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Metainterpretação: Quinze Anos de Pesquisa com o Relatório da Administração

RESUMO

Este trabalho lida com as investigações empíricas brasileiras publicadas em periódicos entre 2000 e meados de 2015 e que utilizaram - como fonte de dados - o Relatório da Administração (RA) divulgado pelas empresas de capital aberto junto com as demonstrações financeiras. Os RA são diversos entre si, tanto na substância quanto na forma, constituindo-se, por essa e por suas outras características, em atrativo para pesquisas acadêmicas interessadas no discurso oficial das empresas, ainda mais sendo aqueles documentos públicos e recuperáveis ao longo do tempo, cobrindo uma gama considerável de empresas, tipicamente, de maior porte, de diversos setores econômicos. Compelido por tais atributos, o objetivo deste estudo foi apreender a forma com que a academia científica entende e utiliza o RA. O trabalho privilegiou a ótica interpretativista, mas recorreu à triangulação permitida pelo uso de métodos qualitativos (análise de conteúdo) e quantitativos (análises estatísticas, sociométricas e bibliométricas). Concluiu-se que, para o grupo central de especialistas que lidaram com o documento, o RA é enviesado, incompleto, contestável, dúbio, trabalhoso, incerto, mas também útil - na falta de outro -, abrangente, disponível e recuperável ao longo do tempo; e se presta ao interesse dos diretores de empresas em, simultaneamente, valorizar-se e legitimar as suas companhias, incorporando em discurso o emprego de práticas contemporâneas de gestão, coerentes com as expectativas daqueles destinatários dos RA. Ao final, sugere-se a possibilidade, não explorada nos artigos analisados, de empregar o RA para acompanhar a dinâmica da institucionalização de práticas administrativas entre as empresas do país.

Palavras-chave:
legitimação; institucionalização; metainterpretação; relatório da administração

ABSTRACT

This paper deals with Brazilian empirical research published in journals between 2000 and mid-2015 that used, as a source of data, the Management Reports (MRs) released by publicly-traded companies together with their financial statements. MRs differ from each other, both in form as well as in substance, and due to this as well as to their other characteristics, they prove attractive for academic studies interested in official company discourse, more so because they involve documents that are public and retrievable over time, covering a substantial range of typically larger companies from different economic sectors. Driven by these characteristics, the goal of this study was to understand the way the academic world understands and uses the MR. The paper favored an interpretivist viewpoint, but used the triangulation allowed by the use of qualitative (content analysis) and quantitative (statistical, sociometric, and bibliometric analyses) methods. It was concluded that, for the core group of experts who dealt with the document, the MR is biased, incomplete, questionable, unclear, laborious, uncertain, but also useful - in the absence of another -, comprehensive, available, and retrievable over time. And it lends itself to the interest of company directors by increasing their value and at the same time legitimizing their companies, incorporating into discourse the use of contemporary management practices, consistent with the expectations of stakeholders. Finally, it suggests the possibility, unexplored in the articles analyzed, of employing the MR to study the dynamics of the institutionalization of administrative practices among companies in the country.

Keywords:
legitimization; institutionalization; meta-interpretation; management report

1 INTRODUÇÃO

O Relatório da Administração (RA) é um documento obrigatório às empresas de capital aberto, que deve ser divulgado no encerramento do exercício social juntamente com as Demonstrações Financeiras Padronizadas (DFP) e as Notas Explicativas (NE). Ele as complementa e contempla os principais fatos administrativos, incluindo, opcionalmente e entre outros, a descrição dos negócios e dos produtos, a análise sobre fatores exógenos relevantes sobre o desempenho da companhia, a situação dos projetos de pesquisa e desenvolvimento, as questões relativas à proteção do meio ambiente e a aplicação de programas de racionalização administrativa (Brasil, 1976; Comissão de Valores Mobiliários - CVM, 1987).

Cabe notar que a auditoria independente de companhias abertas (auditoria obrigatória por força do §3º do artigo 177 da Lei 6.404 de 1976 e conduzida sob a responsabilidade de auditores que, além de serem externos à entidade, devem também ser registrados na Comissão de Valores Mobiliários) não analisa e tampouco avaliza o conteúdo do RA (Kos, Espejo, & Raifur, 2014Kos, S. R., Espejo, M. M. dos S. B. & Raifur, L. (2014). O conteúdo informacional do Relatório da Administração e o desempenho das empresas brasileiras do Ibovespa. Revista Universo Contábil, 10 (2), 43-62.), como passível de constatação na Norma de Auditoria Independente das Demonstrações Contábeis NBC T 11, em contraste com a exigência do exame criterioso do teor das demais peças das demonstrações contábeis. Por isso, e pelo caráter narrativo e flexível do RA, esse documento pode recepcionar a criatividade da Administração da entidade, que deveria redigi-lo com simplicidade de linguagem para torná-lo acessível ao maior número possível de leitores, a ponto de, potencialmente, transformar-se num elemento poderoso de comunicação de informações úteis e detalhadas, que possibilitem o conhecimento da companhia, de seus objetivos e políticas (Brasil, 1976; CVM, 1987) e contribuem para a sua legitimação, como entendido em Lindblom (1994Lindblom, C. K. (1994). The implications of organizational legitimacy for corporate social performance and disclosure. Anais Critical Perspectives on Accounting Conference. New York.) e Suchman (1995Suchman, M. C. (1995) Managing legitimacy: strategic and institutional approaches. Academy of Management Journal, 20(3), 571-610.).

Como corolário, os RA são diversos entre si, tanto na substância quanto na forma, constituindo-se, por essa e por suas outras características, em atrativo para pesquisas acadêmicas interessadas no discurso oficial das empresas, principalmente porque aqueles documentos são públicos e recuperáveis ao longo do tempo, cobrindo uma gama considerável de empresas, tipicamente de maior porte, de diversos setores econômicos.

Hipoteticamente, da forma mais elementar possível, tais pesquisas poderiam voltar-se para o emissor do RA (referido aqui como o Administrador) e para os condicionantes de sua produção. No caso, ou se preocupariam com o efeito das características pessoais do Administrador e a incidência do fenômeno da agência, ou lidariam com as variáveis atuantes sobre o Administrador, discutindo-se as implicações do ambiente institucional; das características da entidade, como porte e composição acionária; dos resultados do exercício findo; e também as consequências das dinâmicas econômicas. A codificação empregada (escolhas semânticas, formas linguísticas, preferências e sua estruturação) e o próprio conteúdo da mensagem - mesmo o não escrito - são outras preocupações óbvias. Além disso, e em tese, os trabalhos podem optar por discutir a eficiência relativa do RA frente a peças e canais alternativos de comunicação (Balanço Social, Balanço Ambiental, sites das empresas).

Por fim, não seriam dispensáveis as investigações com foco nos receptores da mensagem. Trata-se de um conjunto bem numeroso, incluindo os listados pela CVM (1987) e, por essa via, prioritários: acionistas, credores, fornecedores e clientes; bem como concorrentes, empregados, sindicatos, entidades reguladoras, associações de classe, analistas de investimento e jornalistas econômicos - medindo o atendimento das necessidades específicas de cada categoria ou o impacto dos RA nas decisões de um ou outro grupo; por conseguinte, no mercado de ações.

Não foi difícil encontrar 95 investigações empíricas de matizes teóricas e objetivos variados, que usaram o RA como fonte de dados a partir de 2000, cada uma apropriando-se do documento à sua maneira. Por isso, respeitando a individualidade das investigações, foi conjecturado que seria factível subtrair dos trabalhos uma representação da significação do RA, explorando as regularidades e as singularidades, o ambiente institucional e, principalmente, os pesquisadores e suas opções metodológicas - ao mesmo tempo, responsáveis pelos trabalhos e "consumidores", quase exclusivos, dos produtos gerados. Destarte, a metainterpretação encaminhada neste artigo tem o propósito de responder à questão do seguinte enunciado: qual é a acepção do Relatório da Administração para os pesquisadores brasileiros?

A relevância do estudo estaria em, respondendo à questão de pesquisa, descortinar ou valorizar outras possibilidades de significado do RA, indicando potencialidades de sua análise, ainda não exploradas satisfatoriamente e, em decorrência, abrir outras oportunidades para o entendimento da prática administrativa e contábil no país.

