Acessibilidade / Reportar erro

Pesquisa em História da Contabilidade: Escopo, Tópicos e Agenda

1. DANDO VIDA À PESQUISA: INSTITUIÇÕES

Desde a década de 1970, a história da contabilidade tem construído uma considerável infraestrutura de pesquisa (por exemplo, congressos, periódicos e associações) que proporciona apoio ao networking, bem como à disseminação de estudos nessa área. Este editorial analisa as tendências da pesquisa em história da contabilidade e sugere quatro áreas: (i) novas configurações e períodos de observação; (ii) contabilidade em povos indígenas; (iii) gênero; e (iv) contabilidade e Estado se comprometem a aprimorar o conhecimento em contabilidade.

Em 1970, Ernest Stevelinck organizou em Bruxelas o primeiro Congresso Mundial de Historiadores da Contabilidade, que sinalizou o despertar da pesquisa em história da contabilidade como disciplina acadêmica. Os congressos mundiais inculcaram nos historiadores da contabilidade a prática de receber feedback de alta qualidade acerca de seus estudos antes de submeter seus trabalhos a um periódico ou seus livros a uma editora. Em 1973, Gary J. Previts liderou a fundação da Academia de Historiadores da Contabilidade. Para os historiadores da contabilidade, a Academia tornou-se uma referência em networking, bem como na divulgação da pesquisa. Assim, a Academia lançou o primeiro periódico especializado na área, The Accounting Historians Journal(AHJ), em 1974.

A partir dessas bases institucionais (por exemplo, congresso, organização acadêmica, periódico acadêmico), a pesquisa em história da contabilidade já não era mais praticada por poucos estudiosos de alto nível, como Basil Yamey e suas contribuições com o papel desempenhado pela contabilidade no surgimento do capitalismo (Yamey, 1949Yamey, B. S. (1949). Scientific bookkeeping and the rise of capitalism.The Economic History Review, 1(2/3), 99-113., 1964Yamey, B. S. (1964). Accounting and the rise of capitalism: further notes on a theme by Sombart.Journal of Accounting Research, 2(2), 117-136.), ou David Solomons, e sua influente obra sobre práticas avançadas de custeio no final do século XIX (Solomons, 1952Solomons, D. (Ed.). (1952).Studies in costing. London: Sweet & Maxwell.). Em vez disso, essa infraestrutura acadêmica impulsionou a visibilidade da pesquisa em história da contabilidade e suscitou o interesse em um número cada vez maior de estudiosos, que se estabeleceram em vários países desenvolvidos.

