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A primeira lei das sociedades anônimas no Brasil: lei nº 1.083 - 22 de agosto de 1860

Resumos

Este artigo procura demonstrar que uma lei pouco conhecida do meio contábil, a Lei Nº 1.083 de 22 de Agosto de 1860, em que pesem as limitações sócio-econômicas da época, é de fato a primeira Lei das Sociedades Anônimas no Brasil, diferentemente do conceito vigente que adota a Lei 2.627, de 1940, como tal. Adicionalmente, apresenta os modelos de publicação de balanços contidos no texto da lei e alguns exemplos de balanços publicados naquela época (inéditos) que mostram que o padrão criado era efetivamente seguido e servia de orientação às publicações ocorridas até por volta de 1940. Por último destaca-se que as circunstâncias que cercaram a elaboração da referida lei transformaram a contabilidade em um instrumento de repressão e vigilância das atividades privadas, uso pouco convencional e nada similar ao que dela se espera nos dias de hoje.

História da Contabilidade; Lei das S.As


This article seeks to demonstrate that a little known law in the accounting area, that is, Act Nº 1.083, from August 22 1860, is actually the first Law on Company Law in Brazil. This is different from the concept in vigour, which adopts Act Nº 2.627, from 1940, as such. In addition, the publication models for balance sheets contained in the law text are presented, which show that the standard created was really followed and served as an orientation for the publications realised until about 1940. Finally, it is highlighted that the circumstances surrounding the elaboration of the law referred to transformed accounting into an instrument for repressing and guarding private activities, a hardly conventional use which is not at all similar to what is expected from it nowadays.

History of Accounting; company Law in Brazil


ARTIGO

A primeira lei das sociedades anônimas no Brasil* * Artigo originalmente apresentado no II Accounting History International Conference, Osaka - Japan - Agosto/2001 . Lei nº 1.083 - 22 de agosto de 1860

Sérgio de IudícibusI; Álvaro Augusto Ricardino FilhoII

IProfessor Aposentado da FEA-USP, da qual foi Diretor, e Professor do Curso de Pós-Graduação em Ciências Contábeis e Financeira da PUC-SP

IIDoutorando em Controladoria e Contabilidade pela FEA-USP

RESUMO

Este artigo procura demonstrar que uma lei pouco conhecida do meio contábil, a Lei Nº 1.083 de 22 de Agosto de 1860, em que pesem as limitações sócio-econômicas da época, é de fato a primeira Lei das Sociedades Anônimas no Brasil, diferentemente do conceito vigente que adota a Lei 2.627, de 1940, como tal. Adicionalmente, apresenta os modelos de publicação de balanços contidos no texto da lei e alguns exemplos de balanços publicados naquela época (inéditos) que mostram que o padrão criado era efetivamente seguido e servia de orientação às publicações ocorridas até por volta de 1940.

Por último destaca-se que as circunstâncias que cercaram a elaboração da referida lei transformaram a contabilidade em um instrumento de repressão e vigilância das atividades privadas, uso pouco convencional e nada similar ao que dela se espera nos dias de hoje.

Palavras-chave: História da Contabilidade e Lei das S.As.

INTRODUÇÃO

Há um consenso, quase que generalizado entre os profissionais e estudiosos da contabilidade, segundo o qual a primeira Lei das Sociedades Anônimas1 1 A esse respeito vide, entre outros, SILVA (1980, p. 18), FRANCO (1988, p. 55), SCHMIIT (2000, p. 207). , no Brasil, foi promulgada pelo Decreto Lei nº 2.627, de 1940. Na ocasião, esse diploma legal estabeleceu procedimentos para a contabilidade nacional, tais como regras para avaliação de ativos e para a apuração e distribuição de lucros. Determinou, ainda, a criação de reservas e os padrões para a publicação do balanço e da demonstração de lucros e perdas.

Os autores que defendem o pioneirismo da lei estão absolutamente corretos no que diz respeito a avaliação dos ativos e as regras para apuração e distribuição de lucros, porém, o mesmo não se dá com os padrões para a publicação dos balanços.

Uma antiga lei, de número 1.083, datada de 22 de Agosto de 1860, dez anos após a publicação do Código Comercial Brasileiro, e de certa forma editada para corrigi-lo em alguns aspectos, determinava a obrigatoriedade de publicar e remeter ao Governo, nos prazos e pelo modo estabelecido nos seus Regulamentos, os balanços, demonstrações e documentos que por estes forem determinados...

