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O Conhecimento Como um Valor: As Ideias de A-Crescimento e de Commons

1 CONHECIMENTO E VALOR

O conhecimento é um bem primordial e seu valor sempre foi reconhecido, em todas as épocas. Modernamente, no entanto, vivenciamos perspectivas desviantes que contaminam a atribuição de valor ao conhecimento. Uma delas é a identificação indevida entre as ideias de conhecimento e mercadoria em sentido industrial. Tal redução conceitual pode ser responsável pelos patentes desequilíbrios na circulação de valores no mundo atual, com a excessiva concentração de renda em termos mundiais.

A associação direta entre conhecimento e economia é relativamente recente. Na Grécia Antiga, era nítida a separação entre os universos do conhecimento e do trabalho. O conhecimento, a episteme, e mesmo o logos não se vinculavam à techné do artesão, nem ao trabalho do escravo. Modernamente, da Revolução Industrial do século XVIII para cá, tais universos se aproximaram, se interpenetraram de tal forma que já não podem mais se separar com nitidez. O conhecimento transformou-se objetivamente no principal fator de produção.

2 CONHECIMENTO COMO MERCADORIA: LIMITES

O desafio a ser considerado, no entanto, é o fato de que, mesmo sem negar sua dimensão mercadoria, o conhecimento não se esgota em tal dimensão. Apenas para ilustrar as dificuldades intrínsecas, registramos que o conhecimento é um bem que posso dar ou vender a outra pessoa sem ficar sem ele. É um produto que não é fungível: em certo sentido, quanto mais uso, mais novo ele fica. É uma mercadoria cujo estoque não se pode controlar, nem mesmo se pode falar em estoque... Não é por acaso que quase todos os livros que tratam do conhecimento como um ativo em sentido econômico incluem um capítulo dedicado a paradoxos inevitáveis em tal contabilidade.

De fato, a produção e a circulação de mercadorias baseiam-se em certos princípios que são apenas parcialmente aplicáveis ao conhecimento ou, então, que são absolutamente impertinentes em tal universo. A materialidade, a fungibilidade, a objetivação, a estocabilidade, a confiança e a equivalência constituem alguns terrenos onde a "mercadoria" conhecimento parece derrapar.

Como se pode controlar o estoque e a produção de algo cuja característica mais própria é o permanente transbordamento das expectativas planejadas, cujo resultado mais previsível é a produção de efeitos do tipo serendipity, ou seja, de resultados que não eram inicialmente previstos?

3 CONHECIMENTO E CRESCIMENTO: A REVISTA ENTROPIA

É quase um lugar comum: o pensamento econômico busca o crescimento como um ser vivo busca o ar para respirar. Durante muito tempo, a economia não deu suficiente atenção ao fato de que os materiais necessários à produção de mercadorias eram, em grande parte, não renováveis. Um nomadismo exploratório conduziu a ocasionais mudanças de foco. Os prazos alongados em relação à duração da vida humana insinuaram, aqui e ali, a expectativa do infinito. Entretanto, já há algum tempo, a busca constante pelo crescimento deixou de ser um pensamento único, passamos a ter no horizonte o esgotamento de recursos ou de materiais valiosos. Metais preciosos, barris de petróleo, substâncias estratégicas, tudo passou a ser pensado na perspectiva de uma exploração limitada, de um consumo consciente, de uma exploração sustentável.

Uma iniciativa notável nesse sentido ocorreu em 2006, na França. Um grupo de pensadores de diferentes áreas de atuação, incluindo a filosofia, a sociologia, a economia, a política, a antropologia, a história, entre outras, lançou um movimento denominado Entropia, consubstanciado na Revue d'Étude Théorique et Politique de la Decroissance. Isso mesmo: uma publicação dedicada ao estudo teórico sobre o decrescimento. Em suas primeiras linhas, o artigo inicial (Pourquoi Entropia), o grupo registra:

Todo pensamento que recusa sua autocrítica não é mais um pensamento, mas sim uma crença (p. 3).

Naturalmente, a palavra-chave para caracterizar o trabalho do grupo não seria o decrescimento, mas, sim, o não crescimento, ou o a-crescimento, como explicita Serge Latouche (p. 11), em seu artigo inicial no volume 1:

Com todo o rigor, seria conveniente falar no nível teórico de "a-crescimento", como se fala de a-teísmo, mais do que de de-crescimento.

