulam, brincam e interagem. Assim, elas estendem a luta dando visibilidade aos seus direitos a partir da vida cotidiana na cidade (Gouvea, Carvalho e Silva 2019Gouvêa, Maria Cristina S., Levindo Carvalho, e Isabel O. Silva. 2019. O protagonismo infantil no interior de movimentos sociais contemporâneos no Brasil. Sociedad e Infancias (3): 21-63. https://doi.org/10.5209/soci.63525.
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; Gobbi, Anjos e Pito 2020Gobbi, Márcia, Cleriston Izidro dos Anjos, e Juliana D. Pito. 2020. Sediciosas formas de viver: crianças, arte e cozinha na luta pelo direito à moradia. Práxis Educacional 16 (40): 184-208. https://doi.org/10.22481/praxisedu.v16i40.6896.
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) e tensionam uma concepção “deficitária” de infância.

Pesquisadora: Tem alguma coisa que você acha que aprendeu porque mora na Marielle Franco?

Rafaela: Aprendi a ocupar pela moradia. Lutar mesmo! Eu acho que se eu não tivesse vindo para cá, eu não saberia as lutas que nós passamos aqui. É isso… eu não aprenderia a lutar! (Rafaela, 13 anos, com. pess., 6 dez. 2017).

No que diz respeito especificamente ao direito à educação, elementos relativos à construção e ao funcionamento da creche nos oferecem reflexões potentes para o debate. É verdade, por exemplo, que os direitos das mulheres subsidiam a construção da creche, assim como no MLPC nos anos de 1970 (Teles 2015Teles, Maria Amélia de A. 2015. A participação feminista na luta por creches! In Creche e feminismo: desafios atuais para uma educação descolonizadora, organizado por Daniela Finco, Márcia Aparecida Gobbi, e Ana Lúcia Goulart de Faria, 21-34. Campinas: Edições Leitura Crítica.). Conforme Maria, em um contexto de alta demanda e de baixa oferta de espaços de cuidado para as crianças, as vagas existentes são prioritariamente destinadas às mães solos e àquelas que, ainda que compartilhando o cuidado dos filhos com outras pessoas, exercem funções remuneradas em espaços externos à casa.

A gente cadastra e matricula essas crianças que moram na Ocupação e que a mãe é “mãe solteira” e que precisa trabalhar. Aí, depois, a gente já vem pegando os casos das mães que trabalham e os pais que também trabalham, em seguida, os que não moram aqui e depois, por último, as crianças que as mães querem vaga, que não trabalham, mas que estão em casa e que precisam da creche. (Maria, 51 anos, com. pess. 6 fev. 2018).

Contudo, nos atravessamentos entre os direitos das crianças e das mulheres, a realidade da ocupação MF também indica como o projeto educativo da creche se centra no reconhecimento (Fanon 1968Fanon, Frantz. 1968. Os condenados da terra. São Paulo: Civilização Brasileira.; Quijano 2005Quijano, Aníbal. 2005. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, organizado por Adgardo Lander, 227-78, Buenos Aires: Clacso.; Santos 2007Santos, Boaventura de S. 2007. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos (79): 71-94. https://doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004.
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) da realidade social das crianças. O caso de André, menino negro de três anos que, em certa manhã, chegou à creche com sua calça rasgada, traduz, em alguma medida, os delineamentos de uma representação não submissa à ideia de uma infância global (Castro 2020Castro, Lucia R. de. 2020. Why global? Children and childhood from a decolonial perspective. Childhood 27 (1): 48-62. https://doi.org/10.1177/0907568219885379.
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), mas que, ao contrário disso, se orienta pela crítica às relações de poder que atravessam as identidades coletivas das crianças naquele ambiente.

Pesquisadora: Outro dia lá na creche eu observei que uma das crianças usava uma calça descosturada na parte de trás. Eu achei interessante o modo como vocês lidaram com o caso…

Laura: Era o André.

Pesquisadora: E se ele chegasse daquele jeito em uma escola…

Júlia: Ele ia ser tratado de uma maneira… ia ser uma chacota! […]

Júlia: […] É muito difícil uma professora de periferia ter o entendimento do que é viver na periferia. Do que é a criança pobre que não tem roupa, a criança que vai de chinelo, um estranhamento: – “Nossa! Ele veio de calça rasgada! Olha, olha, olha, professora!” Diferente de: – “O André veio de calça rasgada hoje, vamos ver se nós temos uma calça para a gente vestir nele”. (Laura, 23 anos, com. pess., 11 nov. 2017).