Essa lei, que viria a ser regulamentada pelo Decreto Nº 2.679, orientou, ao longo dos oitenta anos seguintes, as publicações ocorridas em todo território nacional.

Adicionalmente, o trabalho apresenta, a título comparativo com os modelos legais, alguns balanços publicados na época, até hoje pouco conhecidos dos profissionais da área contábil e do público em geral.

O objetivo deste trabalho é resgatar, não apenas o texto da lei e seus anexos, mas, fundamentalmente, recuperar, ainda que de forma bastante resumida, as circunstâncias sócio-econômicas e culturais que determinaram a redação e edição dessa lei, recurso pouco comum nos escassos artigos que dissertam sobre a história da contabilidade em nosso país. Tal recurso faz com que, por vezes, a temática contábil seja colocada em segundo plano, substituída pela narrativa histórica, não obstante se retorne à primeira assim que os acontecimentos se fecham em torno do aspecto contábil pesquisado.

Para que o propósito deste trabalho seja alcançado é necessário retroceder um pouco além daquela época.

O PANORAMA SOCIAL BRASILEIRO AO FINAL DO SÉCULO XVIII.

Até o final do século XVIII, o Brasil sofria as restrições inerentes à sua condição de colônia portuguesa e era alvo de toda sorte de proibições que tinham por objetivo sufocar quaisquer pensamentos separatistas. O comércio era prerrogativa exclusiva dos cidadãos de origem portuguesa e qualquer tipo de manufatura era terminantemente proibida pela Carta Régia de 1785, exceção feita às "fazendas grossas de algodão que serviam para uso e vestuário dos negros e para enfardar ou empacotar fazendas ou para outros ministérios semelhantes".2 2 Sobre o assunto vide SIMONSEN (1939, p. 21) Até mesmo os bordados manuais eram vetados.

O temor pela liberdade era tal que algumas das proibições beiravam o ridículo, como a que em 1795 solicitava a extinção da cadeira de filosofia nos conventos, posto que não convinha "abusar dos estudos superiores que só servem para nutrir o orgulho próprio aos habitantes3 3 Fialho (1938, p.331) ...".

Diante desse quadro, torna-se absolutamente compreensível que D. João VI, ao aportar no Rio de Janeiro em 1808, tenha determinado uma série de medidas que, em caráter emergencial, tentavam estabelecer um mínimo de governabilidade ao país no qual se refugiava das tropas napoleônicas. Não o fez pelo Brasil, mas por si próprio e pelo bem estar da corte que encabeçava. Vale destacar que, em 1808, o Rio de Janeiro contava com cerca de trinta mil habitantes e que, em menos de um ano, cerca de quinze mil portugueses desembarcaram na cidade acompanhando a real família. A cidade se encontrava completamente despreparada para receber tal contingente.

O panorama sócio econômico no Rio de Janeiro no início do século XIX.

Nas décadas seguintes, o Brasil, mais particularmente o Rio de Janeiro, viria a conhecer um irreversível, porém moroso processo de transformação econômica. Para que se tenha idéia da lentidão desse processo, basta registrar o minimalismo das iniciativas industriais ocorridas nos anos subseqüentes4 4 Fonte: Coleção leis do Brasil. :

1812 - Fábrica de Ferro da Villa de Sorocaba.

1812 - Fábrica de Pólvora na lagoa Rodrigo de Freitas.

1813 - Fábrica de cartas de baralho no R. J.

1816 - Imprensa Real e o jornal periódico Gazeta do Rio de Janeiro.

1817 - Exploração de salinas no Rio de Janeiro.

1819 - Fábrica de tecidos na lagoa Rodrigo de Freitas.

1822 - Curtume em São Cristóvão.

1823 - Fundição para sinos.

1823 - Fábrica de armas, com 200 operários.

1823 - Fábrica de fiação e tecidos em S. Paulo.

1823 - Engenhos de cana e moinhos a vapor.

1831 - Fundação da Sociedade de Incentivo à Indústria.

1831 - diversas tipografias e 15 jornais.

Um interessante testemunho dessa "capacidade" industrial do país foi prestado por um conde francês de nome Suzanet que, em visita ao Rio de Janeiro, em 1845, assim se expressou sobre o assunto: "A indústria manufatureira faz, no dizer dos brasileiros, grandes progressos. Já se fabrica sabão, papel e selaria comum. Foi fundada uma fábrica de cristais no Rio de Janeiro. (...) não há nenhuma fábrica importante no Brasil5 5 O grifo nao consta do original. ..."