É conveniente afiançar, de imediato, que não foi proposta e tampouco praticada uma revisão de literatura sobre o RA, evitando-se o risco de o produto constituir-se, como indicado por Wood (2000Wood, P. Meta-analysis. In: Breakwell, G. M., Hammond, S. & Fife-Schaw (Eds.) (2000). Research methods in psychology. London: Sage , 414-425.), em pseudossíntese, ou seja, nada mais do que uma bibliografia comentada, um "passeio" pelo que parece ser relevante. A intenção é oferecer uma metainterpretação - entendida aqui com uma compressão que vai além do conteúdo e das omissões dos artigos tomados individualmente, avançando na integração e nos metadados, como autoria, periódico e ano de publicação e outros indicativos da produção coletiva no ambiente científico brasileiro - na direção sugerida por Weed (2005Weed, M. (2005). "Meta Interpretation": a method for the interpretive synthesis of qualitative research. Forum: Qualitative Social Research, 6(1), art. 27.), que aponta para a emergência desse tipo de investigação na psicologia e na medicina, enquanto ainda haveria relativamente pouca metainterpretação em ciências sociais, por sua carência de expertise em acumular e reutilizar trabalhos já divulgados, principalmente aqueles de natureza interpretativista. Mesmo assim, Weed (2005) aponta diversas opções metodológicas à disposição do interessado; entre elas: meta-análise, metaetnografia, comparação cruzada de casos, análise secundária de dados primários e análise fenomenológica-interpretativista. Qualquer que seja a escolha, requer-se que a metainterpretação produza um novo entendimento, diferente da mera agregação dos achados das pesquisas originais - compromisso do presente estudo e que lhe serve como teste de relevância.

A esquematização do artigo segue o roteiro tradicional: imediatamente após estas notas introdutórias, apresenta-se uma revisão da literatura, circunscrita ao essencial. A apresentação dos procedimentos metodológicos e da caracterização inicial do Banco de Dados (BD) são os objetos do terceiro tópico, que aponta o caminho seguido para a obtenção dos resultados indicados na quarta seção, mais detalhada, cabendo-lhe ainda recepcionar as devidas análises. Por último, a quinta seção responde pela síntese e pelas considerações finais.

2 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

Esta investigação lida com dois campos: diretamente, com o campo científico e, subsidiariamente, com o empresarial (por meio do corpus do BD). Ao empregar o conceito de 'campo', cabe defini-lo. Nesta pesquisa, entre as seis possibilidades de entendimento sobre campo levantadas por Machado-da-Silva, Guarido Filho e Rossoni (2006Machado-da-Silva, C.L., Guarido Filho, E. R. & Rossoni, L. (2006). Campos organizacionais: seis diferentes leituras e a perspectiva de estruturação. Revista de Administração Contemporânea , Edição Especial, 159-196.), é suficiente aceitar campo, simultaneamente, como um "conjunto de organizações que compartilham sistemas de significados comuns e que interagem mais frequentemente entre si do que com autores de fora do campo, constituindo assim uma área reconhecida da vida institucional" - acompanhando DiMaggio e Powel, segundo Machado-da-Silva, Guarido Filho e Rossoni, (2006, p.162); e como um "conjunto formado por redes de relacionamento usualmente integrados e entrelaçados, que emergem como ambientes estruturados e estruturantes [...]", tal como proposto por Powell, White & Owen-Smith, de acordo também com Machado-da-Silva, Guarido Filho e Rossoni (2006, p. 162). Optando por essas proposições, não se concede espaço relevante, por exemplo, à proposta de Bourdieu (2004Bourdieu, P. (2004). Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: UNESP.) de campo como arena de poder e conflito.

Assim, o campo empresarial tem o Administrador como um de seus agentes, responsável pela emissão dos RA destinados ao consumo interno de entes deste campo, mas apropriado pelos Pesquisadores, inscritos no campo científico, autoencarregados de analisar os RA com os objetivos de descortinar os sentidos, as condições de produção e as repercussões do documento.

Admitiu-se que tanto o Administrador quanto o Pesquisador, na busca de seu melhor interesse - quase sempre envolvendo reputação, prestígio, reconhecimento, bem-estar e recompensa de ordem mais material - estão imersos em seus campos, sujeito às limitações e às facilitações impostas pelo ambiente institucional incidente, que acaba por direcionar como 'o jogo deve ser jogado' e o que é esperado em termos de conduta desses agentes (Teixeira, Cappelle, Perdigão, & Antonialli, 2013Teixeira, J. C., Cappelle, M. C. A., Perdigão, D. A. & Antonialli, L. M. (2013). O campo científico na percepção de docentes de uma universidade: Revista GUAL, 6(3), 86-110., Araújo, Antonialli, Guerrini, & Oliveira, 2011Araújo, U. P., Antonialli, L. M., Guerrini, F. M. & Oliveira, R. F. de (2011). A percepção e as estratégias de ação do pesquisador de café em sua rede colaborativa. Revista de Administração Contemporânea, 15(4), 670-688., Rossoni & Machado-da-Silva, 2008Rossoni, L. & Machado-da-Silva, C. L. (2008). Análise institucional da construção do conhecimento científico em mundos pequenos. Faces Journal, 7(1), 25-41.). Contudo, se as lógicas, os recursos, a preferência entre os tipos de recompensa e até mesmo a compreensão das coisas podem ser conflituosas dentro de um campo (Greenwood, Raynard, Kodeihl, Micelotta, & Lounsbury, 2011), maior é a possibilidade de serem distintas entre os campos, algumas vezes até opostas, como o entendimento do conhecimento como bem público, caso do campo científico e conhecimento como direito de propriedade, nas empresas; evidenciação na medida, para as empresas e evidenciação total, para o pesquisador. Parece razoável, na dinâmica estudada nesta investigação, exigir a transcendência do Pesquisador, que deveria se colocar, em algum momento, na posição do Administrador, e não o reverso. Estabelecido esse ponto inicial, pareceu apropriado lançar mão da ótica institucional como lente para entender as pesquisas sobre os RA, salientando a coincidência de ser ela também a base da maioria das pesquisas do BD.

2.1 Institucionalização e Legitimação

Dada a projeção de P. Bourdieu em estudos na área, como discutido por Machado-da-Silva Guarido Filho e Rossoni (2006Machado-da-Silva, C.L., Guarido Filho, E. R. & Rossoni, L. (2006). Campos organizacionais: seis diferentes leituras e a perspectiva de estruturação. Revista de Administração Contemporânea , Edição Especial, 159-196.), é mister admitir de pronto que, mesmo Bourdieu sendo citado na seção anterior, ele não foi o referencial de sustentação deste trabalho (admitindo que a sua ligação com a institucionalização decorre de sua proposta de habitus, que não assumiu um papel relevante na análise). Mais significativos foram DiMaggio e Powell (1991DiMaggio, P. J. & Powell, W.W. (1991).The new institutionalism in organizational analysis. Chicago: University of Chicago, 1991., 2004) e as interpretações de Machado-da-Silva Guarido Filho e Rossoni (2006).

A literatura apresenta diferentes vertentes da Teoria Institucional. Hall e Taylor (1996Hall, P. A. & Taylor, R. C. R. (1996). Political science and the three new institutionalisms. Political Studies, 44(5), 936-957.) propuseram o enquadramento dessas vertentes em três escolas: (i) econômico ou da escolha racional, pela qual, na busca por eficiência, as organizações procuram adaptar a estrutura de governança às instituições e à tecnologia; (ii) histórico, comparativo, que entende as instituições como legado político de lutas históricas, onde o sucesso das organizações dependeria das coalizões entre elas; e (iii) sociológico ou neoinstitucionalismo, voltado ao entendimento do como, do porquê e das consequências do comportamento organizacional, lidando com os campos organizacionais no contexto institucional (Jacometti, Gonçalves, & Castro, 2014Jacometti, M., Gonçalves, S. A. & Castro, M. de. (2014). Institutional work e conhecimento em redes interorganizacionais. Revista de Administração Mackenzie, 15(6), edição especial, 17-47.).