O foco do debate é a fundamentação de um discurso econômico que não situe acriticamente o crescimento como um valor em si, que não elimine, mas domestique o capitalismo selvagem; eis o cerne da ideia de a-crescimento.

Apesar disso, a intenção de chamar a atenção sobrepujou a nitidez do diagnóstico, e a palavra "decrescimento" torna-se protagonista em todos os trabalhos. A carta de intenções do grupo mapeia quatro crises a ser enfrentadas, derivadas todas elas do pensamento único do crescimento, segundo os autores: a energética, a climática, a social e a cultural. Incluem nas análises, de modo indireto, questões relativas ao conhecimento como um valor econômico, mas as reflexões enveredam por outras vias, em que as questões sociais, políticas, éticas ganham muito mais destaque do que outras mais específicas, como as que aqui se apresentam, referentes à epistemologia, ou ao transbordamento do conhecimento do universo da educação, da formação pessoal, para o da economia ou do trabalho. Foram publicados 16 números temáticos dessa revista, entre 2006 e 2014, quando a empreitada se encerrou.

Quando se pensa no conhecimento como um valor em sentido econômico, um aspecto crucial na reflexão sobre o a-crescimento da fecunda experiência da revista Entropia parece ter sido deixado de lado. O justo combate ao consumismo sem limites, à ostentação de bens supérfluos, ao luxo desmedido, junto com a consciência da finitude e da limitação de certos recursos fundamentais não se referem, naturalmente, à contenção do acesso ao conhecimento como um valor. Não se pode pretender inibir a expectativa da perfectibilidade, da permanente busca de crescimento pessoal em termos de sabedoria, de conhecimento daquilo que tem valor. Certamente, não era objetivo da revista combater o crescimento pessoal como finalidade da vida; muito menos o era visar ao decrescimento do conhecimento, mesmo em termos apenas provocativos.

4 CONHECIMENTO E PARTILHA: A IDEIA DE COMMONS

Um novo insight sobre a atribuição de valor econômico ao conhecimento veio a lume com o trabalho da economista política Elinor Ostrom. Em 2009Ostrom, E., & Hess, C. (2011). Understanding knowledge as a commons. Cambridge, MA: The MIT Press., ela foi a primeira mulher a ganhar o Prêmio Nobel de Economia, devido ao estudo Governing the commons: the evolution of institutions for collective action, posteriormente publicado pela Cambridge University Press. Nele é explorada a ideia de commons, em contraposição à de commodity, no tratamento de certos recursos, que deveriam circular de modo mais adequado em regimes de partilha social. Sempre usada no plural, a palavra commons tinha como referentes o ar, a água, a internet, o conhecimento científico, entre outros. Tendo origem na lavra de uma economista, a inclusão do conhecimento na categoria commons é instigante e inspiradora. Em seu livro Understanding knowledge as a commons: from theory to practice, escrito com Charlotte Hess e publicado pela MIT Press em 2011, Ostrom registra que busca

[...] um novo modo de olhar o conhecimento como um recurso compartilhado, um complexo ecossistema que é um commons - um recurso compartilhado por um grupo de pessoas que está sujeito a dilemas sociais (Ostrom & Hess, 2011, p. 3).

Almeja que o conhecimento, justamente por ser intangível, deveria ser incluído na categoria de um bem público, argumentando que:

O uso que uma pessoa faz do conhecimento (como a Teoria da Relatividade de Einstein) não exclui de outra pessoa a capacidade de utilizá-lo (Ostrom & Hess, 2011, p. 9).

Na obra citada, são inventariados aspectos práticos da ideia de commons. Um aspecto especialmente relevante é o que se refere à caracterização da autoria, um terreno minado para os editores de publicações científicas. Em todas as explorações do tema, deixa-se claro, no entanto, que as ideias de commons e de commodity não são vistas como oponentes irredutíveis:

O mercado e o commons são sinérgicos. Eles se interpenetram e executam tarefas complementares. As empresas só conseguem prosperar se houver um commons (pensa nas obras em estradas, nas calçadas e nos canais de comunicação) que permite à propriedade privada equilibrar-se com as necessidades públicas. Privatize os commons e você começará a sufocar o comércio, a concorrência e a inovação, bem como os meios para atender às necessidades sociais e cívicas. Defender o commons significa reconhecer que as sociedades humanas têm necessidades coletivas e identidades que o mercado não pode suprir sozinho (Ostrom & Hess, 2011, p. 38).