Não é apenas na resolução de questões imediatas e individuais que o reconhecimento das identidades coletivas das crianças se traduz. A própria organização do espaço e de suas práticas de cuidado são delineadas a partir das realidades – muitas vezes perversas, já que atravessadas por negações de direitos – das crianças. Em outras palavras, conforme salienta Maria, “as educadoras conhecem a história de cada um e, por isso, sabem das suas necessidades” (Maria, 51 anos, com. pess. 06 fev. 2018).

É sob essa perspectiva que elas definem, por exemplo, quais as crianças que irão tomar banho a cada dia, já que as condições de trabalho das educadoras e a própria infraestrutura da creche inviabilizam o banho diário para todas as crianças. Ações como estas afirmam a dimensão ética do cuidado, ao considerarem as condições concretas das vidas das crianças das ocupações, marginalizadas espacial e socialmente e, sobretudo, as desiguais relações de poder que as produzem, em detrimento de assumirem exclusivamente um viés salvacionista, presente na visão historicamente construída acerca da criança pobre. A realidade aqui analisada, como veremos, indica a urgência de políticas situadas nas experiências das crianças e no contexto das relações estruturais de poder, tanto no presente quanto no passado, para reconhecer sua alteridade (Balagopalan 2019Balagopalan, Sarada. 2019. Why historicize rights-subjectivities? Children's rights, compulsory schooling, and the deregulation of child labor in India. Childhood 26 (3): 304-20. https://doi.org/10.1177/0907568219856077.
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).

As identidades coletivas das crianças informam também elementos para o currículo praticado na creche. Nas palavras de Júlia, o desafio colocado ao espaço é “ensinar mais do que o ‘abcd’”. E, nesse sentido, realiza-se na creche o trabalho de enfrentamento às desigualdades de gênero e, também, se dá especial atenção à abordagem e identificação de sinais de violência doméstica. O que, nas palavras das mulheres entrevistadas, constitui-se um avanço em relação ao que comumente é praticado nas Escolas Municipais de Educação Infantil (Emeis) do município.

A creche está avançada em muitas coisas que a EMEI precisa avançar muito ainda. Por exemplo, essa questão do gênero é um trabalho muito pesado que as meninas fazem com as crianças. […] E uma coisa também que é muito interessante é que a creche acompanha de perto, se tem uma criança x que é muito agressiva, a creche sabe que na casa dessa criança a mãe passa agressão. (Júlia, 24 anos, com. pess., 11 nov. 2017).

É na resistência dessas educadoras à municipalização da creche e, portanto, à sua transformação em uma Emei, que observamos, não sem contradições, uma radicalização do reconhecimento das identidades coletivas das crianças. Construída de maneira comunitária, a arrecadação de verbas para a manutenção da creche ocorre por meio de ações coletivas e do financiamento de colaboradores, chamados de “padrinhos”, além da contribuição de uma mensalidade simbólica pelas famílias que dispõem de recursos.16 16 Em 2017, a mensalidade era no valor de R$60,00 por família.

A fragilidade dessa forma de gestão acaba por reproduzir negações de direitos. As crianças convivem com uma estrutura física com profundos limites, que em períodos chuvosos se mostra insalubre em razão de problemas de infiltração no teto. Além disso, observa-se ali a precariedade de materiais pedagógicos, brinquedos, livros etc. Ainda, convive-se na creche com a necessidade de se buscar constantemente vias de garantia das quatro refeições diárias (café da manhã, almoço, lanche e jantar).

Por outro lado, no bojo dessas contradições, os direitos das mulheres também são afetados. O não recebimento de salários pelas educadoras que trabalham diariamente por, no mínimo, oito horas naquele espaço é um exemplo disso.

Você mesmo sabe, somos voluntárias da creche, né? A gente não tem salário, a gente recebe uma ajuda de custo que é pequena. […] A gente já chegou assim, 150, 200 reais e não passa, é 300. É, assim, é uma ajuda. É só isso mesmo. (Cláudia, 36 anos, com. pess., 27 fev. 2018).