O neoinstitucionalismo tem recebido a atenção e o correspondente endosso de número significativo de pesquisas, chegando a responder por 40% das submissões para a seção de Teoria das Organizações do congresso anual da Academy of Mangement de 2012 (Powell & Bromley, 2013Powell, W. W & Bromley, P. (2013). New institutionalism in the analysis of complex organizations. International Encyclopedia of Social and Behavioral Sciences, 2 Edition, 13 p.). Ela se apresenta bem interessante ao estudo de como o ambiente externo à organização supre a ela modelos para a sua estruturação e para a sua atuação estratégica e assim aumenta a legitimidade dessa organização frente ao mundo (Powell & Bromley, 2013).

Para os teóricos do neoinstitucionalismo, as instituições seriam sistemas de símbolos, esquemas cognitivos e os modelos morais que fornecem "padrões de significação" que guiam a ação humana (Nee, 1998Nee, V. (1998). Source of new institutionalism. In: Briton, M., Nee, V. (Ed.). The new institutionalism in sociology. New York: Russell Sage Foundation, 1-17.). Acrescenta-se que alguns procedimentos institucionais poderiam ser considerados como práticas culturais. Essas práticas seriam incorporadas às organizações, não só porque aumentam sua eficácia abstrata (em termos de fins e meios), mas em consequência de um processo de aculturação, imposto por quatro mecanismos: (1) regulativo, por meio de regras, leis e sanções; (2) normativo, por meio da certificação e aceitação; (3) mimétrico, pelo predomínio e isomorfismo; e (4) cognitivo. O mecanismo regulativo embute o controle social em suas parcelas informais, monitoramento e controle. Por meio do mecanismo normativo, as instituições levam os indivíduos a desempenhar papéis específicos, internalizando as normas associadas a esses papéis. No mecanismo mimétrico, as organizações se imitam, reduzindo as incertezas (DiMaggio & Powell, 1991DiMaggio, P. J. & Powell, W.W. (1991).The new institutionalism in organizational analysis. Chicago: University of Chicago, 1991., 2004; DiMaggio, 1995; Scott, 2000Scott, W. R (2000). Institutions and organization. 2.ed. London: Sage, 2000.). Por meio do mecanismo cognitivo, as instituições influenciam o comportamento ao fornecer esquemas e modelos cognitivos, assumidos como indispensáveis à ação, facilitando a interpretação do mundo e do comportamento dos agentes (DiMaggio, 1995).

Pela ação conjunta de tais mecanismos, as organizações adotariam certas práticas porque elas têm um valor reconhecido no ambiente ao fornecer informações úteis; ao mesmo tempo em que afetam a identidade, a imagem de si e as preferências que guiam a ação dos agentes organizacionais - e assim as instituições seriam estáveis no tempo porque elas estruturam as próprias decisões concernentes a uma eventual reforma que o indivíduo possa pretender quando sujeito aos modelos institucionais (Hall & Taylor, 1996Hall, P. A. & Taylor, R. C. R. (1996). Political science and the three new institutionalisms. Political Studies, 44(5), 936-957.).

A legitimação se apresenta como compensação pela conformidade às instituições através da aceitação mútua (DiMaggio & Powell, 1991DiMaggio, P. J. & Powell, W.W. (1991).The new institutionalism in organizational analysis. Chicago: University of Chicago, 1991., 2004; DiMaggio, 1995; Scott, 2000Scott, W. R (2000). Institutions and organization. 2.ed. London: Sage, 2000.). No caso, adota-se a definição de Suchman (1995Suchman, M. C. (1995) Managing legitimacy: strategic and institutional approaches. Academy of Management Journal, 20(3), 571-610.), popular nos textos do BD, de legitimidade como uma percepção ou pressuposição generalizada de que as ações de uma entidade seriam desejáveis ou adequadas ou apropriadas dentro do sistema vigente e socialmente construído de normas, valores, crenças e definições - reconhecendo que as empresas precisariam ter legitimidade no ambiente em que operam para atingir seus objetivos.

Outros teóricos da legitimidade são Wilmshurst e Frost (2000Wilmshurst, T.D. & Frost, G.R. (2000). Corporate environmental reporting a test of legitimacy theory. Accounting Auditing and Accountability Journal, 13(1), 10-26, 2000.), O'Donovan (2002O'Donovan, G. (2002). Environmental disclosures in annual report. Accounting, Auditing & Accountability Journal, 15(3), 344-371.) e Lindblom (1994Lindblom, C. K. (1994). The implications of organizational legitimacy for corporate social performance and disclosure. Anais Critical Perspectives on Accounting Conference. New York.). Deles, seria razoável entender a publicação dos RA como uma oportunidade para a organização demonstrar a congruência de seus valores (ao menos no discurso do Administrador) com o seu ambiente institucional ao se intentar promover ou defender a sua imagem e a sua direção (Stanton, Stanton, & Pires, 1994). Essa acepção é um denominador bem comum nas pesquisas do BD.

Uma indicação interessante do papel do ambiente institucional sobre o conteúdo e forma de relatórios anuais está contida no trabalho de Liberato e Pagliarussi (2008Liberato, G. B. & Pagliarussi (2008). Disclosure de estratégia em relatórios anuais. Fucape Working Papers, 3, 28p.) que, ao estudarem relatórios de 4 países por meio de análise de regressão e testes de igualdades da média, considerando as distintas dimensões culturais e da governança corporativa (proteção legal e concentração de propriedade) apontam que a extensão da divulgação voluntária de estratégias corporativas é maior em países common law (no caso, Estados Unidos e Reino Unido) do que em países civil law (Brasil e França). Isso, de certa forma, é referendado por Murcia, dos Santos, Salotti e Nascimento (2010Murcia, F. D-R., dos Santos, A., Salotti, B. M. & Nascimento, A. (2010). Mapeamento da pesquisa sobre disclosure ambiental no cenário internacional. ConTexto, 10(17), 7-18) ao apontaram evidências de pesquisas indicando que a divulgação voluntária varia de acordo com o país e com o setor de atividade.

Haveria evidências suficientes indicando que as ações estão imbricadas nas estruturas institucionais que elas mesmas produzem, reproduzem e transformam - com maior ou menor grau de reflexibilidade de acordo com a Teoria da Estruturação de A. Giddens, já que o ambiente institucional favoreceria a probabilidade da adoção de um dado comportamento em detrimento de outros (Jacometti, Gonçalves, & Castro, 2014Jacometti, M., Gonçalves, S. A. & Castro, M. de. (2014). Institutional work e conhecimento em redes interorganizacionais. Revista de Administração Mackenzie, 15(6), edição especial, 17-47.). Mas se questiona quanto espaço real haveria para o Institutional Work (IW), entendido como a ação social - física ou mental - intencional, individual ou coletiva de indivíduos e de organizações para, em seu campo organizacional, reconstruir, alterar/adaptar ou manter as regras, o direito de propriedade, o acesso aos recursos, as identidades profissionais, os sistemas de significação, a educação e as habilidades - ou mesmo da ação direcionada a minar as instituições vigentes indesejadas àquele agente, que intenta desacoplar as regras das sanções e solapar as fundações morais, as crenças e os valores que suportam tais instituições (Lawrence, Suddaby, & Leca, 2011Lawrence, T., Suddaby, R. & Leca, B. (2011) Institutional work: refocusing institutional studies of organization. Journal of Management Inquiry, 20(10, 52-58.; Jacometti, Gonçalves, & Castro, 2014). Essa discussão começa a ganhar vulto no Brasil e pode ser uma avenida interessante para a análise dos RA.

2.2 Campo Científico e Ambiente Institucional da Pesquisa Brasileira

Em 2013, o Brasil contava com 77.067 docentes, distribuídos em 3.486 Programas de Mestrado e de Doutorado (Brasil, 2015). Esse é o contingente mais numeroso das entidades integrantes do ambiente de pesquisa no país, que - sem ser exaustivo - deve ser acrescido dos departamentos de P&D das empresas privadas, das instituições e empresas de pesquisa federais e estaduais (como Embrapa, Inpe, Fundação Oswaldo Cruz, IPT), das redes de pesquisas (como o Consórcio Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento do Café e o Projeto Genoma), dos organismos de fomento (como CNPq e Fapesp), do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação e das equivalentes Secretarias Estaduais, dos periódicos de divulgação científica, dos usuários das pesquisas e, por último, mas em destaque, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), responsável pela avaliação da pós-graduação stricto sensu. Seria razoável considerar que esse campo organizacional está imerso, simultaneamente, na sociedade brasileira e no universo científico geral, compartilhando instituições dessas origens como, por exemplo, o 'jeitinho brasileiro' e o 'publique ou pereça'. Mas, em adição, desenvolve as suas leis próprias, de campo científico no ambiente institucional do país.