A fecundidade do trabalho de Ostrom está em vias de exploração. Seu livro seminal, coerentemente com sua visão de mundo, circula nas livrarias, mas também se encontra disponível gratuitamente na internet. Embora tenha tratado mais detidamente de questões práticas de circulação de commons em contextos de escassez ou de degradação de recursos, sua permanente atenção com o conhecimento é visível em toda sua obra:

As ameaças típicas ao commons do conhecimento são a mercantilização ou a clausura, a poluição e a degradação e a insustentabilidade (Ostrom & Hess, 2011, p. 5).

Seu otimismo com relação ao conhecimento é um sintoma de que haveria espaço, em sua reflexão, para uma análise mais específica do conhecimento como um valor, como sugere, por exemplo, o trecho seguinte:

Uma quantidade infinita de conhecimento está esperando ser descoberta. A descoberta do futuro conhecimento é um bem comum e um tesouro que devemos às gerações futuras (Ostrom & Hess, 2011, p. 8).

Infelizmente, Ostrom faleceu em 2012, em pleno exercício de um notável vigor acadêmico. A fecundidade de suas ideias, no entanto, constitui uma importante inspiração para todos os que se debruçam sobre a temática do conhecimento como um valor econômico.

5 CONHECIMENTO COMO UM VALOR: NOVOS DESAFIOS

Caminhamos para o final deste percurso. O objetivo proposto era mapear os elementos fundamentais para um tratamento adequado do conhecimento como um valor em sentido econômico. Da separação nítida entre os universos do conhecimento e do trabalho, como a que vigeu no mundo grego, até a total integração entre tais universos, como a que ocorre nos dias atuais, percorremos um espaço de relações em que a concepção de conhecimento articulou-se de modo significativo com as ideias de informação, de mercadoria, de dádiva, de commons, tangenciando, ainda, diversas outras. A análise das possibilidades e dos limites das inter-relações consideradas visou à busca de uma maior compreensão da natureza desse valor, que, como uma moderna esfinge, desafia filósofos, educadores, economistas, cientistas políticos, entre outros. Concluímos o percurso com alguns insights sobre as dúvidas iniciais, emanados de trabalhos inspiradores, explorados ao longo da jornada e, naturalmente, com muitas outras dúvidas, com muitos outros desafios a ser enfrentados ao lidar com o valor econômico do conhecimento. Registremos, aqui, alguns desses renitentes desafios.

Em primeiro lugar, quem quer que se debruce sobre a temática proposta precisará resistir a polarizações simplificadoras, como as que sugerem escolhas excludentes entre os elementos dos pares informação/conhecimento, dádiva/mercadoria, commodity/commons, entre outros. O reconhecimento da complexidade da temática impede um tratamento que se restrinja a universos limitados a decisões binárias, como se se tratasse de um conto de fadas, de uma história infantil. Certamente, para correr o risco de dizer algo significativo, as narrativas econômicas precisam assumir a multiplicidade de dimensões e as inter-relações que resultam das polarizações parciais associadas à questão tratada. O conhecimento se faz com informações, mas não basta amealhá-las. Ainda que possa ser vendido ou trocado, somente circula de modo fecundo quando são estabelecidas relações dadivosas entre as pessoas. E sua busca permanente está mais ligada à justa intenção de aperfeiçoamento pessoal do que a meras pretensões contábeis de crescimento de seu valor bruto.

Um segundo desafio a ser enfrentado é o de examinar com mais vagar as novas questões que estão postas no cenário, originadas da onipresença e do papel crescente das tecnologias informáticas nos processos produtivos, particularmente na construção do conhecimento. Um sintoma da pouca atenção a tais questões é o fato de que tratamos de bancos de dados como se fossem informações e tratamos de informações como se fossem conhecimento. Ao avaliar bancos de dados, informações em circulação ou o conhecimento teórico sobre qualquer tema, frequentemente recorremos a uma unidade binária, o bit. O bit, no entanto, é uma unidade conveniente para medir a extensão de um banco de dados ou para avaliar quantidade de informação de uma mensagem, levando em consideração apenas a frequência com que ocorre, independentemente do contexto em que se insere. Uma mensagem cujo conteúdo pode ser identificado por meio de uma única pergunta do tipo binário, ou seja, "é isso, ou não é isso?", tem exatamente um bit de informação. Se a mensagem é mais complexa e precisamos de n perguntas do tipo binário para identificá-la, então, ela tem n bits. Quando se leva em consideração, além da frequência de ocorrência, o significado da mensagem ou seu conteúdo, então, o bit já não é uma unidade adequada.