O exemplo da creche da MF indica, no papel das mulheres nesse movimento, estratégias inventivas que se baseiam em redes de solidariedade e contradizem marcos legais e institucionais. Contudo, a precarização da qualidade da oferta da educação infantil e do trabalho feminino17 17 O trabalho na educação infantil é comumente atribuído a mulheres sob a falsa justificativa de sua habilidade afetiva para o cuidado, o que, somado ao padrão inicial de não exigência de formação profissional, perdurou sob a forma mal á remunerada ou voluntária (Rosemberg 2015). aponta que a institucionalização pode ser um caminho. Mas, como veremos, não se trata de qualquer forma de institucionalização.

O conveniamento da creche pelo poder público implicaria em certa segurança financeira para a manutenção da instituição, mas ainda assim não se apresentou razoável para as educadoras, que compreenderam a transformação da “Creche da Ocupação” em uma Emei como inadequado.

Eles propuseram: – “Oh, a creche vai ter tudo, tudo que a Emei tem. A Prefeitura vai arcar com todas as despesas. A gente vai suprir alimentação correta, vai levantar prédio, vai fazer berçário e tudo”. Mas a gente, que fundou a creche, ia ter que sair fora. Iriam vir os concursados, as pessoas que a Prefeitura iria mandar e aí ia ser tipo uma Emei. […] Ia mudar tudo! Ia deixar de ser a creche do Movimento Social, da Ocupação e do Movimento de Mulheres, para virar a creche da Prefeitura. […] Entendeu? A creche da Prefeitura!

Pesquisadora: Mas como você acha que essa creche deveria ser?

Maria: É difícil, porque ela tinha que ter… tinha que interagir com a comunidade. Ela tinha que estar do lado da comunidade! Tinha que saber acolher as crianças da comunidade, né?! E na Emei não é assim, ela atende as crianças no geral, como se as crianças viessem de um bairro, e não é assim. […] Deveria ser uma escola “modelo de Ocupação”, uma escola criada para a Ocupação. (Maria, 51 anos, com. pess., 6 fev. 2018).

Há, em nossa compreensão, certa perversidade nos termos inscritos na oferta realizada pelo poder público. Tendo em vista a legitimidade do discurso universalista moderno/colonial em nossa sociedade – e, cada vez mais, nos contextos educativos –, avaliamos ser essa uma estratégia de perpetuação e, mais do que isso, de legitimação da relação de subalternização.

Dada a crença dominante na pertinência e na suficiência do universalismo norte centrado (Santos 2007Santos, Boaventura de S. 2007. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos (79): 71-94. https://doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004.
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), a recusa ao acordo por parte da creche pode assumir o significado de intransigência ou de um “capricho” de um grupo de educadoras. Assim, a opção pela não municipalização pode operar, de maneira simbólica ou concreta, como uma estratégia de responsabilização das mulheres pela não garantia do direito a uma educação infantil de qualidade. O que nos conduziria, por sua vez, para uma oposição entre sujeitos e direitos que, como vimos, não encontra ressonância no contexto investigado. Nesse sentido, é preciso não perder de vista a “arrogância e a própria inviabilidade”, conforme nos adverte Freire (1974)Freire, Paulo. 1974. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento., de um projeto de educação que se apoia em ausências e que, portanto, se recusa ao reconhecimento.

Em meio a tais controvérsias, Rosemberg (2015)Rosemberg, Fúlvia. 2015. A cidadania dos bebês e os direitos de pais e mães trabalhadoras. In Creche e feminismo: desafios atuais para uma educação descolonizadora, organizado por Daniela Finco, Márcia Aparecida Gobbi, e Ana Lúcia Goulart de Faria, 163-184. Campinas: Edições Leitura Crítica. aponta como a inserção do estado na provisão e regulação da educação infantil em países latino-americanos manifesta a reprodução de desigualdades históricas, uma vez que são as famílias com maior poder aquisitivo e bem localizadas que acessam o serviço público de qualidade. Igualmente, Silva e Vieira (2020)Silva, Maria Beatriz, e Lívia Vieira. 2020. Frequência escolar na educação infantil: percepções das famílias e dos profissionais da educação. Revista da Faeeba - Educação e Contemporaneidade 29 (60): 287-307. https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p287-307.
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apontam que a infrequência escolar é maior entre crianças que vivem em ocupações urbanas. Diante de diferentes riscos e em um cenário de contradições, a MF nos convoca a reinventar o espaço da luta das mulheres pela educação infantil e a centralidade da creche na transformação social (Teles 2015Teles, Maria Amélia de A. 2015. A participação feminista na luta por creches! In Creche e feminismo: desafios atuais para uma educação descolonizadora, organizado por Daniela Finco, Márcia Aparecida Gobbi, e Ana Lúcia Goulart de Faria, 21-34. Campinas: Edições Leitura Crítica.).