Para Silva (2015Silva, R. C. F. da (2015). Programa de ´pós-graduação em administração da Ufla (master's in management dissertation). Lavras: Universidade Federal de Lavras), os critérios da avaliação periódica da Capes, junto com os editais de fomento, têm poder estruturante sobre os Programas de Pós-Graduação, interferindo na conduta estratégica dos coordenadores dos Programas e dos pesquisadores, levados a trabalhar em rede (mesmo quando desnecessário) por força da valorização da interdisciplinaridade e da interinstitucionalidade, cultuadas como valores.

Araújo (2008Araújo, U. P. (2008). Relação agência e estrutura em redes colaborativas (doctorate thesis in management). Lavras: Ufla.) desenvolveu um modelo baseado na Teoria Institucional, considerando que a formação de redes colaborativas de pesquisas requer investimentos dos pesquisadores, em termos de tempo, atenção e mesmo financeiro, para criar e manter as ligações. Parte desse investimento se dá de forma consciente (estratégica); outra, por força do habitus; ainda outra por mera imitação isomórfica (ainda que isso produza uma legitimação frente aos pares) ou por pressão das instituições presentes na rede; salientando que o investimento consciente somente seria realizado porque os agentes imaginam que irão receber compensações superiores aos investimentos aportados. As compensações se dariam de formas diversas e entrelaçadas, em termos de informações valiosas, legitimação, bem-estar físico-emocional, status, prestígio, poder e mesmo compensações econômicas (como, por exemplo, financiamento de projetos); compensações essas que seriam obtidas pela mobilização estratégica dos recursos contidos na rede (acessibilidade a informações, a pessoas com poder, a pessoas com prestígio, a algum outro recurso demandado pela pesquisa, como laboratórios). Mas a mobilização dependeria da percepção que os agentes têm de sua posição e localização na rede, dos recursos disponíveis na rede e da própria dinâmica da rede; e o reinvestimento dependeria da percepção que os agentes têm das compensações obtidas e a realizar.

O estudo de redes colaborativas - usualmente empregando análise sociométrica das ligações estabelecidas por coautoria ou parceria em projetos para traçar a estrutura do arranjo, discutir a sua dinâmica e revelar a lógica e o impacto das ligações - já tem certa tradição na academia brasileira, inclusive com trabalhos voltados para as redes de pesquisadores de controladoria, contabilidade e finanças (áreas que, costumeiramente, preocupam-se com o RA), como as pesquisas de Cruz, Espejo, Costa e Almeida (2011), Mendes-da-Silva, Onusic e Giglio (2013), Moraes Júnior, Vasconcelos e Monte (2014Moraes Júnior, V. F. de, Vasconcelos, A. F. & Monte, P. A. do. (2014). Perfil dos trabalhos publicados de 2004 a 2010 na área educação e pesquisa do congresso USP de controladoria e contabilidade. Revista Ambiente Contábil, 6(2), 36-54.) e Nascimento e Beuren (2011). Mas, obviamente, a preocupação com as redes também se volta para outras áreas do conhecimento, como, por exemplo, o trabalho de Araújo, Antonialli, Guerrini e Oliveira (2011Araújo, U. P., Antonialli, L. M., Guerrini, F. M. & Oliveira, R. F. de (2011). A percepção e as estratégias de ação do pesquisador de café em sua rede colaborativa. Revista de Administração Contemporânea, 15(4), 670-688.) em ciências agrárias e de Neiva e Corradi (2010Neiva, E. R. & Corradi, A. (2010). A. A psicologia organizacional e do trabalho no Brasil. Revista Psicologia: Organizações e Trabalho, 10(2), 67-84.) em psicologia; alcançando até temáticas específicas, como o trabalho de Watanabe, Gomes e Hoffmann (2013Watanabe, E. A., Gomes, A. O. & Hoffmann (2013). Cooperação entre grupos de pesquisa em estratégia no Brasil. Revista Ibero-Americana de Estratégia, 12(1), 84-106.) que estudou a cooperação entre os grupos de pesquisa em estratégia no Brasil.

Com base nesses trabalhos, propõe-se que o pesquisador, dentro de sua rede e imerso em seu ambiente institucional, tem dois alvos primários: o financiamento de sua pesquisa e a publicação dos resultados, que irá conferir-lhe credenciais para sua aceitação na comunidade acadêmica, no caso, a brasileira. Com esse intuito, segue um modelo de menor risco - como aquele identificado aqui na interpretação dos RA - e publica conformando-se ao esperado.

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E CARACTERIZAÇÃO DO BD

Esta é uma pesquisa documental (os artigos em periódicos foram a fonte primária de dados), longitudinal (os artigos selecionados para compor a amostra foram publicados de 2000 a meados de 2015), com finalidade descritiva (ao buscar explicitar a forma com que a academia brasileira lida com o RA), sob uma ótica predominantemente interpretativista que recorreu, quando possível, à triangulação permitida pelo uso de métodos qualitativos (análise de conteúdo) e quantitativos (análises estatísticas, sociométricas e bibliométricas).

Enquanto a maior parte dos procedimentos obedecidos na pesquisa seguem roteiros bem estabelecidos em estudos bibliométricos, cabe reparar que a construção da Descrição Sintética e Generalista (DSG) de artigos nacionais que se utilizaram do RA, tal como exposta em detalhes na seção 4.1, é um empreendimento com matizes próprias, apenas inspirado no propósito - e não na técnica - do Discurso do Sujeito Coletivo de Levebre e Levebre (2003), qual seja: de se reconstituir uma entidade empírica coletiva, respeitando aspectos qualitativos e quantitativos das contribuições individuais. Qualquer validade pretendida da DSG, derivada da observância de seus procedimentos, é restrita à amostra trabalhada, e a sua extensão além desses limites enseja incertezas não quantificáveis.

3.1 Constituição e Caracterização Inicial do Banco de Dados

O objeto de pesquisa foi definido como aquele formado por trabalhos disponíveis na web e divulgados em periódicos nacionais, a partir de 2000, inclusive, que fizeram uso explícito do Relatório da Administração como artefato empírico, mesmo que em concurso com outros itens, como, por exemplo, Notas Explicativas, Relatórios Sociais e Relatórios Ambientais. Para efeito prático, é assumido que a quantidade (tamanho da população) de artigos que se enquadram nessa descrição não é conhecida.

Por definição, ensaios teóricos não participaram da seleção, tampouco, trabalhos publicados em anais e na forma de teses e dissertações. Essa restrição é a forma de evitar a recorrência da mesma pesquisa, dentro de uma expectativa de que seria caminho natural para o pesquisador fazer o trabalho como conclusão da pós-graduação, publicar alguns resultados em Congressos e, por fim, culminar com a divulgação em periódico.

O ponto de partida da construção do corpus de análise foi a seleção dos primeiros vinte trabalhos obtidos do buscador Google Acadêmico que atenderam os critérios pré-estabelecidos. As referências desses trabalhos ofereceram as indicações para a incorporação da segunda leva de artigos, e deles para novos trabalhos, em uma dinâmica reconhecida na sociometria como snow ball. O processo foi encerrado quando de quatro indicações, três já compunham a Base de Dados (BD) que, ao final, contou com 95 itens. Essa fase foi concluída em fevereiro de 2015, que delimita o final do período examinado.

O resultado, ainda que aparentemente objetivo, não é estatístico: o buscador Google Acadêmico retoma os trabalhos por meio de algoritmo próprio que, declaradamente, oferece os resultados por ordem de relevância e de impacto. Isso, mais o snow ball, limita as chances de escolha dos trabalhos mais recentes e daqueles que não explicitam mais enfaticamente o Relatório da Administração no seu título e no texto. Portanto, a extrapolação dos achados obtidos da amostra está sujeita a incerteza e imprecisão não quantificáveis.

A distribuição dos trabalhos, ao longo do tempo, favoreceu o período de 2007 a 2012, com média de doze trabalhos por ano, decaindo a partir de então, o que pode ser, pelo menos em parte, debitado ao viés da amostragem. Mas a média inferior a dois trabalhos de 2000 a 2007 aparece como indício que então o Relatório da Administração ainda não exercia grande atração aos pesquisadores.