As razões de tal estagnação estavam relacionadas com a incapacidade das exportações gerarem divisas suficientes para financiar a aquisição dos ativos necessários à industrialização do país. Nos dizeres do Prof. Celso Furtado, a causa principal do grande atraso relativo à economia brasileira na primeira metade do século XIX foi o estancamento de suas exportações."Fomentar a industrialização nessa época, sem o apoio de uma capacidade para exportar em expansão, seria tentar o impossível num país totalmente carente de base técnica".

Foi somente em 1846 que o Brasil entrou de fato na era industrial. Naquele ano, Irineu Evangelista de Souza, futuro Barão de Mauá, adquiriu a Fundição e Estaleiro Ponta de Areia, em Niterói. Para Caldeira, "a primeira indústria digna desse nome instalada no Brasil. Trocar o comércio pela indústria, no Brasil, era quase uma loucura naquela época".

A "quase loucura" a qual o autor se refere merece algumas explicações.

As atividades econômicas naquela época limitavam-se ao comércio e à agricultura, tocada por trabalho escravo, onde o papel dos donos do capital era ordenar a derrubada do mato, comprar escravos, construir sedes de fazenda, preparar o solo e a semeadura, orientar a colheita e comercializá-la. Nas atividades comerciais, os mais bem sucedidos viviam das importações e exportações e, principalmente, do lucrativo tráfico de escravos.

Nessa sociedade não havia indústrias, até porque as atividades exercidas dentro dela necessitavam de trabalho manual e, conforme ensina Caldeira, qualquer atividade dessa espécie, por mais remunerada que fosse, era considerado degradante para os cidadãos livres. O trabalho era uma atividade para escravos e provocava arrepios em pessoas que se consideravam bem-nascidas. "Esse desprezo ao trabalho era fundamental para marcar uma diferença social básica nas sociedades escravistas, nas quais distinção se confundia com não se sujeitar a tarefas consideradas humilhantes".

Por tais comportamentos, não é de se estranhar que Mauá fosse incompreendido pela sociedade local quando resolveu comprar a Fundição e Estaleiro da Ponta de Areia. A partir dessa aquisição a figura de Mauá estaria para sempre marcada na história do país e nos desdobramentos legais utilizados como meio de cercear suas atividades. No bojo das leis apareciam nossos primeiros padrões e orientações contábeis.

O CÓDIGO COMERCIAL BRASILEIRO

As leis não surgem por acaso e nem da noite para o dia. A evolução sócio-econômica do país, ainda que bastante modesta àquela altura6 6 Segundo SIMONSEN (1939, pp. 22-3), "Em torno de 1850, contava o país com pouco mais de 50 estabelecimentos industriais, incluindo algumas dezenas de salineiras. Ha referências a 2 fabricas de tecidos, 10 de indústrias de alimentação, 2 de caixas e caixões, 5 de pequena metalurgia, 7 de produtos químicos, nas quais estavam empregados capitais de ... cerca de 780 mil libras esterlinas". , principiava a exigir regras mais claras para seu exercício. Para tanto, foi constituída uma comissão formada especificamente para esse fim e com relevante participação do já citado Barão de Mauá, como pode ser depreendido do texto a seguir:

"Em 1851 seria criado o Banco do Commercio e da Industria do Brasil. [...] Uma empresa como aquela não poderia ser fundada sem o novo Código Comercial, que entre outras coisas previa a formação de sociedades anônimas. No momento em que a lei foi escrita [1850] não havia o menor indício de gente disposta a fundar uma delas - mas o industrial travestido de redator de leis sabia o que queria quando insistiu em colocar a idéia no texto".

Caldeira (1995, p. 227)

A inserção de artigos regulamentando atividades de Banqueiros (Título IV)7 7 Os "Títulos" acima se referem as divisões capitulares empregadas na estrutura do Código Comercial Brasileiro. , Hipoteca e Penhor Mercantil (Título XIII), Companhias e Sociedades Comerciais (Título XV), apenas para citar algumas, constituía-se em um vislumbre de atividades futuras, bastante avançadas para a época. No mais, o Código voltava-se para o fim precípuo para o qual havia sido criado: a atividade mercantil.