Em geral, a pesquisa se concentrou no exame das origens da contabilidade e do método das partidas dobradas. Stevelinck e coautores abordaram a contabilidade na Antiguidade (Stevelinck & Most, 1985Stevelinck, E., & Most, K. S. (1985). Accounting in ancient times.The Accounting Historians Journal ,12(1), 1-16.) e os aspectos biográficos e artísticos da figura de Pacioli (Stevelinck, 1986Stevelinck, E. (1986). The many faces of Luca Pacioli: iconographic research over thirty years.The Accounting Historians Journal ,13(2), 1-18., 1994Stevelinck, E. (1994). Goodbye to my friend Pacioli.The Accounting Historians Journal,21(1), 1-15.). Ademais, estudos que examinam as origens do método das partidas dobradas enfocaram contextos mais amplos que testemunharam a publicação da Summa de Pacioli, bem como seus fundamentos técnicos (Williams, 1978Williams, J. J. (1978). A new perspective on the evolution of double-entry bookkeeping.The Accounting Historians Journal , 5(1), 29-40.; Antinori, 1994Antinori, C. (1994). Luca Pacioli e la Summa de arithmetica. Roma: Istituto Poligráfico e Zecca dello Stato.; Hernández Esteve, 1994Hernández Esteve, E. (1994). Luca Pacioli, de las cuentas y las escrituras, Título Noveno. Tratado XI de su Summa de Arithmetica, geometria, proportione et proportionalita. Madrid: AECA.). Esse fluxo de pesquisas também proporcionou contribuições importantes para o início da disseminação do método das partidas dobradas em diversas indústrias - p. ex., o setor público espanhol (Hernández Esteve, 1986); venda de metais preciosos (Donoso Anes, 1994Donoso Anes, R. (1994). The Casa de la Contratación de Indias and the application of double entry bookkeeping to the sale of precious metals in Spain, 1557-83.Accounting, Business & Financial History, 4(1), 83-98.). Além disso, os historiadores da contabilidade realizaram estudos importantes sobre aspectos biográficos - p. ex., Federigo Melis (ver Garner, 1976Garner, S. P. (1976). The Melis testimonial.The Accounting Historians Journal , 3(1-4), 13-15.); contribuições britânicas (ver Parker & Yamey, 1994Parker, R. H., & Yamey, B. S. (1994).Accounting history: some British contributions. Oxford: Oxford University Press.) -, bem como sobre o papel desempenhado pelos educadores em contabilidade (Zeff, 1999Zeff, S. A. (1999).Henry Rand Hatfield: humanist, scholar, and accounting educator. Stamford, CT: JAI Press., 2000Zeff, S. A. (2000). John B. Canning: a view of his academic career.Abacus,36(1), 4-39.). Por outro lado, estudos sobre as origens e os fundamentos da contabilidade não negligenciaram as práticas da contabilidade de custos; Wells (1977Wells, M. C. (1977). Some influences on the development of cost accounting.The Accounting Historians Journal , 4(2), 47-62.) examinou o desenvolvimento da contabilidade de custos e Hallbauer (1978Hallbauer, R. C. (1978). Standard costing and scientific management.The Accounting Historians Journal , 5(2), 27-51.) analisou a relação da contabilidade de custos com outras disciplinas (p. ex., gerenciamento científico). Por fim, a pesquisa histórica também abordou como as indústrias de ponta contribuíram com o desenvolvimento de práticas contábeis inovadoras - p. ex., ferrovias (Boockholdt, 1978Boockholdt, J. L. (1978). Influence of nineteenth and early twentieth century railroad accounting on the development of modern accounting theory.The Accounting Historians Journal, 5(1), 9-28.; Previts & Samson, 2000Previts, G. J., & Samson, W. D. (2000). Exploring the contents of the Baltimore and Ohio Railroad Annual Reports: 1827-1856.The Accounting Historians Journal ,27(1), 1-42.).

Em geral, a pesquisa em história da contabilidade se concentrou em tópicos como as origens do método das partidas dobradas, o papel da contabilidade no surgimento do capitalismo, a biografia, o surgimento e a evolução das práticas da contabilidade de custos e como algumas indústrias contribuíram para o desenvolvimento das práticas e da teoria da contabilidade. Para tanto, a pesquisa histórica baseou-se em fontes primárias ou secundárias para enfocar a descrição de eventos históricos e houve poucas tentativas para envolver evidências históricas em um quadro teórico e informativo. Por fim, vale observar o perfil internacional da pesquisa em história da contabilidade, em especial considerando a estrutura de comunicação e logística desse período; desde sua fundação, o AHJ publicou artigos que abordam práticas contábeis em uma variedade de configurações internacionais (p. ex., Grécia, Índia, Itália, Japão).