Dos 95 trabalhos selecionados, apenas 40 fazem menção do RA no título. Os demais mencionam RA entre as palavras-chave e/ou no resumo ou somente no texto. Essa prática dificultou a recuperação de itens e pode ter impedido a participação de pesquisas que, de outra forma, estariam presentes no BD.

Os trabalhos foram publicados em 48 periódicos diferentes. Desses, 29 serviram de veículo para apenas um artigo. Em oposição, a Revista UnB Contábil/Contabilidade, Gestão e Governança e a Revista Universo Contábil, com nove e sete trabalhos, respectivamente, são os periódicos com maior presença no BD. Cabe reportar que, apesar da indicação anterior, não houve uma preferência significativa por periódicos voltados tipicamente para a Contabilidade (52 trabalhos foram divulgados em revistas da subárea, frente a 43 veiculados em revistas com escopo mais abrangente). Adicionalmente, aceitando a classificação Qualis e a pontuação da Fundação Capes do Ministério da Educação para a Área Administração, Contabilidade e Turismo, foram encontrados 9 trabalhos em A2 (80 pontos, cada), 29 em B1 (60), 31 em B2 (50), 22 em B3 (30), 3 em B4 (20) e um não avaliado, apurando-se, assim, um total de 4.730 pontos, média de 49,8, equivalente à qualidade B2: os artigos que trabalharam com o Relatório de Administração conseguiram, em sua maioria, ser publicados em periódicos de boa reputação.

3.2 Caracterização Teórica e Metodológica dos Trabalhos Selecionados

Foi feita a quantificação das pesquisas do BD frente às referências apresentadas em sua revisão da literatura e às técnicas qualitativas e estatísticas aplicadas no desenvolvimento daqueles trabalhos. A Tabela 1 (dividida em 1A, 1B e 1C) apresenta o resultado obtido.

Tabela 1
Revisão da literatura e técnicas de pesquis a

Nas pesquisas selecionadas, houve uma preferência para a apresentação do estado da arte - pesquisas de outros autores de mesma temática da investigação em questão - em 64 das 95 pesquisas. Quando houve um maior investimento na fundamentação teórica, destaca-se a contribuição da teoria da divulgação voluntária (em 13 pesquisas) e da teoria da legitimidade ou da legitimação (11 pesquisas).

Como esperado, o uso do Relatório da Administração implicou o emprego de técnicas qualitativas para análise (exceto em dois casos: um ensaio e uma investigação sobre a utilização de gráficos nos RA), com preferência acentuada pela análise de conteúdo. Na maior parte das vezes (55 em 95 casos), o tratamento matemático se resumiu à contagem das ocorrências de evidenciação, ou - quando muito - requereu o emprego de estatística descritiva elementar, como média e desvio-padrão. Em 40 casos, no entanto, estiveram presentes métodos mais sofisticados, como as análises de regressão (15 trabalhos) e de correlação (9 trabalhos) e testes de hipóteses, como t de Student, ANOVA, Kruskall-Wallis e qui-quadrado (8 trabalhos).

Um ponto deve ser destacado: a concepção ontológica das pesquisas do BD. Com apenas seis exceções, é razoável atestar que os autores do BD procuraram assegurar a validade dos trabalhos, reforçando aspectos da objetividade, na expectativa de que outros chegariam às mesmas conclusões ao seguir o método proposto (frequentemente, contagem de evidenciações por categorias) e trabalhar com os mesmos RA: a subjetividade inerente das análises qualitativas, quando mencionada, é tratada como uma limitação, como discutido na seção 4.4.

3.3 Caracterização da Autoria dos Trabalhos Selecionados

A priori, admitiu-se que o esforço científico deve ser contextualizado, social e historicamente: não haveria como se entender o produto - as pesquisas com o RA - dispensando os fatores e as condições de produção e de consumo ao longo do tempo. Em função desse entendimento, induzido pela observação da Teoria Institucional, foi feito investimento consubstanciado, nesta e na próxima subseção, voltado à caracterização da autoria, daqueles que respondem de forma indissociável pelas pesquisas e pela utilização de resultados dos trabalhos que as precederam.

De início, aponta-se que os 95 artigos do BD tiveram 155 autorias distintas, em um total de 283 participações. Portanto, média de 1,8 participação por pesquisador e 3,3 autores por artigo. Tais autores foram encontrados ligados a 47 instituições (quase todas universidades e escolas de ensino superior, com apenas três exceções) à época dos respectivos artigos, o que implica em uma média de 6 participações por instituição.

Mas a média é pouco reveladora da distribuição encontrada, na medida em que a Pesquisadora 55, a mais frequente, aparece em 28 artigos (portanto, em 30% dos trabalhos, o que lhe renderia 1.410 pontos conforme a Capes - isso, em apenas oito anos, desde seu primeiro artigo, em 2006, o que implica em 176 pontos anuais), enquanto 116 autores (75% do total) tiveram apenas uma única participação. Da mesma forma, quanto às instituições: 24 das 47 entidades aparecem apenas uma vez, enquanto que a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a Universidade Regional de Blumenau (FURB) tiveram 20, 39 e 104 participações, respectivamente, por meio de seus pesquisadores. Essas distribuições, de muitos com pouco e poucos com muito, estão alinhadas com outros trabalhos cientométricos, o que oferece certo conforto quanto à representatividade da amostra.

Por conveniência, estudou-se a titulação atual dos pesquisadores do BD (e não aquela quando da publicação de seus artigos) através dos respectivos Currículos Lattes. Foram encontrados os currículos de 134 autores - portanto, 86% da amostra. Desses, 70 são doutores (dois com bolsa de produtividade do CNPq 1A, sendo que um deles, a Pesquisadora 55, é central na rede de autoria; e 13 com bolsa 2, indicações de competência em pesquisa), enquanto 56 têm no mestrado a maior titulação. A maior parte dos autores obteve seus títulos de mestre e/ou de doutor na subárea Contabilidade (ou uma variante, por exemplo, Ciências Contábeis): são 96 dos 126 com esses níveis de titulação. Além da Contabilidade, aparecem em destaque a Administração, com 25 mestres e/ou doutores, e a Engenharia de Produção, com 16. Registre-se ainda que a USP concedeu a maior parte dos títulos: são 57 dos 194 títulos de mestrado e de doutorado. Em seguida, aparecem a UFSC, com 32, e a FURB, com 19 títulos.

A multiautorais foi encontrada como regra (apenas 6 trabalhos tiveram um único autor, enquanto que a regra foi de 3 autores por artigo). No entanto, a associação de duas ou mais entidades foi limitada a 36 dos 95 trabalhos, indicando a preponderância de esforços intrainstitucionais e, assim, alguma restrição à maior circulação de conhecimento.

3.4 Caracterização Sociométrica do Arranjo de Pesquisadores

Os 95 trabalhos, com seus 155 autores, renderam 273 ligações diáticas distintas, configurando um arranjo fragmentado de 20 componentes, apenas um deles de maior porte, com diâmetro de 8, resultado da conexão de 93 vértices. Trata-se de um arranjo de baixa densidade (de 0,023) e baixa conectividade (de 0,368) e degree médio (= número médio de parceiros) de 3,57 - salientando a disparidade, novamente do vértice 55, com 22 parceiros distintos.

A Figura 1 representa o arranjo, onde a cor do vértice serve como identificador de sua entidade, assim: amarelo = Universidade Regional de Blumenau (FURB); verde = Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); vermelho = Universidade de São Paulo (USP); azul escuro= Universidade Federal do Ceará (UFC); preto = Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); azul claro = Universidade de Brasília (UnB); rosa = Universidade Federal do Paraná (UFPR) e, finalmente, branco = demais entidades.

Figura 1
Rede sociométrica derivada do BD

Analisando o componente maior, verifica-se que seu núcleo é composto por professores, doutorandos, mestrandos e ex-alunos da FURB, encontrados conectados entre si, com uma única exceção (Pesquisador 106, distante do componente maior, no canto inferior esquerdo da Figura 1). A esse núcleo e através de alguns vértices comportando-se como bridges (caso dos Pesquisadores 12, 55 e 99, por exemplo), estão ligados clusters de pesquisadores da UFSC, da UFC e da UFPR e nesses se acoplam clusters de pesquisadores da USP e da UFMG. No arranjo, cabe destacar ainda o papel do vértice 129, relevante ao ligar a FURB à sua entidade (UFPR) e à UFMG. Os pesquisadores da UnB não fazem parte do componente maior, mas se conectam entre si em um componente à parte.