No texto do Código, criado em 1850, são abordados alguns poucos assuntos de cunho eminentemente contábil e que, por isso mesmo, merecem ser destacados:

Art. 10. Todos os comerciantes são obrigados:

1. A seguir uma ordem uniforme de contabilidade e escrituração, e a ter os livros para esse fim necessários;

2. A fazer registrar no registro do Comércio todos os documentos, cujo registro for expressamente exigido por este Código,...

3. A conservar em boa guarda toda a escrituração, correspondências e mais papéis pertencentes ao giro de seu comércio, ...

4. A formar anualmente um balanço geral do seu ativo e passivo, o qual deverá compreender todos os bens de raiz, móveis e semoventes, mercadorias, dinheiros, papéis de crédito, e outra qualquer espécie de valores, e bem assim todas as dívidas e obrigações passivas;...

Art. 11. Os livros que os comerciantes são obrigados a ter indispensavelmente, na conformidade do artigo antecedente, são o Diário e o Copiador de cartas.

Art. 12. No Diário é o comerciante obrigado a lançar com individuação e clareza todas as operações de comércio, letras e outros quaisquer papéis de crédito que passar, aceitar, afiançar ou endossar, e em geral tudo quanto receber ou despender de sua ou alheia conta, seja por que título for, sendo suficiente que as parcelas de despesas domésticas se lancem englobadas na data em que forem extraídas do caixa. ...

No mesmo Diário se lançará também em resumo o balanço geral (art. 10, nº 4), devendo aquele conter todas as verbas deste, apresentando cada uma verba a soma total das respectivas parcelas; e será assinado na mesma data do balanço geral.

No copiador o comerciante é obrigado a lançar o registro de todas as cartas missivas que expedir, com as contas, faturas ou instruções que as acompanharem.

Art. 13. Os dois livros sobreditos devem ser encadernados, numerados, selados e rubricados em todas suas folhas por um dos membros do Tribunal de Comércio respectivo,...

Art. 14. A escrituração do livro será feita em forma mercantil, e seguida pela ordem cronológica de dia, mês e ano, sem intervalo em branco, nem entrelinhas, borraduras, raspaduras ou emendas.

Art. 16. Os mesmos livros, para serem admitidos em Juízo, deverão achar-se escritos no idioma do país;...

Considerando-se que o Código Comercial, em sua edição original, possuía setecentos e noventa e seis artigos, cabe perguntar: por que menos de uma dezena de artigos foram reservados às práticas contábeis?

A resposta a essa pergunta é facilmente obtida quando se verifica que a comissão de redação era constituída pelos principais comerciantes da época e alguns juristas encarregados de dar forma à Lei. Aos comerciantes não interessava dar contas de suas atividades a ninguém além de seus sócios, isso caso eles existissem. Vale lembrar a quantidade quase que nula de sociedades anônimas anteriormente a 1850.

Um dos reflexos dessa concentração de interesses pode ser extraído do próprio texto do Código. Os artigos 17 e 18 são verdadeiras obras-primas de corporativismo:

Art. 17. Nenhuma autoridade, Juízo ou Tribunal, debaixo de pretexto algum, por mais especioso que seja, pode praticar ou ordenar alguma diligência para examinar se o comerciante arruma ou não devidamente seus livros de escrituração mercantil, ou neles tem contido algum vício.

Art. 18. A exibição comercial dos livros de escrituração comercial por inteiro, ou de balanços gerais de qualquer casa de comércio, só pode ser ordenada a favor dos interessados em questões de sucessão, comunhão ou sociedade, administração ou gestão mercantil por conta de outrem ou em questões de quebra.

Foram dentro desses poucos e singulares parâmetros contábeis que se desenvolveram as atividades comerciais no Brasil, ao longo dos anos 50. Dez anos se passariam até que razões muito específicas levassem à edição de outras normas de caráter contábil.

Em 22 de Agosto de 1860, foi publicada a Lei 1.083: Contendo providências sobre os Bancos de emissão, meio circulante a diversas Companhias e Sociedades.