2. GANHANDO IMPULSO

O rigor e a importância da pesquisa em história da contabilidade receberam aprovação significativa de estudiosos bem estabelecidos. Em um contexto no qual os EUA estavam perdendo sua supremacia industrial para o Japão, a contabilidade gerencial testemunhou um debate aprofundado sobre a relevância dos dados de custos para a avaliação do desempenho e a tomada de decisões gerenciais (Kaplan, 1983Kaplan, R. S. (1983, October). Measuring manufacturing performance: a new challenge for managerial accounting research. Accounting Review,57, 686-705.). Foi argumentado que os princípios contabilísticos financeiros anularam as práticas da contabilidade de custos nas empresas, que se inclinava a metas de relatórios, em vez de proporcionar gerenciamento com dados relevantes para fins de tomada de decisão e controle. No contexto desse debate, Johnson e Kaplan (1986Johnson, H. T., & Kaplan, R. S. (1986).Relevance lost: the rise and fall of management accounting. Cambridge, MA: Harvard Business Press.) adotaram uma perspectiva histórica de apoio à “relevância” dos dados de custos; os autores sugerem que a implementação dos sistemas iniciais da contabilidade de custos que ocorreram durante a Revolução Industrial britânica foi motivada por fins de eficiência; a crescente concorrência reduziu as margens de lucro das empresas e elas tiveram de implementar sistemas de cálculo de custos com vistas à melhoria da eficiência. Sob uma perspectiva diferente, Hopwood (1987Hopwood, A. G. (1987). The archeology of accounting systems.Accounting, Organizations and Society ,12(3), 207-234.) examinou os processos de mudança contábil e a necessidade de aprender mais sobre as condições prévias dessa mudança. O autor sugere que a pesquisa em mudanças contábeis deve ser incorporada em seus contextos sociais mais amplos e que as contribuições para a teorização da contabilidade exigem o envolvimento em estruturas teóricas (p. ex., Foucault, 1972Foucault, M. (1972).Archaeology of knowledge. Oxon: Routledge., 1977Foucault, M. (1977).Discipline and punish: the birth of the prison. New York: Vintage.; Giddens, 1984Giddens, A. (1984).The constitution of society: Outline of the theory of structuration .Cambridge: Polity.). Hopwood (1987Hopwood, A. G. (1987). The archeology of accounting systems.Accounting, Organizations and Society ,12(3), 207-234.) também adotou uma perspectiva histórica e baseou-se no quadro de poder/conhecimento de Foucault para enfatizar o papel da contabilidade como um instrumento de controle a distância, uma abordagem que foi aplicada nas prisões e beneficiada pelo design arquitetônico (p. ex., o pan-óptico de Bentham).

Os apelos de Kaplan e Hopwood para uma abordagem histórica para a relevância dos dados de custos e o exame dos processos de mudança contábil influenciaram significativamente a agenda de pesquisa. Além disso, tais apelos aumentaram a visibilidade e o impacto da contínua pesquisa histórica. Fleischman e Parker (1991Fleischman, R. K., & Parker, L. D. (1991). British entrepreneurs and pre-industrial revolution evidence of cost management.Accounting Review,66(2), 361-375.) examinaram dados da contabilidade de custos das empresas que operavam durante a Revolução Industrial britânica e identificaram quatro áreas principais de atividade: (i) técnicas de controle de custos; (ii) contabilização de despesas gerais; (iii) custeio para a tomada de decisão de rotina e especial; e (iv) cálculo de custos padrão. Por outro lado, e adotando uma abordagem sociológica para examinar eventos históricos, Hoskin e Macve (1986Hoskin, K. W., & Macve, R. H. (1986). Accounting and the examination: a genealogy of disciplinary power.Accounting, Organizations and Society ,11(2), 105-136., 1988Hoskin, K. W., & Macve, R. H. (1988). The genesis of accountability: the West Point connections.Accounting, Organizations and Society ,13(1), 37-73.) analisaram as histórias publicadas dos arsenais e nas ferrovias dos EUA para abordar a gênese do novo gerencialismo. Os autores rastrearam a implementação de um rigoroso sistema de responsabilidade humana nessas indústrias para influenciar os graduados da Academia Militar dos EUA, uma instituição educacional de elite, que era bem avançada com elementos de poder disciplinar, como o pan-óptico, que se refere ao ponto ou posição central de onde se tem uma visão periférica.