Tal como já observado, os pesquisadores tenderam a procurar parceiros em sua instituição com algumas exceções (destacando-se os Pesquisadores 12, 55, 99 e 129), que assim atuam evitando a constituição de mais vazios estruturais, como também é o papel dos Pesquisadores 41, 141, 126 e 117 que, junto com 55 e 129, têm os menores graus agregados de redundância (Aggregate Constraint). Mas o destaque maior permanece sobre a Pesquisadora 55: aquela com maior número de parcerias (43 ligações diretas, com 22 vértices distintos) e mais central do arranjo.

Um aspecto relevante, obtido do cruzamento de autoria com o conjunto de RA escrutinado em cada trabalho, é a maximização de 'eficiência' em termos de pesquisa: foram encontradas 9 situações envolvendo o total de 25 dos 95 trabalhos do BD em que exatamente o mesmo conjunto de RA foi utilizado mais de uma vez; algumas delas, empregando as mesmas técnicas de análise, em trabalhos que poderiam ser tomados como complementares, rendendo publicações em outros periódicos. Tal fenômeno poderia estar associado à 'proliferação de pesquisas', que foi discutida em Castiel e Sanz-Valero (2007Castiel, L. D. & Sanz-Valero, J. (2007) Entre fetichismo e sobrevivência: o artigo científico é uma mercadoria acadêmica? Caderno de Saúde Pública, 23(12), 3041-3050.) no âmbito da ciência da saúde pública, passível de explicação pelo imperativo de publicação e acumulação de pontos Capes. Isso contribuiu, em alguma medida e de forma artificial (poderia ser dito, espúria), para o espessamento de determinadas linhas de ligações do sociograma da Figura 1.

3.5 Implicações para a Pesquisa

Foram colhidas indicações suficientes para atestar a propriedade do RA como fonte de dados em pesquisas conduzidas comumente por pesquisadores qualificados que as transformam em artigos publicáveis em periódicos de boa reputação. Como decorrência natural das competências da subárea e também como ratificada pela análise do BD, admite-se, novamente, a priori, a prevalência da ótica Contábil na análise dos RA, com implicações que mereceriam ser motivo de reflexão. Adicionalmente, o BD não é despersonalizado: alguns pesquisadores estão em posições estruturais que lhes conferem poder de atuação significativamente ampliado.

Por fim, um grupo coeso e central formado pela Pesquisadora 55 e seus colegas professores, alunos e ex-alunos do Programa de Pós-Graduação em Contabilidade da FURB, tornou-se expert em RA e pode ter sido utilizado como referência para os pesquisadores do componente maior, conformando os trabalhos às estratégias de pesquisa do núcleo.

4 RESULTADOS E ANÁLISE

4.1 Design das Pesquisas do BD

A primeira aproximação com o corpus propriamente dito desta investigação foi centrada exclusivamente no título e nas palavras-chaves. Isso rendeu 497 termos ditos substantivos (dispensando artigos e preposições, por exemplo); desses, 190 distintos. Os termos foram agrupados considerando o seu sentido, em seis grupos somando-se ao grupo 'Outros', que possuía termos tomados sem associação próxima (111 das 497 ocorrências). Os seis demais grupos foram nomeados: 'Evidenciação', com 89 ocorrências; 'Tipo de evidenciação', com 88; 'Enquadramento das empresas analisadas', com 84 ocorrências; 'Fonte ou origem de dados', com 63; 'Método para análise', com 34; e 'Padrão de referência', com 27 ocorrências.

No passo seguinte, com o fito de revelar a sustentação teórica das pesquisas, levantou-se o conjunto de termos associados de forma relevante com o radical 'teori' (de teoria, teórico ou teórica) nos artigos do BD.

Os dois achados foram combinados e deram origem a uma Descrição Sintética e Generalista (DSG) dos trabalhos, com a seguinte formulação:

"Estudo da evidenciação (ou disclosure)1, mediante o emprego de um e/ou outro método de análise2, de fonte de dados3 de autoria de empresa(s) de um setor particular ou geral da economia4 ante a padrão(ões) de referência(s)5; correlacionada ou não a outro fator6, sob a ótica de alguma (s) teoria(s)7, no período...".

Ficticiamente, a DSG abrigaria em seu escopo, por exemplo, a descrição de um "estudo da evidenciação [ambiental], mediante [a análise de conteúdo] de [Relatório de Administração e de Notas Explicativas], de [companhias brasileiras de capital aberto de setores potencialmente poluidores] ante as [práticas americanas de disclosure], correlacionada com o [desempenho financeiro daquelas companhias brasileiras], sob a ótica da [teoria de disclosure voluntário], no período [de 2006 a 2008]". Propõe-se que esse padrão (a DSG), construído ao longo do tempo, poderia ser tomado como uma manifestação institucional da academia brasileira de como fazer as pesquisas de evidenciação voluntária.

Os elementos das categorias de sobrescrito 1 a 7 da DSG, mapeadas no corpus, foram encontrados de acordo com a Tabela 2.

Tabela 2
Elementos das categorias da DSG

Foi encontrado que a DSG proposta, bem ajustada com a teoria positiva da contabilidade, engloba 82 das 95 pesquisas do BD, não implicando que tais pesquisas usem todos os elementos da DSG, necessariamente.

As 13 pesquisas não atendidas pela DSG tendem a possuir uma orientação mais interpretativista, utilizando-se algumas vezes da análise do discurso (ao invés de contagem de sentenças por categoria, típica da análise de conteúdo preponderante), sem se preocupar com a evidenciação, e, sim, com os termos em si, eventualmente trazendo consigo a figura do autor do RA, como, por exemplo, Grande e Beuren (2011Grande, J. F. & Beuren, I. M. (2011) Mudanças de práticas de contabilidade gerencial identifi-cadas nos RA de empresas familiares. Contabilidade, Gestão e Governança, 14(3), 18-33.):

O estudo objetiva verificar se as mudanças nas práticas de contabilidade gerencial podem ser identificadas no Relatório da Administração de empresas familiares por meio da aplicação da Análise de Discurso Crítica. A metodologia da pesquisa caracteriza-se como exploratória, com abordagem predominantemente qualitativa, utilizando-se da Análise de Discurso Crítica. (...) Como conclusão tem-se que, (...), mudanças foram identificadas nas práticas de contabilidade gerencial das empresas pesquisadas. Porém, não há garantia que o RA representa efetivamente o discurso da administração e a análise subjetiva pode revelar imprecisões.

Uma parcela significativa das pesquisas do BD considerou apropriado o corte transversal (46 dos 95 casos). Quando se optou por um corte longitudinal, ele foi de dois anos, em 6 trabalhos; de três anos, em 12 trabalhos; de quatro anos, em quatro trabalhos; de cinco anos, em 10 trabalhos; de sete anos, em dois trabalhos; de nove anos, em dois trabalhos; de 10 anos, em nove trabalhos; e de 13 anos, em um único trabalho. Considerando os diversos períodos de corte e a justaposição dos anos, resulta-se em uma representação tal qual a Figura 2 (de ano e frequência), evidenciando a maior presença dos anos 2006 (42 pesquisas); 2007 (36 pesquisas); e 2008 (29 pesquisas) no BD e apenas um, nas duas extremidades.

Figura 2
Número de trabalhos do BD por ano

Quando se volta para o número de empresas e daí o número de RA examinados (aquele declarado ou obtido pela multiplicação do número de empresas pelo número de anos do corte temporal escolhido), encontra-se uma variação de 1 a 448 e de 4 a 2.639, respectivamente - numa distribuição tão desigual que é mais bem representada em escala logarítmica, como na Tabela 3, onde f é igual a frequência de cada classe, indicada entre as colunas 'De' e 'Até'.

Tabela 3
Distribuição do número de empresas e do número de RA examinados nas pesquisas

De acordo com a Tabela 3, a maior frequência foi de pesquisas que lidaram com 10 até 32 empresas, estudando 32 a 100 RA. A variedade apresentada na Tabela 3 introduz um elemento perturbador na avaliação das pesquisas do BD: aquele de como lidar com a confiabilidade dos resultados se para alguns foram suficientes 10 RA, quando outros precisaram estudar 1.000. É evidente que a resposta está no objetivo proposto e na estratégia para resolver o problema, mas e se os achados não forem coincidentes? Na meta-análise quantitativa, o ajuste é feito considerando o tamanho da amostra e o p-value, o que não deveria estar disponível em trabalhos que não praticaram a amostragem aleatória, como no BD.