Devlin (1991)Devlin, K. (1991). Logic and information. Cambridge: Cambridge University Press., no seminal trabalho Logic and information, propõe o infon como um padrão mais adequado para medir a quantidade de informação de uma mensagem. Um infon é um dado em determinado contexto, entendendo-se por contexto um conjunto ordenado de n números, utilizado para caracterizar uma situação. Para Devlin (1991), não se poderia avaliar o conteúdo de uma mensagem sem considerá-la situada, em seu contexto.

Analogamente, no que se refere ao conhecimento, Herbert Simon (1981)Simon, H. (1981). As ciências do artificial. Coimbra: Arménio Amado., em As ciências do artificial, é relativamente premonitório, indo além das dificuldades para a medida da informação. Ele propõe uma nova unidade para medir o conhecimento, chamada de chunk, que teria a estrutura de uma pequena narrativa, de uma micro-história. Do trabalho de Simon (1981) resultam implicações extremamente atuais, relativas ao fato de que conhecer é sempre conhecer o motor da construção do significado, ou seja, a narrativa.

A tecnologia parece não ter levado adiante tais iniciativas originais, e o bit segue servindo de padrão para a avaliação de dados, informações, conhecimento... E as reflexões teóricas sobre tal temática também costumam carecer de referências mais densas a respeito.

Uma terceira vertente de desafios é enfrentar de modo radical a especificidade do conhecimento como um valor em sentido econômico. Por mais sedutora que seja a aproximação de temáticas como as da revista Entropia, desnudando o vazio ou a inconsequência do crescimento como fim, ou a do conceito de commons, com a ênfase na caracterização de bens que devem ser livremente partilhados por todos, existem peculiaridades fundamentais a ser consideradas no caso do conhecimento.

Como já foi registrado, no cenário atual, a própria ideia de propriedade do conhecimento, bem como a concepção de autoria, estão em questão. É cada vez mais necessária uma nova conceituação do autor e da autoria, em sintonia com a dinâmica da circulação de informações no mundo de hoje. Em nenhuma época a criação se deu como uma combinação lavoisieriana, uma simples cópia do que já existe, nem de modo absolutamente original, como uma criação divina. Já parece suficientemente claro, no entanto, que a cópia não é inimiga da criação, e ganha espaço uma caracterização do autor, que passa a ocupar uma nova posição, entre Deus e Lavoisier. Especialmente no que tange a trabalhos científicos, o registro do crédito, da autoria enquanto responsabilidade já deveria ser mais do que suficiente.

No que se refere ao commons, o grande mérito de Ostrom ao incluir o conhecimento no rol dos bens a ser livremente partilháveis, como o ar ou a água que consumimos, não pode minimizar certas distinções radicais: ainda que seja mal distribuído, o conhecimento não é um bem, a ser poupado, a ter seu uso dosado. Afinal, como destacou a própria Ostrom, o fato de alguém usar a Teoria da Telatividade de Einstein não impede que outra pessoa venha a utilizá-la. O conhecimento é um valor, mas não é como um pote de ouro a ser disputado, repartido de modo meramente contábil, ou apropriado por uns em detrimento de outros. Quando buscamos o conhecimento com os outros, todos podemos chegar lá, a compreensão pode ser plenamente alcançada por todos, sem jogos de perdas e ganhos. Uma chave importante para o tratamento de tal questão é o fato de que, como teoria, como visão que leva à compreensão, o conhecimento não admite hipocrisia: a integridade do ser humano pressupõe que, quem quer que abra os olhos para determinada situação, não possa mais fazer de conta que nada viu.

REFERENCES

  • Devlin, K. (1991). Logic and information. Cambridge: Cambridge University Press.
  • Latouche, S. (2006, outubro). "La décroissance: un projet politique". Entropia. Revue d'etude théorique et politique de la décroissance, 1, pp. 9-21.
  • Ostrom, E., & Hess, C. (2011). Understanding knowledge as a commons. Cambridge, MA: The MIT Press.
  • "Pourquoi Entropia?" [Editorial]. (2006). Entropia. Revue d'etude théorique et politique de la décroissance. 1, p. 3.
  • Simon, H. (1981). As ciências do artificial. Coimbra: Arménio Amado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015
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