Assim, houve duas abordagens para realizar pesquisa em história da contabilidade, que se concentraram nos aspectos técnicos e econômicos dos sistemas contábeis ou nos aspectos sociológicos. Tais abordagens foram examinadas por Ezzamel, Hoskin e Macve (1990Ezzamel, M., Hoskin, K., & Macve, R. (1990). Managing it all by numbers: a review of Johnson & Kaplan's ‘Relevance Lost’.Accounting and Business Research,20(78), 153-166.), em sua revisão de Relevance Lost, de Johnson e Kaplan. Nesse sentido, Miller, Hopper e Laughlin (1991Miller, P., Hopper, T., & Laughlin, R. (1991). New accounting history. An introduction.Accounting, Organizations and Society ,16(5/6), 395-403.) comentaram a pesquisa em história da contabilidade realizada durante a década de 1980 e identificaram duas vertentes, que rotularam como história da contabilidade tradicional e nova, respectivamente. Napier (2009Napier, C. J. (2009). Historiography. In J. R. Edwards & S. P. Walker (Ed.),The Routledge Companion toAccounting History (pp. 30-49). Oxon: Routledge .), em sua ampla revisão da pesquisa em história da contabilidade, apoiou a classificação de Miller e coautores da história contábil tradicional e nova, mas propôs uma terminologia menos presunçosa: contabilidade histórica e contabilidade sócio-histórica. A primeira aborda os aspectos técnicos do ofício contábil, ao passo que a segunda tenta envolver evidências históricas em estruturas sociológicas e gerenciais. Em relação à categorização sócio-histórica, houve dois principais fluxos de pesquisa: marxista (Bryer, 2005Bryer, R. A. (2005). A Marxist accounting history of the British Industrial Revolution: a review of evidence and suggestions for research.Accounting, Organizations and Society,30(1), 25-65.) e foucaultiana (Carmona, Ezzamel, & Gutiérrez, 1997Carmona, S., Ezzamel, M., & Gutiérrez, F. (1997). Control and cost accounting practices in the Spanish Royal Tobacco Factory.Accounting, Organizations and Society ,22(5), 411-446., 2002Carmona, S., Ezzamel, M., & Gutiérrez, F. (2002). The relationship between accounting and spatial practices in the factory.Accounting, Organizations and Society,27(3), 239-274.). Em geral, a distinção entre a perspectiva de história da contabilidade tradicional/nova e a nova/sócio-histórica mostra-se intelectualmente válida, mas não necessariamente contraditória. Como demonstrado pela evidência histórica oferecida por Carmona, Ezzamel and Gutiérrez (2004)Carmona, S., Ezzamel, M., & Gutiérrez, F. (2004). Accounting history research: traditional and new accounting history perspectives.De Computis: Spanish Journal ofAccounting History , 1(1), 24-53., uma integração de ambas as abordagens é viável e isso pode aumentar a força da pesquisa em história da contabilidade.

A pesquisa em história da contabilidade continuou crescendo ao longo das últimas décadas. Do ponto de vista institucional, foram criados dois periódicos especializados internacionais: Accounting, Business and Financial History, fundado por Dick Edwards e Trevor Boyns, que mudou seu nome para Accounting History Review, e depois foi editado por Steve Walker e Cheryl McWatters; e Accounting History, que foi fundada e editada por Garry Carnegie com coeditores. Além disso, alguns periódicos especializados foram publicados em algumas jurisdições (p. ex., na Espanha: De Computis, fundado por Esteban Hernández Esteve e atualmente editado por Fernando Gutiérrez Hidalgo). Além disso, um número cada vez maior de oficinas e conferências especializadas sobre história da contabilidade sinalizou que essa infraestrutura acadêmica de alto perfil levou a pesquisa em história da contabilidade a ganhar impulso (ver Napier, 2006Napier, C. J. (2006). Accounts of change: 30 years of historical accounting research.Accounting, Organizations and Society ,31(4), 445-507., 2009Napier, C. J. (2009). Historiography. In J. R. Edwards & S. P. Walker (Ed.),The Routledge Companion toAccounting History (pp. 30-49). Oxon: Routledge .).

3. DESAFIOS E OPORTUNIDADES: AGENDA DE PESQUISA

A evolução da história da contabilidade oferece algumas oportunidades para futuras pesquisas nessa área. Na minha opinião, as investigações que abordam (i) configurações e períodos de observação que são amplamente negligenciados pela pesquisa existente, (ii) contabilidade em povos indígenas, (iii) gênero, e (iv) contabilidade e Estado se comprometem a contribuir com as categorizações da pesquisa em história da contabilidade observada acima (p. ex., história da contabilidade/contabilidade sócio-histórica).