Tomado em conjunto as possibilidades conferidas pela DSG, o número de empresas e o corte temporal, tem-se um leque bastante considerável de oportunidades de pesquisas, favorecendo aquele comportamento estratégico do pesquisador referido anteriormente: ele pode sentir-se 'tentado' a, por exemplo, manter o seu banco de RA e variar o tipo de evidenciação, ou manter o tipo de evidenciação e o banco de RA e variar o fator a ser correlacionado, ou ainda optar por outro corte temporal, somente atualizando a pesquisa; também, ceteris paribus, usar diferentes padrões para criar a lista de categorias para a análise de conteúdo, implicando em diferentes graus para o mesmo tipo de evidenciação, dependendo da ótica teórica preferida. São tantas as possibilidades que os designs de pesquisas no BD, por chance, não seriam idênticos: sempre algo diferente, que inibe a confrontação de seus resultados.

Concluindo, é aceitável destacar a quase inevitável propensão metodológica percebida dos contabilistas, autores das pesquisas do BD, em converter/reduzir um texto (o RA) a um número (no caso, o 'grau de evidenciação') dispensando-os de outras considerações de natureza mais interpretativista.

4.2 Justificativas para o Uso do Relatório da Administração

As pesquisas do BD apresentam, explicita ou implicitamente, um ou mais elementos do conjunto listado a seguir para justificar a utilização dos RA como fonte de dados.

Primariamente, os RA seriam relevantes, pois têm a função de oferecer, entre outros aspectos, informações não passíveis de evidenciação nas demonstrações financeiras padronizadas, contribuindo para reduzir a assimetria informacional, o que seria desejável para um melhor funcionamento do mercado. Como os RA são compulsórios para as companhias abertas (enquanto outros relatórios também narrativos são opcionais), a maioria dos estudos brasileiros utilizar-se-ia dos RA para quantificar a evidenciação, o que permitiria comparação dos resultados.

Os RA teriam uma gama ampla de interessados legítimos nas suas informações, tal como as peças do DFP. Adicionalmente, são apresentados em conjunto com as DFP, o que comunicaria aos RA as expectativas de: ausência de vieses, veracidade, transparência, ética, tempestividade, relevância, compreensibilidade, confiabilidade, comparabilidade e materialidade - o que ensejaria, por sua vez, a tomada de decisão de melhor qualidade daqueles que se relacionam com a entidade.

E, por ser menos técnico, menos estruturado, mais flexível, mais descritivo (narrativo) e não ser regido pelos princípios gerais da contabilidade como as DFP, os RA podem deter maior qualidade comunicativa, ser mais claros e facilitar o entendimento para um maior número de usuários, inclusive leigos. Adicionalmente, serviriam de canal para divulgação voluntária daquilo que é tido como relevante pela empresa, manifestando o poder discricionário do Administrador. De tudo posto, ajudariam a conformar as percepções dos interessados, servindo como instrumento para a legitimação da entidade. Complementando, ainda que isso não tenha sido mencionado nas pesquisas do BD, os RA são mais acessíveis, eventualmente mesmo aqueles mais remotos, disponibilizados pela mídia especializada, pelo Bovespa e pelas próprias empresas.

4.3 Achados das Pesquisas do BD

Foram colhidos 324 trechos indicativos de síntese de resultados, conclusões ou contribuições. Estes trechos foram agrupados por tema, em oito categorias. A Tabela 4 apresenta a categoria, a respectiva frequência entre parênteses e alguns exemplos elucidativos da categoria.

Tabela 4
Achados das pesquisas do BD

É interessante apontar que algumas conclusões se apresentam contraditórias, na dependência das empresas, do período e do método escolhido. Adicionalmente, um terço das conclusões refere-se a um quadro que não existe mais (mas que tem importância histórica e pode se prestar a atualizações).

Mas tomada em conjunto, o RA que emerge da Tabela 4 é um documento incompleto (não seria capaz de dar conta das necessidades de evidenciação social, ambiental, da gestão de riscos, das inovações e outras), enviesado, subjetivo (sujeito a discricionariedade do Administrador, movido por interesses próprios); ao mesmo tempo, é condicionado por elementos internos (tamanho da empresa, seu desempenho econômico-financeiro, sua estrutura de capital e a qualidade de sua governança) e externos (setor de atuação, incidência de poder regulatório), desprovido de informações monetizadas de maior qualidade.

Dados o estágio atual e a trajetória positiva, mas insuficiente, de aperfeiçoamento dos RA, a alternativa seria uma uniformização compulsória promovida pelo organismo regulador, aproximando o documento, tanto quanto possível, de um ideal contábil.

4.4 Limitações Indicadas nas Pesquisas do BD

Foram encontradas 106 indicações de limitações de pesquisas, em 48 das 95 pesquisas - implicando que 47 trabalhos não explicitaram as respectivas limitações, em desencontro com uma expectativa razoável de que qualquer pesquisa teria as suas. As indicações foram listadas e associadas semanticamente entre si e, depois, agrupadas em 9 categorias, conforme a Tabela 5, que traz consigo uma amostra esclarecedora do grupo, a título de exemplo.

Tabela 5
Limitações apontadas nas pesquisas

A Tabela 5 parece indicar que a responsabilidade original dos RA ante as limitações das pesquisas seria ter o seu conteúdo sujeito à discricionariedade da Empresa (de seu Administrador), que pode escolher o que e como oferecer informações voluntárias, o que, por sua vez, é facilmente derivado a RA insuficientes (incompletos) e a sua falta de padronização.

Entretanto, um olhar mais detido captura o quanto pode ser acrescido à conta do RA. Sendo esse um elemento narrativo, implicou-se em análise qualitativa - quer de conteúdo, quer de discurso. Daí, destacam-se as implicações da subjetividade do pesquisador, não só no proceder da análise, mas também pela opção primária por um ou outro arcabouço teórico (por exemplo, governança corporativa) ou qualquer outro dispositivo (por exemplo, a recomendação CVM 15/1987) que ofereça as categorias de análise e serve-lhe de lente.

Não suficiente, a restrição mais frequente (a 'impossibilidade de generalizar') é relacionada à amostragem intencional e não probabilística, associada à complexidade da análise qualitativa, trabalhosa quando se intenta reduzir os termos a uma tabela de frequência.

4.5 Trabalhos Futuros Indicados nas Pesquisas

Foram listadas 132 propostas de trabalhos futuros em 65 das 95 pesquisas. Da mesma forma que a seção precedente, as sugestões foram associadas semanticamente entre si, propiciando o enquadramento delas em 11 grupos, que, por sua vez, puderam ser ajustados em duas categorias maiores e uma terceira ('Outros', de proposições não enquadráveis nas categorias maiores), em acordo com o propósito último, mesmo que implícito, aclarado pela interpretação da indicação. As categorias maiores, reveladas pela interpretação, das proposições foram:

A - Testar ou ampliar a validade dos achados, com 89 indicações, distribuídas em: A1 - Comparação com outras empresas, grupos de empresas, setores ou região (42 indicações); A2 - Adoção de outro corte temporal (14 indicações); A3 - Emprego de fonte alternativa de dados, além do RA (10); A4 - Aplicação de teorias alternativas à empregada no trabalho (10); A5 - Ampliação da amostra (6); A6 - Adoção de outro método analítico (4); e, finalmente, A7 - Mudança de enfoque (com as restantes 3 indicações da categoria).

B - Estudar relações, inclusive de causa-efeito, com 38 indicações, distribuídas em 3 grupos: B1 - Condições de produção do RA (28 indicações); B2 - Impacto do RA (7); e B3 - Outras relações entre variáveis associadas ao RA (3).