AS RAZÕES QUE LEVARAM À LEI 1.083

O Banco do Commercio e da Indústria do Brasil, criado em 1851 e poucos meses depois rebatizado Banco do Brasil, era uma sociedade anônima presidida por um expressivo acionista, o futuro Barão de Mauá. Sua criação se deu em um momento em que a extinção do tráfico de escravos deixava poucas opções de investimento àqueles que dispunham de capitais, a maioria constituída por ex-comerciantes de escravos. Concebido para captar e fornecer recursos, a juros bastante inferiores aos praticados pelos agiotas da época, o Banco do Brasil logo se tornou atrativo ao capital nacional estagnado, ávido por investi-lo em negócios próprios ou em títulos nos quais esperavam ver aumentada sua fortuna.

Com uma balança comercial equilibrada e até com alguma sobra de dinheiro em caixa, o Brasil atravessava um momento auspicioso que dava espaço à cultura, às artes, ao incremento do convívio social e à discussão de idéias mais liberais.

O Banco do Brasil era um dos principais propulsores desses novos tempos e Mauá, seu principal gestor, com seu arrojo e visão progressista, o artífice que multiplicava recursos e empreendia a industrialização, os transportes e a infra-estrutura (água corrente e iluminação pública) do país. Mauá era o homem do momento e isso alterava o status quo.

Se de um lado tais mudanças trouxeram novas perspectivas econômicas e comportamentais aos investidores e à sociedade da época, para alguns tais novidades eram nefastas. Entre os que a ela se opunham, posto que tais alterações constituíam uma ameaça à forma de governo instituída, estava o Imperador.

Para restabelecer o estado da arte, os adversários de Mauá, tendo o principal dirigente da nação a guiá-los nos bastidores, fomentaram uma onda de boatarias que tinham por objetivo levar a população a duvidar da segurança de um mercado financeiro confinado nas mãos da iniciativa privada. O resultado de tais articulações foi uma corrida de saques ao Banco do Brasil que fez com que, em menos de uma semana, Mauá fosse forçado a negociar a entrega do Banco ao governo para evitar a falência da instituição, uma vez que as captações encontravam-se investidas em diversas empresas que não propiciavam, em tão curto espaço de tempo, a necessária liquidez.

Tendo logrado seu intento e para assegurar a existência de uma instituição bancária única, o governo imperial determinou que os estatutos de qualquer sociedade anônima deveriam ter aprovação governamental para seu funcionamento. Ficavam, desta forma, resguardadas quaisquer outras iniciativas futuras.

Obrigado a se desfazer da instituição financeira que funcionava como holding de seus empreendimentos, Mauá iria procurar caminhos legais que permitissem a consecução de seus objetivos. A brecha seria encontrada no próprio Código Comercial e denominava- se sociedade em comandita, ou empresa de responsabilidade limitada.

A grande vantagem deste tipo de empreendimento era que, para seu funcionamento, bastava apenas a autorização da Junta Comercial, e neste tipo de sociedade o governo não podia intervir.

Em 1854, Mauá resolveu fazer então uma sociedade em comandita, porém com o capital dividido em ações ao portador e de livre negociação. A lei era omissa à fórmula encontrada por ele.

O diferencial da empresa de Mauá sobre outras empresas do gênero, instaladas no país, era que entre seus sócios encontravam-se banqueiros ingleses de quem ele captava dinheiro no exterior, colocando no mercado nacional a juros de mercado, bem maiores que os de captação, ganhando na diferença das taxas. Adicionalmente, em função de agir nas duas pontas, a velocidade de desconto dos títulos era muito maior que a de seus concorrentes, o que fez com que, em pouco tempo, sua instituição fosse procurada por negociantes de todo o mundo com filiais no Brasil. Para agilizar e expandir seus negócios, fez abrir diversas casas de câmbio em vários pontos do país e no exterior (Uruguai, Paraguai e Argentina).

Enquanto a empresa prosperava e Mauá gozava de alguma paz, o comando econômico do império dividia-se em duas facções: de um lado o Presidente do Banco do Brasil, Visconde de Itaboraí, defensor fervoroso do padrão ouro8 8 Segundo essa doutrina econômica, a moeda-ouro funcionava como um padrão ou medida de valor inalterável. As emissões de papel de um país deveriam, a medida do possível, estar atreladas ao equivalente em reservas auríferas. ; do outro lado, o Ministro da Fazenda, Souza Franco, partidário da livre iniciativa e da liberação do crédito.