Considerações finais

Com este artigo, pretendemos mostrar como as mulheres, em meio à luta por moradia e pela educação infantil, acionam os direitos das crianças enquanto estratégia de resistência, tensionando uma concepção de direitos e de infância que não reconhece moradoras e moradores de uma ocupação urbana como sujeitos de ação, mas receptores de provisão de um estado reformista (Balagopalan 2019Balagopalan, Sarada. 2019. Why historicize rights-subjectivities? Children's rights, compulsory schooling, and the deregulation of child labor in India. Childhood 26 (3): 304-20. https://doi.org/10.1177/0907568219856077.
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).

A trajetória de construção da creche na ocupação MF enuncia dois movimentos que tensionam a lógica colonial. O primeiro deles é a luta pela garantia de permanência das famílias no terreno diante da ameaça de despejo do estado, que aciona o discurso dos direitos das crianças para manipular famílias marginalizadas das políticas públicas, conforme Balagopalan (2019)Balagopalan, Sarada. 2019. Why historicize rights-subjectivities? Children's rights, compulsory schooling, and the deregulation of child labor in India. Childhood 26 (3): 304-20. https://doi.org/10.1177/0907568219856077.
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e Oliveira (2020)Oliveira, Assis da C. 2020. Juventudes indígenas: mobilizações por direitos em perspectiva descolonial. Tese em Direito, Universidade de Brasília (UnB). já apontaram em outros contextos. Já o segundo movimento é a ação coletiva de mulheres na construção de uma creche comunitária, que assume um trabalho educativo que reconhece as identidades coletivas das crianças atendidas, revelando outras formas possíveis de promover a educação infantil.

A experiência das ocupações urbanas, protagonizadas pelas mulheres, constituem, uma prática comunitária contemporânea emblemática para se pensar a potência criativa da luta cotidiana e perpassa as tarefas de criação, manutenção e cuidado de uma comunidade (Franzoni, Alves e Faria 2020Franzoni, Julia, Natália Alves, e Daniela Faria. 2020. As bruxas da Izidora: feminismos e acumulação por despossessão. In Naão saão soó quatro paredes e um teto: uma década de luta nas ocupações urbanas na regiaão metropolitana de Belo Horizonte, organizado por Thiago Canettieri, Marina Sanders Paolinelli, e Clarissa Campos, 263-302. Belo Horizonte: Cosmópolis.; Cruz e Silva 2019Cruz, Mariana de M., e Natália A. da Silva. 2019. Intersections in subaltern urbanism: the narratives of women in urban occupations in Brazil. Environment and Planning C: Politics and Space 0 (0): 1-17. https://doi.org/10.1177/2399654419887969.
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; Carvalho-Silva 2018Carvalho Silva, Hamilton H. de. 2018. A dimensão educativa da luta de mulheres por moradia no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto de São Paulo. Tese em Educação, Universidade de São Paulo.). Vimos que o engajamento das mulheres na construção da creche na ocupação MF é perpassado por uma ação “político-afetiva” (Tonucci-Filho 2017Tonucci Filho, João Bosco M. 2017. Comum urbano: a cidade além do público e do privado. Tese em Geografia, Universidade Federal de Minas Gerais.), que mobiliza as categorias do afeto e do cuidado em processos de resistência na vida cotidiana. Contribuímos, assim, para jogar luz no território das ocupações para além de uma narrativa hegemônica de subjugação e invisibilização, mas como lócus de solidariedade e de novos modos de produção do espaço (Cruz e Silva 2019Cruz, Mariana de M., e Natália A. da Silva. 2019. Intersections in subaltern urbanism: the narratives of women in urban occupations in Brazil. Environment and Planning C: Politics and Space 0 (0): 1-17. https://doi.org/10.1177/2399654419887969.
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), onde se aposta na coletividade para resistir e construir outras formas de cuidar e amar o mundo (Federici 2019Federici, Silvia. 2019. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante.; Lugones 2014Lugones, Maria. 2014. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas 22 (3): 935-52. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300013.
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).