3.1 Tempo-espaço

A pesquisa em história da contabilidade ainda é dominada por uma interseção espaço-tempo bastante tênue, ou seja, países anglófonos e o período de observação 1850-1945 (Carmona, 2006Carmona, S. (2006). Performance reviews, the impact of accounting research, and the role of publication forms.Advances in Accounting,22, 241-267.; Walker, 2006Walker, S. P. (2006). Current trends in accounting history.IrishAccounting Review ,13(2), 107-121., 2009Walker, S. P. (2009). Structures, territories and tribes. In J. R. Edwards & S. P. Walker (Ed.),The Routledge companion to accounting history (pp. 11-29). Oxon: Routledge .). Parafraseando Scott (1995Scott, W. R. (1995).Institutions and organizations. Thousand Oaks, CA: Sage.), pode ser difícil, se não impossível, aprimorar o conhecimento em nossa disciplina se todos os nossos casos fossem retirados dos mesmos, ou muito semelhantes, contextos. Portanto, a pesquisa em história da contabilidade baseada em jurisdições que foram amplamente negligenciadas por artigos publicados em periódicos generalistas e especializados comprometeu-se a contribuir com a disciplina. Essas investigações oferecem novas evidências e teorias em contabilidade. Embora a história da contabilidade esteja aprimorando seu perfil internacional diante da situação descrita por Carnegie e Potter (2000Carnegie, G. D., & Potter, B. N. (2000). Publishing patterns in specialist accounting history journals in the English language, 1996-1999.The Accounting Historians Journal , 5(2), 177-198.) e Carmona (2004Carmona, S. (2004). Accounting history research and its diffusion in an international context.Accounting History, 9(3), 7-23.), novas pesquisas que abordam outras configurações (p. ex., América Latina, África) e diversos períodos de tempo (p. ex., História do Tempo Presente, Idade Média, Renascimento) pode aprimorar o perfil da disciplina. Por exemplo, estudos que exploram esse novo espaço-tempo podem abordar o papel da contabilidade na escravidão e no contrabando (p. ex., América Latina do século XVIII - ver Carmona, Donoso, & Reckers, 2013Carmona, S., Donoso, R., and Reckers, P. M. (2013). Timing in accountability and trust relationships.Journal of Business Ethics,112(3), 481-495.; Pinto & West, 2017Pinto, O., & West, B. (2017). Accounting, slavery and social history: the legacy of an eighteenth-century Portuguese chartered company.Accounting History ,22(2), 141-166.).

3.2 Povos indígenas

Ainda temos muito a aprender sobre práticas contábeis e organizacionais dos povos indígenas (para uma obra abrangente, ver Greer & Neu, 2009Greer, S., & Neu, D. (2009). Indigenous peoples and colonialism. In J. R. Edwards & S. P. Walker (Ed.),The Routledge companion to accounting history(pp. 470-484). London: Routledge.). Esse fluxo de pesquisa afirma que a história tradicionalmente se concentrou nos registros e nas histórias dos vencedores, portanto, não se sabe muito sobre os povos que foram colonizados, derrotados ou até sofreram genocídio por parte de nações avançadas. Esse fluxo surgiu após a obra seminal de Brown (1970Brown, D. (1970).Bury my heart at wounded knee: an Indian history of the American West. Holt, Rinehart and Winston: New York.) sobre os nativos norte-americanos no oeste dos EUA no final do século XIX. Como sugerido por Sy e Tinker (2005Sy, A., & Tinker, T . (2005). Archival research and the lost worlds of accounting.Accounting History ,10(1), 47-69.), examinar práticas contábeis e organizacionais entre tribos e pessoas não ocidentais pode trazer dificuldades relativas a evidências de apoio, em especial se abordadas sob uma perspectiva tradicional, ocidental (p. ex., registros escritos). No entanto, há necessidade de ser otimista quanto a isso: documentos em periódicos generalistas e especializados mostram que os editores são flexíveis em relação a pesquisas apoiadas em fontes contábeis não convencionais (p. ex., história oral), e esse tipo de estudo pode aumentar o crescimento da disciplina. Por exemplo, Annisette (2006Annisette, M. (2006). People and periods untouched by accounting history: an ancient Yoruba practice.Accounting History,11(4), 399-417.) se concentrou na África pré-colonial para examinar a antiga prática iorubá e como tal prática pode aprimorar o conhecimento sobre o “verdadeiramente desconhecido”.