O antagonismo político entre um presidente de banco, sequioso por limitar a qualquer custo a emissão sem lastro e um ministro disposto a pôr novos e maiores recursos em circulação, não tardou a ocorrer. Não obstante sua posição hierárquica, o ministro dependia da boa vontade do Banco do Brasil, leia-se Itaboraí, para a emissão de papel moeda, quando era necessário.

O ponto alto da briga ideológica se deu em 13 de Novembro de 1857, quando a notícia de uma crise bancária nos Estados Unidos provocou forte elevação do câmbio, na cidade do Rio de Janeiro. Necessitando de numerário para fazer frente aos compromissos assumidos, o Ministro da Fazenda solicitou nova emissão ao Banco do Brasil, no que foi ignorado. Sem saída, recorreu à instituição de Mauá que não apenas pôs à sua disposição o montante necessário, como também pré-fixou e sustentou a cotação da moeda. Ao fazê-lo, Mauá apostava que, passada a crise, haveria excesso de Libras inglesas no mercado e falta de Reais (nome da moeda brasileira, naquela ocasião) e que a Libra Esterlina seria então cotada abaixo do Real, no momento em que oferecera apoio ao ministro.

Na esteira desses acontecimentos e para consagrar o rompimento político, o Ministro autorizou seis bancos de províncias a emitirem títulos. Estava desfeito o monopólio bancário engendrado quatro anos antes, quando da assunção do Banco do Brasil como único banco do país.

Durante o período que durou a crise - cerca de cinco meses -as críticas e acusações trocadas entre Itaboraí e o ministro movimentaram e dividiram a opinião pública nacional, todos apostando que as projeções de Mauá estariam erradas e que se o inverso ocorresse o governo brasileiro teria de pagar uma fortuna à instituição de Mauá.

Passada a turbulência cambial, que mostrou o quanto o ministro agira certo em sua ousadia, uma vez que Mauá acertara em suas projeções, ainda assim, uma nova onda de ataques políticos se abateu sobre ambos. Souza Franco, por "sugestão" do Imperador, renunciou. Quanto a Mauá, foi novamente perseguido em suas iniciativas.

O PERIGO DA "ANARQUIA MONETÁRIA"

Em fevereiro de 1858, Itaboraí solicitou à diretoria do Banco do Brasil que aprovasse um documento, chamando a atenção do Imperador para o "perigo da anarquia monetária" que autorizou o funcionamento de novos bancos. Atribuía a crise à superabundância de papel moeda. Para saná-la, propunha a restrição do crédito através da elevação gradual da taxa de descontos e para pôr o país novamente no rumo, pedia ao novo Ministro da Fazenda, Torres Homem, político de carreira e pouco familiarizado com economia, que adotasse "as medidas que sua sabedoria julga convenientes", como forma de bloquear o estabelecimento dos bancos concorrentes que o ministro anterior havia aprovado.

O novo ministro aproveitou a deixa e, alegando que só o legislativo poderia autorizar o funcionamento das instituições bancárias, revogou o decreto de seu antecessor e mandou a questão para o Parlamento. A seguir, baixou um decreto obrigando o Banco do Brasil a enxugar suas emissões e propôs " a volta ao regime de circulação metálica", ou seja, a volta do princípio do padrão ouro.

Essas medidas provocaram grandes discussões plenárias, mas acabaram sendo aprovadas por estreita margem de votos. No dia seguinte à vitória de seu Ministro da Fazenda, o Imperador, para apaziguar os ânimos, solicitou-lhe a renúncia. O novo ministro, Ângelo Muniz da Silva Ferraz, era ainda mais radical que seu antecessor e iniciou uma serie de medidas de impacto.

A LEI 1.083 DE 22 DE AGOSTO DE 1860 E SEU CONTEÚDO

A Lei 1.083, conquanto tenha trazido algumas contribuições à área contábil, como será visto mais à frente, detém um nível de autoritarismo somente comparável aos Decretos e Atos Institucionais exarados no golpe de 1964.

Por proposta ministerial, qualquer sociedade anônima, bancária ou não, só poderia ser fundada depois que seus estatutos fossem aprovados pelo Parlamento e posteriormente pelo Executivo, como segue:

Art. 2. Na organização e regimen das Companhias e Sociedades Anonymas, assim civis como mercantis, observar-se-hão as seguintes disposições:

§ 1º. As Companhias ou Sociedades Anonymas, Nacionaes ou Estrangeiras, suas Caixas Filiaes ou Agencias, que se incorporarem ou funcionarem sem autorização concedida por Lei ou por Decreto do Poder Executivo, e aprovação de seus estatutos ou escripturas de associação, [...] pagarão a multa de 1 a 5% do mesmo capital....