A complexidade do debate do direito à educação infantil aqui apresentada confere concretude aos estudos críticos sobre os direitos da criança que buscam analisar o “significado de fazer os direitos das crianças em sua vida cotidiana” e a necessidade de se capturar as tensões entre formulações globais e locais de direitos (Reynolds, Nieuwenhuys e Hanson 2006Reynolds, Pamela, Olga Nieuwenhuys, e Karl Hanson. 2006. Refractions of children's rights in development practice: a view from anthropology: introduction. Childhood 13 (3): 291-302. https://doi.org/10.1177/0907568206067476.
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). Nesse horizonte, a superação de um viés salvacionista e de uma concepção “deficitária” de infância assumiram destaque.

A resistência à municipalização na creche da MF indica uma lógica de governança dos direitos à educação infantil, expressada no desejo do movimento em construir uma autonomia na relação com o Estado e, ao mesmo tempo, demandar do poder público condições materiais para o funcionamento da creche em dada concepção de educação.

As análises aqui empreendidas conduzem à contestação ao universalismo abstrato e seus limites enquanto matriz orientadora da formulação de direitos. Como vimos, a adoção de um padrão único, e que se pretende global, de mulher, de infância, de qualidade e de educação, ao mesmo tempo, invisibiliza existências e reproduz desigualdades. Não se trata de romantizar as precárias condições de existência dos sujeitos investigados, mas de reconhecer no estado a intransigência colonial e a resistência ao reconhecimento. Assim, a noção de reconhecimento aponta, no caso analisado, tanto para a compreensão de uma realidade singular de infância, quanto para o tensionamento de um modelo de acesso universal ao direito à educação que desconhece tal singularidade.

Por fim, destacamos a necessidade de ampliarmos os referenciais teórico-metodológicos que coloquem em diálogo os estudos anticoloniais e os estudos da infância. E, assim, entender os direitos das crianças a partir das práticas sociais e da concretude das infâncias no Sul global.