3.3 Gênero

Há um fluxo de pesquisa escasso, mas crescente, que examina a relação entre contabilidade e gênero. Como fazer o gênero é de fato um conceito cultural, há oportunidade para que os historiadores da contabilidade façam uma significativa contribuição a essa área. Para tanto, a relação entre contabilidade e espaço de gênero (p. ex., doméstico, local de trabalho) oferece excelentes oportunidades de pesquisa. Além disso, a pesquisa existente apresenta conhecimento aprimorado nessa área: Walker (1998Walker, S. P. (1998). How to secure your husband’s esteem. Accounting and private patriarchy in the British middle class household during the nineteenth century.Accounting, Organizations and Society ,23(5/6), 485-514.) examinou o papel da contabilidade no cotidiano dos lares britânicos durante o século XIX e constatou que as técnicas contábeis foram completamente implementadas na família de classe média. Vale ressaltar que a contabilidade foi utilizada como instrumento de dominação dos homens, restringindo o consumo das mulheres e limitando a vida das mulheres aos papéis domésticos. Carmona, Ezzamel e Mogotocoro (no prelo) examinaram a relação entre gênero, estilos de gestão e formas do capital em Cartagena das Índias (atual Colômbia) durante o século XVIII e descobriram que os estilos de gestão estereotipados foram desdobrados seletivamente, o que incluiu um estilo de gestão masculino que embasou a tomada de decisões financeiras e as transações comerciais, ao passo que um estilo de gestão feminino ajudou a aumentar o capital social. Quanto à relação entre a contabilidade e o local de trabalho de gênero, Carmona e Ezzamel (2016Carmona, S., & Ezzamel, M. (2016). Accounting and lived experience in the gendered workplace.Accounting, Organizations and Society ,49, 1-8.) sugeriram três áreas principais de pesquisa: (i) como o olhar humano produz divisões de gênero no local de trabalho; (ii) como a contabilidade funciona como um olhar e produz divisões de gênero no local de trabalho, observando o alcance da resistência; e (iii) como as tecnologias de contabilidade de gênero reafirmam as divisões de gênero existentes.

3.4 Contabilidade e Estado

O papel do Estado nas atividades sociais e econômicas variou em países e regiões e a contabilidade não desempenhou um papel neutro na estrutura e organização dos Estados (Miller, 1990Miller, P. (1990). On the relations between accounting and the State.Accounting, Organizations and Society ,15(4), 315-338.). Em algumas jurisdições (p. ex., Veneza do século XVI - ver Zan, 2004Zan, L. (2004). Accounting and management discourse in proto-industrial settings: the Venice Arsenal in the turn of the 16thcentury.Accounting and Business Research,34(2), 145-175.), o Estado exerceu rígido controle sobre a economia e aplicou sofisticados processos de trabalho e controle por meio de recursos gerenciais e de controle. Em outros círculos (p. ex., América Latina do século XVIII), o Estado se tornou um fornecedor de mão de obra por meio do comércio de escravos, que constituía um negócio lucrativo, mas também um pretexto para o contrabando (Carmona, Donoso, & Walker, 2010Carmona, S., Donoso, R., & Walker, S. P. (2010). Accounting and international relations: Britain, Spain and the Asiento Treaty.Accounting, Organizations and Society ,35(2), 252-273.). No século XVIII, o fornecimento de escravos às colônias espanholas na América Latina foi terceirizado para a Grã-Bretanha e a contabilidade se tornou fundamental nas relações internacionais entre esses Estados (p. ex., guerras).

4. OBSERVAÇÕES FINAIS

A pesquisa em história da contabilidade oferece excelentes oportunidades para desenvolver o conhecimento empírico sobre o funcionamento dos sistemas contábeis, bem como para aprimorar a teorização contábil. Desde a década de 1970, a história da contabilidade construiu uma infraestrutura de pesquisa considerável (p. ex., congressos, periódicos e associações) que apoia a disseminação tanto de networking como de pesquisa na área. Este editorial sugere que a pesquisa histórica focada em quatro áreas comprometa-se a aprimorar o conhecimento em contabilidade. No entanto, tais áreas não devem ser consideradas de modo restritivo, já que muitas outras decerto contribuirão com a pesquisa em história da contabilidade. De modo relevante, estudiosos jovens, em ascensão e em topo de carreira que se dediquem a estudos iniciais nessa área podem desejar adotar um ponto de vista ambicioso em suas investigações; eles podem apostar alto tanto em evidências históricas e contribuições teóricas. Tal abordagem aumentará suas possibilidades de publicar artigos nas principais instâncias, naquelas que se encontram no topo da cadeia.