§ 3º. A autorização e aprovação [...] deverá ser solicitada por intermédio do Governo, o qual, ouvida a respectiva Secção do Conselho de Estado, remetterá à Assembléia Geral os documentos e informações que julgar conveniente.

Talvez por considerar que, uma vez aprovada, a sociedade poderia escapar ao controle governamental, o Art. 1., em seu parágrafo 7º, instituiu um fiscal nomeado pelo governo com as seguintes competências:

1. Fiscalizar todas as operações do Banco e as deliberações de seu Conselho Administrativo, e da Assembléia Geral dos Acionistas, e suspender a execução das que forem contrárias aos estatutos e à presente Lei, dando immediatamente conta ao Governo para que este decida se devem ser ou não executadas.

4. Examinar a escripturação do Banco todas as vezes que for a bem do interesse público.

É nesse tópico 4., acima, que retira dos comerciantes as prerrogativas contidas nos artigos 17 e 18 do Código Comercial, que surgem os motivos que levariam os redatores da lei a definir pela primeira vez na história do Brasil a obrigatoriedade da publicação de balanços e documentos prescritos em lei, como segue:

§ 9º.

Os gerentes ou directores das Companhias ou Sociedades Anonymas, de que trata o § 1º deste artigo, serão obrigados a publicar e remetter ao Governo, nos prazos e pelo modo estabelecido nos seus Regulamentos, os balanços, demonstrações e documentos que por estes forem determinados, sob pena de multa de ...

O texto da Lei 1.083 não continha nenhuma informação adicional sobre o formato de tais balanços; no entanto, esse assunto seria regulamentado em 3 de Novembro de 1860, pelo Decreto 2.679.

DECRETO N. 2.679 - DE 3 DE NOVEMBRO DE 1860

Impõe aos Bancos e outras Companhias e Sociedades Anonymas a obrigação de remeter em certas épocas ás competentes Secretarias de Estado seus balanços e outros documentos.

Para efeito de análise exclusivamente contábil, cumpre destacar os seguintes parágrafos do Decreto:

Art. 1º. As Administradoras, Diretorias ou Gerencias dos Bancos, as suas Caixas Filiaes ou Agencias são obrigadas a publicar até o dia 8 de cada mez, nos lugares em que funccionarem, os balanços de suas operações effetuadas no mez antecedente, e a enviar duas copias authenticas, a saber: huma ao presidente da respectiva Província e outra ao Ministério da Fazenda;

§ 2.º Os balanços mensaes serão organizados na forma dos modelos annexos ao presente Decreto.

Art. 2º. As demais Companhias ou Sociedades Anonymas, assim civis como mercantis, publicarão pelo menos semestralmente, ou nas épocas marcadas nos seus Estatutos, os documentos de que trata o artigo precedente, e os remetterão aos respectivos Presidentes e competentes Secretarias de Estado na forma do mesmo artigo.

Os modelos mencionados no § 2.º diziam respeito às seguintes modalidades de negócios: Bancos com e sem emissão de moeda, Montes de Soccorro (casas de penhor), Companhias de Seguros, Fábricas, Companhias de Navegação, Estradas, Vehiculos de transporte terrestre e Praças.

O texto do Decreto levava ao público os padrões que seriam nacionalmente adotados até que a Lei 2.627 de 1940 apresentasse outras disposições.

Na seqüência serão apresentados os modelos de balanço de Banco, sem emissão, e de balanço para Estradas. (A estrada, neste caso, deve ser entendida como uma empresa empreiteira.)

Adicionalmente, serão mostrados quadros de um balanço de cada uma dessas atividades, publicados na época. No que diz respeito ao banco, coincidentemente será mostrado o balanço da holding dos em preendimentos do Barão de Mauá, a Casas Mauá & C., de 31 de dezembro de 1867, naquela ocasião uma das maiores empresas do mundo. Para que se tenha uma idéia do que significavam os $ 115.8 contos de réis, em ativos, das empresas de Mauá, basta mencionar que o capital do maior banco do mundo na ocasião, o Banco de Londres, não chegava a quatro vezes esse montante e que o orçamento do Império, naquele mesmo ano, correspondia a $ 97 mil contos de reis.