  • 2
    Agradecemos a interlocução da professora Dra. Lívia Maria Fraga Vieira (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG) no processo de produção desse texto.
  • 3
    Tradução do original, em inglês: “By assuming rights-subjectivities as universal, child rights governance in the majority world risks ignoring, and thereby reproducing, the fundamental difference in the ways in which elite and marginal communities have engaged their rights-subjectivities as citizens of liberal democracies and been worked upon by postcolonial development”, Traduzido para o português pelos autores do artigo.
  • 4
    Aqui nomeamos como uma concepção hegemônica e universal de infância aquela que foi pautada por uma visão normativa que emerge da especificidade do contexto do norte e do Ocidente e que estabeleceu um parâmetro universal de criança e consequentemente fronteiras de inclusão e exclusão. Propomos aqui, reconhecer a diversidade e as profundas desigualdades e violências que afetam a infância, pensando esse tempo da vida de modo descentralizado, política e epistemologicamente, do chamado Norte global (Castro 2021Castro, Lucia R. de, org. 2021. Infâncias do Sul Global: experiências, pesquisa e teoria desde a Argentina e o Brasil. Salvador: Edufba.).
  • 5
    Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH). 2020. Relatório Final do Grupo de Trabalho da Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor sobre Direito à Moradia. Acessado em 19 jan. 2022. https://www.cmbh.mg.gov.br/comunica%C3%A7%C3%A3o/not%C3%Adcias/2020/08/relat%C3%B3rio-aponta-defici%C3%Aancias-e-novos-caminhos-para-pol%C3%Adtica.
  • 6
    Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU). 2018. Panorama dos Conflitos Fundiários Urbanos no Brasil. Relatório de 2018. Acessado em 19 jan. 2022. https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/panorama-dos-conflitos-fundiarios-urbanos-no-brasil.
  • 7
    Dentre elas, destaca-se: Arquitetura e Urbanismo, Sociologia e Antropologia Urbana e Direito Urbanístico.
  • 8
    Essas atividades se dividem entre processos de resistência ativa (assembleias e marchas) e relacionados à vida quotidiana (mutirões de autoconstrução, cursos de formação e celebrações festivas).
  • 9
    A Constituição Brasileira de 1988 estabeleceu o direito à educação para crianças de 0 a 6 anos e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 estabeleceu a educação infantil como a primeira etapa da Educação Básica, que, desde a Lei 11.247/2006, foi dividida em creches (para crianças de 0 a 3 anos) e pré-escolas (para crianças de 4 a 5 anos e 11 meses). Destaca-se ainda, mais recentemente, a promulgação do Marco Legal da Primeira Infância (MLPI, Lei 13.257 de 2016), que fortalece a temática na agenda pública.
  • 10
    Trata-se de ocupação horizontal de um terreno vazio, e não de ocupação vertical de um prédio abandonado.
  • 11
    Referência às barracas utilizadas no primeiro momento da ocupação e que, aos poucos, foram substituídas por construções de madeirite e alvenaria.
  • 12
    Para não revelar a identidade da creche, não será mencionado o movimento social atuante no território.
  • 13
    O ECA constitui um desdobramento da Constituição Federal de 1988 e tem forte influência da Convenção Internacional dos Direitos da Criança que, pela primeira vez, contemplou a cidadania infantil. Entretanto, a convenção é especialmente criticada por ancorar-se na experiência social das crianças dos países do hemisfério Norte, tomada como universal, desconsiderando as crianças e as infâncias do hemisfério Sul (Rosemberg e Mariano 2010Rosemberg, Fúlvia, e Carmem Lúcia S. Mariano. 2010. A convenção internacional sobre os direitos da criança: debates e tensões. Cadernos de Pesquisa 40 (141): 693-728. https://doi.org/10.1590/S0100-15742010000300003.
    https://doi.org/10.1590/S0100-1574201000...
    ; Reynolds, Nieuwenhuys e Hanson 2006Reynolds, Pamela, Olga Nieuwenhuys, e Karl Hanson. 2006. Refractions of children's rights in development practice: a view from anthropology: introduction. Childhood 13 (3): 291-302. https://doi.org/10.1177/0907568206067476.
    https://doi.org/10.1177/0907568206067476...
    ).
  • 14
    Em alguns casos, processos de reintegração de posse têm sido barrados devido à necessidade de os órgãos públicos assegurarem o acesso à educação e à alimentação para as crianças. A sobreposição dos direitos da criança ao direito de propriedade da terra aponta para a visibilidade desses sujeitos no processo de resistência de movimento sociais (Gouvea, Carvalho e Silva 2019Gouvêa, Maria Cristina S., Levindo Carvalho, e Isabel O. Silva. 2019. O protagonismo infantil no interior de movimentos sociais contemporâneos no Brasil. Sociedad e Infancias (3): 21-63. https://doi.org/10.5209/soci.63525.
    https://doi.org/10.5209/soci.63525...
    ).
  • 15
    Em diálogo com Boaventura de Sousa Santos (2008)Santos, Boaventura de S. 2008. A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. Revista Crítica de Ciências Sociais (80): 11-43. https://doi.org/10.4000/rccs.691.
    https://doi.org/10.4000/rccs.691...
    , estamos aqui mobilizando a reflexão sobre os limites da regulação/emancipação, inclusive no que diz respeito à normatização de direitos, ancorada em universalismo abstrato e orientado por padrões hegemônicos. A emancipação, segundo o autor, como quem concordamos, está condicionada ao reconhecimento.
  • 16
    Em 2017, a mensalidade era no valor de R$60,00 por família.
  • 17
    O trabalho na educação infantil é comumente atribuído a mulheres sob a falsa justificativa de sua habilidade afetiva para o cuidado, o que, somado ao padrão inicial de não exigência de formação profissional, perdurou sob a forma mal á remunerada ou voluntária (Rosemberg 2015Rosemberg, Fúlvia. 2015. A cidadania dos bebês e os direitos de pais e mães trabalhadoras. In Creche e feminismo: desafios atuais para uma educação descolonizadora, organizado por Daniela Finco, Márcia Aparecida Gobbi, e Ana Lúcia Goulart de Faria, 163-184. Campinas: Edições Leitura Crítica.).
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2021
  • Aceito
    21 Jun 2022
  • Publicado
    19 Abr 2023
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