REFERENCES

  • Annisette, M. (2006). People and periods untouched by accounting history: an ancient Yoruba practice.Accounting History,11(4), 399-417.
  • Antinori, C. (1994). Luca Pacioli e la Summa de arithmetica. Roma: Istituto Poligráfico e Zecca dello Stato.
  • Boockholdt, J. L. (1978). Influence of nineteenth and early twentieth century railroad accounting on the development of modern accounting theory.The Accounting Historians Journal, 5(1), 9-28.
  • Brown, D. (1970).Bury my heart at wounded knee: an Indian history of the American West Holt, Rinehart and Winston: New York.
  • Bryer, R. A. (2005). A Marxist accounting history of the British Industrial Revolution: a review of evidence and suggestions for research.Accounting, Organizations and Society,30(1), 25-65.
  • Carmona, S. (2004). Accounting history research and its diffusion in an international context.Accounting History, 9(3), 7-23.
  • Carmona, S. (2006). Performance reviews, the impact of accounting research, and the role of publication forms.Advances in Accounting,22, 241-267.
  • Carmona, S., Donoso, R., and Reckers, P. M. (2013). Timing in accountability and trust relationships.Journal of Business Ethics,112(3), 481-495.
  • Carmona, S., Donoso, R., & Walker, S. P. (2010). Accounting and international relations: Britain, Spain and the Asiento Treaty.Accounting, Organizations and Society ,35(2), 252-273.
  • Carmona, S., & Ezzamel, M. (2016). Accounting and lived experience in the gendered workplace.Accounting, Organizations and Society ,49, 1-8.
  • Carmona, S., Ezzamel, M., & Gutiérrez, F. (1997). Control and cost accounting practices in the Spanish Royal Tobacco Factory.Accounting, Organizations and Society ,22(5), 411-446.
  • Carmona, S., Ezzamel, M., & Gutiérrez, F. (2002). The relationship between accounting and spatial practices in the factory.Accounting, Organizations and Society,27(3), 239-274.
  • Carmona, S., Ezzamel, M., & Gutiérrez, F. (2004). Accounting history research: traditional and new accounting history perspectives.De Computis: Spanish Journal ofAccounting History , 1(1), 24-53.
  • Carnegie, G. D., & Potter, B. N. (2000). Publishing patterns in specialist accounting history journals in the English language, 1996-1999.The Accounting Historians Journal , 5(2), 177-198.
  • Donoso Anes, R. (1994). The Casa de la Contratación de Indias and the application of double entry bookkeeping to the sale of precious metals in Spain, 1557-83.Accounting, Business & Financial History, 4(1), 83-98.
  • Ezzamel, M., Hoskin, K., & Macve, R. (1990). Managing it all by numbers: a review of Johnson & Kaplan's ‘Relevance Lost’.Accounting and Business Research,20(78), 153-166.
  • Fleischman, R. K., & Parker, L. D. (1991). British entrepreneurs and pre-industrial revolution evidence of cost management.Accounting Review,66(2), 361-375.
  • Foucault, M. (1972).Archaeology of knowledge Oxon: Routledge.
  • Foucault, M. (1977).Discipline and punish: the birth of the prison New York: Vintage.
  • Garner, S. P. (1976). The Melis testimonial.The Accounting Historians Journal , 3(1-4), 13-15.
  • Giddens, A. (1984).The constitution of society: Outline of the theory of structuration .Cambridge: Polity.
  • Greer, S., & Neu, D. (2009). Indigenous peoples and colonialism. In J. R. Edwards & S. P. Walker (Ed.),The Routledge companion to accounting history(pp. 470-484). London: Routledge.
  • Hallbauer, R. C. (1978). Standard costing and scientific management.The Accounting Historians Journal , 5(2), 27-51.
  • Hernández Esteve, E. (1986). Pedro Luis de Torregrosa, primer contador del libro de Caxa de Felipe II. Introducción de la contabilidad por partida doble en la Real Hacienda de Castilla (1592).Revista de Historia Económica, 3(2), 221-245.
  • Hernández Esteve, E. (1994). Luca Pacioli, de las cuentas y las escrituras, Título Noveno. Tratado XI de su Summa de Arithmetica, geometria, proportione et proportionalita. Madrid: AECA.
  • Hopwood, A. G. (1987). The archeology of accounting systems.Accounting, Organizations and Society ,12(3), 207-234.