No que se refere a Estrada, será apresentado um balanço datado de 13 de Outubro de 1860, relativo à Companhia da Estrada de Mangaratiba - RJ, acompanhado de um demonstrativo de receitas e despesas elaborado na mesma ocasião.

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CONCLUSÃO:

Os trechos extraídos do texto da Lei Nº 1.083, de 22 de Agosto de 1860, acrescidos dos artigos extraídos do Decreto 2.679, de 03 de Novembro de 1860, e das reproduções dos balanços publicados no século XIX - o da Estrada de Mangaratiba, inédito até o momento - são provas cabais e suficientes para demonstrar que a Lei 2.627, de 1940, não é, como se acreditava, a primeira lei brasileira a definir padrões para publicações de balanços.

Na verdade, analisados os motivos que determinaram a edição da Lei Nº 1.083, é possível afirmar que foi ela a primeira lei a regulamentar o funcionamento das Sociedades Anônimas no Brasil, ainda que respeitadas as proporções sócio-econômicas entre épocas.

Por outro lado, mais uma vez se confirma o contexto e as origens legalistas sempre presentes na evolução da contabilidade brasileira, fruto de uma herança cultural ibérica onde o que vale é o que está escrito na lei em detrimento das soluções que melhor atendam o exercício das atividades profissionais.

Uma constatação inesperada diz respeito ao uso da contabilidade como instrumento de arbítrio e repressão. Tal uso surpreende, principalmente quando descaracteriza uma atividade que tem por objetivo, pelo menos nos moldes como a idealizamos nos dias de hoje, bem informar e servir a seus usuários.

Para encerrar, espera-se que este trabalho sirva de inspiração para que outros autores busquem em nossas origens contábeis o porquê das coisas.

Recebido em outubro/2001

  • CALDEIRA, Jorge, Mauá: Empresário do Império, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1995.
  • CÓDIGO COMERCIAL BRASILEIRO, organização Juarez de Oliveira e Marcus Cláudio Acquaviva, 26. ed., São Paulo, Saraiva, 1981.
  • FIALHO, D. Branca, A Educação Secundária no Brasil, Rio de Janeiro, Anais do 3ş Congresso de História Nacional, 1938.
  • FRANCO, Hilário, A Evolução dos Princípios Contábeis no Brasil, São Paulo, Atlas, 1988.
  • SCHMIDT, Paulo, História do Pensamento Contábil, Porto Alegra, Globo, 2000.
  • SILVA, Laércio Baptista, A contabilidade no Brasil: aspectos do desenvolvimento por influência da legislação e da contabilidade, São Paulo, 1980, Dissertação - Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.
  • SIMONSEN, Roberto C., A Evolução Industrial do Brasil, FIESP, 1939.
  • SOARES, Sebastião F., Histórico da Companhia Industrial da Estrada de Mangaratiba, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1864.
  • SUZANNET, Conde de, O Brasil em 1845, Rio de Janeiro, Livraria Editora da casa do Estudante, 1957.
  • *
    Artigo originalmente apresentado no II Accounting History International Conference, Osaka - Japan - Agosto/2001
  • 1
    A esse respeito vide, entre outros, SILVA (1980, p. 18), FRANCO (1988, p. 55), SCHMIIT (2000, p. 207).
  • 2
    Sobre o assunto vide SIMONSEN (1939, p. 21)
  • 3
    Fialho (1938, p.331)
  • 4
    Fonte: Coleção leis do Brasil.
  • 5
    O grifo nao consta do original.
  • 6
    Segundo SIMONSEN (1939, pp. 22-3), "Em torno de 1850, contava o país com pouco mais de 50 estabelecimentos industriais, incluindo algumas dezenas de salineiras. Ha referências a 2 fabricas de tecidos, 10 de indústrias de alimentação, 2 de caixas e caixões, 5 de pequena metalurgia, 7 de produtos químicos, nas quais estavam empregados capitais de ... cerca de 780 mil libras esterlinas".
  • 7
    Os "Títulos" acima se referem as divisões capitulares empregadas na estrutura do Código Comercial Brasileiro.
  • 8
    Segundo essa doutrina econômica, a moeda-ouro funcionava como um padrão ou medida de valor inalterável. As emissões de papel de um país deveriam, a medida do possível, estar atreladas ao equivalente em reservas auríferas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Set 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2002

    Histórico

    • Recebido
      Out 2001
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