No que diz respeito à primeira categoria ('testar ou ampliar a validade dos achados'), seria razoável apontar que há alguma congruência entre as limitações da pesquisa, as propostas de novos trabalhos e o objetivo predominantemente descritivo das pesquisas (mapeamento da frequência de ocorrência de determinados elementos sugeridos pela literatura nos RA), pois, tendo de se optar por uma amostra intencional e delimitada temporariamente, qualquer generalização da descrição encontrada tornar-se-ia imprópria, o que demandaria mais testes, mesmo que também sobre amostras não aleatórias, 'consolidando' ou refutando a conclusão da pesquisa original. Mas isso requereria que todas as novas pesquisas utilizassem a mesma métrica da primeira pesquisa, pouco provável frente a tantas óticas passivas de ativação, a menos que essas novas pesquisas continuassem sob a orientação dos pesquisadores originais - o que traz à discussão a subjetividade, também apontada como limitação.

Na outra categoria ('estudar relações, inclusive de causa-efeito') estão as propostas de investigar a atuação de determinadas variáveis ou atributos (por exemplo, regulação do setor, porte, localização, e composição acionária da empresa) que atuam na decisão de evidenciar (ou omitir) e de como evidenciar; bem como testar a influência do grau de evidenciação sobre, por exemplo, a volatilidade das ações. Por mais interessante que seja essa última proposição, ela não tem atraído muita atenção da academia, talvez pela dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de se manter as demais variáveis constantes, aliada ao risco de ter a pesquisa contestada pela eventual incidência de alguma 'variável omitida' sobre a relação encontrada.

5 CONCLUSÃO

Se for aceito o conceito de instituição como aquele elemento da vida social mais ou menos estável que afeta o comportamento e as crenças dos indivíduos e atores coletivos, propiciando a eles modelos (templates) para a ação, cognição e emoção que, implementados, reduzem os riscos associados a algum tipo de custo (Lawrence, Suddabu, & Leca, 2011Lawrence, T., Suddaby, R. & Leca, B. (2011) Institutional work: refocusing institutional studies of organization. Journal of Management Inquiry, 20(10, 52-58.), seria razoável aceitar a DSG discorrida na seção 4.1 como uma manifestação institucional: siga o modelo, consolidado há pelos menos quinze anos, e terá menor chance de ter seu trabalho, fruto de horas de esforço, rejeitado pelo campo científico - ignore-o e sofrerá sanções. Agora, esse padrão não surgiu descontextualizado no tempo e no espaço: há pouco risco em afirmar que ele decorre de um esforço diligente, deliberado ou fruto de reprodução mais fortuito, de professores de contabilidade associados à FURB naquele momento de produção.

Ademais, pode-se ainda afirmar que as evidências apresentadas indicam que, grosso modo, a pesquisa administrativa-contábil no Brasil (mais apropriadamente o grupo dominante de pesquisadores identificado nesta investigação) acolheu o Relatório da Administração, com reservas, uma vez que o documento parece:

  • - Enviesado: o Administrador tende a valorizar as boas notícias, creditando-as à sua competência, e a reservar pouco espaço (ou nenhum, se possível) às más notícias, debitando-as a fatores externos.

  • - Incompleto: não responde a todos os quesitos para a avaliação da qualidade da gestão quanto aos aspectos ambientais, sociais, de risco e estratégicos.

  • - Contestável, senão suspeito: dá margem ao falso positivo (é dito, mas não existe) e ao falso negativo (não é dito, mas existe), visto que nem é mesmo auditado.

  • - Dúbio: não se utiliza de termos precisos, distanciando da quantificação precisa.

  • - Trabalhoso e indutor de subjetividade, visto que é narrativo, o que implica em análise qualitativa, com as características que lhe são peculiares, e na utilização de amostras, de praxe, não probabilísticas.

  • - Incerto, pois é resultante de mecanismos da agência.

  • - Útil, na falta de outro; abrangente, disponível e recuperável ao longo do tempo.

Em decorrência, os resultados das pesquisas derivados do RA não são generalizáveis e as variáveis estudadas, quando encontradas com significação estatística (algo discutível, uma vez que decorrem de amostras por conveniência), têm baixo valor explicativo em função da atuação do poder discricionário do Administrador.

Foi observado um padrão: a maior parte dos trabalhos adotou o modelo comum ao grupo de pesquisadores centrado na equipe da FURB, atuante desde 2005, que favorece a ótica contábil: a narrativa do RA é convertida em um grau de evidenciação e testa-se a associação dessa variável com algum condicionante ou efeito. A observação desse padrão foi possível através da construção da DSG. Essa contribuição talvez seja um diferencial (e, assumidamente, também um risco) da pesquisa. Enquanto a maioria dos trabalhos bibliométricos contenta-se em dar tratamento analítico aos dados, o esforço para derivar a partir disso uma síntese foi essencial, na opinião dos autores desta pesquisa, na revelação do padrão subjacente ao material analisado.

Seria razoável reparar que parte da crítica dos pesquisadores ao RA deve ser relativizada. Eles a fazem sob um ponto de vista acadêmico (influenciados pelos padrões institucionais do campo científico brasileiro), sem que os autores se coloquem no lugar dos receptores potenciais prioritários (que frequentam o campo empresarial). Se resta dúvida sobre quem eles são entre os indicados pela CVM, é pouco provável que o Administrador considere, na elaboração de seu RA, até mesmo marginalmente, as demandas de um grupo fechado de pesquisadores, a menos que esse grupo assuma relevância ao serem, eventualmente, ouvidos pelos órgãos reguladores. Aparentemente, os autores do BD relevam o fato de estarem utilizando lentes interpretativistas do campo científico em um documento pertencente ao campo empresarial, no qual um bom RA é aquele que provoca reações positivas (se possível, refletida em aumento do preço das ações), mesmo sendo academicamente incompleto e enviesado.

Por outro lado, haveria uma possibilidade de extrair novos entendimentos a partir dos RA. Essa alternativa já apareceu de forma episódica e pode merecer maior atenção, talvez de outro grupo de pesquisadores, mais próximo da teoria das organizações.

Se é aceitável, como defendido na maioria dos trabalhos do BD, que os Administradores busquem legitimar suas empresas, incorporando, pelo menos em discurso, o emprego de práticas contemporâneas de gestão, não é menos aceitável que tais práticas sejam institucionalizadas também através discurso dos Administradores (e por outros mecanismos), em uma trajetória dualística (legitimação e institucionalização) ao longo do tempo.

Seria de todo interessante descobrir, por exemplo, como o 'controle de poluição' e o 'aumento de eficiência' foi convertido em 'gestão ambiental', daí em 'desenvolvimento sustentável' e resultou em 'sustentabilidade' ou 'ecoeficiência', dois termos em moda, e para onde irá a partir daí. Em palavras mais gerais, como as organizações têm-se apropriado de valores ou reagido às pressões da sociedade, convertendo-os em recursos discursivos - interessante, mesmo e/ou principalmente se não aplicados.

Ademais, se é possível buscar o discurso atual de alguns gerentes através de entrevistas (depois de vencidos obstáculos consideráveis), postula-se que o RA seria a única fonte hábil, ampla, histórica, disponível e pouco onerosa de investigar a institucionalização das práticas nas organizações - bem parecido com o que é feito ao se preocupar com a institucionalização das mesmas práticas (e também teorias e métodos) na academia, quando ao invés de RA, as fontes são os próprios textos científicos. A partir disso, a pesquisa proposta redundaria em teoria, não em generalizações descritivas - demostrando-se válida a dualidade posta em evidência.

Adicionalmente, haveria uma questão em aberto: os RA seriam documentos adequados para rastrear algum indício de Institutional Work (IW), entendido como uma ação proposital para mudar o ambiente institucional no campo organizacional? Aqui há o desafio de, hipoteticamente, ao não se encontrar tais indícios, indicar se isso é devido à omissão no RA ou à inexistência de IW. Em qualquer situação, restaria outra contribuição à ciência administrativa.

Ao final, cabe uma ressalva. Uma metainterpretação pode ser tida como reducionista, incapaz de manter a integridade dos trabalhos originais, cada um com suas nuances. A crítica é válida, mas seria mais pertinente quando se pretende produzir uma agregação de trabalhos originais (Walsh & Downe, 2005Walsh, D. & Downe, S. (2005). Meta-synthesis method for qualitative research: a literature review. Methodological Issues in Nursing Research, 50(2), 204-211.). Aqui não se teve essa pretensão, visto que a intenção foi suprir uma interpretação do que transparece dos textos postos em análise, contribuindo para o entendimento de como a academia trabalha e poderia trabalhar com o RA.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2016
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2015
  • Aceito
    02 Abr 2016
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