  • Hoskin, K. W., & Macve, R. H. (1986). Accounting and the examination: a genealogy of disciplinary power.Accounting, Organizations and Society ,11(2), 105-136.
  • Hoskin, K. W., & Macve, R. H. (1988). The genesis of accountability: the West Point connections.Accounting, Organizations and Society ,13(1), 37-73.
  • Johnson, H. T., & Kaplan, R. S. (1986).Relevance lost: the rise and fall of management accounting Cambridge, MA: Harvard Business Press.
  • Kaplan, R. S. (1983, October). Measuring manufacturing performance: a new challenge for managerial accounting research. Accounting Review,57, 686-705.
  • Miller, P. (1990). On the relations between accounting and the State.Accounting, Organizations and Society ,15(4), 315-338.
  • Miller, P., Hopper, T., & Laughlin, R. (1991). New accounting history. An introduction.Accounting, Organizations and Society ,16(5/6), 395-403.
  • Napier, C. J. (2006). Accounts of change: 30 years of historical accounting research.Accounting, Organizations and Society ,31(4), 445-507.
  • Napier, C. J. (2009). Historiography. In J. R. Edwards & S. P. Walker (Ed.),The Routledge Companion toAccounting History (pp. 30-49). Oxon: Routledge .
  • Parker, R. H., & Yamey, B. S. (1994).Accounting history: some British contributions Oxford: Oxford University Press.
  • Pinto, O., & West, B. (2017). Accounting, slavery and social history: the legacy of an eighteenth-century Portuguese chartered company.Accounting History ,22(2), 141-166.
  • Previts, G. J., & Samson, W. D. (2000). Exploring the contents of the Baltimore and Ohio Railroad Annual Reports: 1827-1856.The Accounting Historians Journal ,27(1), 1-42.
  • Scott, W. R. (1995).Institutions and organizations Thousand Oaks, CA: Sage.
  • Solomons, D. (Ed.). (1952).Studies in costing London: Sweet & Maxwell.
  • Stevelinck, E. (1986). The many faces of Luca Pacioli: iconographic research over thirty years.The Accounting Historians Journal ,13(2), 1-18.
  • Stevelinck, E. (1994). Goodbye to my friend Pacioli.The Accounting Historians Journal,21(1), 1-15.
  • Stevelinck, E., & Most, K. S. (1985). Accounting in ancient times.The Accounting Historians Journal ,12(1), 1-16.
  • Sy, A., & Tinker, T . (2005). Archival research and the lost worlds of accounting.Accounting History ,10(1), 47-69.
  • Walker, S. P. (1998). How to secure your husband’s esteem. Accounting and private patriarchy in the British middle class household during the nineteenth century.Accounting, Organizations and Society ,23(5/6), 485-514.
  • Walker, S. P. (2006). Current trends in accounting history.IrishAccounting Review ,13(2), 107-121.
  • Walker, S. P. (2009). Structures, territories and tribes. In J. R. Edwards & S. P. Walker (Ed.),The Routledge companion to accounting history (pp. 11-29). Oxon: Routledge .
  • Wells, M. C. (1977). Some influences on the development of cost accounting.The Accounting Historians Journal , 4(2), 47-62.
  • Williams, J. J. (1978). A new perspective on the evolution of double-entry bookkeeping.The Accounting Historians Journal , 5(1), 29-40.
  • Yamey, B. S. (1949). Scientific bookkeeping and the rise of capitalism.The Economic History Review, 1(2/3), 99-113.
  • Yamey, B. S. (1964). Accounting and the rise of capitalism: further notes on a theme by Sombart.Journal of Accounting Research, 2(2), 117-136.
  • Zan, L. (2004). Accounting and management discourse in proto-industrial settings: the Venice Arsenal in the turn of the 16thcentury.Accounting and Business Research,34(2), 145-175.
  • Zeff, S. A. (1999).Henry Rand Hatfield: humanist, scholar, and accounting educator Stamford, CT: JAI Press.
  • Zeff, S. A. (2000). John B. Canning: a view of his academic career.Abacus,36(1), 4-39.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017
Universidade de São Paulo, Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Departamento de Contabilidade e Atuária Av. Prof. Luciano Gualberto, 908 - prédio 3 - sala 118, 05508 - 010 São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (55 11) 2648-6320, Tel.: (55 11) 2648-6321, Fax: (55 11) 3813-0120 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: recont@usp.br